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ISSN 2317-6644
BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (ISSN 1516-8085 impresso e 2317-6644 a partir do nº 69 no formato
digital) é uma publicação semestral da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) destinada a
estimular o intercâmbio e a cooperação entre as instituições de ensino e pesquisa em Ciências Sociais no país. A BIB é editada sob orientação
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Edição
Assistente Editorial: Mírian da Silveira Pavanelli e Raissa Wihby Ventura (PUC/SP)
Preparação/revisão de texto/copidesque: Gabriel George Martins | Tikinet
Versão/tradução de resumos: Laura Varanda (francês) (inglês) | Tikinet
Editoração eletrônica: Natalia Bae | Tikinet

Apropriate articles are abstracted/indexed in:


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Vagner Rodolfo CRB-8/9410

B581
BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais / Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – n. 41 (1996), – São Paulo : ANPOCS, 1996-.
Anual
Resumos em português, inglês e francês.
Título até o n. 40, 1995: BIB: Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais.

ISSN: 1516-8085 (impresso até edição nº 68)


ISSN: 2317-6644 (digital a partir da edição nº 69)

1. Ciências humanas 2. Ciências sociais 3. Sociologia 4. Ciência política 5. Antropologia.


I. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS.

2017-366
CDD 300
CDU 3

Índice para catálogo sistemático:


1. Ciências sociais 300
2. Ciências sociais 3

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs


Universidade de São Paulo – USP
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ISSN 2317-6644

Sumário

DOSSIÊ

Apresentação: Vinte anos de etnologia indígena das terras


baixas da América do Sul (1996-2016) 5
Artionka Capiberibe

Xamanismo nas terras baixas: 1996-2016 15


Óscar Calavia Sáez

Chefia e política na América do Sul indígena:


um balanço bibliográfico para além do modelo clastreano 41
Antonio Guerreiro

Uma etnologia no Nordeste brasileiro: balanço parcial


sobre territorialidades e identificações 71
Maria Rosário de Carvalho e Edwin B. Reesink

Uma incontornável diferença: parentesco nas


Terras Baixas da América do Sul (1996-2016) 105
Nicole Soares-Pinto

As artes indígenas: olhares cruzados 133


Els Lagrou e Lucia Hussak van Velthem

ARTIGOS

Gestão intergovernamental:
evolução, abordagens teóricas e perspectivas analítica 157
Eduardo José Grin, Fernando Luiz Abrucio e Martina Bergues

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 3-4.
Estudos feministas de mídia e política: uma visão geral 181
Rayza Sarmento

Abordagens teóricas em torno de sentidos de cidadania 203


Anna Cláudia Campos e Santos e Rennan Lanna Martins Mafra
DOI: 10.17666/bib8701/2018

APRESENTAÇÃO
Vinte anos de etnologia indígena das terras baixas da América do Sul (1996-2016)

Artionka Capiberibe1

É manifesto que balanços bibliográficos em 1956; duas décadas depois, a introdução


são excelentes fontes para a história das ideias de Egon Schaden à coletânea Leituras de et-
científicas, fornecendo um quadro das ques- nologia brasileira (1976); o artigo de Anne-
tões teórico-metodológicas mobilizadas pela Christine Taylor “L’Américanisme tropical,
literatura apreciada. De outra parte, eles são une frontière fossile de l’ethnologie” (1984);
também termômetros das agendas de pesquisa duas resenhas de Paul Henley (1980, 1996);
que pautaram (e continuam a guiar) uma disci- e, por fim, os dois balanços publicados pela
plina, área ou mesmo um tema particular den- Anpocs, num intervalo de dez anos, escritos
tro destas. A antropologia, em particular, de por Eduardo Viveiros de Castro (1999) e
tempos em tempos recorre à produção dessas Alcida Rita Ramos (2010).
revisões, que parecem ter uma dupla função: Em matéria de coletâneas e livros de-
recuperar e medir o andamento da produção, dicados a rever e também propor novos
servindo como bússola aos novos pesquisado- direcionamentos à produção em etnologia
res; e colocar novas questões, podendo com indígena a quantidade é igualmente razoá-
isso provocar mudanças nas agendas de pes- vel, destacando-se em ordem cronológica os
quisa, as quais irão, certamente, transparecer livros de orientação de leituras, produzidos
em revisões bibliográficas futuras. por Herbert Baldus, Bibliografia crítica da
Em retrospecto, a etnologia indígena das etnologia brasileira (1954, 1968), que em
terras baixas da América do Sul, cujo campo 1984 ganhou um terceiro volume, organi-
não se constitui como um dos mais povoados zado por Thekla Hartmann; a compilação
de pesquisadores no conjunto das subáreas da Native South Americans: ethnology of the Least
antropologia, tem acumulado uma produção Known Continent (1974), editada por Patricia
razoável de artigos de balanços bibliográficos J. Lyon; a já mencionada coletânea organi-
e coletâneas que buscam compendiar estudos zada por Schaden (1976); o livro Amazônia:
sobre os povos indígenas localizados nesta etnologia e história indígena (1993), orga-
região do globo. A título de ilustração, pode- nizado por Carneiro da Cunha e Viveiros
-se apontar ao menos sete balanços: o ensaio de Castro; e o número especial da revista
fundador de Florestan Fernandes “Tendências L’Homme, La remontée de l’Amazone (1993),
teóricas da moderna investigação etnológica dossiê organizado por Philippe Descola e
no Brasil” (1958), originalmente publicado Anne-Christine Taylor. Também no âmbito

1 Professora do departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade


Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp) e diretora do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI – mandato
2017-2019).

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 5-14. 5
das coletâneas de referência, mas formula- rendem reflexões no presente. Refiro-me aos
dos em torno de eixos centralizadores, estão textos de Joanna Overing Kaplan (1977) que
o compêndio História dos índios no Brasil abrem e fecham o conjunto de 26 apresenta-
(1992), de Manuela Carneiro da Cunha, e ções do simpósio Social Time and Social Space
o livro Pacificando o branco: cosmologias do in Lowland Southamerican Societies, presentes
contato no norte amazônico (2002), organi- nos Anais do XLII Congresso Internacional dos
zado por Bruce Albert e Alcida Rita Ramos. Americanistas, ocorrido em 1976, em Paris. A
Há ainda quatro publicações icônicas outra publicação é o texto escrito a seis mãos
neste campo que importa mencionar. Os por Anthony Seeger, Roberto da Matta e
sete volumes do Handbook of South American Eduardo Viveiros de Castro, “A construção
Indians, publicados entre 1946 e 1959, que da pessoa nas sociedades indígenas” (1979),
trazem um extenso mapeamento das popula- também produto de um simpósio, ocorrido
ções indígenas, associado à uma leitura teórica em 1978 no Museu Nacional/Universidade
desta região temperada pelo neoevolucionismo Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulado
que guiava seu organizador, Julian Steward. “A pesquisa etnológica no Brasil”, cujo objetivo
Na mesma linha de mapeamento, mas fun- de discutir temas e linhas de pesquisa nesta
damentado por orientações conceituais muito área termina por dar sequência às questões
distintas, o livro Índios do Brasil, de Julio Cezar tratadas no Congresso dos Americanistas dois
Melatti (1993), foi publicado pela primeira vez anos antes.
em 1970 com o objetivo de apresentar a um Essa enumeração não se pretende nem
público de leigos informações acessíveis sobre exaustiva, nem homogênea. Por um lado,
as populações indígenas no Brasil, oferecendo trata-se, como apontado, de um elenco de
um quadro considerável do conhecimento estudos com formatos, escopos, amplitudes e
etnológico a esse respeito. O livro foi sendo problemas distintos. Por outro lado, um olhar
atualizado na página do autor na internet2, sobre as questões postas nos balanços mais
avolumando a quantidade de dados etnográ- recentes (VIVEIROS DE CASTRO, 1999;
ficos e de produção bibliográfica associada RAMOS, 2010) é suficiente para demonstrar
a estes, estendendo-se para muito além dos que estamos hoje cada vez mais distantes do
povos que habitam o solo brasileiro. quadro “instável e confuso” de conhecimento
As outras duas publicações tampouco sobre o tema, como era no início dos anos
são estritamente balanços, mas, por meio de 1970 (DESCOLA; TAYLOR, 1993, p. 15).
discussões sobre materiais produzidos com De lá para cá, o que se produziu de balan-
trabalhos de campo de maior fôlego e rigor ços, levantamentos e epistemologias críticas
acadêmico3, elas se destacam por terem tido a multiplica-se ainda mais se considerarmos as
força de propor novos programas de pesquisa publicações por temas específicos, como os
cujos desdobramentos ainda se fazem sentir e que compõem este dossiê.

2 Disponível em: <http://www.juliomelatti.pro.br>. Acesso em: 6 dez. 2018.


3 Aparecem na bibliografia como fatores preponderantes para essa mudança na produção da etnologia indígena o
impulso dado, no começo dos anos 1960, às pesquisas de campo pelo Harvard/Central Brazil Protect, coordenado
por D. Maybury-Lewis, pelos projetos Estudo Comparativo das Sociedades Indígenas do Brasil e Áreas de Fricção
Interétnica, ambos coordenados por Roberto Cardoso de Oliveira e integrando o projeto Harvard-Museu Nacional
(Melatti, 1984, p. 158, 2002, p. 181). Outro fator fundamental nessa transformação foi a criação e consolidação
de programas de pós-graduação em antropologia social, a partir do final dos anos 1960.

6
O acúmulo de conhecimento forma- sociedade nacional5. Em Schaden (1976), vê-se
do com a passagem do tempo desencoraja que as teorias sobre aculturação gozavam de
qualquer pretensão a inventariar, de maneira um lugar tão central e constituído na discipli-
absoluta, tudo aquilo que vem sendo inves- na que se tratava apenas de lhe propor novas
tigado e escrito sobre populações indígenas abordagens, como a que se segue:
nesta área da disciplina antropológica. Mais
interessante e viável que uma leitura que se o processo aculturativo dos grupos tri-
pretenda acabada, é observar um triplo efeito bais foi sendo compreendido cada vez
do adensamento desta produção científica, mais em termos da pluralidade de fatores
que se expressa, na expansão da quantidade ativos na conjunção interétnica, ou seja,
de populações indígenas tornadas conhecidas4, considerando não apenas unilateralmente
no aumento e consequente aprofundamento as culturas e sociedades índias e as mu-
desse conhecimento e na emergência de uma danças por elas sofridas, mas também
literatura científica que começa a ser produ- […] a variedade de situações sociocul-
zida por intelectuais indígenas, dentro e fora turais e econômicas do homem branco
das universidades. Esses elementos têm dado ou mestiço em contato com o silvícola”
vazão ao surgimento de novas abordagens e (Ibidem, p. 15) 6.
ferramentas teórico-metodológicas. Isto, por
sua vez, enseja o aparecimento de temas e con- Este trecho é também exemplar de um
ceitos que vão se constituir como modelares, vocabulário que hoje a antropologia não mais
oferecendo alguns problemas-chave a serem comporta, como “grupos tribais” e “silvícolas”7.
tratados por meio das pesquisas empíricas, Uma gnoseologia dessa área permite ainda
os quais progressivamente vão substituindo perceber que, com a afluência de novas teorias,
e tornando obsoletos paradigmas (e termi- categorias analíticas e mesmo de novos objetos
nologias) anteriores. de interesse, parecem instituir-se círculos de
Um exemplo emblemático de obsoles- debates que tanto giram em torno de si – for-
cência de conceito é o que se processou com mando algo próximo às escolas que Thomas
a teoria da aculturação que, grosso modo, Kuhn aponta como competidoras no estabe-
preconizava a mudança cultural dos povos lecimento de um paradigma científico que,
indígenas em contato com os brancos e sua sendo todas científicas, apresentam “formas
transformação em não indígenas integrados à incomensuráveis de ver o mundo e de praticar

4 Um exemplo destacado da multiplicação do conhecimento sobre povos indígenas pela etnologia pode ser visto
no artigo de Carvalho e Reesink deste dossiê, quando delineiam os diferentes contextos nos quais irão discutir
identificações e territorialidades, apresentando a diversidade de populações indígenas surgidas em processos de
etnogênese e/ou autoidentificação.
5 Para uma análise da política de Estado empreendida neste sentido, cf. Lima (1992).
6 Mais recentemente, a palavra “aculturação” tem sido reapropriada pela etnologia indígena, mas de modo radicalmente
ressignificado no sentido de acentuar processos sociais que estão longe da noção de perda, associada ao conceito
originário. A ideia trabalhada é a de que uma “cultura” X pode se constituir enquanto aculturação. É o que mostra
Marcela Coelho de Souza (2010) sobre o modo como os Kinsêdjê (povo de língua jê) se concebem dentro do
contexto xinguano em que estão inseridos, apesar de sua participação “instável, periférica e complexa” no conjunto
multiétnico e plurilíngue da terra indígena do Xingu (Ibidem, p. 99).
7 Deve-se, no entanto, constatar que, apesar de seu banimento da antropologia, a disciplina não logrou sucesso em
desconstruir esses termos para fora da academia.

7
ciência nele” (1996, p. 4, tradução minha) 8 –, (TBAS), mas também de uma especialização
como se atacam de maneira entrecruzada, cada vez mais marcada dos objetos de pesqui-
expondo disputas pelo lugar de relevância e sa, o que, por sua vez, como se vê nos artigos
legitimidade no enfrentamento dos assuntos deste dossiê, tem gerado diálogos bibliográficos
que performam a etnologia indígena. setorizados. No entanto, este aumento da es-
É nesse cenário mais amplo de balanços pecialização temática parece vir acompanhado
sobre a produção intelectual em etnologia in- eventualmente de diálogos entre tendências
dígena que se situa o empreendimento contido originalmente geradas dentro de paradigmas
neste dossiê. Os cinco artigos que o compõem distintos, mostrando que a etnologia das TBAS
oferecem ao leitor trilhas possíveis de acesso a é mais heterodoxa do que a menção anterior
questões constituintes dos temas que abordam, às escolas de Kuhn (1996) pode fazer parecer.
a saber: xamanismo, chefia, territorialidades/ Além dos vinte anos que o dossiê propõe
identificações, parentesco e arte indígena9. O como balizas, o recorte geográfico também
período recoberto é de vinte anos de produção, pede alguma explicação. Por que etnologia
aproximadamente de 1996 a 201610, período indígena das TBAS? Por que não etnologia in-
no qual se apresentam para a área orientações dígena brasileira? Seguindo no rastro dos dois
teóricas inovadoras, cujas apropriações e de- últimos balanços (VIVEIROS DE CASTRO,
senvolvimentos são perceptíveis em muito 1999; RAMOS, 2010) e considerando que essa
da produção aqui revisitada, tais como: o denominação, consagrada pelos estudos em et-
lugar central da afinidade no parentesco; o nologia indígena, é, como bem a define Oscar
perspectivismo e a virada ontológica; os des- Calavia Sáez no artigo que compõe este nú-
dobramentos da relacionalidade nos estudos mero, “um tanto brasilcêntric[a]”. Contudo, o
sobre política (e também sobre parentesco); os diálogo interinstitucional e internacional, cada
conceitos sobre territorialidade e territorializa- vez mais intenso entre as pesquisas etnológicas
ção; entre outros gatilhos analítico-conceituais. realizadas na América do Sul, vem mostrando
Ressalve-se, no entanto, que esta datação foi um espraiamento sugestivo destas para além
encarada pelas autoras e autores como uma das fronteiras do Brasil.
espécie de orientação flexível de limites, pois Então, o que seriam as tais TBAS? Numa
os textos se estendem um pouco mais para o acepção mínima, compõem uma área consti-
passado e para o presente. Com isso, por um tuída principalmente pelas florestas tropicais
lado, previnem lacunas que pudessem criar sul-americanas cujos limites costumam ser
alguma ilusão de continuidade entre décadas definidos por contraste e oposição com as
alternadas, acionadas nos textos; e, por outro, chamadas terras altas, que são basicamen-
alcançam o máximo possível de atualidade da te as formações montanhosas andinas. Esse
bibliografia. contraste foi por muito tempo visto tanto a
A ideia de um balanço tematicamente divi- partir de seu aspecto físico-geográfico quanto
dido é tributária não somente do já mencionado sociocultural, encampando uma divisão que
volume crescente de pesquisas na etnologia remonta ao princípio da invasão europeia às
indígena das terras baixas da América do Sul Américas e que alimenta hipóteses variadas

8 No original: “incommensurable ways of seeing the world and of practicing science in it”.
9 A sequência dos artigos no dossiê segue a ordem em que foram submetidos à BIB.
10 A proposta deste dossiê foi apresentada à BIB no final de 2015.

8
a respeito de sua incidência nas socialida- A proposta aqui é estender a ênfase na
des indígenas (cf. LÉVI-STRAUSS, 2012; “articulação social em vez da homogeneidade
CLASTRES, 2011; TAYLOR, 1984). Isso cultural”, que finaliza o artigo de Melatti, e
sem falar do debate extenso e intenso sobre sustentar a ideia de área etnográfica como
a orientação da influência entre terras altas um “nó” no vasto sistema de comunicação –
e terras baixas na arqueologia – um desen- logo, de transformações – entre os povos do
volvimento disso, como questão de fundo, subcontinente postulado por Lévi-Strauss nas
pode ser apercebido no diálogo duro esta- Mitológicas (1964-1971). Assim, a expressão
belecido entre Betty Meggers e as pesquisas TBAS não diria respeito nem a uma área
conjuntas de arqueologia e antropologia no geográfica, nem a uma área cultural, mas a
Xingu, conduzidas por Heckenberger, Fausto um recorte em grande medida etnográfico
e Franchetto (MEGGERS et al., 2003). de um grupo de transformações que pode
Embora a etnologia contemporânea esteja ser ampliado, evidenciando conexões “para
reduzindo a distância entre terras altas e terras fora”, ou reduzido, exibindo sua diversidade
baixas via, por exemplo, cosmopolíticas indíge- interna11.
nas (cf. artigo de Guerreiro, neste número), um Ao mesmo tempo, os contornos dessa
olhar sobre a literatura dessa área permite ver que demarcação são também testados no dossiê
o classificador TBAS, sem pretender ser rigida- pela inclusão da etnologia produzida a partir
mente delimitado, continua sendo um operador dos estudos sobre as populações indígenas do
expressivo, autorizado por meio dos diálogos e Nordeste, cuja interlocução com as pesquisas
comparações mobilizadas justamente por essa realizadas em outras regiões é, como indica
produção bibliográfica. A partir disso, pode-se o artigo de Carvalho e Reesink neste dossiê,
tratar o recorte como um conceito com a po- muito restrita, apesar de possível.
tencialidade de implodir as fronteiras que supõe. No que concerne ao conjunto de artigos
Trata-se de uma região que parece operar do dossiê, o leitor verá que cada um deles
com aquilo que Julio Cezar Melatti chama de enfrenta de modos diferentes os temas de
“área etnográfica” (2018) como alternativa à que tratam. Oscar Calavia Sáez, abordando
hoje muito superada noção de “área cultural”. o xamanismo – que, como aponta o autor, é
Em sua definição, Melatti propõe uma “solução um dos assuntos mais recorrentes nos estu-
de compromisso” que coordena alguns aspectos dos ameríndios, sem ser propriamente objeto
elaborados por formas anteriores de classificação central destes –, irá perseguir o sentido desta
– pinçando destas elementos cujo rendimento categoria analítica, delineando sua trajetória
analítico sobreviveu em pé à crítica teórica (o na disciplina e mostrando como sua adoção
autor aponta a classificação linguística como generalizada, levando-a a um nominalismo
exemplo disso) – e elementos que porventura exacerbado que periga lhe esvaziar o sentido,
resultem dos contextos etnográficos, como a pro- chega ao termo do percurso empírico-teórico
ximidade crescente entre populações indígenas e pelas TBAS como uma episteme dominante
não indígenas, que é um dos desenvolvimentos em que “sua mutabilidade não revela uma
de sua concepção de “polos de articulação”. fraqueza na sua constituição, é o seu princípio

11 Agradeço o desenvolvimento dessa argumentação a um diálogo com Antonio Guerreiro, que muito gentilmente
leu e comentou a versão inicial deste texto. Sou grata também às leituras ao manuscrito feitas por Ronaldo de
Almeida e Isadora Lins França cujas preciosas sugestões foram aqui, em grande parte, incorporadas. Ressalvo, por
fim, que qualquer incorreção contida no artigo se deve somente a mim.

9
constitutivo”. O artigo também mostra uma se percebe tomando como paralelo a resenha
permeabilidade do xamanismo entre os mun- de Roque Laraia, “Os estudos de parentesco
dos indígena e não indígena, o que, por sua no Brasil” (1987). Na segunda metade dos
vez, promove mais “mutabilidade”, aproxi- anos 1980, Laraia apontava como centro das
mando estes dois mundos por meio de uma discussões de parentesco as noções de descen-
ação indígena ativa. dência e residência. Passados cerca de trinta
Quando se fala em chefia nas TBAS, anos, Soares Pinto irá mostrar como esses
Clastres é um autor incontornável, tendo sido temas foram retrabalhados, sendo transferi-
produtor de teorias que continuam rendendo dos da cena central à posição de coadjuvantes
desenvolvimentos diversos. Esse é um dos modelizadores nas interpretações que hoje
aspectos trabalhados no artigo de Guerreiro, opõem meta-afinidade e metafiliação. O ba-
apontando sua incidência e a transformação lanço mostra que onde antes atuavam sistemas,
de sentidos que decorre de aproximações e “grupos de descendência”, consanguinidade e
afastamentos em relação às principais teses totalizações, hoje operam relações (ou melhor,
clastreanas presentes em trabalhos de etnólo- relacionalidades), corporalidade, afinidade e
gos americanistas. Esta estratégia favorece a perspectivas, esvaziando-se, entre outras coisas,
economia de seu texto, sem abrir mão de uma a ideia de unidades sociais acabadas.
condução argumentativa que irá se desdobrar O artigo de Maria Rosário de Carvalho
em três outras linhas não necessariamente ex- e Edwin B. Reesink lança seu foco sobre uma
cludentes: uma que cercará os temas da hierar- região circunscrita das TBAS, o contexto et-
quia e chefia indígena num diálogo forte entre nográfico do Nordeste brasileiro, dando conta
arqueologia e teorias antropológicas; outra que de uma transformação na etnologia indígena
retoma uma discussão cara à etnologia mais sobre os povos dessa região processada em duas
contemporânea, debruçada sobre a centrali- escalas diferentes: por um lado, uma mudança
dade do corpo e a noção de pessoa, buscando no olhar das pesquisas sobre as populações que,
traçar uma “filosofia política ameríndia”; e uma num processo histórico, foram se constituindo e
terceira e última parte, na qual o autor expande reconstituindo como indígenas; por outro, uma
o raio das discussões produzidas na etnologia mudança no modo de atuação dos próprios
das TBAS, mostrando uma comunicação que indígenas, marcadamente pela ação política
inclui Andes e Chaco e que trata também das que se expressa de maneira contundente nos
relações dos indígenas com o Estado, acionan- chamados processos de “retomada”, o que os
do o dispositivo teórico das cosmopolíticas. O aproxima também das populações indígenas
fechamento do artigo chama a atenção para as que vivem no Sul, Sudeste e Centro-Oeste bra-
potencialidades futuras de problemas e ques- sileiro, como os Kaingang, Guarani e Kaiowá,
tões postas ao campo mais amplo da política Terena, entre outros. Nesse percurso, o artigo
por intelectuais indígenas. apresenta e discute conceitos fundamentais
Os estudos de parentesco sempre demar- elaborados pela bibliografia sobre esta região,
caram um campo especializado, fazendo uso como territorialidade, identidade e etnogêne-
de uma linguagem que, para os não iniciados, se. Ao mesmo tempo, a leitura mostra uma
pode soar esotérica, manipulando uma espécie transformação mais recente neste conjunto
de álgebra, como dizia Malinowski (1930) bibliográfico que se dá por meio de uma inte-
ainda nos primórdios da antropologia. O ar- ração com a etnologia amazônica.
tigo de Nicole Soares Pinto irá mostrar que As artes indígenas são mais um dos temas
este campo continua se especializando, o que que permitem uma abertura do conhecimento

10
numa dobradiça entre as sociocosmologias recompõe-se como parte própria do avanço
indígenas e o mundo não indígena, composto, das pesquisas e do entendimento científico.
é bom lembrar, tanto por humanos como não Neste sentido, poder-se-ia construir outros
humanos. Esse é um dos liames que o artigo dossiês temáticos mobilizando assuntos de
de Els Lagrou e Lúcia Hussak van Velthem igual relevância.
irá desnodar, apontando, de partida, que o Uma possível sequência futura das dis-
investimento no entendimento sobre esse cussões reunidas nos textos do dossiê con-
tema pela disciplina antropológica é ainda verge para algo que, já em 1984, o balanço
“tímido”, apesar da riqueza material disponí- de Anne-Christine Taylor apontava. A autora
vel. O balanço mostra como este campo de mostrava que, quando o americanismo tro-
investigações particular irá se consolidar como pical começou a se dar conta da inadequação
tal, num processo de mais de vinte anos. Essa do uso feito entre os anos 1950 e 1970 de
história é iniciada pelo estudo das expressões modelos, noções e tipologias antropológicas
de conhecimento material, técnico e prático oriundas de outras sociologias, geografias e
na chave dos sistemas e representações sim- contextos etnográficos, seu mal-estar não
bólicas. Posteriormente, a etnografia sobre as foi provocado apenas por um avanço das
artes indígenas terá como centro analítico as pesquisas etnológicas, mas principalmente
ontologias nas quais as artes se apresentam, por uma transformação radical da correlação
explorando, entre outros aspectos, a incorpora- de forças entre as sociedades indígenas e as
ção de capacidades agentivas das pessoas pelos não indígenas. Dizia ela:
artefatos, e aproximando as TBAS, em especial
a Amazônia, dos estudos antropológicos sobre A partir do momento em que os indígenas começam
a Melanésia, sem, contudo, deixar de apontar a falar por si mesmos, a se opor ativamente, e às
vezes de maneira eficaz, sob formas organizadas e
particularidades daquele contexto em relação a reconhecidas pelos burocratas nativos, à opressão
este. O texto de Lagrou e van Velthem, assim de que são vítimas, torna-se cada vez mais difícil
como vários outros que compõem o dossiê, manter um discurso que os exclua como sujeitos e
também se encerra abordando a inserção in- tratar suas sociedades como isolados utópicos. De
boa ou má vontade, os etnólogos americanistas
dígena no mundo dos brancos, dessa vez, por se veem, doravante, forçados a refletir sobre sua
meio de suas expressões estéticas. disciplina e responsabilidades morais, científicas e
Como ressaltam todos os autores, ne- políticas. (Ibid., p. 231, tradução minha)12
nhum dos balanços se pretende exaustivo.
Essa mesma máxima vale para os temas Essa intuição da autora é confirmada
pinçados para a construção do dossiê que, em quase todos os artigos do dossiê, os quais
se podem ser concebidos em geral como de apontam para a instalação dos indígenas, como
certa forma consolidados na bibliografia da cientistas (e às vezes simultaneamente artistas),
área (alguns da própria disciplina antropo- nos diversos campos da etnologia indígena das
lógica), certamente não são os únicos pos- TBAS. Nesse sentido, um desafio, que vem
síveis num universo temático que, é sabido, sendo lançado pelos estudantes indígenas às

12 No original: “A partir du moment où les Indiens se mettent à parler en leur nom propre, à s’opposer activement
et parfois efficacement, sous des formes organisées et reconnaissables par les bureaucrates créoles, à l’oppression
dont ils sont victimes, il devient de plus en plus difficile de tenir sur eux un discours qui les exclue comme sujets,
et de traiter leurs sociétés comme des isolats utopiques ; de gré ou de force, les ethnologues américanistes se voient
désormais contraints de réfléchir sur leurs discipline et sur leurs responsabilités morales, scientifiques et politiques”.

