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Crônica de uma ultrapassagem

A perda da liderança da GM para a Toyota revela como a acomodação


pode ser perversa para uma empresa

POR JOAQUIM CASTANHEIRA

Era questão de tempo e ocorreu na semana passada. Depois de 75 anos na liderança


absoluta nas vendas mundiais de automóveis, a General Motors foi suplantada pela
Toyota. Nos primeiros três meses deste ano, a americana colocou no mercado 2,26
milhões de automóveis, mas a japonesa a superou em 900 mil unidades. Foi uma típica
crônica de uma ultrapassagem anunciada. Desde a década de 80, as montadoras
nipônicas vêm ganhando espaço nos corações e mentes dos consumidores de várias
partes do planeta. Com seus modelos de produção enxutos, seus carros econômicos e a
imagem de qualidade e excelência tecnológica, Honda, Nissan e sobretudo a Toyota se
adaptaram mais facilmente às novas exigências de consumo do que suas concorrentes
americanas. E talvez esteja aí a principal lição a ser extraída dessa espetacular virada
no mercado automobilístico. Nunca, nem mesmo nos momentos de maior crescimento,
os japoneses se deixaram levar pelo que os consultores chamam de “síndrome da
liderança”, cujos principais sintomas são a acomodação, o distanciamento dos clientes e
a ausência de criatividade.

Se a GM padeceu desse mal, a Toyota tratou de criar anticorpos bem antes de sonhar
com o topo no pódio global dos automóveis. Desde a década de 50, ainda sobre as
cinzas da Segunda Guerra Mundial, a montadora desenvolveu uma série de métodos e
sistemas para alavancar a qualidade de seus produtos e buscar o aprimoramento
permanente. Há uma ironia nessa história. Os conceitos do que ficou conhecido como
modelo Toyota de produção foram extraídos dos trabalhos de um americano, William
Edwards Deming. Formado em matemática e física, Deming morreu em 1993, mais
conhecido e reconhecido no Japão do que nos Estados Unidos. No pós-guerra, Deming
San ajudou na formação de engenheiros japoneses que levaram sua teoria ao chão de
fábrica. Daí surgiram modelos quase filosóficos, como o kaizen, ou melhoria contínua.
Ou seja, a perfeição deveria ser permanentemente perseguida, embora nunca fosse
atingida – uma pancada cotidiana no conformismo.

Nas linhas de produção da Toyota também nasceram preceitos como o just-in-time. Os


fornecedores se mudavam para perto da fábrica e entregavam os componentes quase
ao mesmo tempo que estes eram colocados nos carros. Isso eliminou os estoques
intermediários de peças, derrubando fortemente os custos. Hoje, não há montadora no
mundo sem esse método de produção. Os funcionários são insistentemente chamados a
dar sugestões e opiniões sobre melhorias na gestão. As metas de produção,
produtividade e qualidade são expostas em grandes painéis espalhados por toda a
empresa, nos quais há frases de estímulo à participação dos empregados. Tão logo o
sucesso do modelo japonês se tornou visível, a partir dos anos 80, empresas de todo o
mundo passaram a importar seus princípios automaticamente, sem qualquer adaptação.
Em boa parte dos casos, fracassaram.

Afinal, os métodos nipônicos possuem componentes pouco encontrados em outras


culturas que não sejam asiáticas. O principal deles é a rígida disciplina hierárquica
vigente nas instituições daquele país. No Ocidente, é diferente. As empresas
americanas, européias e brasileiras parecem não se preocupar em aproveitar os traços
de personalidade dos trabalhadores locais. Tome-se o caso do Brasil. Por que as
companhias daqui não incentivam permanentemente a criatividade e a flexibilidade,
características marcantes entre os brasileiros? Estão aí os melhores remédios contra a
acomodação e a passividade. Nada melhor do que ouvir as palavras do senhor Katsuaki
Watanabe, o presidente da atual líder mundial dos automóveis, sobre a síndrome da
liderança: “O sintoma mais assustador é que a complacência vai proliferar na
companhia. Ficar satisfeito em ser o maior do mercado e se tornar arrogante é o
caminho que devemos temer.”

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