11
universidades públicas, toca a etnologia indí- perspectiva histórica e papel da universidade pública
no Brasil” – Unicamp)
gena das TBAS de maneira especial, fazendo
com que a questão posta pelo antropólogo
indígena João Paulo Tukano ressoe fundo em Pode-se aventar, sem muito risco de
nossa disciplina: perder a aposta, que em balanços bibliográ-
ficos futuros o pensamento indígena estará
contido não mais como matéria, como epis-
Nós queremos que, na universidade pública, o
Estado nos olhe como povos diferentes com epis-
temologias que costumam revelar aquelas
temologias diferentes, nós temos muita coisa a con- da ciência dedicada a compreendê-las, mas
tribuir, a minha pergunta é se as universidades estão como interpelações dirigidas às epistemo-
preparadas para isso? (Campinas, 13 de outubro de logias constituídas e assentadas no meio
2016, 1ª audiência pública “cotas e ações afirmativas: acadêmico

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14
DOI: 10.17666/bib8702/2018

Xamanismo nas terras baixas: 1996-2016

Óscar Calavia Sáez1

O termo xamanismo está presente em o conceito de perspectivismo, gerado na etno-


grande parte da literatura etnológica das terras logia amazônica, tem interessado vivamente
baixas da América do Sul (TBAS) dos últimos os especialistas no xamanismo centro-asiático
vinte anos – parâmetros de lugar e tempo (EMPSON, 2007; PEDERSEN, 2001, 2007a,
marcados para esta revisão bibliográfica2. Essa 2007b; WILLERSLEV, 2004, 2007).
é a primeira peculiaridade deste campo: não
será possível incluir aqui senão uma parcela Um conceito em aberto
dos trabalhos em que o xamanismo é abor-
dado pelo mais diversos motivos. A segunda A coletânea de Aigle, Chaumeil e Brac
é o paradoxo de que, no meio dessa literatura de la Perrière (2000) foi, em seu momento, a
eivada de xamanismo, sejam relativamente exceção e a confirmação desse isolamento. O
raros os trabalhos que se dedicam a ele de xamanismo sul-americano e sua relação com
um modo monográfico. Outra, igualmente o cristianismo são postos lado a lado com
significativa, é a incomunicação entre o con- embates similares entre xamanismo e religi-
junto que nos ocupa e a literatura escrita sobre ões universalistas – Budismo, Islamismo e o
xamanismo em outras regiões etnográficas e, ateísmo de estado dos países (ex)comunistas
especialmente, naquelas como a Sibéria e a – em diversas partes da Ásia, com excursões
América do Norte, onde o termo foi cunhado pontuais a outros continentes. Os paralelos são
e desenvolvido. Na literatura sobre as TBAS ricos, mas são paralelos: não se tocam. Apenas
ignora-se quase por completo a produção sobre a introdução, devida a Roberte Hamayon,
xamanismo em outros continentes, em que, cruza as diversas contribuições ao volume para
por sua vez, são muito raras as referências à bi- constatar e endossar a grande abertura do con-
bliografia que aqui nos ocupa3. A conexão tem ceito de xamanismo que informa o volume.
se estabelecido, recentemente, pela via teórica: A mesma atitude aparece na nota crítica de

1 Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (1995), diretor de estudos na École Pratique des
Hautes Études EPHE-PSL, e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS-UFSC). Pesquisou sobre temas de etnologia amazônica (Pano)
e religião. Autor de Esse obscuro objeto da pesquisa (2013) e O nome e o tempo dos Yaminawa (2006). Entre seus
últimos trabalhos estão: “Nada menos que apenas nomes: os etnômios seriais no sudoeste amazônico”, publicado
na revista Ilha; “O território, visto por outros olhos”, na Revista de Antropologia; “La extraña visita: una teoría de
los rituales amazónicos”, na Revista Estudos Anglo-Americanos.
2 TBAS é um rótulo ecológico-cultural que tem se perpetuado com significado político (grupos de pequeno porte,
sem organizações fortes de grande escala) e um tanto brasilcêntrico. Este artigo tenta abranger, na medida do
possível, toda a América do Sul salvo a região Andina. O ano de 1996 é seu limite temporal, com poucas ressalvas,
que correspondem a reedições ou edições tardias de trabalhos bem anteriores.
3 Cf., por exemplo, Krippner (2007), Riboli e Torri (2013) e Winkelmann (2013), revisões nas quais o xamanismo
sul-americano brilha por sua ausência.

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 15-40. 15
Perrin (1997), na revisão de Chaumeil (2003) (híbridas, sincréticas) dos indígenas do nor-
ou na coletânea anterior de Langdon (1996): deste (“extintos”, ou “misturados”) suspei-
falemos, sim, de xamanismo, mas entenden- tas porque a presença da possessão evocava
do-o em termos muito amplos, deixando num uma feição africana da qual, nesse caso, havia
segundo plano – ou descartando definitiva- evidência histórica (MOTA 2007; MOTA;
mente – a procura de uma definição. ALBUQUERQUE, 2002; WADSWORTH,
Vale a pena lembrar aqui alguma das li- 2006). Em tempo, a distinção entre êxtase e
nhas com as que as pesquisas de decênios an- possessão obtinha sua potência de interpreta-
teriores tinham tentado construir tal definição. ção simplificada que deixava de lado precisões
Uma delas apontava um vínculo entre o sobre quem e de que lugar está falando quando
xamanismo e a ecologia/economia dos povos o xamã fala. Uma visão mais detalhada dos
caçadores e recolectores, um critério de perfil rituais mostra que a diferença entre um além
evolucionista que o xamanismo ultrapassou se e um aquém: entre procurar os espíritos, rece-
adaptando à pecuária, à agricultura e mesmo bê-los e ser composto por eles (CESARINO;
à vida urbana. Embora as pesquisas sobre o 2011) está longe de poder sustentar tal divisor.
conhecimento e o manejo do meio natural Ainda de maior alcance e antiguidade
continuem tendo nos xamãs protagonistas e foi a fronteira que separava xamanismo e reli-
interlocutores privilegiados (ÅRHEM, 1996; gião. Um xamã deveria se diferenciar de um
ALEXIADES, 1999; CAYÓN, 2005), a lite- sacerdote ou um profeta: mas as coletâne-
ratura sobre o xamanismo tem se expandido as anotadas até aqui nos apresentam xamãs
muito além desse nicho ecológico. Coisa muito ocupando precisamente essas funções, ou se
diferente é que o mundo da caça forneça o apropriando de suas rezas, seu panteão, seus
modelo ideal da atividade xamânica (LIMA, modos de organização. Isso fica ainda mais
1996; LÓPEZ, 2006) e que mesmo lá, onde evidente numa série de trabalhos, iniciada
xamanismo e caça vão de mãos dadas, evoque- também na segunda metade dos anos 1990,
-se um tempo em que essa relação era ainda que abordam as relações entre a missão cristã
mais intensa (LIMA, 1996). O xamanismo e as cosmologias indígenas. O xamã é um dos
corresponderia a povos caçadores, assim, protagonistas desses processos de transforma-
mais ou menos no mesmo sentido em que o ção, copiosamente descritos nos volumes sobre
cristianismo corresponderia a povos pastores transformações religiosas e missões cristãs edi-
especializados em ovinos. tados por Wright (1999)4 e Montero (2006).
Outra era a dicotomia entre a viagem xa- Há, desde o início da colonização, uma ávida
mânica e a possessão pelo espírito, que ajudou procura de uma “religião indígena” que se volta
a caracterizar o xamanismo como disciplina para o xamanismo (ou mais exatamente na pa-
extática, votada a mundos muito afastados da jelança) quando não encontra templos, ídolos
experiência comum e sociologicamente irre- ou sacerdotes mais semelhantes aos próprios
levante. Isso teve também o efeito de excluir (POMPA, 2003) e, ainda mais, uma disposição
desses voos a África e as tradições de origem indígena a retribuir com a mesma atitude – isto
africana – lastradas pelo peso sociológico da é, procurando e capturando “xamanismo” na
escola inglesa. No caso do Brasil, essa exclusão religião dos missionários – que continua desde
incrementou a que já pesava sobre as práticas as santerias do século XVII aos dias atuais. Os

4 Cf. também Wright (2005).

16
xamãs podem absorver5 os elementos do cris- um movimento indígena de tipo profético
tianismo dentro do seu sistema (CRÉPEAU, convive lado a lado com outro xamanismo
2002; ROSA, 2005; TASSINARI, 2002; de tipo horizontal (ABREU, 2004). É espe-
TOLA, 2001; VILAÇA, 1996, 2007) ou bem cialmente relevante, no caso da bibliografia
criar uma réplica indígena que concorra com Guarani, em que apenas recentemente genera-
ele (WRIGHT, 2005), ou mesmo transfor- lizou-se o uso da palavra xamã para um agente
marem-se em agentes e até missionários da “vertical” dedicado a promover uma transfor-
nova religião (QUEIROZ, 1999; HOWARD, mação divinizadora (aguyje) e a evitar uma
2001) na qual farão persistir alguns elementos transformação em animal (jepotá) (FAUSTO
cruciais do velho xamanismo. A abordagem 2007; MELO, 2006; PISSOLATO, 2007;
de Capiberibe (2017) opta por eludir o peso RAMO; AFONSO, 2014).
do binômio tradição/conversão, ressaltando No entanto, levar a dicotomia religião (e
a “língua franca” que permite a coexistência sacerdócio, e sacrifício) versus xamanismo (e
de dois sistemas diferentes. É visível em todos canibalismo) para o interior deste, apenas des-
esses trabalhos, assim como em Albert e Ramos loca uma discussão que pode continuar con-
(2002), a vontade de corrigir a imagem de siderando o xamanismo horizontal como sua
extrema fragilidade do mundo indígena predo- acepção forte, em detrimento de uma versão
minante em decênios anteriores: ela contribui vertical, que neutraliza seus traços diferenciais
para enfatizar a continuidade da agência e das (CHAUMEIL; PINEDA; BOUCHARD,
concepções indígenas em novas estruturas, e 2005), Viveiros de Castro (2002, 2004) dis-
abre possibilidade de continuar reconhecendo cute também essa questão em vários textos,
nestas a presença do xamanismo. propondo uma linha alternativa, já não hori-
Mais do que escolher um dos lados da zontal ou ascendente, mas “transversal”, não
velha e discutível dicotomia entre religião definida por sua direção, mas pelos limites
e magia, o xamanismo ocupa e satura esse que infringe, e cuja máxima realização estaria
divisor. Com isso acaba transferindo a fron- numa “comunicação entre incomunicáveis”
teira para seu interior: é esse o tema de um (VIVEIROS DE CASTRO, 2007)
influente texto de Stephen Hugh-Jones (1996), De menor alcance, em princípio, pare-
que cunha a diferença entre o xamanismo ceria a abolição da fronteira que separava um
vertical, que estabelece um elo com planos xamanismo tradicional de um neoxamanismo
hierarquicamente superiores, e horizontal, espúrio. Essa dicotomia se dissolveu em boa
que intervém nas relações entre partícipes hora, pouco antes de que um conceito indi-
de um mesmo mundo. Esse contraste, cons- genizado de xamanismo (do qual falaremos
truído sobre uma referência fundamental ao mais tarde) tornasse não apenas discutível,
kumu, “xamã vertical” do Rio Negro, ecoa em mas impraticável essa distinção. O próprio
numerosas dualidades estabelecidas na etno- caráter “tradicional” do xamanismo indíge-
logia (lembremos do aroe/bope dos Bororo), na é frequentemente discutido, junto com a
ou onde se explicite uma diferença entre um conveniência ou não de aplicar às suas prá-
xamanismo legítimo e outro maléfico (vide ticas a etiqueta de “rituais” (ROBINSON,
adiante), mas também em situações em que 2000). O xamã assimila ideias e práticas de

5 Me permito esse termo impreciso, “absorver”, em homenagem à figura, de longo percurso na história intelectual
brasileira, da antropofagia cultural; os autores citados conceituam essa interação de modos muito diferentes.

17
toda origem (LIMA, 2000; GIL, 2010), e a seu espaço liminar trabalhava na articulação
fonte de seu poder pode ser identificada –con- entre os mundos. O que destaca e chega a ser
tra toda intuição primitivista – nas cidades crucial na bibliografia recente das TBAS é a
(CARNEIRO DA CUNHA, 1998; KOHN, independência entre a figura e a função: é pos-
2013); o exotismo de seus saberes pode ser um sível, e de fato muito frequente, encontrar um
índice do seu poder, assim como a inovação, xamanismo em que não há (ou não há mais)
que no seu caso indica um aprendizado obtido xamã, ou a situação – aparentemente oposta
sem intermediários no mundo dos espíritos mas com exatamente o mesmo valor – em que
(CHAUMEIL, 1998, 2012). Se há tradições, todos (via de regra, todos os adultos de sexo
elas se deixam ver como linhas transversais às masculino, mas esse “todos” pode se ampliar
fronteiras étnicas ou linguísticas, agindo mais indefinidamente) o são (CORMIER, 2003;
como centros de emissão que como barrei- LÓPEZ, 2006; GIL, 2004).
ras: é o caso, especialmente, do xamanismo O “xamanismo sem xamã” é muito mais
da ayahuasca, com seu ecumenismo visio- do que um acidente histórico. Há, em primeiro
nário superposto a práticas locais anteriores lugar, é claro, situações reticentes em que o
(ALEXIADES 2000; CALAVIA SÁEZ, 2011; xamanismo é descrito como coisa do passado,
GOW, 1996; SHEPARD, 2014). A analogia ou que persiste apenas em versões fracas ou
do xamã com o cientista, que remonta a teoria decadentes, devido seja a pressões de missioná-
da magia de Frazer, mas que foi relançada rios e/ou a que se desconfia dele (BRUNELLI,
nas TBAS por Gerardo Reichel-Dolmatoff, 1996; CALAVIA SÁEZ, 2006; DAILLANT,
continua sendo fértil – embora tenha perdido 2003). Mas a própria localização do xamã den-
auge na etnologia – porquanto, na medida em tro do grupo pode estar em dúvida. Se sua pre-
que “ciência” possa se opor à “tradição” ou à sença pode ser descrita (às vezes com nostalgia)
“religião” (o xamã – lembremos de Quesalid – como requisito do bom viver, e o aprendizado
pode ser um cético)6, o xamanismo estaria mais xamânico como um modo de prover a saúde e a
do lado da primeira que da segunda. O xamã segurança dos parentes (GIL, 1999; LAGROU,
é um experimentador e, seja o que servir como 2007; MCCALLUM, 2001), em outros casos,
denominador comum das tradições xamânicas, esse objetivo terapêutico pode passar a um se-
parece ser algo mais próximo de um método gundo plano: os xamãs Pirahã, diz Gonçalves
ou de uma teoria que de um panteão, uma (2001), estão apenas para percorrer o universo e
ortodoxia ou uma ortopraxe. contar o que viram, para multiplicar o mundo
Há, ainda, uma última e fundamental mu- mais que para agir sobre ele (CESARINO,
dança na percepção do xamanismo, embora 2011a). Até que ponto o xamã deve ser um
trate de um aspecto que nunca pareceu neces- sujeito particular, detentor de saberes esotéri-
sário numa definição: o xamã precisa mesmo cos? A resposta é muito variável: processos de
existir para que haja xamanismo? O xamanismo iniciação xamânica, incluindo o aprendizado de
foi, durante muito tempo, a abstração que de- cantos ou técnicas específicas, podem ser mar-
signava as ações de um xamã, de vários xamãs, cados, árduos e longos (CHAUMEIL, 1998;
quem sabe de todos os xamãs: mas tinha sempre LANGDON, 2014), mas também podem faltar
como referente esse indivíduo singular, quase ou – o que é mais interessante – podem conviver
sempre marcado por algum estigma, que desde em paridade com experiencias comuns, como

6 Cf. Crépeau (1997).

18
a do sonho (OROBITG, 1998). A identidade ou reivindicar-se como um seguidor, ou até
do xamã nem sempre depende em primeiro mesmo um agente, de uma religião universa-
lugar dessa capacitação: pode estar ligada ao lista. Pode ser membro de uma comunidade
exercício da chefia (LANGDON, 2014), à indígena ou um “xamã gringo”, um espírito,
condição de caçador (LÓPEZ, 2006) ou de um cipó, um objeto. E, enfim, um ser concreto
homicida (FAUSTO, 2001). A aptidão xa- ou apenas um tipo ideal. De ser o ponto de
mânica não é exclusivamente humana, sequer partida de uma abstração (o xamanismo), o
caracteristicamente humana: alguns animais, xamã passaria assim a ser a personificação de
como os queixadas, têm seus xamãs (LIMA, uma potência. O abandono desses critérios
1996), e os cães podem ser transformados em definidores que foram ensaiados por decênios
xamãs (KOHN, 2013); deuses ou espíritos a fio oferecia, em meados dos anos 1990, a
são xamãs e, como tais, operam sobre a vida promessa de um campo de estudos florescente
humana (ALEXIADES, 1999; BARCELOS e aberto a matizes históricos, mas tinha, como
NETO, 2008; OROBITG, 1998); os dardos contrapartida, um excesso de labilidade. Para
do xamã são xamãs (RODGERS, 2002); os que serve um conceito que pode abranger
“verdadeiros xamãs” são inimigos domesticados qualquer ou quase qualquer coisa? Acabaria
nos sonhos (FAUSTO, 2001) e, em resumo, o xamânico por ser uma espécie de diacrítico,
todos os nós da rede do xamã são xamãs – uma marca equivalente ao que foi o animista
termos vernáculos que denotam a capacidade e o totêmico, para não falar do selvagem e do
xamânica podem ser extremamente polissé- primitivo?
micos7. Não há como exagerar a importância
que, para esse “xamanismo sem xamãs”, tem o Universalização, reação nominalista
uso ameríndio de um leque de psicoativos (do e transposição de nível
tabaco à ayahuasca, passando por uma miríade
de outros de uso mais circunscrito) sem com- A trajetória do conceito de xamanismo
paração com os de outros continentes. Não segue o padrão de outros termos que chegaram
que se designe como xamã a qualquer sujeito ao léxico profissional da mão da etnografia cujo
que utilize uma dessas substâncias, nem sequer caso exemplar é o do totemismo. Começa pela
àquele capaz de prepará-las – a literatura já adoção generalizada de um termo vernáculo,
tinha insistido em distinguir o xamanismo do se estende rapidamente a práticas distribu-
conhecimento farmacológico – o que importa ídas por todo o planeta e suscita logo uma
é a evidência de que a capacidade xamânica é reação nominalista: há pouco que esperar de
mais dada que construída: obviamente, essas um conceito que se aplicou sem critério a
“plantas de poder” são xamãs. uma realidade extremamente diversa. Não há
O perfil do xamã das TBAS é assim, xamanismo, mas xamanismos.
impossível de traçar: pode ser um especia- Muitos xamanismos, de fato, porque sua
lista iniciado ou um sujeito comum, pode diversidade vai muito além da diversidade
recorrer a técnicas de êxtase ou plantas de expressa em qualquer mosaico de povos ou
poder, ou servir-se apenas dos sonhos; pode ser etnias: em cada espaço onde identificamos o
um caçador ou um morador da cidade; pode xamanismo, ele aparece como uma variedade
ser o representante do paganismo resistente de práticas e de especialistas. Esse é, ainda hoje,

7 Cf., sobre paié e cognatos, Gaillois (1996) e Fausto (2001).

19
o eixo principal, ou pelo menos um dos eixos ambiciosas sobre xamanismo são monogra-
principais de qualquer estudo que se ocupe fias sobre um xamã, ou sobre um conjunto
especificamente do tema: descrever em detalhe muito reduzido de xamãs (CESARINO, 2011;
as diversas figuras que ficam englobadas dentro DELEAGE, 2009) Eventualmente, essa condi-
desse xamanismo. Essa diversidade se organiza ção se transforma em objeto, e os estudos sobre
em vários eixos combinados entre si até pro- xamãs assumem um formato biográfico, ou
duzir uma miríade de situações: hierarquia de mesmo autobiográfico (BELAUNDE, 2015;
poder e de saber entre uns tipos e outros de CHAUMEIL, 2012; COURSE; OAKDALE,
xamãs (GIL, 2001), eventualmente cruzada 2014; DOMICÓ; HOYOS; TURBAY, 2002;
por uma escala funcional ou moral, que pode KOPENAWA; ALBERT, 2015; LIMA, 2002;
ter seu ápice (ou seu nadir) na potência agressi- MONTARDO, 2009; RUBENSTEIN, 2002;
va; ou bem uma pluralidade temática, em que SCHICK, 2008). Se há experiência subjetiva,
diversos xamãs aparecem associados com obje- o xamanismo (e a etnografia do xamanismo)
tivos (guerra, cura, arte) ou técnicas diferentes tem uma relação marcada com o relato auto-
(o sonho, lançamento ou extração de dardos8, biográfico (LANGDON, 1999, 2004, 2014):
substâncias alucinógenas etc.); processos de esse relato é essencial para o ritual xamânico
iniciação que vão de rituais coletivos a um – que consiste precisamente na descrição das
aprendizado privado (GIL, 2004), duramente viagens do xamã (OAKDALE, 2006) ou, pelo
negociado com quem detém o saber, passando contrário, há uma incompatibilidade entre
por transmissões hereditárias seguindo diversas ambos, seja porque a experiência xamânica é
vias dentro das redes de parentesco, ou por demasiadamente perturbadora para se trans-
“vocações” incontroláveis que levam o sujeito formar em relato (GOW, 2006), seja porque,
ao trato com os espíritos – o encontro com simplesmente, seria difícil definir o que signi-
a sucuri, por exemplo (LIMA, 2000, 2008). fica para um xamã “falar de si mesmo”.
Menção à parte merece a questão de gênero: se Como aconteceu no seu dia com o tote-
a ambiguidade sexual foi um dos traços mais mismo, o enriquecimento da base etnográfica
notáveis do xamanismo siberiano, no caso das do xamanismo não levou a definir melhor o
TBAS, o xamanismo parece marcadamente conceito inicial, mas a implodi-lo. O xama-
masculino, por analogia com uma orientação nismo, porém, é um vocábulo afortunado:
dos homens ao exterior. É relativamente re- antes de cair no descrédito, ele foi objeto de
cente a reavaliação desse pressuposto, com a uma “transposição de nível”9 que, mesmo
aparição de estudos que focam o xamanismo sem esse rótulo, acontece em vários textos
praticado por mulheres (BELAUNDE, 2015; publicados no início do período resenhado.
CICCARONE, 2004; COLPRON, 2005, Refiro-me a Viveiros de Castro (1996, 2006)
2012; GIL, 2006; MONTARDO, 2009). e Carneiro da Cunha (1998), textos ampla-
No termo desse caminho nominalista mente conhecidos que vou parafrasear aqui de
chegamos não a uma diversidade, mas uma modo muito livre. O xamanismo passa a ser
pulverização: a cada xamã seu xamanismo. concebido não mais como instituição exótica,
Como seria de se esperar dadas as exigências medicina ou religião dos “outros”, mas como
desse tipo de pesquisa, as etnografias mais um dos polos de um continuum cujo outro

8 Cf. Chaumeil (2004).


9 É esse o nome dado por Lévi-Strauss a sua reformulação do totemismo

20
extremo estaria representado de um lado pelo qual se traduz em nome não da identidade,
positivismo e, de outro, pelo relativismo. O mas da diferença entre os termos.
positivismo com seu ideal de conhecimento O xamanismo, assim, teria um significado
baseado apenas em fatos, em dados objetivos preciso, apesar de sua amplidão: ele expressa,
com exclusão de toda e qualquer subjetivi- melhor que nenhum outro, a diferença desses
dade e intenção, e o relativismo com caráter modos de vida indígenas que se situam no
incomensurável e intraduzível dessas totalida- extremo mais distante do cânone global, mas
des de sentido que são culturas e línguas. O não o faz em termos genéricos (primitivo/
xamã é o antipositivista e o antirrelativista: moderno, selvagem/civilizado, autóctone/glo-
ele encara um mundo composto exausti- bal), ou por meio de diacríticos (as diversas
vamente por sujeitos, dotados de agência e performances da indigeneidade), mas sobre
intenção (VIVEIROS DE CASTRO, 1996) uma diferença no modo de pensar/agir que, de
e, transitando nele, age como um tradutor um extremo a outro da experiência humana,
(CARNEIRO DA CUNHA, 1998), de fato, apresenta incontáveis configurações mas não se
onipotente e capaz de produzir equivalên- interrompe. Ou seja, não existe um limiar (algo
cias ilimitadas. Entre línguas, instituições, assim, como uma aurora dessa modernidade
espaços e hábitos. O xamã, com toda sua que nunca aconteceu10), onde a humanidade
diversidade de técnicas e objetivos, detém passe de pensar-agir “como sujeitos” a pensar-
uma capacidade além do comum de enxergar -agir “como objetos”: ambos modos convivem,
ação e desígnio de sujeitos lá onde outros em arranjos variáveis, da cabana do caçador ao
enxergariam matéria inerte, e de agir sobre laboratório de altas energias. O único limiar
isso tudo não como um médico, mas como real é o que marca o valor institucional de
um diplomata (ou, eventualmente, um guer- uma ou outra epistemologia – aquela linha em
reiro, um guardião, um espião). Ele atualiza que o diagnóstico positivista ou o diagnóstico
aquele mundo dos mitos – eminentemente xamânico passam a deter a hegemonia e a ser
traduzíveis, como apontou Lévi-Strauss – em levados publicamente a sério.
que os animais falavam: ele pode se comuni-
car com os não humanos. O xamã é quem Capítulos de uma descrição xamânica
consegue ver que os outros, no melhor dos
casos, apenas ouvem, servindo como “rádio” Hoje, as sociedades das TBAS são,
(GONÇALVES, 2001; OAKDALE, 2006 provavelmente, o espaço em que com mais
), entende o que para outros é nada mais frequência encontra-se o xamanismo nesse
do que um ruído potencialmente daninho papel de episteme dominante, dando, assim,
(FARAGE, 1997), conecta o inconectável: valor positivo a essa “fluidez”, essa “incons-
não é por acaso que o resgate da cultura in- tância” ou esse caráter transformacional que
dígena na escola pode se confiar aos xamãs lhes foi sempre atribuído: sua mutabilidade
e se cifrar na tradução de cantos xamânicos não revela uma fraqueza na sua constituição,
(ALVARES, 1999). Tudo que para outros é o seu princípio constitutivo. Isso isola a
seria um perigoso diálogo de surdos, para o literatura aqui resenhada de outras nas quais
xamã, é um exercício de “equivocação contro- o xamanismo continua a ser um fenôme-
lada” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004) no no, uma instituição ou um tema particular,

10 Cf. Latour (1993).

21
situado na margem e votado ao tratamen- artes plásticas, também é abordada sua rela-
to de aflições. Nas TBAS, o xamanismo é ção com a música e dança (MONTARDO,
central o suficiente para que ele se torne, 2009). Há um número significativo de tra-
pelo contrário, uma modalidade de descri- balhos elaborados pelos próprios artistas, ou
ção etnográfica, frequentemente – embora com sua colaboração, que abordam a relação
nem sempre – ligada a uma vertente teórica entre sua obra plástica e sua experiência com
marcada por lemas como o “perspectivismo o xamanismo (CASANTO, 2014; MATOS;
ameríndio” ou a “virada ontológica”. BELAUNDE 2014; SPADAFORA, 2006)
Isso traz um problema na hora de deter- oferecendo, às vezes, um relato extenso e
minar o escopo dessa revisão: o que deverí- vívido desta, em texto e imagens (LUNA;
amos incluir nela, já que praticamente todo AMARINGO, 1999).
ritual, toda teoria da pessoa, todo discurso A rubrica de “arte verbal” poderia abran-
sobre o universo, todo processo de transfor- ger alguns dos mais detalhados trabalhos
mação poderia ser englobado nessa descrição dedicados ao xamanismo, especificamen-
xamânica? Optei pelo critério simples de me te aos cantos que, com muita frequência,
referir àqueles trabalhos em que o xamanismo constituem o âmago do saber e da prá-
é explicitamente invocado, referindo-se ou não tica xamânica: Cesarino (2011b, 2013);
a uma prática especializada. Mesmo assim, o Déléage (200511, 2009); Renshaw (2006);
panorama é muito amplo. Choquevilca (2011); Yvinec (2011); Alvares
A arte indígena é um dos campos em (2006); Montagner (1996). É irónico – con-
que o xamanismo é trazido à tona com siderando o antes dito sobre o xamã como
assiduidade; contribui a uma subdiscipli- tradutor – que durante muito tempo o senti-
na cada vez menos pautada por interesses do desses cantos tenha sido deixado de lado,
taxonômicos e formais, em que o xama- não apenas pela dificuldade de sua tradução,
nismo fornece os motivos e sua exegese, mas também por certa suspeita de que seu
mas também reflexões sobre a forma – com significado fosse de relevância menor, afinal,
teorias nativas da figuração, da perspecti- eles costumam ser incompreensíveis mesmo
va ou da percepção (BELAÚNDE, 2011; para os falantes comuns da língua. Uma ideia
BRABEC DE MORI, 2009; DESHAYES, que poderia persistir, caso as pesquisas se
2000; LAGROU; BARCELOS NETO, limitassem à semântica e não se dirigissem
2001). Poderiam ser acrescentadas, aqui, preferentemente às dimensões pragmáticas;
as observações sobre a luminescência dos os jogos de enunciação e os diversos modos
espíritos (VIVEIROS DE CASTRO, 2006; pelos quais os mitos alimentam a prática
LANGDON, 2014). O xamanismo está xamânica e se realimentam dela12.
ligado também a preceptivas estéticas – es- O xamanismo aparece citado nos estu-
tando o feio ligado aos aspectos daninhos dos sobre parentesco e organização social na
da feitiçaria (BARCELOS NETO, 2008; medida, cada vez maior, em que a socialidade
OVERING, 2006). Apesar do maior desta- não se encontra apenas nas relações entre
que da associação entre o xamanismo com as seres humanos, mas abrange o mundo dos

11 A tese original contém um importante volume de informações faltantes no livro.


12 Veja-se, por exemplo, a noção de de-citação de Deleage (2009), um transporte dos relatos míticos para a experiência
histórica.

22
espíritos em geral, aí incluindo animais, Uma tradição que remonta aos Clastres
plantas e mortos13. Ou, em sentido inverso, consagrou uma tensão entre o sagrado e o
mergulha na multiplicidade do “divíduo”: político que fazia do xamã a contrafigura do
cada corpo humano é lugar de encontro de chefe, mas também uma rejeição do poder que
um número de espíritos, que pode se ver deixa o xamânico em condições de englobar
incrementado com o saber xamânico, ou a o político – uma revisão geral dessa linha de
idade. O xamanismo tem papel importante pensamento se encontra em Sztutman (2012).
nos processos de constituição e transforma- A condição de chefe pode estar fundida, como
ção do corpo e da pessoa (CAYÓN, 2009; nas Guianas (ou alhures14), com o exercício
LÓPEZ, 2006; PISSOLATO, 2007; RAMO do xamanismo, mas em outros casos este
Y AFFONSO, 2007; ANGARITA, 2014) e aparece como um fator sempre perigoso no
na definição dos padrões apropriados para jogo político, criando poder num meio social
a vida social (SULKIN, 2012; TEIXEIRA- isento de outros tipos de coerção (STORRIE,
PINTO, 2003). Ele fornece a armação lógica 2006) ou desafiando autoridades firmemente
para essas metamorfoses ubíquas na etno- constituídas, conforme visto em Barcelos Neto
logia das TBAS, dos estudos sobre identi- (2006), que entende isso como feitiçaria clara-
dades étnicas à cosmologia, à arte e à mito- mente diferenciada do xamanismo visionário
logia (PRAET, 2005, 2009; PRINZ, 2003; propriamente dito.
VILAÇA, 2000). O xamanismo garante o Nesse ponto, a literatura aqui resenhada
acesso a outros mundos que estão, afinal, duvida entre reservar a esse exercício de poder
compostos com este e que, como aponta agressivo a velha etiqueta de feitiçaria, ou
Cesarino, têm interesses e preocupações integrá-lo na descrição de um xamanismo
semelhantes às terrenas. que sempre o contempla como possibilidade.
Toda essa sociologia “xamânica”, em que Esse tem sido, se não um ponto cego, ao
o descrito não é um sistema de indivíduos menos um capítulo abafado da bibliografia
e grupos corporados com limites objetivos, sobre o xamanismo nas TBAS, o que não é
de normas explícitas ou implícitas, mas regi- difícil de se entender levando-se em conta a
mes subjetivos que podem estar muito longe prudência do próprio agente tanto quanto
das formas “molares” do que habitualmente da do pesquisador e, também, os requisitos
entendemos por sociopolítico (RODGERS, de uma arena política multicultural em que
2002; 2004) reformula o paradoxo, frequen- a figura do xamã é demasiadamente relevante
te nas TBAS, de sociedades que aparecem para que ela volte a assumir contornos menos
como “sociologicamente pobres”, mas “cos- gratos15. O lado escuro do xamanismo, no
mologicamente complexas”: temos aí uma entanto, tem sido abordado no volume or-
sociologia molecular, que se descreve não ganizado por Whitehead e Wright (2004) e
segundo o costumeiro jogo de indivíduos e em estudos que tratam ou incluem referên-
partidos, mas por exemplo, segundo o cauim cias amplas ao kanaimé do norte amazônico
(LIMA, 2005). (BUTT-COLSON, 2001; FARAGE, 1997;

13 A aliança matrimonial do xamã nesses outros mundos é um dado clássico do xamanismo que se repete nas TBAS,
cf. Crépeau (2002) e Lima (2002).
14 Cf. Langdon (2014).
15 Sobre passadas representações do xamã, cf. Chaumeil (2005).

23
WHITEHEAD, 2002)16. A interpretação completamente – a esse conceito reformu-
desse xamanismo “obscuro” é, em geral, lado de xamanismo que eu usei como fio de
política, entendendo-se como tal a política minha exposição. Mas cabe citar também o
interétnica (SANTOS GRANERO, 2004), interesse explícito de tornar independente
as disputas de poder na aldeia – um tema do xamanismo temas comumente associa-
profícuo no Xingú (HECKENBERGER, dos a ele, como os sonhos (SPADAFORA,
2004); ou sociológica, entendendo a feitiçaria 2009) ou a experiência visionária, dentro
como antimodelo, um avesso do parentesco da qual a visão xamânica seria apenas um
(VANZOLINI, 2013, 2015) ou um desvio do caso (RUBENSTEIN, 2012), ou mesmo a
seu padrão de moralidade e socialidade, como interação com os espíritos num ritual de
em Teixeira-Pinto (2004), ou Butt Colson cura, diferenciada da interação propriamente
(2001). A interpretação desta autora ao ca- xamânica (BALL, 2011). O perfil desses
naimé é discutida por Whitehead (2001), trabalhos é significativo: eles recuperam o
quem aponta a uma via de interpretação mais interesse pela eficácia simbólica, e esse vín-
integrada na cosmologia do xamanismo, uma culo com a psicologia ou a neurologia tem
cosmopolítica que envolve entidades malé- sido até hoje (WINKELMANN, 2013) uma
ficas mas, sobretudo, ávidas. O mundo, em das linhas dominantes dos estudos sobre
sua versão xamânica, está nas antípodas desse o xamanismo em outros continentes, mas
paraíso onde o carneiro sesteia ao lado do ausente na produção sobre o xamanismo
leão; a predação é o seu elo fundamental, e das TBAS, com raras exceções (BAUD;
a capacidade melhor distribuída do mundo. GHASSARIAN, 2010; ROBINSON,
As mesmas presas são temíveis e se transfor- 1996; RODD, 2004). Essa ausência – e a
mam, por sua vez, em predadores vingativos minha própria falta de competência nesses
(GONÇALVES, 2001) e esse habitus voraz campos – me dissuadem de detalhar essas
afeta também aos vegetais – veja-se o timbó abordagens.
na descrição de Suárez (2014). O xamanismo,
obscuro ou beneficente, está intimamente A indigenização do “xamanismo”
ligado a uma cosmologia ou uma ontologia
canibal (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Na trajetória do conceito de “xamanis-
Abramos um parêntese antes de aca- mo” já esboçado faltaria anotar um último
bar esta seção. Boa parte do americanismo passo, sua indigenização: o xamanismo co-
atual prefere fazer uso mais parcimonioso do meçou como termo nativo local, se genera-
termo “xamanismo”, e isso exclui da minha lizou como aspirante a categoria científica
revisão incontáveis itens que compartilham e, enfim, entrou de pleno direito no léxico
com os temas aqui citados (rituais, máscaras, nativo global. Xamã é, hoje, o termo com o
medicina tradicional, cosmologias) enfoque qual os povos indígenas traduzem as diversas
e interesses teóricos, prescindindo apenas especialidades de sua tradição e denominam
da referência explícita ao xamanismo que alguma outra de nova criação. “Xamã” está
adotei como critério. Nela foram incluí- longe de ser apenas uma tradução, ou ge-
dos, é claro, muitos trabalhos que tratam nérico que resume uma plêiade de termos
de xamanismo sem aderir – ou sem aderir locais. Ele aparece em contextos em que

16 Cf. também Colpron (2004) em referência aos Shipibo, ou Rosa (2014), aos Kaingang.

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nunca apareceram seus predecessores nati- de direitos ligados à biodiversidade ou à arte
vos e designa um protagonista de primeira (BELAUNDE, 2012), introduzindo, assim, os
importância no diálogo com a população xamãs num campo jurídico que estaria entre os
não indígena17. Lembremos o diagnóstico de mais improváveis para esse diplomata cósmico.
Conklin (2002), que diz que o xamã, depo- De importância crescente é o papel do
sitário de uma sabedoria ancestral, guardião xamã como intelectual orgânico, e porta-voz
de um património de conhecimentos nativos do seu povo – de fato, de todos os povos da
e de visões de mundo e éticas ambientais floresta, humanos e não humanos – perante
alternativas virou, desde meados dos anos a civilização global. Exemplo sobressalente,
1990, a figura escolhida para representar é claro, é o de Davi Kopenawa, autor de um
os povos indígenas na arena política nacio- livro notável, publicado em francês, inglês e
nal e global, substituindo (ou englobando espanhol antes de aparecer recentemente em
simbolicamente) a figura do guerreiro que português (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
ocupara essa arena anteriormente. As noções Mas está longe de ser um caso isolado, mesmo
do xamã se erguem como uma alternativa num dos seus aspectos mais interessantes: a
às do Ocidente, da economia à medicina vocação xamânica é resultado da decisão de as-
(ALBERT, 2002; GREENE, 1998) e, nesse sumir essa condição de porta-voz (DOMICÓ;
papel crítico e reflexivo, pode-se identificar HOYOS; TURBAY, 2002; GENTIL, 2005;
nele um equivalente do próprio antropólogo SÁEZ, 2012).
(CHERNELA, 1996)18. Essa nova identidade liga o xamanismo
O saber do xamã compila grande acervo indígena à new age numa aliança que pode ser
de informação ecológica, geográfica e his- por vezes incômoda, mas vem sendo muito
tórica (ANDRELLO, 2006; CESARINO, profícua: confere ao xamanismo, e com ele, ao
2013; FONTAINE, 2011), e isso o torna conjunto da “cultura indígena”, valor positivo
uma autoridade quando se trata de resgate para um setor importante das classes médias
cultural ou de discussões sobre o patrimônio euro-americanas, o liga a movimentos ecolo-
(ERIKSON, 2011). O próprio xamanismo gistas e alternativos em geral. Essa aproximação
pode se tornar a representação por excelên- se faz às custas de algumas distorções: o xama-
cia da cultura indígena (PANTOJA, 2014; nismo é transformado num misto de filosofia
WEBER, 2006), o que contribui a dar um esotérica e medicina, fortemente identificado
caráter xamânico a outros itens da cultura com as fitoterapias e profundamente morali-
indígena que empreendem uma carreira longe zado, de acordo com uma visão idealizada dos
do seu ambiente original, como acontece com mundos indígenas20.
o kampô (LIMA; LABATE 2007). Assim, co- O xamanismo indígena não aparece nos
missões de xamãs são invocadas pelo estado ou quadros da new age apenas como um ícone.
pelos próprios grupos indígenas19 para tratar Agentes xamânicos indígenas de novo cunho,

17 No entanto, “pajé” pode cumprir também esse papel, sendo o termo usado pelo público urbano para designar
aqueles que, em seu local ribeirinho, preferem ser chamados de “curadores” e se identificam como agentes católicos
(MAUÉS, 2005).
18 Sobre essa relação, ver também Langdon (2007).
19 Ver, com certa ironia, um caso Krahó em Ávila (2004).
20 Cf. Fernandez (2009); Apud (2013) e, especialmente, o volume organizado por Losonczy e Capo (2013).

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ou que já exerceram seu papel numa situação muito crítico sobre esse movimento global
anterior muito diferente, têm começado a e seus efeitos locais (RIOS, 2010), mas, em
participar desses mistos de religião e doutrina qualquer caso, o que fica claro é que o xamanis-
terapêutica, como a “aliança das medicinas” mo com gringos não deixa de ser xamanismo,
(ROSE, 2010; LANGDON; ROSE, 2013) (BRABEC DE MORI, 2014). Ele envolve
e, dando um passo além, tem fundado ver- poderes que pouco se preocupam com as
dadeiras igrejas como a rede Yawanawá, des- identidades étnicas, sequer com as diferenças
crita na dissertação de mestrado de Oliveira culturais e, embora seja decerto um xamanis-
(2012), onde não faltam sequer dispositivos mo diferente, isolar sua diferença na selvática
de controle da ortopraxe, e uma organização proliferação de diferenças do xamanismo seria
financeira não tão distante da que pode ser uma tarefa de êxito duvidoso.
encontrada nas igrejas evangélicas que lhes
serviram de inspiração. Coda: a ayahuasca
Essa “missão xamânica” em direção ao
mundo dos brancos amplifica uma circula- A ayahuasca merece ser objeto de um ca-
ção já antiga dos xamãs entre a clientela não pítulo final neste panorama bibliográfico. É o
indígena (LABATE & COUTINHO 2014; elemento psicoativo mais comum no xamanis-
VENTURA I OLLER, 2009), incluindo o mo de toda a Alta Amazônia, a ponto de servir
meio urbano, que tem dado lugar a novas muitas vezes como uma metonímia deste. Esse
práticas e adaptado algumas procedentes papel é mais interessante na medida em que,
de tradições ameríndias distantes, como o como já foi dito, essa hegemonia não vem
Temascal ou sweat lodge, combinado com a dada por uma tradição milenar: a ayahuasca
toma de ayahuasca e a injeção de sapo. Vale substitui ou passa a presidir uma multidão de
dizer que, nesse sentido, as redes indígenas outros psicoativos de uso mais circunscrito,
– incluindo alguns elos oriundos do sistema num processo de expansão cujo capítulo mais
médico oficial – têm sido mais diligentes que recente ou talvez mais espetacular ocorra na
as acadêmicas, estabelecendo uma conexão costa atlântica brasileira (ROSE; LANGDON,
pan-americana da qual se encontram poucos 2010, 2013). Esse sucesso pode fazer esquecer
sinais na literatura especializada. que o domínio da ayahuasca é compartilhado
Nesse ambiente encontram seu lugar ini- com o do tabaco, que a acompanha sempre
ciativas como o xamanismo para ocidentais, e tem o papel principal em regiões em que
ou, enfim, o xamanismo exercido por agentes a ayahuasca é desconhecida. O tabaco já in-
brancos, que não muitos anos atrás (a prática vadiu, séculos atrás, a cultura global, mas o
em si é antiga) eram objeto, no melhor dos fez desvinculando-se da sua função xamânica
casos, de descrições sarcásticas. Coletâneas original: a ayahuasca, pelo contrário, é expor-
recentes têm mudado esse tratamento, como tada como “espiritualidade indígena”, dando
Baud e Ghassarian (2010) e Labate e Cavnar lugar a cultos e igrejas (GROISMAN, 1999;
(2014), onde se revela como muito mais que LABATE 2004), em geral fundadas e manti-
um capítulo da antropologia do turismo. Há das por agentes não indígenas, mas com uma
adaptações ao gosto e à expectativa do público referência ao mundo indígena – a floresta é
euro-americano (LECLERC, 2010), há de- a sua “Terra Santa”, embora com frequência
sencontros e mal-entendidos (LOSONCZY; o índio amazônico seja substituído por um
CAPO, 2014), há sedução, incluindo a sexual inca mais adequado ao pendor hierárquico
(PELUSO, 2014) e cabe mesmo um juízo dos cultos organizados. Mas esse universo tem

26
se diversificado enormemente, hibridando-se Há, sem dúvida, algo na própria ayahuas-
com as religiões de origem africana, como no ca que, independentemente do empenho dos
caso da Barquinha (MERCANTE, 2012), seus adeptos, tem lhe garantido esse sucesso:
ou com outras tradições religiosas de origem talvez o seu teor não tóxico e relativamente
ameríndia (ROSE, 2010). previsível, seus efeitos que, mais do que a um
A ayahuasca e seu florescimento religio- êxtase, levam o usuário a uma experiência dú-
so são tema de uma abundante produção: plice, com um pé em cada mundo. Apesar de
vejam-se Luna e White (2000) e os volumes não ser, original ou exatamente, um alucinóge-
organizados por Beatriz Labate (LABATE; no (DESHAYES, 2002), ela inclui uma expe-
ARAUJO, 2004; LABATE; GOULART, 2005 riência visual cujas formas são eventualmente
LABATE; JUNGABERLE, 2011), incluin- comparadas às de uma escrita (CESARINO,
do uma bibliografia especializada (LABATE; 2012): a ayahuasca constrói uma ponte para
ROSE; SANTOS, 2008). intelectuais e tradutores de toda denominação.
A ayahuasca tem parte importante em Quem ler isto constatará que se está dizendo
todos os capítulos desta literatura e, mesmo da ayahuasca muito do que acabou de ser dito
nos que nela faltam, em volta da ayahuasca a respeito do xamanismo, ou do xamã. Obra
se produz certo reencontro entre as pesqui- prima da sofisticação farmacológica dos xamãs
sas da antropologia e as da psicologia e da da Amazônia, a ayahuasca – vegetal, artefato,
neurologia. espírito – é também o xamã por excelência.

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39
Resumo

Xamanismo nas terras baixas: 1996-2016


A pesquisa em etnologia das terras baixas da América do Sul (TBAS) tem feito uso extenso e peculiar do termo
“xamanismo”, que o diferencia de sua acepção comum nas etnologias de outras regiões ou continentes. Mais do que
uma disciplina ou uma instituição, o xamanismo, nas TBAS, é uma estrutura básica do conhecimento e da prática –
um xamanismo muitas vezes “sem xamãs” – um modo nativo de descrição adotado amplamente pelos próprios
pesquisadores.
Palavras-chave: Xamanismo; Terras Baixas da América do Sul; Etnologia; Tradução; Perspectivismo.

Abstract

Shamanism in the lowlands: 1996-2016


Ethnological researches on the South American Lowlands have made an extensive and peculiar use of the term
“shamanism”, which differentiates it from its common meaning in the ethnology of other regions or continents. More
than a discipline or an institution, shamanism is, in the South American Lowlands, a basic structure of knowledge
and practice – a shamanism often “without shamans” – a native mode of description widely adopted by researchers
themselves.
Keywords: Shamanism; South American Lowlands; Ethnology; Translation; Perspectivism.

Resumé

Chamanisme dans les basses-terres : 1996-2016


La recherche ethnologique des basses-terres d’Amérique du Sud a fait un usage extensif et particulier du terme
«chamanisme», ce qui le différencie de son sens commun dans les ethnologies d’autres régions ou continents. Plus
qu’une discipline ou une institution, le chamanisme est, dans cette région ethnologique, une structure de base de
connaissances et de pratiques – un chamanisme souvent «sans chamans» – un mode de description indigène largement
adopté par les chercheurs eux-mêmes.
Mots-clés: Chamanisme; Basses Terres de l’Amérique du Sud; Ethnologie; Traduction; Perspectivisme.

40
DOI: 10.17666/bib8703/2018

Chefia e política na América do Sul indígena:


um balanço bibliográfico para além do modelo clastreano1

Antonio Guerreiro2

Introdução novos contornos, pois sua caracterização das


sociedades ameríndias como dotadas de uma
Os debates sobre chefia e política na espécie de “intencionalidade sociológica”
América do Sul indígena têm uma história contrária ao surgimento do Estado, não só
considerável. Não muito tempo depois da esclareceu instituições marcadas por aparente
publicação de African Political Systems por ambiguidade, como chamou a atenção para
Meyer Fortes e Evans-Pritchard (1950), que uma dimensão filosófica da existência desses
inaugurou uma das principais orientações coletivos. Na última década, a obra de Pierre
etnográficas e teóricas da história da antro- Clastres tem sido retomada em diálogo com
pologia, Lévi-Strauss publicava seu clássico ar- importantes avanços etnográficos e teóricos
tigo sobre os aspectos sociais e psicológicos da da etnologia sul-americana, evidenciando
chefia Nambikwara (LÉVI-STRAUSS, 1944). que muitas de suas intuições permanecem
Quatro anos mais tarde, surgia o clássico de boas para pensar – conferir, por exemplo, o
Lowie sobre organização política entre os povos dossiê Pensar com Pierre Clastres, publicado na
indígenas americanos, responsável por cunhar Revista de Antropologia (PERRONE-MOISÉS;
a categoria de titular chiefs: chefes meramen- SZTUTMAN; CARDOSO, 2011).
te titulares, sem poder coercitivo (LOWIE, O objetivo deste artigo é realizar um
1948). De modo geral, algumas das questões sobrevoo por trabalhos que, de diferentes
levantadas nesses dois trabalhos – sobre a falta maneiras, marcam os debates sobre chefia e
de poder do chefe, seus deveres em relação ao política nas terras baixas da América do Sul nas
grupo, as complexas relações de dependência últimas décadas, a fim de oferecer um panora-
entre chefia e sociedade – ainda estão entre ma da diversidade de abordagens do problema
as mais relevantes quando o assunto é chefia da política no subcontinente. Não pretendo
indígena, mas elas passaram e ainda passam retomar os debates clássicos a respeito das
por reformulações consideráveis. formas ameríndias de organização social, o que
Após os trabalhos de Pierre Clastres não caberia nos limites deste artigo3. Também
(2003a, 2003b, 2003c, 2004a, 2004b), a decidi não iniciar este texto com uma revisão
problemática do poder e da política ganhou dos trabalhos do próprio Clastres (o que me

1 Este artigo resulta do projeto Sistemas regionais ameríndios em transformação: o caso do Alto Xingu, apoiado
pela Fapesp na modalidade Jovem Pesquisador (processo 2013/26676-0).
2 Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador
do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
(IFCH/Unicamp). E-mail: agjunior@unicamp.br
3 Para um balanço das principais discussões, ver Coelho de Souza (2002), Fausto (2000) e Sztutman (2012).

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 41-70. 41
obrigaria a um recuo temporal maior do que e a etnografia. Na terceira, discuto algumas
o proposto neste número), nem restringi-lo releituras contemporâneas da obra de Pierre
a trabalhos dedicados especificamente à sua Clastres e tentativas de redefinição dos pro-
obra (o que exigiria um artigo à parte). Preferi blemas postos por – e para – as políticas ame-
adotar a estratégia de tomar as principais teses ríndias, em particular as formas de articulação
de Pierre Clastres, amplamente conhecidas entre os problemas da política com os temas da
entre os leitores brasileiros, como pano de pessoa e da corporalidade. Na quarta e última
fundo e ponto de partida para debates que se seção, apresento algumas discussões sobre o
desenvolveram a partir da década de 1980, a envolvimento das políticas ameríndias com
fim de oferecer ao leitor um panorama algo instituições estatais, chamando a atenção para
heterogêneo, no qual seja possível visualizar transformações em curso e questões em aberto.
tanto movimentos de afastamento quanto
de aproximação em relação a Clastres. Este Pierre Clastres: alguns
balanço não pretende ser exaustivo, mas apenas impactos e reações
apresentar um panorama de questões que se
levantaram em conjunto com a ampliação de Nos anos 1980, pode-se dizer que houve
conhecimentos etnográficos, arqueológicos um conjunto de “reações etnográficas” a
e linguísticos sobre a Amazônia indígena, o Clastres. Estas reações tomaram como ponto
que colocou às abordagens sobre a política de partida a positividade das políticas indí-
ameríndia um conjunto de problemas de es- genas apontada por ele, e se aprofundaram
cala: o que se transforma quando mudamos a em sua investigação etnográfica. Contudo,
escala das análises, seja de um ponto de vista esse movimento propiciou a emergência de
temporal (no caso das relações entre o pre- divergências em relação a algumas teses clas-
sente e o passado pré-colonial) ou espacial treanas, marcadamente quanto à diversidade
(com o deslocamento do foco de grupos locais de formas possíveis do poder (que não precisaria
para conjuntos multiétnicos e multilíngues)? ser visto apenas como coerção) e seus espaços de
Há algo que pareça capaz de permanecer, se manifestação (pois o político não se restringiria
reproduzindo de forma autossimilar indepen- à chefia, nem à relação entre chefe e grupo).
dentemente da escala (STRATHERN, 2014)? Uma questão que marcou o debate e ainda
Este artigo está dividido em quatro partes, se faz presente diz respeito à importância do
que seguem uma organização parcialmen- xamanismo e do ritual para se pensar as rela-
te temática e parcialmente cronológica. Na ções de poder na América do Sul indígena.
primeira, discuto os termos em que algumas Santos-Granero (1986), por exemplo, chama a
das principais hipóteses de Clastres foram atenção para a frequente coincidência entre as
debatidas em contextos etnográficos parti- posições de chefe e xamã ou especialista ritual,
culares, que tanto produziram refinamentos e argumenta que o poder político estaria ligado
quanto levantaram problemas descritivos e a conhecimentos rituais e suas capacidades de
conceituais. Na segunda, apresento uma sín- doação de vida, que implicariam a interferência
tese do debate aberto pelo aprofundamento decisiva em processos de reprodução natural,
dos conhecimentos sobre a história de longa social e cósmica. Partindo do exemplo dos lí-
duração da Amazônia, proporcionados pelo deres Piaroa, que também são xamãs, Santos-
avanço de arqueologia e sua articulação com Granero afirma: “O xamã Piaroa desempenha
disciplinas operando com diferentes escalas um papel mediador entre a sociedade e o am-
temporais, como a linguística, a etnohistória biente, assegurando não só as condições de vida

42
de seus seguidores individuais, mas também Essa formulação traz à tona o clássico
as condições naturais para sua reprodução so- problema da reciprocidade entre o chefe in-
ciobiológica” (SANTOS-GRANERO, 1986, dígena e o grupo, que Santos-Granero aborda
p. 662)4. Dessa perspectiva, haveria relações criticando tanto Lévi-Strauss quanto Clastres.
diretas entre os poderes místicos do ritual e a Segundo ele, Lévi-Strauss teria se enganado ao
condução de processos econômicos (SANTOS- considerar a reciprocidade entre chefe e grupos
GRANERO, 1986, p. 657). nos Nambikwara como simétrica. Já Clastres
No mundo ameríndio, esta relação intrín- teria cometido o erro oposto, por identificar
seca entre poder e processos econômicos teria uma assimetria, mas tratá-la de forma unidi-
uma conotação distinta da conhecida pelas recional, a ponto de anular a reciprocidade.
sociedades capitalistas. Se no capitalismo o Isso se deveria ao fato de Clastres suposta-
fundamento do poder é a propriedade privada mente não ter dado atenção à importância
de modos materiais de produção, nas socieda- das ações rituais dos chefes, em paralelo aos
des ameríndias esta seria a propriedade pessoal outros dons que ele deve oferecer ao grupo5.
de modos místicos de reprodução (Ibidem, p. Se Clastres vê o chefe como um devedor do
663). Esta comparação contém três oposições: grupo, Santos-Granero argumenta que, do
entre propriedade privada e propriedade pesso- ponto de vista das condições metafísicas da
al; entre material e místico; e entre produção e reprodução econômica e social, o grupo é
reprodução. Este conjunto de diferenças faria quem ocuparia a posição de devedor. Desse
com que o poder não assuma necessariamente desequilíbrio emergiria uma relação de poder,
a forma da força individual de produção a mas que não implicaria necessariamente em
partir de meios materiais, mas a influência coerção física, e sim em formas de controle de
pessoal e imaterial sobre processos de repro- forças imateriais com potencial impacto sobre
dução em que há um grau de reciprocidade o mundo material (a economia).
entre os agentes envolvidos. Assim, a relação O caso dos antigos sacerdotes Amuesha
de poder entre o líder Piaroa e seus seguidores (Arawak) merece destaque, pois se refere a
seria representada como uma troca recíproca, um ponto de confluência entre características
porém assimétrica (Ibidem, p. 664): a posse de políticas e religiosas dos povos das terras baixas
capacidades que permitem ao líder garantir a e das terras altas sul-americanas. Os antigos
reprodução da vida para todos os seus seguido- sacerdotes Amuesha (chamados cornesha ou
res lhe daria o direito de solicitar trabalho em cornanesha) foram pessoas cuja influência
grande escala para atividades cerimoniais, bem política e moral se estendia a vários grupos
como a possibilidade de proteger ou deixar locais, e cujas atividades eram realizadas em
de proteger alguém que viva no território sob centros cerimoniais que funcionavam como
seus cuidados. Contudo, em consonância com locais de peregrinação. A atividade desses sa-
Clastres, Santos-Granero reconhece que este cerdotes seria fundamentalmente moral: além
poder deve ser sempre voltado para o benefício de servirem de exemplo de conduta, pediam
dos seus seguidores, caso contrário ele pode ser a compaixão dos deuses, que infundiam o
abandonado ou substituído (Ibidem, p. 666). alimento ritual com vida.

4 Todas as citações de textos em língua estrangeira foram traduzidas livremente para o português.
5 Para discussões sobre a possibilidade de se considerar ações rituais como análogas a dádivas, conferir Harrison
(1992) e Guerreiro (2015b).

43
Santos-Granero adota um argumento de significaria a ausência total de poder: a repre-
Schapera, segundo o qual uma organização sentação ideológica da assimetria em relação
política deve ser definida pelas formas de aos meios místicos de reprodução seria uma
“manutenção da cooperação interna e da in- fonte de poder mais eficaz que os meios de
dependência externa” (SANTOS-GRANERO, coerção física, justamente por se basear no
1993, p. 217). Partindo desta definição, ele consentimento (ainda que frágil e variável).
analisa em maiores detalhes os sacerdotes Outro ponto interessante de sua análise
Amuesha, que “realizavam todas as funções é a tentativa de aproximação ao idioma sim-
características de um sistema político, isto é, bólico dos Amuesha sobre a relação entre os
a garantia de: 1) ordem interna, harmonia e sacerdotes e seus seguidores, que seria como
cooperação; 2) independência externa; e 3) o uma combinação de amor/compaixão, medo/
sucesso das atividades produtivas e reprodu- respeito e fé/obediência. O primeiro termo se
tivas da unidade política” (Ibidem, p. 218). referiria a uma relação recíproca e assimétrica
Diferentemente dos líderes e xamãs Amuesha, entre dois parceiros; o segundo, a um “medo
cuja influência é limitada a suas localidades e reverencial”, sentido por jovens em relação aos
costumam estar envolvidos em disputas políti- adultos, seguidores em relação a sacerdotes, e
cas locais, os cornanesha oficiavam em templos humanos em relação a divindades; o terceiro,
nos interstícios do espaço social e geográfico por fim, implicaria crença e obediência aos en-
Amuesha, colocando-se acima das questões sinamentos de um superior (Ibidem, p. 225).
dos grupos locais. Descreve-se, assim, uma relação assimé-
Santos-Granero retoma o problema da trica, de feições políticas claras, que envolve
assimetria e da dívida entre líderes e grupo a uma forma de poder marcada por matizes
partir de uma peculiaridade dos cornanesha: mais complexas do que a forma explícita da
diferentemente dos chefes polígamos descritos coerção. O poder dos cornesha, mesmo baseado
por Clastres, os sacerdotes Amuesha seriam em uma relação privilegiada com os deuses e,
obrigatoriamente monogâmicos. Isso, segundo por meio deles, com a economia, não os trans-
o autor, eliminaria o “argumento ideológico” formava em tiranos. A emergência do Estado
sobre o qual a função política seria tornada exigiria uma combinação especial entre religião
impotente (Ibidem, p. 216). Assim, além da e aparelho guerreiro, como seria possível su-
posse dos “poderes místicos de reprodução”, a gerir a partir do movimento messiânico e da
exigência da monogamia provocaria uma espé- revolta contra os espanhóis, liderada por Juan
cie de inversão da balança clastreana (Ibidem, Santos Atahualpa, que liderou os Amuesha
p. 220). Além de realizarem atividades rituais e segmentos dos Asháninka como uma es-
das quais dependem a reprodução econômica pécie de super-cornesha, entre 1742 e 1761
e social dos Amuesha, a monogamia não colo- (SANTOS-GRANERO, 1993, p. 226). Na
caria os cornanesha na posição de “prisioneiros ausência dessa conjunção, o sistema político
do grupo”, como argumentara Clastres, mas, Amuesha alternaria entre forças centrípetas
ao contrário, aprofundaria a assimetria da e centrífugas, como no caso das estruturas
sua relação. Santos-Granero argumenta que gumsa/gumlao descritas por Leach (Ibidem).
a renúncia à poligamia parece a única forma Cabe mencionar o que ocorreu no Alto
dos chefes amazônicos acumularem poder Xingu há alguns anos, quando um jovem
(Ibidem, p. 222). Contudo, este seria um chefe se transformou, de forma atípica, em
poder não coercitivo, baseado no consenso um grande xamã. Ele fazia discursos diários em
(o que o tornaria frágil), mas ele também não sua aldeia, ao mesmo tempo em que realizava

44
curas coletivas e dizia garantir a vitalidade de deixasse de lado a comparação com os Andes.
todos; demandava às pessoas que pescassem A situação no passado pré-colombiano deve ter
para ele e sua família, como pagamento pelos sido ainda mais complexa, e os debates sobre
trabalhos diários de cura; e forçava pacientes os casos contemporâneos deveriam levar em
mulheres a manterem relações sexuais com conta os efeitos destrutivos da colonização.
ele, também como “pagamento” por seu tra- Comentando sobre os fundamentos filosó-
balho. Muitas de suas técnicas de cura eram ficos do “igualitarismo” ameríndio, Descola
nada usuais, envolviam formas de violência argumenta que tal igualitarismo não seria “o
e humilhação pública. É como se ele tivesse fruto de uma vontade coletiva e obstinada
invertido o sentido dos três circuitos de trocas de se opor à emergência do poder coercitivo”
focalizados por Clastres: se tornou um doador (DESCOLA, 1988, p. 819), mas o efeito de
de palavras ouvidas com atenção, um receptor uma tragédia demográfica, territorial e social.
de bens (peixes) e forçou o acesso a mulheres Diferentemente, as polities pré-colombia-
sem que isso tivesse como contrapartida qual- nas teriam sido marcadas pela existência de
quer forma de afinidade. Contudo, quanto aldeias fortificadas por paliçadas, com grupos
mais seu poder crescia, mais aumentavam as hierarquizados de especialistas, eventualmente
desconfianças, e seu destino foi o de todo chefe com uma aristocracia hereditária capaz de mo-
que se torna “grande demais”: de homem de bilizar trabalho para grandes atividades de ma-
prestígio passou a acusado de feitiçaria, sendo nejo do espaço (como a construção de estradas,
obrigado a fugir de sua aldeia (CARDOSO; canais de irrigação e drenagem, montes eleva-
GUERREIRO JÚNIOR; NOVO, 2012). dos para residência ou finalidades rituais etc.)
A perspectiva de Santos-Granero provoca (Ibidem). Organizações sociopolíticas com tais
pelo menos dois deslocamentos. O primeiro é características não foram excepcionais, tendo
o da perspectiva sobre o que seria o poder, mos- sido encontradas no Panamá, na Nicarágua,
trando que este não precisa assumir a forma no norte da Venezuela, nas Antilhas, ao norte
da coerção, mas pode representar influência e a leste da Colômbia, entre outras regiões
econômica ou moral. O caso dos sacerdotes (Ibidem, p. 820).
Amuesha demonstra como uma ideia de amor Mesmo desconsiderando as organiza-
poderia ser um operador de relações assimétri- ções sociais ditas “hierárquicas” (pois em que
cas baseadas em alto grau de consenso. Outro consistiriam tais hierarquias permanece um
deslocamento diz respeito ao espaço em que a problema em aberto, como ainda veremos),
política parece ser relevante: sem ser algo que se Descola se pergunta se seria correto falar em
restringe ao interior do grupo local, ela parece “chefia sem poder” e, mais ainda, se não ha-
ser exercida nas interseções com o exterior, seja veria outras formas de poder além do coer-
ele ecológico, sobrenatural ou social. citivo (DESCOLA, 1988, p. 820). Descola
Philippe Descola também questiona a traz uma questão adicional a partir do caso
uniformidade do modelo de Clastres, cha- Jivaro, em que considera inadequado chamar
mando atenção para uma drástica mudança seus “grandes homens” (juunt) de chefes. Estes
no panorama etnográfico proporcionada pelo são guerreiros valorosos que, por seu carisma
incremento do conhecimento sobre as formas e inteligência tática, são capazes de constituir
políticas da Amazônia (DESCOLA, 1988, coalizações militares temporárias. Mais do
p. 818). A etnohistória e a arqueologia, so- que uma sociedade com “chefes sem poder”,
bretudo, sugeririam que a noção de “chefia os Jivaro seriam mais bem descritos como
sem poder” não seria legítima, mesmo que se uma “sociedade sem chefes” (Ibidem, p. 822).

45
Também partindo do ponto-chave que politie (entendida como uma entidade política
faria do chefe um prisioneiro do grupo – a autônoma) sem instituições supralocais, e vê na
poligamia –, Descola argumenta que esta chefia uma forma de regulação de fronteiras.
seria uma prática bem mais generalizada do A perspectiva de Menget é interessante, por
que supunha Clastres e, onde é reservada aos apresentar um deslocamento do foco: o chefe
chefes, ela também seria praticada pelos xamãs não é visto (apenas) como uma figura do grupo
(Ibidem, p. 821). Se o chefe impotente, ge- local, mas sim como um mediador. Com isso,
neroso e bom orador existe em certos lugares o foco se desloca parcialmente do problema
e épocas, ele não é a única figura em que se do poder. Segundo Menget, a tese de Clastres
exprimiria a esfera do político (Ibidem). remeteria a certa noção de politie, mas sem
Ainda segundo Descola, uma definição defini-la explicitamente. Uma politie, para
exclusiva do poder como “poder coercitivo” Menget, seria o quadro necessário à distinção
seria uma “dedução transcendental etnocên- entre um interior e um exterior (Ibidem).
trica”, pois implicaria em dotar os ameríndios Como se sabe, esta será uma dualidade dura-
de uma ideia do poder idêntica à que dele mente criticada pela etnologia americanista
fazem os europeus. O poder dos xamãs seria (COELHO DE SOUZA, 2002; VIVEIROS
mais imaginário, mas menos abstrato, do que DE CASTRO, 1986, 2002), mas por enquan-
a negação da autoridade política pela chefia to cabe explorar o uso feito dela por Menget e
impotente (Ibidem, p. 822). Ainda assim, apontar as questões que ele permite levantar.
caberia perguntar: esse poder de agir sobre o Toda politie teria mecanismos para
mundo invisível, supostamente menos ma- garantir graus relativos de concórdia em
terial que o mundo da economia e da vida seu interior e segurança perante o exterior
cotidiana, seria propriamente político? “Em (MENGET, 1993, p. 61). Ao lidar com o
suma, pode-se dizer que o poder dos xamãs caso do Alto Xingu, um complexo multiét-
ameríndios é em sua essência político, mesmo nico e multilíngue que se define pela evitação
quando ele não está ornado com os atributos da guerra entre grupos ligados por casamen-
do comando?” (Ibidem, p. 824). tos, trocas econômicas e rituais intercomu-
Há várias afinidades entre os argumen- nitários (BECKER, 1969; FAUSTO, 2007;
tos de Descola e Santos-Granero, pois para FRANCHETTO, 2011; GUERREIRO,
o primeiro o caráter político do xamã tam- 2015a), Menget se pergunta sobre as forças e
bém se deve ao seu controle simbólico sobre formas de persuasão que permitem distinguir
meios materiais ou ideais dos quais depende a os “residentes” (aqueles que se identificam
existência coletiva (DESCOLA, 1988, p. 825). como membros de uma mesma “comunidade
Este não seria um verdadeiro poder político moral”) (HECKENBERGER, 2001, 2002)
do ponto de vista de Clastres, por não se tratar dos estrangeiros (MENGET, 1993, p. 61).
nem do exercício, nem do exorcismo da co- A aliança matrimonial seria uma peça-chave
erção. Porém, ele seria propriamente político desta formação política, pois teria a capacidade
“se pensarmos que a faculdade de aparecer de gerar um mecanismo informal de defesa
como a condição da reprodução harmoniosa contra os outros e, ao mesmo tempo, viabilizar
da sociedade é um componente fundamental a sua eventual incorporação (Ibidem, p. 63).
do poder em todas as sociedades pré-moder- O cerimonialismo intercomunitário mar-
nas” (Ibidem). caria ao mesmo tempo a participação comum
Patrick Menget (1993) se pergunta sobre a em um sistema, e as diferenças entre os grupos
manutenção da sociedade xinguana como uma locais e tensões inerentes à aliança, tendo os

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chefes como seus pivôs (MENGET, 1993, em que a distinção entre residentes e não re-
p. 67). Menget define o poder político como sidentes seria a chave para a definição de um
“a capacidade de fazer fazer” (la capacité de espaço comum em que as pessoas poderiam
faire faire, no original) (Idem, p. 70). Além transitar seguras de encontrar hospitalidade em
de promover mobilizações coletivas ao tra- suas redes de consanguinidade e afinidade, ao
balho, o chefe também poderia ordenar, ou invés de emboscadas de inimigos.
simplesmente permitir, a execução de pessoas Assim como Santos-Granero e Descola,
acusadas de feitiçaria – o que, como se sabe Menget atenta para a importância do ritual e
pela etnografia, tendem a ser rivais fragilizados do xamanismo. Mas, diferentemente dos dois,
no jogo político (BASSO, 1973). Se o chefe vê neles formas complementares de exercí-
tem a capacidade de fazer matar, pode-se dizer cio político: o xamanismo permitiria exercer
que ele detém algum poder coercitivo, mesmo mais poder no jogo faccional (e haveria um
que sua fala não seja um comando. Assim, poder informal dissimulado nas obrigações
a visão de Clastres sobre a “fala edificante” entre afins), e o cerimonialismo seria uma
também seria questionável, pois ela poderia função mediadora que torna a politie xinguana
dissimular o exercício verdadeiro de um poder possível. Talvez não seja exagero considerar
(MENGET, 1993, p. 68). estes trabalhos como “críticas etnográficas”
Ainda assim, a chefia não seria uma insti- do modelo clastreano, pois todos se baseiam
tuição centralizada. Os chefes podem ocupar em um argumento semelhante: a despeito do
posições diversas como patrocinadores, coor- alcance do modelo, seria preciso encontrar
denadores ou destinatários de rituais, respon- idiomas analíticos que dessem conta de ou-
sáveis por iniciativas de trabalho coletivo etc. tros aspectos do político. Ao mesmo tempo,
Essa tendência à multiplicação das funções de todos reconhecem que as linhas mestras do
chefia resultaria de uma “vontade clastreana de argumento não deixam de se atualizar em cada
recusar o poder de coerção?” (Ibidem, p. 69); caso particular. O refinamento demandado
seria ela uma desconfiança absoluta do poder, por esse debate passa por uma rediscussão
ou do poder absoluto? A resposta de Menget do que se entende por poder e, nesse sentido,
é negativa, pois todo chefe que se torne um a distância em relação a Clastres não é tão
representante legítimo da comunidade deve, grande quanto poderia parecer: o problema da
além de herdar o título, possuir uma paren- política continua sendo o problema do poder,
tela sólida, uma casa produtiva e exercer um que se não assume a forma da coerção, pode
controle efetivo de seu povo, suas mulheres, assumir as formas mais brandas e capilares da
seus aliados e seus dependentes (Ibidem, p. influência direta ou indireta, ou do controle da
69). Desse modo, qualquer chefe teria alguma territorialidade (como se sabe, outro elemento
forma de controle, que poderia ou não se tra- central para a antropologia africanista).
duzir em poder, a “capacidade de fazer fazer”
(MENGET, 1993, p. 71). A política amazônica na
A origem do título de chefe seria a condi- longa duração: repensando
ção de “mestre do território”: aquele respon- complexidade, hierarquia e poder
sável por abrir uma aldeia em um lugar seria
seu primeiro chefe e transmitiria o título a A partir da década de 1980, o avanço das
seus descendentes (Ibidem). Esta seria uma pesquisas arqueológicas deu início a profundas
posição condizente com a ideia de que a politie mudanças nas imagens sobre o passado da
xinguana configuraria uma territorialidade, Amazônia, com impactos nos debates sobre

47
as formações políticas – passadas e presen- favor de um desenvolvimento local autôno-
tes – da região. As conhecidas pesquisas de mo, baseado em processos de crescimento
Anna Roosevelt (1993) no Orinoco, na Ilha econômico e demográfico, acompanhados
de Marajó e em Santarém demonstraram como do aumento da competição e complexificação
a Amazônia já sustentou grandes populações, sociopolítica. Cruzando dados arqueológicos
intensamente conectadas por vias ribeirinhas e com relatos etnohistóricos, Roosevelt sugere
terrestres, formando densas redes de circulação. que a maioria das aldeias naquele período
A existência de marcas de grandes modificações seriam partes de unidades culturais, políti-
na paisagem, como a construção de barragens, cas e territoriais mais amplas, sob o governo
açudes e locais elevados para plantio ou resi- de chefes gerais reclamando origem divina,
dência, é um indicativo de grandes sociedades, acompanhados de chefes regionais ocupantes
o que, por sua vez, traz à tona o problema da de cargos em função de formas estabelecidas
complexidade: como teria sido a organização de hierarquia social.
política de sociedades demograficamente vo- As interpretações iniciais de Roosevelt,
lumosas, que deixaram no ambiente marcas mesmo tendo transformado as imagens sobre o
de obras públicas que podem ter envolvido passado amazônico, são bastante controversas e
trabalho coletivo em larga escala? permanecem muito próximas de modelos clás-
Segundo Roosevelt, as sociedades ama- sicos da ecologia cultural, como o argumento
zônicas contemporâneas seriam “populações a favor de relações causais entre produtivida-
dizimadas, aculturadas e deslocadas, que foram de, aumento populacional e necessidade de
parte de sociedades pré-históricas comple- centralização político-econômica. Contudo,
xas destruídas durante a conquista europeia” tempos depois, a própria Roosevelt revisou
(ROOSEVELT, 1993, p. 256). Por volta do algumas de suas hipóteses sobre centraliza-
final do primeiro milênio da era cristã, mudan- ção política, e relativizou a centralidade da
ças extraordinárias parecem ter acontecido na ecologia e da economia para o desenvolvi-
região, quando as populações aumentaram, a mento de sociedades complexas. Ao invés de
agricultura se intensificou e sociedades “com- associar complexificação e estratificação social
plexas” apareceram (Ibidem, p. 258). O que e política, Roosevelt propõe pensar as socie-
significaria, porém, “complexidade”? dades complexas amazônicas como sociedades
Em alguns de seus primeiros trabalhos, heterárquicas. A noção de heterarquia seria
Roosevelt entende a complexificação como a uma alternativa aos modelos materialistas da
ocorrência de intensificação econômica, di- cultura, e fundaria um argumento segundo
versificação social (sugerida pela existência o qual “comunidades complexas, de larga
de diferentes padrões residenciais, enterro e escala, poderiam ser organizadas por vários
produção artística, por exemplo) e centra- métodos não hierárquicos, não centralizados,
lização política. Ela argumenta que teriam implementados em comunidades locais […]”
aparecido na Amazônia “chefaturas”, em so- (Ibidem), e organizações heterárquicas desse
ciedades com “a construção em larga escala tipo seriam mais estáveis e duráveis que organi-
de estruturas terrestres para controle da água, zações hierárquicas, graças à sua capilaridade
agricultura, habitação, transporte e defesa” e plasticidade.
(Ibidem, p. 259). Questionando o modelo de As escavações na Ilha de Marajó não tra-
Betty Meggers, segundo o qual estas sociedades riam evidências de diferenciação hierárqui-
teriam resultado de migrações de populações ca, pois não haveria diferenças significativas
oriundas dos Andes, Roosevelt argumenta a entre os morros artificiais usados como área

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de residência, nem diferenças internas entre as bases em que são feitas as associações entre
tipos de residência e cemitérios em cada mon- certas práticas e hierarquia são muito frágeis. A
tículo em particular (Ibidem, p. 21). Já na despeito disso, também é preciso reconhecer que
região de Santarém, na boca do rio Tapajós, ela abre espaço para questões sobre as relações
a situação é diferente. Medições por carbo- entre o que se conhece das políticas ameríndias
no-14 indicam que a cultura em Santarém se pelos registros históricos e etnográficos, e o que
iniciou por volta de 500 d.C, atingindo seu se conhece pelo registro arqueológico.
auge no século XIV e início do XV, decaindo A partir de fontes históricas e etnográficas
com a conquista e a missionarização entre os de origens diversas, Neil Whitehead (1994)
séculos XV e XVI (Ibidem, p. 23). A maioria discute a existência de formas complexas de
das ocupações é mais rasa e muito maior organização social na região do Orinoco. No
em área. O sítio pré-histórico mais tardio que ele chama de “Antiga Ameríndia”, as
na cidade de Santarém, por exemplo, ocupa “‘sociedades’ foram anteriormente variáveis
cerca de 4km2. As escavações demonstram em suas composições étnicas e linguísticas,
que a população vivia em grandes estruturas regionais em sua operação econômica, e po-
oblongas, equipadas com poços em forma de liticamente sofisticadas na medida em que
sino para estocagem, e também há registro poderiam abranger dezenas de milhares de
da existência de poços, estradas elevadas e indivíduos” (WHITEHEAD, 1994, p. 35).
calçadas entre os sítios (Ibidem, p. 24). As Com articulações regionais de larga escala,
peças de arte de Santarém encontradas em muitas vezes as fronteiras étnicas não coin-
grandes sítios mostram figuras humanas com cidiam com sistemas políticos, econômicos
detalhes pessoais, não encontradas nos sítios e sociais em particular, mas se fundavam na
menores, que poderiam indicar alguma forma produção e troca de produtos especializados
de estratificação social (Ibidem, p. 25). A – como é o caso contemporâneo de povos
disposição funerária dos mortos também era das Guianas, do Alto Xingu e do Noroeste
mais elaborada do que na cultura marajoara, Amazônico. As chefias da “Antiga Ameríndia”
cujos corpos eram cuidadosamente prepara- teriam se constituído nos espaços para manu-
dos e depois descartados por cremação ou tenção ou ampliação de tais fronteiras e redes
por enterros secundários em urnas funerá- de comércio, fazendo com que a política fosse
rias. Segundo missionários que trabalharam menos um aspecto dos grupos locais do que de
na região no século XVII, o objetivo seria redes regionais, “com o poder político sendo
criar relíquias ancestrais para adoração, e exercido a uma distância geográfica por linhas
múmias de ancestrais importantes, chamados de interação econômica” (WHITEHEAD,
de “primeiro pai” e “primeira mãe”, seriam 1994, p. 38). Whitehead menciona como
mantidas em casas especiais e reformadas exemplo a história das chefias Lokono, que
para exposição pública em cerimônias anuais. até o século XVIII constituíram uma orga-
A comparação da cultura marajoara com nização política poderosa que articulava as
a cultura de Santarém, assim, seria uma evi- bacias do Amazonas e do Orinoco na área
dência de que haveria soluções diversas para de Sierra Acarai/TumucHumuc, conectando
a organização de grandes populações em áreas os rios Corentyne e Berbice com o Paru e o
densamente habitadas, e que o cenário político Trombetas (Ibidem).
da Amazônia pré-colombiana foi certamente Porém, como o próprio Whitehead reco-
muito heterogêneo. É preciso reconhecer as li- nhece, a antropologia ainda carece de métodos
mitações de tais hipóteses, na medida em que bem definidos para a crítica de documentos

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históricos, o que coloca uma questão: até que os pontos cardeais. Ampliando-se a escala
ponto a referência de viajantes e dos primei- geográfica, o fenômeno se repete: os maiores
ros etnógrafos a “reis” ou “elites indígenas” é conglomerados parecem se organizar segundo
fiável? Em que medida essas “elites”, ligadas os eixos Norte-Sul e Leste-Oeste. Há o caso
ao comércio com o exterior, seriam diferentes de um sítio central não habitado, que poderia
(índices de uma “complexidade sociopolítica” ter funcionado exclusivamente como centro
supostamente maior) das chefias ameríndias cerimonial (HECKENBERGER, 2005).
contemporâneas? Persiste em Whitehead uma O modelo de organização regional em
visão da política como uma forma de gestão conglomerados parece ter começado a decair
da escassez de pessoas ou bens – que o leva antes mesmo da chegada dos colonizadores
a falar em um caráter “feudal” dessas forma- europeus, mas elementos básicos da organiza-
ções políticas (Ibidem, p. 40), que tem como ção do espaço permanecem, como a estrutura
horizonte a centralização dessa gestão sob a circular das aldeias ao redor de uma praça
régua de alguma forma de poder coercitivo e/ cerimonial, ligadas entre si por caminhos es-
ou de controle de recursos escassos – em suma, peciais voltados para a circulação dos grupos
trata-se de uma variação de nossas próprias para atividades rituais. Essas estruturas, por
ideias sobre economia política (GUERREIRO sua vez, são associadas aos chefes hereditários,
JÚNIOR, 2012). tidos como seus “donos”, isto é, responsáveis
As pesquisas de Michael Heckenberger pela organização e patrocínio (com comida,
(2001, 2002, 2005, 2011) sobre o Alto Xingu, bebida e festas) do trabalho necessário para
iniciadas na década de 1990, enriqueceram sua construção e manutenção (GUERREIRO,
o debate de forma marcante. Por terem sido 2015a). Além disso, a distinção entre chefes e
realizadas em uma área de ocupação inin- não-chefes é marcada por relações diferenciais
terrupta, na qual é possível reconhecer uma no espaço, como onde alguém mora, por onde
clara continuidade entre os povos do passado alguém anda com frequência, onde se fala,
pré-conquista e os do registro histórico-etno- onde se ouve, como se posiciona nos rituais etc.
gráfico, suas pesquisas permitem vislumbrar de (HECKENBERGER, 2011). Heckenberger
forma mais complexa as possíveis relações entre argumenta que haveria, no Alto Xingu, uma
formações políticas do passado e do presente. inversão do argumento de Clastres sobre a
A pesquisa em diversos sítios da região do inscrição da igualdade no corpo: ao contrário,
Alto Xingu demonstrou a existência de aldeias este seria o objeto de elaboração da desigual-
até dez vezes maiores do que as atuais, algu- dade (HECKENBERGER, 2005, p. 296).
mas das quais eram cercadas por uma ou duas Em função dessa relação íntima entre
paliçadas de madeira construídas em fossos de a política e o envolvimento com o espaço,
até 2km de extensão, 10m de largura e 3m de Heckenberger desenvolve o conceito de eco-
profundidade, ligadas por grandes caminhos. logia do poder, segundo o qual o espaço e o
Durante o auge do crescimento populacional, controle sobre ele seria um importante ins-
entre os séculos XIII e XVII, as aldeias eram trumento do poder e da centralização ritual,
organizadas em conglomerados formados por mesmo na ausência de centralização econô-
um sítio principal e outros dispostos ao seu mica ou administrativa (HECKENBERGER,
redor segundo os pontos cardeais, como “al- 2005, p. 25). Nos vemos novamente às voltas
deias satélites”. Alguns desses sítios, por sua com uma relação entre ritual e poder, que
vez, funcionavam como centros em relação a aqui não assume uma feição necessariamente
outros satélites, também dispostos segundo econômica, mas ecológica em sentido amplo:

50
a hierarquia seria um modo pelo qual os al- é um indício de organizações centralizadas, e
to-xinguanos pensam suas relações entre si e as evidências sugerem que “mesmo se gran-
sua inserção no ambiente. Esse pensamento des quantidades de trabalho tiverem sido
hierárquico também estaria presente em for- recrutadas para construir essas estruturas,
mas de organização do conhecimento ritual, estas foram mobilizações de curta duração”
como a divisão de repertórios musicais em (NEVES, 2009, p. 149), desvinculadas de
suítes ordenadas, tanto internamente quan- qualquer sistema de controle permanente sobre
to entre si (FAUSTO; FRANCHETTO; a força de trabalho.
MONTAGNANI, 2011). Casos como os do sítio Açutuba, na
Eduardo Neves (2009) também desen- Amazônia Central, e de um sítio Tariano, do
volve articulações importantes entre arqueo- Noroeste Amazônico, sugerem a existência de
logia e etnologia, em seus trabalhos no Alto uma guerra endêmica pela presença de estrutu-
Rio Negro e na Amazônia Central. Neves ras defensivas, mas as evidências contradizem
questiona qual teria sido o papel da guerra a hipótese clássica de Carneiro. No caso de
no desenvolvimento de sociedades complexas Açutuba, a guerra parece ter sido muito mais
na Amazônia, um problema colocado em boa intensa do que em Lago Grande, pela presença
parte pela recorrência de estruturas defensivas de um fosso com uma dupla paliçada – porém,
identificada em diversos sítios arqueológicos. trata-se de um ambiente ecologicamente muito
Com uma abordagem crítica à ecologia cultu- mais pobre do que o primeiro. No caso dos
ral, e articulando as descobertas arqueológicas Tariano, eles teriam forçado sua entrada na
às concepções propriamente ameríndias sobre região à força, mas os casamentos provoca-
a guerra, Neves argumenta que “a guerra pré- dos pelo rapto de mulheres Arara permitiram
-colonial pode ser entendida como parte de que eles se incorporassem ao sistema regional
um processo de construção de identidades rionegrino como mais um grupo exogâmico,
pessoais entre os indígenas amazônicos que sem estabelecer qualquer tipo de hegemonia
também pode ser identificado no presente” política sobre outros (Ibidem, p. 160).
(NEVES, 2009, p. 140). A chave para entender essas aparentes
Desde os trabalhos de Robert Carneiro contradições seria deslocar o foco de uma eco-
(apud NEVES, 2009), tem sido feita uma logia de grupos para uma política interpessoal:
associação causal entre a guerra e a emergên- “Assim, a explicação para as razões, mecânicas
cia de desigualdades sociais características de e resultados da guerra amazônica devem ser
chefaturas ou estados. A teoria de Carneiro buscados no reino do político, mais especifi-
– conhecida como teoria da circunscrição ge- camente nas políticas internas de diferentes
ográfica – propõe que as áreas férteis da várzea formações sociais, nas quais pessoas, mais do
amazônica proporcionariam um crescimento que grupos, devem ter sido os jogadores-cha-
populacional elevado, mas a condição restrita ve” (Ibidem, p. 161). Para compreender as
desse tipo de ambiente geraria pressão demo- dinâmicas da guerra, seria preciso deslocar o
gráfica e competição pelo acesso a recursos foco das sociedades para as pessoas que atua-
aquáticos e solos férteis. Em tal ambiente de riam como motores das atividades guerreiras.
competição, a guerra teria sido um importante Poderíamos dizer que se trata de um desloca-
mecanismo de dominação, alavancando a for- mento da “lógica das classes” para a “lógica
mação de organizações regionais hierarquiza- das relações”, ou um deslocamento de uma
das e potencialmente centralizadas. Contudo, perspectiva em que a política é tomada como
nem sempre a existência de “grandes obras” um atributo do corpo social para uma na qual

51
a política é um atributo de corpos de pessoas sul-americanas, cujas políticas seriam baseadas
singulares – tema ao qual dedicaremos boa nas comunidades locais. Esta correlação entre
parte da seção seguinte. paisagens sagradas compartilhadas e integração
O próprio Carneiro teria sugerido que regional daria origem a fenômenos como a
a guerra também poderia ser uma força de troca cerimonial de riquezas, estruturas simila-
dispersão, evocando a perspectiva de Clastres res a templos em lugares sagrados e hierarquias
da guerra como força centrífuga e de impe- entre especialistas rituais. Em correlação com
dimento de divisões internas à sociedade as características anteriores, estariam a forma-
(CLASTRES, 2003b, 2004b). A guerra po- ção de “sociedades regionais” ou “comunida-
deria, assim, ter tido múltiplos papéis nas for- des morais” multilíngues, com tendências a
mações políticas amazônicas pré-coloniais, suprimir formas endógenas da guerra.
tanto favorecendo a produção de hierarquias Essa supressão da guerra enquanto me-
sociais quanto alimentando movimentos cen- canismo de produção de identidades supos-
trífugos que impediam a manutenção a longo tamente destacaria as formas políticas dos
prazo de qualquer tipo de centralização política povos Arawak de outras (Ibidem, p. 18), o
(NEVES, 2009, p. 163). que sugeriria, segundo os autores, a existência
Os trabalhos de Heckenberger e Neves de uma “ontologia Arawak” própria, na qual
dialogam com debates recentes sobre o lugar poder ritual e trocas cerimoniais predominam
de povos de matriz cultural Arawak na forma- sobre a predação e o conflito como prin-
ção de organizações políticas de larga escala cípios básicos de organização da socialida-
populacional e territorial, eventualmente mar- de. Contudo, esta é uma hipótese bastante
cadas por formas de hierarquia. Ao examinar questionável, pois desconsidera as relações
comparativamente processos de etnogênese e de transformação estrutural amplamente de-
diferenciação sociocultural em áreas habitadas monstradas entre os povos ameríndios desde
por povos falantes de línguas Arawak, Hill as Mitológicas, bem como as complexas so-
e Santos-Granero identificam “um padrão breposições entre troca e guerra, atestadas
distintivo de fluxo sociogeográfico, conec- não apenas nas terras baixas sul-america-
tividade, abertura, e expansividade” (HILL; nas, mas alhures (CODERE, 1950; GOW,
SANTOS-GRANERO, 2002, p. 16). 2002; GUERREIRO JÚNIOR, 2012; LÉVI-
O primeiro ponto seria um padrão de STRAUSS, 1942; STRATHERN, 1971).
tendência à expansão. Em estreita relação Por fim, registros históricos e etnográ-
com ele estaria a ampla ocorrência de “for- ficos sugerem a recorrência de princípios
mas sociais regionais e mesmo inter-regionais hierárquicos de diferenciação, baseados em
ou macrorregionais organizadas ao redor de noções de descendência, ancestralidade e
lugares sagrados compartilhados” (Ibidem). consanguinidade. Estes princípios levariam
Se a existência de locais de referência comum à formação de organizações políticas e rituais
parece amplificar um senso de pertencimento estratificadas, com “elites” praticando formas
aos participantes dessas redes, está associado de casamento diferenciadas de acordo com
a isso um caráter aberto e inclusivo, “que ge- sua posição (HILL; SANTOS GRANERO,
ralmente se expressa no estabelecimento de 2002, p. 18). Expressões de hierarquia social
amplas alianças entre grupos locais e regionais estão quase sempre associadas a privilégios ou
nos níveis intraétnico e interétnico” (Ibidem, especialidades rituais (uso de objetos, registros
p. 17), o que contrastaria com outras for- linguísticos, performances etc.).
mas de organização social das terras baixas

52
Santos-Granero (2002) argumenta que cerimonialismo intercomunitário)”, marcada
não há, e talvez nunca tenha havido, um único por uma ideologia de pertencimento (in-ness)
“padrão Arawak” de organização social e cul- em uma comunidade moral regional (ou seja,
tura – ao contrário, a variabilidade é enorme. uma comunidade que partilha valores cul-
Porém, o exame de redes interétnicas, nas quais turais tanto no plano local quanto no plano
há grupos desta família linguística, parece das relações entre localidades) (Ibidem, p.
sugerir uma espécie de “matriz cultural” recor- 111). “Regionalidade” remete ao fato de que
rente, que se expressaria e tornaria visível no “a reprodução simbólica da sociedade depen-
que Santos-Granero chama de “ethos Arawak” de de rituais intercomunitários e interações
(SANTOS-GRANERO, 2002, p. 42): (1) institucionalizadas” (Ibidem, p. 115). Isto
repúdio implícito ou explícito da endoguerra; seria diferente da mera interação em redes
(2) uma tendência a estabelecer laços pro- regionais (o que seria a condição geral dos
gressivos de aliança entre povos relacionados povos amazônicos antes da conquista), pois
linguisticamente; (3) ênfase na descendência, implicaria especificamente trocas de elite, or-
consanguinidade e comensalidade como fun- ganizadas em torno de rituais de chefia. Este
damento da vida social; (4) uma predileção padrão contrastaria com aquele vigente, por
pela ancestralidade, a genealogia e status here- exemplo, entre os Carib – também famosos
ditários para a definição da liderança política; por sua participação em extensas redes de
e (5) uma tendência a dotar a religião de uma comércio (COUTINHO, 2011; RIVIÈRE,
importância especial na vida pessoal, social 1984) –, ou entre os Tupi – articulados
e política. pela vingança (CARNEIRO DA CUNHA;
Heckenberger se apoia na combinação VIVEIROS DE CASTRO, 1986), que,
de um número menor de características: mesmo envolvidos em relações supralocais
vida aldeã sedentária baseada na agricultura, de troca e aliança, são predominantemente
hierarquia social e organização social regio- autônomos de um ponto de vista simbólico,
nal (“regionalidade”) (HECKENBERGER, social e político. Ainda que estas redes tenham
2002, p. 100). A dispersão dos povos da tido uma grande extensão e variabilidade, elas
família Arawak foi uma das grandes di- não necessariamente formavam comunidades
ásporas do mundo antigo (comparável à morais (HECKENBERGER, 2002, p. 115).
dispersão dos povos Austronésios, Bantu e A despeito da dificuldade de estabelecer
Tupi-Guarani), com membros desta famí- conexões inequívocas entre o passado e o
lia linguística presentes desde a Amazônia presente na longa duração, as áreas em que é
meridional até a Flórida. A noção de di- possível observar alguma continuidade (como
áspora seria aplicável porque a dispersão o Alto Rio Negro e o Alto Xingu) permitem
geográfica destas populações não foi apenas que as teses em voga sobre as socialidades
uma questão de movimentação demográfi- ameríndias reverberem sobre os próprios
ca e linguística, mas também de dispersão modelos arqueológicos ou etnohistóricos.
cultural (Ibidem, p. 116). Além de apontar as fraquezas de modelos
Uma das características centrais para baseados em noções euro-americanas de so-
o argumento de Heckenberger é o que ele ciedade, economia e política, sugerem dois
chama de regionalidade, “ou integração deslocamentos que serão discutidos a seguir:
sociopolítica baseada em padrões forma- de uma lógica dos grupos para uma lógica
lizados (institucionalizados) de troca (por fractal das relações entre pessoas-e-grupos, e
exemplo, troca, intercasamento, visitação, e de uma concepção da hierarquia que a associa

53
com poder a outras que chamam a atenção seus acompanhantes e aparece como aquela
para formas ainda em debate. capaz de agir e ser o grupo ao mesmo tempo.
A assimetria resultante desse processo seria
Em direção a uma filosofia o efeito da apropriação da posição de sujei-
política ameríndia to por alguém, que coloca os demais como
“extensões” da pessoa ou mesmo objetos dos
Não me parece exagero dizer que o uso quais ela pode dispor.
alargado e controverso de conceitos de poder Isso tem um impacto importante
e hierarquia depende, em grande medida, de nas discussões sobre a chefia e a política.
seu enraizamento em uma sociológica com di- Diferentemente da representação política, que
ficuldades para se desvencilhar completamente supõe a existência prévia de uma unidade a
do discurso da coerção que funda a própria ser representada, este seria um fenômeno de
ideia de sociedade (lembremos que Durkheim personificação: um grupo só existe por meio
qualifica os fatos sociais como “exteriores e de um chefe ou dono; não há um coletivo
coercitivos”). Com o que se parece a política, anterior à ação daquele que ocupa a função-Eu,
porém, onde o que vigora no lugar do binômio não há uma realidade objetiva pronta para ser
indivíduo/sociedade é a pessoa e as relações das “representada” a posteriori. Ainda segundo
quais é composta? É preciso se perguntar quais Lima, não seria possível utilizar o conceito
as formas indígenas da assimetria, e como elas dumontiano de hierarquia para pensar os
diferem das nossas ideias “nativas” ou conceitos coletivos ameríndios, dada a impossibilidade
antropológicos sobre a questão. de se encontrar, entre estes, um conceito de
Ao investigar as formas sociais dos Yudjá, “totalidade”. De forma resumida, isso seria
um povo de língua tupi (Juruna) do Xingu, uma característica das ontologias perspecti-
Tânia Stolze Lima (2005) identifica uma vistas, nas quais não é possível encontrar um
forma recorrente de produção de pessoas e ponto de vista capaz de englobar todos os
coletivos, que ao mesmo tempo exige uma demais e produzir uma noção de totalida-
forma de assimetria e anula as condições de de (LIMA, 2005, 2008). Assim, apesar de
sua eventual cristalização. Entre os Yudjá, não haver assimetria na constituição mútua de
parece haver uma dicotomia clara entre pessoa pessoas-e-coletivos, esta seria sempre reversível
e grupo, e tampouco uma ideia reificada de ou “solúvel”. É fato que Dumont concebe
grupo. Ao contrário, o que existe é uma forma a inversão como uma propriedade de toda
social que “envolve a ação coletiva em ação relação hierárquica; porém, em seu modelo a
pessoal, torna equivalente a ação pessoal e a inversão é sempre resultado de mudanças de
de um grupo” (LIMA, 2005, p. 97). Não há níveis, enquanto no caso Yudjá (e certamente
forma coletiva sem que alguém assuma o que outros casos ameríndios) a reversibilidade é
Lima chama de “função-Eu”, a capacidade de uma propriedade das relações assimétricas na
ocupar a posição de sujeito (de enunciar um mesma escala. Por esse motivo, Lima prefere
“eu” ou ser tratado como interlocutor por falar em contra-hierarquia.
alguém) em um coletivo. Quando os Yudjá Também reencontramos os temas da
falam sobre “uma pessoa”, estão se referindo a personificação e das imagens indígenas da
alguém que assume a posição de sujeito de um assimetria no trabalho de Carlos Fausto (2008)
coletivo e aqueles que são “eclipsados” por sua sobre os “donos” ou “mestres” amazônicos.
posição. Assim, a pessoa que ocupa a função-Eu Estas figuras frequentemente são associadas
se coloca em uma relação assimétrica com a hipérboles dos seres que “possuem” ou

54
controlam, ou estão associadas à sua origem um grau de alteridade, ele pode tanto prote-
como criadores ou causadores. No caso dos ger quanto agredir, tanto ser apreciado como
donos dos animais, que muitas vezes são seus um “pai” quanto ser temido como uma onça.
criadores/domesticadores, estes contêm “em si Algumas etnografias têm mostrado em de-
um coletivo, eles representam e contêm uma talhes as formas de operação da relação de
espécie” (FAUSTO, 2008, p. 332). O traço maestria, incluindo modos pelos quais era
subjacente à relação de maestria seria a filiação mobilizada ativamente pelos povos ameríndios
adotiva, uma relação assimétrica de metacon- como formas de produção de relações com
sanguinidade – uma espécie de contrapartida, os não-indígenas (BONILLA, 2005, 2007;
no campo da consanguinidade, da afinidade COSTA, 2007; GUERREIRO, 2010, 2015b;
potencial simétrica vigente nas relações com a KOHN, 2007).
alteridade. A assimetria é muitas vezes pensada A tese de doutorado de Renato Sztutman
a partir de imagens de continente e conteúdo, (2012), posteriormente transformada em livro,
com os donos aparecendo como donos de é um marco nos debates. Uma de suas con-
currais, casas ou mesmo como predadores, tribuições mais importantes é a releitura dos
capazes de conter suas crias em seu próprio trabalhos de Pierre e Hélène Clastres, a partir
corpo (Ibidem, p. 334). dos quais propõe repensar problemas clássicos
As relações de maestria são chave para da política dos Tupi antigos em diálogo com
os debates sobre chefia, pois envolvem “um etnografias recentes (SZTUTMAN, 2012).
jogo entre singularidade e pluralidade”, sendo Em meio a uma sofisticada releitura e costura
o mestre “a forma pela qual uma pluralida- de trabalhos clássicos e contemporâneos, é
de aparece como singularidade para outros” preciso ressaltar ao menos três movimentos.
(FAUSTO, 2008, p. 334). Trata-se de uma Um é a reinserção dos problemas levanta-
relação semelhante à descrita por Lima entre dos pelas chefias ameríndias nos debates em
os Yudjá, em que uma pessoa assume o lugar torno das noções de natureza e cultura, que,
de um coletivo na relação com alguém. Mais segundo Sztutman, “sugerem que a noção de
do que um representante, “o chefe-mestre é ‘política’ dificilmente poderia ser dissociada da
a forma pela qual um coletivo se constitui noção de ‘natureza’ e, nesse sentido, qualquer
enquanto imagem: é a forma de apresentação ‘política dos homens’, aqui e alhures, deveria
de uma singularidade para outros” (Ibidem). ser compreendida como ‘política cósmica’ ou
Fausto também chama a atenção para a incom- ‘cosmopolítica’ […]” (Ibidem, p. 27). A partir
pletude do processo de identificação gerado dessa proposta, os temas da chefia e do xama-
pela filiação adotiva, em que o dono sempre nismo são reintegrados de forma inovadora,
permanece parcialmente outro: “a adoção apresentando as formas mútuas de implicação
é, por assim dizer, uma filiação incompleta. entre essas dimensões da vida ameríndia.
Ela não produz identidade plena, senão uma Outro ponto importante é a atenção
relação ambivalente, em que o substrato da dedicada aos duplos movimentos de criação
inimizade é obviado, mas não inteiramente e dissolução de coletivos, acompanhados da
neutralizado” (Ibidem, p. 352). Essa am- “mudança de escalas” das pessoas responsáveis
biguidade do dono/chefe seria responsável por agenciá-los, mantê-los e representá-los. Sua
tanto por sua saliência e eficácia ritual – pois leitura de Deleuze e Guattari também permite
seriam “personagens complexos” (SEVERI, chamar a atenção para a possível emergência de
2002, 2004) –, quanto por peculiaridades das focos de poder, ou forças centrípetas, nas socie-
chefias ameríndias: o chefe sempre mantém dades ameríndias, sem que isso seja sinônimo

55
da formação de um aparelho de coerção, sepa- de agir e dar forma a coletivos, quanto pelos
rado do corpo social (SZTUTMAN, 2012, p. riscos deles serem o motor de sua dissolução
52). O poder, ao contrário, pode muito bem e fragmentação (ou mesmo de serem expulsos
ser multicêntrico e coexistir com múltiplas li- ou mortos, quando identificados de forma
nhas de fuga e, à diferença das sociedades com desmedida com a alteridade).
Estado, que funcionam como “aparelhos de Por fim, outro de seus principais movimen-
ressonância”, as sociedades indígenas tenderiam tos é o uso da noção wagneriana de “magnifica-
a inibir a possibilidade da ressonância – como ção” (WAGNER, 1991), que funda análise em
também é argumentado por Viveiros de Castro uma perspectiva relacional do socius. Assim com
(2011). Este movimento se esclarece no foco os big men e greatmen melanésios, os persona-
de Sztutman sobre o que ele chama de formas gens da ação política ameríndia seriam pessoas
da ação política: “a ação política jamais pode- magnificadas, isto é, que conteriam em si mes-
ria ser reduzida à busca do poder político em mas outras pessoas e relações. O que varia não
si mesmo, devendo ser concebida como uma seria sua “natureza”, mas sua escala em relação
maneira de lidar com ele, o que pode significar a outras pessoas e coletivos (Ibidem, p. 74).
a sua pulverização” (Ibidem, p. 41). No mesmo movimento de ampliação
Sztutman chama a atenção para como dos diálogos e releituras de Clastres, Beatriz
a relação com a alteridade é central para o Perrone-Moisés (2011) chama a atenção para
exercício da ação política: “Tanto os profetas a necessidade de aproximação a uma “filosofia
como os chefes de guerra parecem mobilizar política ameríndia”, isto é, os termos pelos
forças exteriores ao mundo propriamente so- quais os povos indígenas concebem e prati-
cial (mundo das relações de parentesco e da cam o que chamam de política (PERRONE-
aliança política) e, assim, conferem para si uma MOISÉS, 2011). Recusando a oposição feita
espécie de prestígio, que os destaca dos demais” por Clastres entre mito e pensamento refle-
(Ibidem, p. 69). Ao se desprenderem de seus xivo, ela busca na mitologia ameríndia uma
contextos locais, estes personagens se apropria- reflexão propriamente indígena sobre o poder,
riam de qualidades do exterior humano (local suas (aparentes) contradições e o modo como
da afinidade potencial e da inimizade) e extra- os mitos associam a constituição simultânea
-humano (a sobrenatureza), “sítios carregados da chefia e de formas sociais. Trata-se, como
de capacidades – agências – necessárias para ela diz, “de experimentar a mitologia como
fazer pessoas e coletivos, necessárias para agir lugar de reflexão ameríndia a respeito do
sobre o mundo” (Ibidem, p. 70). Nessa dire- que chamamos política, via de acesso ao que
ção, Sztutman ajuda a esclarecer a frequente poderíamos nomear – ainda por inspiração
associação dos chefes à alteridade (uma espécie lévistraussiana – a armação de uma filosofia
de “alteridade interior”, ou uma capacidade política ameríndia” (Ibidem, p. 861).
interiorizante da exterioridade), bem como o Discutindo o surgimento efêmero de chefes
potencial dessas figuras se dissolverem umas poderosos em diferentes narrativas ameríndias,
nas outras: guerreiros serem potencialmente Perrone-Moisés mostra como estas narrativas
chefes de paz, chefes exemplares se converte- sugerem que poder e prestígio devem sempre
rem em feiticeiros em potencial etc. A con- ser separados, num movimento intencional de
dição fronteiriça desses agentes os situaria no se conjurar o efetivo exercício do poder (Ibidem,
limiar entre o interior e o exterior, criando p. 863-865). Porém, essas narrativas dizem algo
uma situação de ambiguidade que respon- mais: elas também falam sobre a necessidade do
deria ao mesmo tempo por suas capacidades poder, para que uma ordem social possa ser

56
erguida contra ele. A reflexão desses mitos “não pessoa: ele seria uma encarnação desse dualis-
se funda na recusa pura e dura do poder, pois mo dinâmico, foco de subversão dos circuitos
que ambos formulam igualmente sua necessida- de trocas que fundam a vida social, e condição
de. A paz só pode existir sobre fundo de guerra, mesma de sua existência; pessoa exemplar, mas
é preciso que algo permaneça – em nomes, em sempre marcada por algum grau de alteridade,
prerrogativas, em cantos [de guerra] – desse um poder que caracteriza um fora, mas que,
furor guerreiro fundante” (Ibidem, p. 866). sendo este o lugar de onde se pode extrair agên-
Essa persistência do poder como pano cia, é também a condição de criação de um
de fundo leva à complexificação de um dos dentro (Ibidem, p. 869-870). Perrone-Moisés
argumentos-chave de Clastres. A “sociedade conclui com uma proposição que impulsiona
primitiva” não recusaria apenas a divisão, mas novas investigações etnográficas: “Se a filosofia
também a “não divisão” – isto é, ela se recusaria política ameríndia é realmente feita de mo-
a decidir parar em um polo ou outro. Isso sim vimentos entre-dois, para compreendê-los e
seria estabilizar, estacionar, estatizar-se: preferir acompanhá-los será preciso abandonar as bali-
a permanência em um estado em detrimento zas costumeiras e descobrir quais são seus polos
das transformações constantes impostas pelo […]” (Ibidem, p. 877). Estes, conforme ela
movimento. Ao contrário, “Trata-se de mo- argumenta em sua tese de livre-docência, são a
ver-se no espaço-relação entre os polos, sem guerra e a festa (não o que chamamos de ritual
jamais fixar-se num deles, o que equivaleria a ou de festa, mas o que os ameríndios chamam
resolver (abolir) a diferença pela identidade” por este nome), duas “variações” sobre o tema
(Ibidem, p. 868). A imagem que inspira tal da política (PERRONE-MOISÉS, 2015).
formulação é, evidentemente, a do dualismo Os Jê são trazidos novamente para o cen-
em perpétuo desequilíbrio (LÉVI-STRAUSS, tro desses debates, pelo trabalho de Andrade
1991), em que cada oposição gera novas oposi- (2012), que busca mostrar as diversas formas
ções, em que cada polo de um dualismo pode assumidas pela “política” na etnologia Jê. Menos
se abrir para um ternarismo, desdobrar-se em do que a releitura da política como um ob-
uma nova diferença, criando um movimento jeto definido, seu trabalho consiste em uma
dinâmico no qual a identidade nunca é mais do análise da construção de objetos distintos que
que um momento passageiro, “que não pode respondem, para diferentes pesquisadores, por
durar” (COELHO DE SOUZA, 2008; LÉVI- “política” – uma “crítica etnológica”, como ele
STRAUSS, 1991). Se esta parece ser também mesmo diz, “da constituição do objeto ‘po-
a lógica das políticas ameríndias, algo impor- lítica jê(-bororo)’ e de suas transformações”
tante se ganha: “Entre Estado e não Estado, (ANDRADE, 2012, p. 26). Andrade argumen-
há lugar para toda a sorte de dosagens, que ta haver uma tradição etnológica ocupada com
as políticas ameríndias – vividas ou pensadas uma noção de governo distinta daquela à qual
nos mitos – exploram” (PERRONE-MOISÉS, estariam ligados os africanistas, e que marcaria
2011, p. 868). Além das formas de conjura- a etnologia jê-bororo. Enquanto os estrutu-
ção do poder em que se foca classicamente, ral-funcionalistas teriam sobreposto governo
também seria necessário investigar etnografica- e Estado – como o fazem Radcliffe-Brown e
mente as concepções ameríndias desse poder, Fortes na Introdução aos Sistemas Africanos de
seus repositórios, suas formas regulares ou Parentesco e Casamento –, Morgan e Steward
excepcionais de realização. “avançam noções de governo em ampla medida
Isso teria também implicações para as concordes: domínio por excelência do metas-
concepções do chefe enquanto um tipo de social, relação mediata da sociedade consigo

57
mesma, artificialização de seus mecanismos de chefe, mais aumentam as chances da emergência
integração institucional” (ANDRADE, 2012, de novos conflitos. Todos estes fatores dotariam
p. 40). A maioria dos jê-ólogos teria partilhado a liderança de uma ambiguidade inescapável:
de perspectivas semelhantes, vendo nas institui- quanto mais forte um líder, quanto maior sua
ções coletivas Jê formas de “relação mediata da competência em ser um generoso árbitro da vida
sociedade consigo mesma” por meios das quais social, menor a sua capacidade de manter-se
uma unidade política é produzida. em tal posição (ANDRADE, 2012, p. 62-63).
O que dizer do “faccionalismo”, tema clás- Ao discutir o talento oratório, Andrade
sico nos trabalhos sobre a organização social observa uma aparente dissonância em relação à
entre os Jê? Se as agremiações têm o potencial formulação clastreana, pois segundo ele “o chefe
de produzir coletivos em momentos específi- jê-bororo enuncia pragmáticas, empreende a
cos, como durante o ritual, elas permaneceriam organização social, governa […]” (ANDRADE,
algo “incompletas”, por sua “incapacidade de 2012, p. 79). Com efeito, a oratória política
transpor certos patamares demográficos, a be- talvez tenha sido um dos principais objetos de
licosidade, o faccionalismo impertinente, em etnografia e revisão da tese clastreana sobre o
suma, a carência de um Estado” (Ibidem, p. “discurso edificante”. Magnus Course (2011),
56). Essa relação entre governo e faccionalismo discutindo ideias Mapuche sobre a força das
seriam os polos entre os quais oscilariam as po- palavras e sua capacidade de agência, argu-
líticas Jê: “Revelam-se a dupla-face do político menta que o modelo de Clastres pressuporia
e as contradições que estruturam seu campo um entendimento da linguagem segundo uma
semântico: de um lado, governo, conjunção e ideologia ocidental, que focaliza em seus as-
concentração, artifício, vontade e consciência; pectos simbólicos (o que é dito sobre o que)
de outro, faccionalismo – desgoverno –, disjun- em detrimento de seus aspectos pragmáticos
ção e dispersão, natureza, pulsão” (Ibidem). (o que é feito por meio da fala) (COURSE,
Andrade propõe uma releitura interessante 2011). Cecilia McCallum (1990) também ob-
das ideias de Lévi-Strauss sobre a chefia entre serva como o discurso de um líder, por meio de
os Nambikwara. Em particular, retoma o argu- sua força moral, pode ser tomado como uma
mento de que a liderança não seria exatamente força na produção de pessoas e comunidades
uma instituição “do grupo”, na medida em que (MCCALLUM, 1990, p. 416). Os trabalhos de
este é feito existir (em sua forma, tamanho e ori- Franchetto sobre a “conversa de chefes” entre os
gem) por meio da ação do líder (ANDRADE, Kuikuro são uma das abordagens mais detalha-
2012, p. 62). Esta relação seria responsável pelo das desse estilo de oratória, demonstrando como
caráter instável da liderança, que quanto mais os chefes se produzem enquanto porta-vozes
eficaz se torna, mais suscetível fica a não con- do grupo (por meio de sua conexão com o
seguir realizar o que se espera dela. O prestígio passado) em situações de interação ritual, ou
teria “custos marginais” crescentes: quanto mais como no cotidiano executam falas que, mais
um chefe é generoso com seus seguidores, mais do que discursos “vazios” têm como objetivo
ele aumenta seu número, às custas de reduzir sua afetar diretamente as pessoas, visando reparar
capacidade de ser generoso; e quanto mais um fraturas no tecido social (FRANCHETTO,
grupo cresce graças à capacidade pacificadora do 1993, 2000)6.

6 Para discussões sobre a “conversa de chefes” entre outros povos do Alto Xingu, ver Basso (2009), Guerreiro (2011;
2015b) e Mehinako (2006).

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Ainda nesse conjunto de debates sobre Um dos pontos interessantes explorados
as concepções ameríndias da política, Diego por Pedroso é a variação de perspectivas entre
Rosa Pedroso (2013) discute as ideias de hie- os diferentes clãs Cubeo: clãs de baixa ou alta
rarquia entre os povos Tukano do Uaupés hierarquia têm perspectivas diferentes sobre
(em particular, os Cubeo descritos por Irving sua relevância na vida social e sobre a rigidez
Goldman) e as possíveis relações entre essas de seus princípios. A escala de senioridade não
ideias e o conceito dumontiano de hierarquia. é fixa, mas dinâmica, passível de reversões e
Como o autor adverte, não se trata de aplicar o competições (ANDRELLO, 2016). Pedroso
conceito de Dumont ao contexto do Uaupés, faz bem em observar que essas inversões não
mas de recuperar as formulações do autor e coincidem com a concepção dumontiana
contrastá-las com os materiais etnográficos, de “inversão hierárquica”: “se inversões há
para que desse contraste talvez emerjam as no modelo de Dumont, as mesmas operam
especificidades do conceito uaupesiano de em níveis distintos, nunca no mesmo nível”
hierarquia (PEDROSO, 2013). (PEDROSO, 2013, p. 137). Isso sugeriria
Entre os povos do Uaupés, a noção de uma inadequação do conceito de hierarquia
hierarquia se refere a uma ordem de relações de Dumont. No caso do Noroeste Amazônico,
entre pessoas no interior de grupos e entre
grupos. Essa ordem é definida em função da não há referência a uma noção de unidade última
senioridade, dando origem a uma distinção (que no caso indiano é a oposição puro/impuro
organizando todo o sistema). Ordem de gradação
entre irmãos mais velhos e mais novos. A for- descontínua sem referência a uma unidade superior:
mulação de Goldman do problema se tornou eis aqui justamente um dos sentidos de hierarquia
clássica, pois coube a ele argumentar que os criticado e abandonado por Dumont logo no início
Cubeo teriam o esqueleto de um sistema aris- de seu posfácio à edição “Tel” (2008:370); nesse
sentido, o Uaupés está longe da hierarquia dumon-
tocrático, revestido de um ethos igualitário tiana. (PEDROSO, 2013, p. 113)
(GOLDMAN, 1979). Se a hierarquia chama a
atenção por contrastar com a imagem clássica
das sociedades amazônicas de sua época, não As etnografias revelariam que a hierar-
menos notável é o fato da hierarquia parecer quia é variável segundo o ponto de vista dos
ter pouca efetividade para as relações cotidia- grupos, de modo que o sistema social aberto
nas. Em relação à chefia, a questão também do Uaupés, se for uma totalidade de algum
é complexa. Apenas os sibs têm um líder, que tipo, não é uma que implica relações entre
não necessariamente dispõe de autoridade: parte e conjunto. Segundo Rosa, “se tomamos
a posição de chefe resulta de um lugar na hierarquia no sentido dumontiano, no Uaupés,
estrutura social, mas a autoridade depende portanto, estaríamos diante de regimes contra-
de relações e habilidades pessoais. Além de -hierárquicos, no sentido de que recusam os
ser desprovido de uma função econômica, o pressupostos da noção dumontiana” (Ibidem,
chefe seria uma figura secular, sem qualquer p. 123; grifos do original). Seria preciso, por-
relação especial como sagrado. Ele até poderia tanto, extrair as consequências da noção de
ser também um chefe de guerra, mas isso não “ponto de vista”, ou perspectiva, para a noção
é necessário. A figura do chefe replicaria, na uaupesiana de hierarquia.
escala de uma pessoa singular, o mesmo tipo Em suma, um conjunto significativo de
de paradoxo expresso em uma escala coletiva trabalhos têm feito um percurso distinto da-
pela dicotomia entre armadura hierárquica e queles que, anos antes, optaram pelas “críticas
ethos igualitário. etnográficas” a Clastres. Tomando como ponto

59
de partida e inspiração as ideias de Clastres de aristocracia, teriam um especial interesse
sobre a “intencionalidade”, ou “vontade” das por longas genealogias, a partir das quais
sociedades indígenas de recusarem um poder seriam definidas as possibilidades de alguém
separado do corpo social, estas pesquisas têm ocupar posições importantes. Villar toma cui-
conseguido levar além o pensamento clastrea- dado ao colocar em questão o que se entende
no ao aproximar mais as suas teses clastreanas por “descendência”, esclarecendo que não se
aos idiomas ameríndios da política. trata de sucessão linear. A transmissão dos
cargos seguiria caminhos diversos entre os
Cosmopolíticas em transformação membros das famílias nobres, mas um ideal
de continuidade se sobreporia a tais variações,
As filosofias e práticas indígenas da políti- e Combès e Villar sugerem o uso do conceito
ca estão, evidentemente, entrelaçadas à história lévi-straussiano de casa para pensar a organi-
da colonização do continente americano, e zação social Chané (VILLAR, 2013, p. 22).
um número significativo de pesquisas têm se Em 1970, os jesuítas que atuavam na
debruçado tanto sobre os efeitos da domina- Bolívia criaram o Centro de Investigación y
ção colonial sobre tais formas de organiza- Promoción del Campesinato (CIPCA), buscan-
ção social, quanto as formas ameríndias de do articular as sociedades rurais e integrá-las
reinventar e indigenizar o que costumamos ao projeto republicano nacional. Seguindo
chamar de política. os princípios dos sindicatos agrários andi-
Saindo da Amazônia e do que geralmente nos, foram suprimidas as diferenças étnicas
é englobado pela expressão “terras baixas”, ou regionais da “classe campesina”, vistas
casos do Chaco argentino e boliviano levan- como residuais e problemáticas. Esse pro-
tam questões importantes sobre hierarquia cesso fortaleceu a ideia de uma identidade
e formas de interação entre a política indí- indígena “guarani”, que se sobrepôs a uma
gena e formas de ação política ligadas ao diversidade maior (Ibidem, p. 25). Além do
Estado. Diego Villar (2013) relembra que eclipsamento dos processos históricos de do-
Clastres havia apontado algumas poucas minação e hibridação, foi constituído um
exceções ao seu modelo da chefia indígena: modelo de organização política baseado em
os Taino (Arawak) das Antilhas, a simbiose assembleias comunitárias, no lugar da orga-
entre Guaykurú e Arawak no Chaco boreal nização dos caciques. No noroeste argentino,
e, claro, os Andes (CLASTRES, 2003c). Os também afetado por este processo, os Chané
Chané contemporâneos, apesar de sua origem recusam de forma explícita este processo de
Arawak, falam guarani e partilham em boa “guaranização compulsiva” (Ibidem, p. 26)
medida a cultura de seus colonizadores (com e, entre outras coisas, insistem na legitimi-
os quais formam o grupo conhecido como dade da posse do poder e das decisões pelos
Chiriguano). Porém, em certas regiões man- caciques “tradicionais”. O sistema das “casas”
tiveram viva a consciência de sua diferença. Chané entra em confronto com o “projeto
Villar observa que os missionários francis- guarani” que, apesar de propagar um prin-
canos do século XIX já haviam apontado “a cípio igualitário, induziu aos primeiros um
existência de uma organização política rela- processo homogeneizador. Curiosamente,
tivamente hierárquica entre estes indígena, o “anarquismo” e o igualitarismo guara-
chegando a falar de cargos ‘monárquicos e ni assumem, do ponto de vista dos Chané,
hereditários’” (VILLAR, 2013, p. 21). As uma espécie de função-Estado, enquanto
famílias de chefes, que formam uma espécie o sistema hierárquico Chané assume uma

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função-contra-o-Estado, na medida em que ontológica própria? Podemos pensar nessas
opera, no plano supralocal, desestabilizações presenças como atores políticos – ou como
da unidade. Nesse caso, a hierarquia é que é questões políticas, no mínimo – ao invés de
o fenômeno menor e agencia linhas de fuga descarta-las como excessivas, residuais ou
(VILLAR, 2013, p. 27). infantis?” (Ibidem, p. 336).
Marisol de la Cadena (2010) chama a De la Cadena narra um episódio marca-
atenção para os enlaces entre ideias e prá- do por “entendimentos parciais” ligados aos
ticas indígenas a processos políticos mais protestos contra a construção de uma mina
amplos da América Latina, que além de em Sinakara, um dos picos de uma cadeia de
“perturbarem” a agenda política de setores montanhas à qual também pertence a monta-
conservadores, contribuem para produzir nha Ausangate, conhecida na região de Cuzco
“perturbações conceituais”. O modo como como um poderoso ser terrestre, fonte da vida e
os movimentos indígenas sul-americanos têm morte, riqueza e miséria. Durante um protesto
entrelaçado suas concepções sobre o cosmos, a que reunia agentes diversos – especialistas ritu-
agência e a história revelam que pode exceder ais, irmandades religiosas urbanas e rurais en-
o que costumamos entender por “política”. volvidas em um mesmo ato político -,em uma
Em particular, a “natureza”, em suas formas conversa com um interlocutor este chamou sua
subjetivadas, entra na arena política com atenção para algo além dos efeitos mais imedia-
um agente capaz de promover deslizamen- tos da mina sobre as terras das quais dependem
tos conceituais e práticos importantes. Um as famílias afetadas. Seria preciso considerar o
exemplo seria a constituição do Equador, na próprio Ausangate, que “não permitiria a mina
qual “a Natureza ou Pachamama, onde a vida em Sinakara, uma montanha sobre a qual ele
se torna real e reproduz a si mesma, tem o presidia. Ausangate ficaria bravo, ele poderia
direito a ser integralmente respeitada na sua até matar pessoas. Para prevenir tal matança,
existência, e à manutenção e regeneração de a mina não deveria acontecer” (Ibidem, p.
seus ciclos vitais, estruturas, funções, e pro- 339). Essa também era a opinião do prefeito
cessos evolucionários” (DE LA CADENA, do distrito de Ocongate, onde fica o complexo
2010, p. 335). de montanhas: elas, enquanto seres terrestres,
Não se trata de apenas mais um discurso exigem respeito, e seria sua responsabilidade
ecológico em que a natureza é tomada como como prefeito prevenir acidentes provocados
um domínio extra-humano, que pode ter por maus tratos a esses seres perigosos.
direitos apenas por analogia aos direitos das Fenômenos desse tipo criariam uma “po-
pessoas (humanas). A questão é a emergência lítica através de conexões parciais”, em que
de uma figura como Pachamama: o que ela elementos do mundo indígena se cruzam com
é, e o que aconteceu para que ela pudesse os estados-nação dando origem a instituições
figurar na constituição? De la Cadena mostra e práticas complexas. A noção de “conexão
que políticos que não se identificam como parcial” é tomada emprestada de Strathern, e
indígenas veem nesse tipo de introdução uma se refere a um agregado, ou um circuito que
espécie de “intrusão”, ou de “resíduo” exces- liga várias partes, mas que não forma uma
sivo de um mundo que deveria desaparecer, “unidade” (Ibidem, p. 347). As conexões e
uma espécie de estratégia para interpelar os efeitos mútuos entre as instituições estatais
sujeitos indígenas. Mas De la Cadena pro- e agentividades originadas das ontologias in-
põe um aprofundamento do problema: “a dígenas produzem uma “política pluriversal”,
estratégia em si pode ter uma explicação que adiciona dimensões adicionais de conflitos

61
ontológicos que emergem de mundos parcial- foi analisada por Florbela Ribeiro (2009), e
mente conectados (Ibidem, p. 362). seu trabalho demonstra diversos cruzamentos
Salvador Schavelzon (2012) discute temas de questões da “política interna” tenetehara
muito próximos a partir da etnografia de um com a política indigenista e a política eleitoral.
caso particular: o processo constituinte da Ribeiro descreve, por exemplo, como divisões
Bolívia, no qual se criou a possibilidade de contemporâneas entre os Tenetehara foram
um projeto de descolonização do Estado produzidas em um dado momento da política
proveniente dos movimentos indígenas, cuja indigenista e como elas se perpetuam, tanto in-
imaginação alimentou a redação de uma ternamente quanto nas relações com o estado,
Constituição com propostas de autonomia, mesmo com as transformações dessa política.
territorialidade e um ideal de “viver bem” como A experiência de uma prefeitura indígena
alternativa ao ideal de “viver melhor” do desen- no município de São Gabriel da Cachoeira,
volvimentismo capitalista (SCHAVELZON, no estado do Amazonas, foi discutida por
2012). O encontro de povos das terras baixas e Aline Iubel (2015). A eleição de um prefeito
altas da América do Sul no decorrer do proces- (Tariano) e vice-prefeito (Baniwa) indígenas,
so também demonstrou um potencial criativo pertencentes a povos do Alto Rio Negro, ali-
singular, no qual demandas com origem em mentou a expectativa de se introduzir na ad-
distintas tradições políticas se influenciaram ministração municipal algo do jeito indígena
mutuamente: de se fazer política. A etnografia de Iubel faz
uma reconstrução etnográfica de elementos
A descolonização dos aimarás é ouvida nos discursos daquela gestão, explorando tanto a construção
políticos chiquitanos ou guaranis. A autonomia da aliança que constituiu a prefeitura quanto
como regime pensado para minorias aparece, no
direito internacional, como busca dos povos ma-
os conflitos que a marcaram. Sua tese de-
joritários quéchuas e aimarás. Aparecem, também, monstra que “a relação estabelecida entre os
tendências estatais nas terras baixas, que chegam índios do alto rio Negro e o Estado produz
a propor funcionários políticos nas secretarias do transformações tanto neles (índios), quanto
Estado; e tendências contra-estatais nas terras altas,
aproximando-se de outros povos para pensar o plu-
acaba por produzir uma perspectiva sobre o
ralismo. (SCHAVELZON, 2011, p. 117) Estado na qual sua apresentação como o ‘um’
ou ‘universal’ (como único modo possível de
organização da sociedade) é insuficiente, in-
O Brasil, em comparação com vizinhos completa e equivocada” (IUBEL, 2015, p. 14).
como Bolívia, Equador e Peru, ainda tem co- Marina Vanzolini (2010) também aponta
nexões mais frágeis entre as políticas indígenas para um envolvimento complexo dos povos do
e certas instâncias administrativas do Estado7. Alto Xingu com a política eleitoral. Apesar da
Apesar do crescente envolvimento dos povos demanda e do interesse dos povos da região em
indígenas com a política partidária, ainda pa- elegerem vereadores indígenas nos municípios
rece haver poucas pesquisas sobre o tema. A em cujos territórios se situa a Terra Indígena do
campanha de uma mulher Tenetehara ao cargo Xingu, parece haver uma grande desconfiança
de vereadora em um município do Maranhão em relação aos candidatos indígenas. Em 2008,

7 É claro que o envolvimento dos povos indígenas com diversas políticas públicas (em particular, as de saúde e
educação) é responsável por seguir moldando aspectos fundamentais das mesmas, mas não seria possível tratar
das relações entre políticas públicas e povos indígenas nos limites desse artigo.

62
três indígenas concorreram ao cargo de verea- emergência de cosmopolíticas nas quais está em
dor em Gaúcha do Norte, um dos municípios disputa uma diversidade de mundos possíveis,
da região. Por representarem cerca de um terço e o reconhecimento de uma multiplicidade de
dos eleitores do município, considerava-se que agentes para além dos humanos usuais, cujos
os indígenas tinham muitas chances de ter desdobramentos é preciso acompanhar de perto.
os três eleitos. Contudo, apenas um recebeu
votos suficientes. Vanzolini comenta que os Considerações finais
candidatos eram, respectivamente, um chefe,
o primogênito de um chefe e o sobrinho de Muito ainda poderia ser dito, e muitos
um chefe. Quanto mais estes se aproximam trabalhos importantes ficaram de fora por falta
de espaços de poder, menos apoio ganham: de espaço. Porém, espero ter conseguido ofe-
a política eleitoral tenderia a ser absorvida recer um panorama de algumas das principais
pela lógica da sociedade contra o Estado questões que têm estado em pauta neste campo.
(VANZOLINI, 2010). As formas ameríndias da chefia e da política
É indispensável evocar a trajetória de receberam tratamentos diversos ao longo das
Davi Kopenawa, importante xamã e porta- últimas décadas. As perspectivas etnográficas
-voz dos Yanomami cuja história de vida foi sobre o poder e seu exercício se refinaram, e
publicada em livro a partir de sua parceria a visão do poder como coerção deu lugar a
com Bruce Albert (KOPENAWA; ALBERT, outras perspectivas do poder como moralidade,
2015). Kopenawa é uma liderança notável, capacidade de agir e de fazer agir, persuasão,
cuja trajetória e visão de mundo são muito “mundiação” (DESCOLA, 2014). As teses
reveladoras sobre um modo Yanomami de clastreanas, mesmo quando sujeitas a críticas,
pensar e fazer cosmopolítica. A transformação saem fortalecidas do debate, pois demonstram
de Kopenawa em liderança se deu de forma que, a despeito de modulações etnográficas
inseparável com sua transformação em xamã: particulares, elas captam algo de fundamental
duas transformações radicais do corpo que das políticas ameríndias, e seu refinamento
conferem à pessoa capacidades específicas de tem permitido lidar de forma original com as
comunicação e agenciamento com a alteridade. formas de constituição de poderes, hierarquias,
Kopenawa revela de forma ao mesmo tempo engajamentos com a política estatal.
conceitualmente complexa e afetivamente car- Mesmo com tais avanços, ainda me parece
regada as imagens dos xapiri – imagens dos indispensável aprofundarmos a crítica a certas
ancestrais animais que se transformaram no imagens da política e do Estado que se repro-
primeiro tempo -, de onde provém cantos e duzem na etnologia americanista e aos idiomas
conhecimentos cujas diferenças são paulati- pelos quais tratamos o problema (por exemplo,
namente reveladas ao longo de sua narrativa. a noção do estado como “Um”, que coloca mais
Por meio de sua agência xamânica, Kopenawa problemas do que soluções, ou nossa tendência
é capaz de mobilizar agentes não humanos a associar hierarquia e dominação, algo que
como recursos interpretativo e recursos para a já havia sido criticado por Dumont). A meu
ação, construindo uma forma de ação política ver, uma saída necessária para esses dilemas é
em que a alteridade aparece claramente como a ampliação do entendimento sobre quais, e
fonte importante de agência. como, seriam as formas ameríndias de descrição
Em suma, no Chaco, nos Andes ou na e análise do que se possa chamar de “política”
Amazônia, as conexões parciais entre ontologias – sabendo que esse termo será, sempre, um
indígenas e instituições estatais evidenciam a equívoco (VIVEIROS DE CASTRO, 2004).

63
Digo isso em dois sentidos. Devemos, em pri- ameríndios de tornar a política visível e eficaz.
meiro lugar, tratar a noção de forma como um Outro sentido diz respeito, claro, ao modo
problema e uma ferramenta teórico-etnográfica como intelectuais indígenas (na universidade
potente. Conforme Strathern (1988), a capaci- ou fora dela) vêm formulando suas próprias
dade de influenciar o curso da ação de alguém questões, circunscrevendo os problemas e ofe-
depende das formas tomadas pelas pessoas ao recendo soluções originais a eles.
agir. A política, portanto, deve ter uma forma, Muitas questões permanecem em aberto:
uma estética, e que sua investigação, como já como lidar com as micropolíticas do cotidia-
sugeri alhures (GUERREIRO, 2015a), pode ser no, que eventualmente mobilizam complexas
uma importante visa de acesso para os conceitos técnicas de manipulação e vigilância dos cor-
e práticas indígenas da política. Demonstrei pos? Em que consiste isso que chamamos de
como parte dos problemas clássicos em torno “hierarquia”, sobretudo em contextos multico-
da chefia xinguana (como as relações entre cen- munitários (como no Alto Xingu, no Noroeste
tralização e faccionalismo, hereditariedade e Amazônico, entre o município de São Paulo e
fabricação, hierarquia e igualdade) poderia ser o sertão de Pernambuco…)? Como as filosofias
superada atentando para a estética assumida ameríndias da política têm produzido efeitos
pela chefia em diferentes socialidades, o que sobre seus envolvimentos com as políticas
permitiria dar conta tanto de movimentos de públicas? O que podemos esperar das ações
engrandecimento e produção de assimetrias políticas ameríndias nos próximos anos, espe-
quanto de movimentos de inversão ou disso- cialmente em processos eleitorais e situações de
lução de relações hierárquicas. Há ainda um crise? As respostas, como sempre, ainda exigi-
universo sobre a política a ser explorado nas rão muita etnografia e a crescente visibilização
artes verbais, nas artes visuais, na dimensão das formas ameríndias da política por seus
coreográfica das festas (ainda muito pouco próprios meios, que felizmente se multiplicam,
trabalhadas), na ornamentação corporal – as- ampliam suas esferas de influência e apontam
pectos da vida social que dariam acesso a modos alternativas aos projetos hegemônicos.

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Resumo

Chefia e política na América do Sul indígena: um balanço bibliográfico para além do modelo clastreano
Este artigo realiza um balanço dos principais debates sobre chefia e política nas terras baixas sul-americanas nas últimas
décadas. Tomando as principais teses de Pierre Clastres como ponto de partida, discute-se como elas influenciaram o
desenvolvimento de trabalhos que, a partir da década de 1980, realizaram aproximações e distanciamentos diversos
em relação à proposta clastreana. Em particular, o artigo explora como as abordagens das políticas ameríndias se
diversificaram a partir da ampliação dos conhecimentos etnográficos, históricos, arqueológicos e linguísticos sobre
os povos das terras baixas, marcada por um esforço de aproximação das filosofias sociais indígenas e de seus próprios
modos de descrição da política.
Palavras-chave: Chefia indígena; Políticas ameríndias; Pierre Clastres.

Abstract

Leadership and politics in indigenous South America: a bibliographic assessment beyond the Clastrean model
This article reviews the main debates about leadership and politics in the South American lowlands in the last decades.
Using Pierre Clastres’ main theses as a starting point, it was discussed how they have influenced the development of
studies that, from the 1980s onwards, produced different movements of convergence and divergence regarding the
Clastrean proposal. In particular, the article explores how approaches to Amerindian politics have diversified from the
widening of ethnographic, historical, archaeological and linguistic knowledge on lowland peoples, marked by an effort
to approach indigenous social philosophies and their own ways of describing politics.
Keywords: Indigenous leadership; Amerindian politics; Pierre Clastres.

Résumé

Leadership et politique dans l’Amerique du Sud indigène: une évaluation biliographique au-delà du modèle de Clastres
Cet article revue les principaux débats sur le leadership et la politique dans les basses terres d’Amérique du Sud au cours
des dernières décennies. En prenant les thèses principales de Pierre Clastres comme point de départ, on discute de la
manière dont elles ont influencé le développement d’œuvres qui, à partir des années 1980, ont produit des approches
et des distances différentes par rapport à la proposition de Clastres. L’article explore en particulier la façon dont les
approches de la politique amérindienne se sont diversifiées depuis l’élargissement des connaissances ethnographiques,
historiques, archéologiques et linguistiques sur les peuples des basses terres, marquées par un effort pour aborder les
philosophies sociales indigènes et leurs propres façons de décrire la politique.
Mots-clés: Leadership indigène; Politique amérindienne; Pierre Clastres.

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DOI: 10.17666/bib8704/2018

Uma etnologia no Nordeste brasileiro: balanço parcial


sobre territorialidades e identificações

Maria Rosário de Carvalho²


Edwin B. Reesink 1

Introdução o contrário ultrapassaria, em larga extensão,


o objetivo pretendido –, poderemos estar
Este artigo tem como objetivo proce- eliminando falsas ou equivocadas frontei-
der a um balanço da produção bibliográfica ras que, em geral, criam descontinuidades
sobre os temas de territorialidade e identi- induzidas por certos preconceitos (de cará-
dade no âmbito da etnologia ameríndia das ter etnológico), desconhecimento ou uma
Terras Baixas sul-americanas, cujo recorte combinação de ambos. Desse modo, vamos
teórico-empírico é o contexto etnográfico do partir da ideia de certa unidade do Nordeste,
Nordeste brasileiro – constituído pelos esta- sem, contudo, desde já tentarmos definir essa
dos que compõem o Nordeste administrativo unidade. Tampouco nos encapsularemos na
(Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, região como se estivéssemos diante de um
Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe), com a dado bem estabelecido.
inclusão de Minas Gerais e Espírito Santo e a Não se trata, absolutamente, de tentar
exclusão do Maranhão, todos com população esgotar a literatura produzida ao longo do
indígena – e cujo recorte temporal concerne lapso temporal referido ou de fazê-lo como um
aos últimos vinte anos (1997-2017). O re- balanço acrítico, justapondo as várias contri-
ferido recorte teórico-empírico não impedi- buições. Inexistem aqui pretensões desse tipo,
rá, contudo, que em determinadas situações até por se afigurarem estéreis aos propósitos do
ele se expanda para contemplar, à guisa de dossiê. Em troca, a literatura foi selecionada
contrapontos, povos indígenas pertinentes a como uma amostra razoavelmente significativa
outros contextos, sempre que o contraponto do tema, ainda que possa se mostrar de qua-
produza rendimento analítico e, simultanea- lidade desigual, e da mobilização acadêmica
mente, assegure algum exercício comparativo dos produtores que compõem o(s) contexto(s)
ou comunicação interétnica. Dessa maneira, etnográfico(s). O eventual desequilíbrio inter-
não nos deixaremos mobilizar excessivamente no poderá, por sua vez, ser atenuado mediante
por tais contrapontos; antes, os acolheremos exposição e análise de caráter relacional, que
quando se mostrarem etnográfica ou etnologi- confiram igual importância aos avanços te-
camente instrutivos para a chamada etnologia óricos e à força das evidências etnográficas.
ameríndia. Ao assim proceder, não obstante Ao mesmo tempo, é de supor que a pro-
de modo muito parcimonioso – até porque dução dos últimos vinte anos guarde relação

1 Maria Rosário de Carvalho é doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e professora titular
da Universidade Federal da Bahia.
2 Edwin B. Reesink é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor titular da Universidade
Federal de Pernambuco.

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 71-104. 71
mais ou menos direta e/ou, complementar Fredrik Barth, os “grupos
àquela que, de certa forma, imediatamente étnicos” e as suas fronteiras
lhe antecedeu – e da qual resultaram conti-
nuidades e descontinuidades, mais e menos A década de 1970 do século XX tem sido,
salientes e relevantes. Assim sendo, essa pro- mais ou menos consensualmente, identificada
dução antecedente será o ponto de partida, como aquela no decurso da qual ocorreu ex-
embora desenvolvida de forma muito pontual, pressivo desenvolvimento da etnicidade nativa
principalmente atenta às suas reverberações. ou do uso da etnicidade como um instrumento
É necessário advertir, de antemão, que o ba- político. Ao lado das circunstâncias históri-
lanço da periodização de toda a produção co-políticas próprias a cada caso concreto,
antropológica relevante sobre o tema ultra- há quem defenda a tese de que o crescente
passa completamente os limites de espaço e desenvolvimento político indígena, com seus
as pretensões deste texto. correlatos processos étnicos, decorreu, em
À guisa de organizá-lo internamente e parte, da corrente de pensamento antropoló-
evitar sobrecarregá-lo, apelamos para a sub- gica desenvolvida em torno de Fredrik Barth
divisão de certos temas fortes que se desdo- (1969) e, em parte, de uma nova intervenção
bram, assim, em subtemas, evitando, todavia, ética desencadeada pelos antropólogos por
excessiva itemização. Temas e subtemas, ao meio das várias organizações não governamen-
lado de determinados âmbitos geográficos tais. Tal intervenção (ou abordagem do tipo
internamente ao Nordeste, passam a cons- ação-orientada) tentava remediar a situação
tituir, então, os eixos dos debates que foram dos povos indígenas (MORIN; D’ANGLURE
discernidos, permitindo ao leitor divisá-los 1997, p. 158-159).
e acompanhá-los na linha do tempo. Com Fredrik Barth e seu conceito de grupo
efeito, uma seleção rigorosa é ineludível. étnico como organizational type resultante
Uma das características dos últimos vinte da interação entre grupos estabelecidos em
anos é que a produção antropológica cresceu determinados ambientes e que construíam
muito. Como se sabe, no início da segunda fronteiras sociais em presença – sobre as quais
metade do século passado, a América do Sul incide o foco da pesquisa e não mais na cultura
ameríndia chegou a ser tipificada como ‘a que elas encerram – seriam recepcionados
etnologia do continente menos conhecida’. como o autor e o conceito certos para uma
Para o Nordeste brasileiro, por sua vez, cer- hora socialmente incerta, um período de in-
tamente vale observar que se constituía como certezas e instabilidade. A antropologia – que
a região com a “etnologia menos conhecida até então havia se deixado confinar por certa
da etnologia das Terras Baixas no Brasil”. Tal tendência para o estudo dos povos indígenas
situação assimétrica somente começa a mudar em termos de cultura ou organização social,
por volta de 1970, mas é nos últimos vinte como se fossem isolados e independentes,
anos que se ampliou realmente o espectro de pouca atenção conferindo às relações com seus
pesquisas. Consequentemente, não é mais ambientes econômico-sociais vizinhos –, foi
possível dar conta de toda essa produção compelida a proceder a uma reconversão do
em um só artigo. A outra pergunta cone- olhar, constatando, então, que a organização
xa relevante é se a etnologia do Nordeste é social dá significado à cultura e não o inverso
vista, hoje, em condição de mais igualdade (ERIKSEN, 1993, p. 160).
acadêmica e interesse antropológico, compa- No contexto etnográfico do Nordeste bra-
rativamente à etnologia amazônica. sileiro, é também a partir dessa década que tem

72
lugar intenso processo de mobilização de cará- à vontade e às necessidades dos arranjos fa-
ter étnico tanto da parte de grupos considera- miliares e das expressões individuais. Ou seja,
dos extintos pela literatura etnológica quanto qualquer que seja a criatividade sociocultural
de outros supostamente afetados por avançado envolvida na assunção de uma identificação
processo de desorganização sociocultural. Em de índio, sempre serão necessárias mudanças
ambos os casos, o que pareceu ocorrer, de etnopolíticas e novas práticas que, de algum
fato, foi a incapacidade de a antropologia, modo, introduzam um campo de tensão em
subsumida aos efeitos de uma objetivação relação com as práticas preexistentes.
estreita e limitada, dar conta do complexo Essas tensões causadas pelas mudanças
conjunto de vínculos econômicos e sociais que em curso sempre criam fricções – evocando
relacionavam esses grupos aos seus entornos, Cardoso de Oliveira, “fricções infraétnicas”
compelindo-os à adoção de certas estratégias (1972a) – que, em vários casos, atingem níveis
de acomodação. A surpreendente quantidade muito significativos. Os exemplos representa-
de grupos emergentes que, desde esse período, dos pelos Kiriri, localizados na porção norte
passaram a reivindicar os seus direitos nativos, do estado da Bahia e pelos índios da reserva
para o que lançavam mão de distintas modali- Caramuru-Paraguassu (Pataxó Hãhãhãi), na
dades de desenvolvimento étnico, constitui tes- sua porção sul, são muito ilustrativos no que
temunho eloquente, ao mesmo tempo, da sua a isso concerne. No primeiro caso, a tentativa
persistência e da debilidade do instrumental de unificação das ações internamente ao grupo
antropológico quando engessado por supostos indígena, mediante a adoção do ritual Toré e a
culturalistas e assimilacionistas. Mesmo que o instituição de roças comunitárias, gerou muitas
conceito-chave da época, aculturação, seja bem resistências, dissidências e até mortes entre aque-
menos limitado do que o modo como circula, les que, respectivamente, questionaram o caráter
estereotipadamente, pela antropologia, pode-se tradicional desse ritual e o poder de sobreposição
afirmar que os antropólogos tendiam a não do grupo (étnico) à família ou grupo doméstico
questionar o senso comum evolucionista que (BRASILEIRO, 1997). No que concerne ao
vigora na sociedade brasileira. Hoje, diga-se segundo caso, as determinações emanadas dos
de passagem, a superação desses pressupostos líderes relacionados aos vários grupos étnicos
constitui, exatamente, a dificuldade para diri- estabelecidos, em distintos períodos, na reserva
mir as tensões e evitar a ameaça de eclosão de indígena pareceram se sobrepor, igualmente, aos
conflitos, com menor ou maior força, entre arranjos conjugais e, especialmente, às aspira-
as posições antropológicas e os interesses an- ções do gênero feminino, predominantemente
ti-indígenas no país. aquelas relacionadas ao controle da sua ferti-
O novo contexto solicitou, em termos lidade reprodutiva. Para autores como Helen
mais ou menos gerais em toda a região, alguma Safa (2005, p. 308), a existência de uma base
recriação da etnicidade para lidar com a diver- territorial e política entre os indígenas contri-
sidade e a transcendência das variadas iden- buiria para o desenvolvimento de uma identi-
tidades locais, visando forjar uma identidade dade institucionalizada, que tenderia a refrear
étnica mais efetiva (MORIN; D’ANGLURE, mudanças socioculturais significativas em outras
1997, p. 171). Em muitos casos, a efetivida- dimensões da vida social.
de significou a expressão exacerbada de um Inquestionavelmente, tal como assinala
agente coletivo – o grupo étnico – com fraca Eriksen (1991), a abordagem de Barth, ao
capacidade de galvanização, mas certo poder deslocar as características do grupo étnico para
de imposição que gradualmente se sobrepôs as propriedades do processo social, permitiu

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aos pesquisadores da etnicidade descartar estra- étnicos e etnopolíticos e, como visto, essas
tégias empiricistas, do tipo colecionadores de diferenças criam fricções infraétnicas. Há um
borboletas, tão criticadas por Edmund Leach, conjunto de outras críticas, como a de Diego
e substituir substância pela forma, estática pela Villar (2004) – que chama atenção para certo
dinâmica, propriedade pela relação e estru- determinismo ecológico e demográfico e um
tura pelo processo – assim como apreender excesso de ênfase na escolha racional do ator
etnicidade comparativamente e explicar os social, embora ressalte em nota que Barth
fenômenos étnicos sem recorrer a concepções (1989), posteriormente, modificou sua postura
grosseiras de culturas e povos. Todavia, não em relação aos atores sociais, agora “posiciona-
obstante os seus méritos, Eriksen identifica dos” –, que ganharam certa repercussão, mas
nessa abordagem duas importantes limita- não arrefeceram, pelo menos não plenamente,
ções que, do seu ponto de vista, impedem o interesse e a atração dos pesquisadores pela
uma compreensão comparativa satisfatória de relevante contribuição teórica de Barth, que
etnicidade: a abordagem, em princípio, ahis- para alguns representou uma ruptura episte-
tórica, do que resulta uma espécie de círculo mológica (MORIN; D’ANGLURE, 1997,
vicioso – ao mesmo tempo em que não se p. 161).
deveria negligenciar o fato de que a etnicidade Entre nós, antropólogos brasileiros, suas
é sempre propriedade de uma formação social formulações foram complementadas, com
particular, além de ser um aspecto interacional, igual ou quase igual repercussão, por aquelas
variações nesse nível de realidade social não de Cunha (1986, p. 99-101), mediante as
podem ser explicadas, compreensivelmente, quais ela trata a etnicidade como forma de
por meio de estudos de interação, não importa organização política, só passível de existir em
quão detalhados eles sejam. Isso implica a in- um meio mais amplo, que fornece os quadros
dispensabilidade de investigar as circunstâncias e as categorias da linguagem que a etnicida-
históricas e sociais nas quais uma configuração de é – afirmando, de modo incisivo, não se
étnica particular se desenvolveu e uma subse- poder definir grupos étnicos a partir de sua
quente localização no tempo, no espaço e na cultura, embora a cultura entre de modo essen-
escala social, do fenômeno étnico em questão cial na etnicidade como algo constantemente
(ERIKSEN, 1991, p. 128-129). reinventado, recomposto, investido de novos
A crítica suscitada por Mahmood e significados. Com repercussão menor, mas não
Armstrong (1992) será ainda mais radical, de menor importância, sobretudo política,
uma vez que contesta a própria existência de foi o parecer sobre os critérios de identidade
grupos étnicos, argumentando que os indi- étnica (CUNHA, 1986, p. 113-119), elabo-
víduos representam e selecionam, diferen- rado para informar o processo de disputa de
temente, os critérios de pertencimento que terras dos índios Pataxó Hãhãhãi, que só viria
os conectam a um mesmo grupo étnico, não a lograr uma decisão favorável em 2012 –
havendo, portanto, traços culturais compar- para a qual, sem dúvida, o parecer contribuiu
tilhados igualmente. Em outras palavras, tra- significativamente. Apoiada na definição de
ta-se da questão anteriormente subestimada grupo étnico de Barth, Cunha sublinha ser a
da variação intragrupo, o que, aliás, inclui cultura, de certa maneira, produto do grupo
questões concernentes ao contexto etnográfico étnico e não o seu pressuposto, remontando,
do Nordeste, que estavam na ordem do dia assim, a Weber, para quem os grupos étnicos
nessa época: normalmente, há variações em seriam aqueles que, em virtude de semelhanças
concepções da diacriticidade e dos projetos no hábito externo, ou nos costumes, ou em

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ambos, ou ainda em virtude de lembranças Nordeste”, algo que a autora, Carvalho (1984,
históricas – colonização e migração – nutrem p. 169), julgou poder apreender fundamen-
crença subjetiva em uma procedência comum talmente da perspectiva do território, fator
(WEBER, 1974, p. 319). considerado indispensável à sua integridade
Pouco antes, Roberto Cardoso de Oliveira física e cultural. Dois aspectos parecem atestar
(1976, p. XI-XII) reuniu quatro ensaios no seu referido pioneirismo, ou seja, o entendi-
livro Identidade, etnia e estrutura social, apre- mento etnográfico dos territórios indígenas
sentando a identidade étnica, o grupo étnico mediante as categorias e representações locais
e o processo de articulação étnica como as (que incluíam os costumes, hábitos e modos de
dimensões mais estratégicas do fenômeno das vida dos agentes) e como a dimensão territorial
relações interétnicas, cujo desenvolvimento colabora para a produção da identidade por
analítico era seu objetivo. Na década de 1960, meio de uma apreensão referida ao sistema
por intermédio da elaboração da noção de de relações sociais, constituído, de um lado,
fricção interétnica (1962) e do modelo do pelo Estado brasileiro e por segmentos sociais
potencial de integração (1967), ele já orientava aí compreendidos e, por outro, por povos
suas pesquisas sobre o tema no âmbito das rela- indígenas (ibidem, p. 169-170). Identidade
ções sociais, embora lhe trouxesse desconforto que, uma vez reconhecida pelo Estado, passa
a não inclusão do campo ideológico, no qual a distingui-los do seu estado anterior de índios
grupos étnicos e relações eram representados feito caça, índios brabos, não-pessoas (ibidem,
(OLIVEIRA, R. C., 1972b). Ele identificará p. 173).
nos estudos desenvolvidos por Fredrik Barth Ao longo do artigo, Carvalho busca trans-
em Ethnic groups and boundaries grande afi- mitir ao leitor como o domínio que os índios
nidade com o seu projeto das áreas de fricção têm do território constitui um indicador da sua
interétnica no Brasil graças à crítica ao cultu- pertinência à denominada comunidade indí-
ralismo e ao privilégio que ambos conferiam gena, que reproduz, por outro lado, a nação,
à organização social. termo vislumbrado ideologicamente como
uma totalidade. A capacidade de divisá-lo
Conceitos de identidade, território e nomeá-lo à distância, considerando deter-
e territorialidade nos anos 1980 minadas características físicas e a ocupação
humana, são esperados de todos os membros
Certamente podemos atribuir ao (ibidem, p. 179). “Eu vou contar o que vi
Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas na minha aldeia, naquele tempo [passado]”,
do Nordeste Brasileiro (Pineb), ainda hoje declarou o interlocutor pataxó (do extremo-sul
sediado no Departamento de Antropologia e baiano) para Carvalho, após o que passou, sob
Etnologia da Universidade Federal da Bahia a forma de uma récita impecável, a descrever
(UFBA) e ao qual os autores deste artigo estão os moradores e a toponímia com detalhes.
associados, algum pioneirismo no tratamento Determinados acidentes geográficos ganham
dos temas enunciados, o que não se deve a um especial significado, sendo utilizados como
movimento volitivo autoral, mas à sua centrali- pontos de referência em terra e/ou, mar e
dade para o contexto etnográfico do Nordeste. como símbolos étnicos. Finalmente, durante
Vejamos essa questão, rápida e resumidamente, os rituais, o território configura uma totali-
por meio de dois artigos, ambos elaborados dade espaço-temporal: os mortos retornam
em 1982, mas publicados em 1984 e 1988. O sob a forma de encantados e se unem aos
primeiro se intitula “A identidade dos povos do vivos, compondo a totalidade da nação, que,

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simbolicamente, ocupa a totalidade do seu sem mal de alguns povos tupis (CLASTRES,
território (CARVALHO, 1984, p. 186). 1975; SAMPAIO, op. cit., p. 140). O seu
No segundo artigo (CARVALHO, 1988), tom especialmente assertivo busca, além de
a autora afirma que o fortalecimento da iden- enfatizar o vínculo radical do território com
tidade étnica dos povos indígenas do Nordeste a etnicidade, afastar as equações primárias que
apresentava-se, à época, em condição fran- pudessem daí advir, como perda do território
camente desfavorável, na dependência dos e perda da identidade – como em Ribeiro
rearranjos particularmente engendrados em (1970) e Paulo Amorim (1975).
atenção à especificidade de cada modalidade Constatamos, então, que as questões de-
histórica da categoria de índio, mas no âmbito senvolvidas nos artigos giram em torno do
de um projeto coletivo que os circunscrevia en- processo da transição de caboclo para uma
quanto povos indígenas de um dado contexto identificação de índio perante o Estado, pres-
etnográfico. Por ser assim, as articulações e os tando atenção, em particular, como visto, ao
empréstimos efetuados não implicam perda de autoconvencimento de sua própria autentici-
especificidade, tampouco um jogo arbitrário, dade e ao alterconvencimento dos não índios e
mas a superação coletiva de um suposto estado do Estado acerca de sua legitimidade: o grande
de privação absoluta, que incluía a privação dilema no Nordeste, afinal, é como ser índio
étnica e que é mediada por território, religião na atualidade, enquanto, de fato, se é visto
(isto é, percepções e concepções impulsionadas por todos como um índio misturado e/ou
por entidades extra-humanas – usualmente civilizado que sofre de distância cognitiva e
denominadas encantados –, às quais são con- afetiva dos índios selvagens do passado, seus
feridos atributos poderosos, na acepção de ancestrais. Notemos, por fim, que ambos os
transformadores das pessoas e dos coletivos), autores se utilizam, criativa e amplamente, da
representações, práticas e disposições (1988, literatura antropológica nacional e internacio-
p. 14). Nos dois artigos mostra-se, pois, como nal da época sobre temas como etnicidade,
a relação entre a cosmologia dos encantados, território e política.
seu ritual e o território que abriga o povo in- Entre o final dos anos 1980 e início dos
dígena e seus sobrenaturais é fundamental em 1990, um conjunto de dissertações de mes-
quase todos os casos e isso, vale registrar, será trado será produzido no Museu Nacional
uma constante assinalada por quase todas as da Universidade Federal do Rio de Janeiro
etnografias posteriores. (UFRJ) sob a orientação de João Pacheco de
Nessa mesma clave interpretativa, José Oliveira. O que dá unidade ao conjunto é o
Augusto Sampaio (2011), em 1986, apoiado contexto empírico de investigação incidente
em uma base etnográfica mais rica do que sobre o Nordeste e a convergência dos temas
a de Carvalho, afirmará que o território é o tratados – identidade étnica, processo de
suporte básico sobre o qual são construídas territorialização, forte presença dos líderes
as etnicidades específicas na região e que a indígenas nos processos de reconhecimento
territorialidade é, embora em graus diversos, étnico e reivindicação territorial, significa-
um dado cultural que, como a tradição, tem tiva comunicação interétnica entre povos
sempre papel indispensável nas definições com certas afinidades históricas e culturais,
étnicas – mesmo quando o território de refe- a mistura como fator distintivo dos grupos
rência esteja ausente, caso das diversas situa- indígenas e a denominada etnogênese –, em
ções de diáspora (CUNHA, 1985), isto é, seja geral apoiados pelos mesmos pressupostos
puramente imaginário, ideal, como a terra teóricos. Essas dissertações, fora seu valor

76
intrínseco, têm relevância adicional porque Iniciamos esta seção, que efetivamente
constituíram o suporte etnográfico para a dá início ao balanço sobre o tema nos últimos
elaboração de Uma etnologia dos índios mis- anos, com o artigo anteriormente referido
turados? Situação colonial, territorialização e “Uma etnologia dos índios misturados?”,
fluxos culturais (OLIVEIRA, 1993; 2004), tornado público, embora para uma assis-
a conferência elaborada pelo autor para o tência supostamente não muito ampla, em
concurso de professor titular da disciplina 1997. A sua primeira publicação, em 1998,
de Etnologia no Museu Nacional, em 11 de teve repercussão e expressiva acolhida entre
novembro de 1997 – publicada subsequente- aqueles interessados em seu objeto de refle-
mente na revista Mana (idem, 1998) e como xão. As frequentes citações do artigo pelos
artigo introdutório ao livro A viagem da volta: colegas, já referidas, e o fato de A viagem de
etnicidade, política e reelaboração cultural no volta estar já em sua segunda edição cons-
Nordeste indígena (2004, 2ª edição). tituem bons indicadores da sua boa recep-
ção. A conferência/artigo talvez possa ser
O tema nos últimos vinte encarada como uma espécie de balanço do
anos (1997-2017) estado da arte no período mediante o qual, a
pretexto de indagar, provocativamente, sobre
Talvez possamos, grosso modo, distin- uma etnologia dos povos indígenas do nor-
guir a recente produção entre as seguintes
deste, Oliveira teoriza sobre essa etnologia:
formas: artigos de caráter mais programá-
contrasta-a, ainda que limitadamente, com
tico, cujo tema é tratado como chave para
a etnologia clássica americanista e demarca
a constituição de uma etnologia dos povos
como fulcrais para ela as noções de etno-
indígenas estabelecidos no Nordeste, como é
gênese e territorialidade, sendo este último
o caso do artigo de João Pacheco de Oliveira
central e concebido sob a forma do conceito
(1998); artigos nos quais o tema é abordado
de territorialização – que, em si, já conota a
com aparente centralidade, mas pouco apro-
fundamento etnográfico; artigos com algu- ideia de processo e não de um estado.
mas boas evidências etnográficas, mas pouco A intenção do artigo é produzir subsídios
rendimento analítico; dossiês nos quais se para refletir sobre o paradoxo representado
destaca a preocupação etnográfica com as pelo surgimento recente de povos que são
concepções nativas e cujo conjunto assegura pensados, e se pensam, como originários,
uma boa base comparativa; e livros sobre para o que o autor segue três movimentos
temas mais abrangentes embora relacionados expositivos: a formação do objeto de inves-
à questão identidade/territorialidade. Muitas tigação “índios do Nordeste”, a discussão
vezes, no caso de artigos em periódicos, o de conceitos para a análise da etnicidade e
título não se refere diretamente ao tema, o de uma chave interpretativa para os fatos da
que compele o leitor a buscar identificar, chamada emergência de novas identidades e
mediante a leitura, aspectos abordados que a reflexão sobre as perspectivas para o estudo
possam guardar relação. Dado o atual volu- de populações tidas como possuindo pouca
me da produção, torna-se difícil assegurar distintividade cultural (ou seja, culturalmente
que um balanço tenha condições de abarcar e fisicamente concebidas com a marca distin-
todas essas menções, que variam em grau tiva e discriminatória de serem misturadas –
de profundidade etnográfica e teórica, como como é o caso das que fizeram recentemente
já assinalamos. sua reaparição (OLIVEIRA, 1998, p. 48).

77
A primeira noção, etnogênese, se cons- dessa situação interétnica (ibidem, p. 56-57).
tituiria como o fato social característico no Já o segundo movimento de territorialização
Nordeste. Em outras palavras, o processo de inicia-se em 1920 e tenta constituir-se em
etnogênese consistiria, para João Pacheco de um meio termo, evitando a total assimilação
Oliveira (1998, p. 53), no fator distintivo e, simultaneamente, a eliminação da tutela
entre os povos e as culturas indígenas do (ibidem, p. 58-59). O terceiro teria sido de-
Nordeste e da Amazônia. No entanto, devi- sencadeado por mobilizações e reivindicações
do a certas conotações não favoráveis desse de povos indígenas até então não reconhe-
termo, o autor avança com outro conceito, cidos pela agência indigenista e ausentes da
tomado como preferencial. A noção de ter- literatura etnológica (ibidem, p. 61-62).
ritorialização – um ato político constituidor O artigo de Oliveira repercutiu e, pro-
de objetos étnicos por meio de mecanismos vavelmente, ainda repercute entre as novas
arbitrários e de arbitragem –, que tem a gerações de pesquisadores. De fato, se trans-
mesma função característica da noção de formou em um texto quase obrigatório, cuja
situação colonial, da qual procede, seria a via adesão se faz, às vezes, quase automaticamen-
mediante a qual as chamadas comunidades te, seja mediante uma simples citação, quase
indígenas transformam-se em coletividades ritualizada, seja mediante um uso um tanto
organizadas, com identidades próprias, insti- quanto superficial, como se corroborando o
tuição de mecanismos de tomada de decisão caso específico estudado – o que terminou obs-
e de representação das suas formas culturais curecendo os méritos do artigo e os propósitos
(ibidem, p. 56). Peso determinante, somos do autor. Algo similar ao que ocorreu com
levados a supor, é atribuído ao estado colonial “Grupos étnicos e suas fronteiras”, de Barth.
mediante seu poder instituidor dos processos
de territorialização, restando aos agentes his-
tóricos territorializados retrabalhar afinidades Religião, ritual, terra e etnicidade
culturais ou linguísticas e vínculos afetivos
e históricos porventura existentes em um Religiões, missionários, missões, aldeias,
contexto histórico determinado e contrastado aldeamentos, xamãs, xamanismos, deuses e
com os atributos de outras unidades (ibidem). seres sobrenaturais, enteógenos, conversão,
Três processos de territorialização, com aculturação, perda da cultura. O modo de
características bem distintas, teriam subme- configurar a relação entre a religião imposta
tido os povos do Nordeste, ocorrendo o pri- e as práticas indígenas pelos índios são con-
meiro na segunda metade do século XVII e ceitos e questões que devem ter surgido no
nas primeiras décadas do XVIII – associado momento em que alguém na frota de Pedro
às missões indígenas – e o segundo no século Álvares Cabral avistou terra e anunciou sua
XX – articulado com a agência indigenista. descoberta. Sob a conjunção da justificava
Finalmente, os anos 1970/1980 testemu- política da posse legítima com a religiosa,
nhariam um terceiro processo. No primeiro relacionada à expansão da fé, a história da
caso, famílias indígenas de diferentes línguas e conquista do Brasil se iniciou sob um duplo
culturas foram estabelecidas nos aldeamentos movimento de apropriação impositiva de
missionários, que buscavam acomodá-las, soberania e de autonomia sociocultural e
unificando-as pela catequese e o disciplina- religiosa usurpadas aos povos autóctones,
mento do trabalho. A mistura e a articulação algo que perdura num processo de longa
com o mercado foram fatores constitutivos duração, mesmo que sempre em mutação.

78
Os escritos dos missionários e cronistas sobre nesses estudos, em sentido amplo; a partir
os povos tupi da costa permitem reconstitu- desse período, os campos temáticos men-
ições e reinterpretações. Tais relatos, cartas cionados tiveram um alento vivificador que
e similares permitiram, como é largamente caracteriza, até o presente, as pesquisas sobre
sabido, a alguém da qualidade intelectual povos indígenas no Nordeste. Testemunho do
de Florestan Fernandes escrever, analisar e que afirmamos é o fato de Luiz Sávio Almeida,
propor interpretações sociológicas sobre os docente da Universidade Federal de Alagoas
Tupinambá. Podemos assinalar, de passagem, (Ufal), ter editado a maior série de publicações
que os estudos mais históricos também con- sobre o Nordeste, Índios no Nordeste, que, de-
heceram uma renovação interessante, com pois de algumas coletâneas de maior relevância,
novas interpretações advindas basicamente publicou basicamente acadêmicos alagoanos.
das mesmas fontes, mas inspirados numa Vale notar, à luz dessa coleção, uma
antropologia atual. Os exemplos de Viveiros diversificação representativa para todo o
de Castro (1992) e Pompa (2002) são elo- Nordeste. Primeiramente, a expansão aca-
quentes a esse respeito (sendo que Pompa dêmica concomitante com a expansão das
inclui os povos não tupi em suas análises e universidades, suas graduações e pós-gradu-
permanece nessa área temática). Note-se que, ações; monografias de conclusão de curso,
no caso desses exemplos, a renovação incidiu mestrado e doutorado; mais postos de tra-
exatamente sobre os temas mencionados, que balho e crescente pressão, competição e bu-
prosseguem tendo presença significativa con- rocratização da produção acadêmica, com
temporaneamente (OLIVEIRA, K. E., 2013). maior produção escrita por antropólogos
Depois do pioneirismo do Pineb da acadêmicos. Essa expansão ocorreu em todo
UFBA – que, desde os anos de 1970, com- o Brasil e, em particular, após 2002. Em se-
pulsa e transcreve, diplomático-paleografica- gundo lugar, houve uma ampliação temática,
mente, todo tipo de documentação oriunda em especial em etno-história, sobre temas
de arquivos nacionais, predominantemente, como os índios e o Serviço de Proteção aos
e estrangeiros, em menor volume –, pre- Índios (SPI), a saúde e educação indígenas e
senciamos um grande aumento do acesso o xamanismo Kariri-Xokó, além de se abarcar
à documentação inédita e um incremento etnograficamente povos até então desconhe-
muito significativo de análises e interpreta- cidos, como o conjunto de etnias do Alto
ções (CARVALHO; REESINK, 2016). Talvez Sertão alagoano que fazem parte das ramas e
a marca temporal principal, assim, tenha sido o grande número (“enxame”) dos Pankararu
o I Encontro de Etno-História Indígena do de Pernambuco, que buscaram reconheci-
Nordeste, realizado em Penedo entre 31 de mento do Estado no intervalo temporal sob
maio e 1º de junho de 1996. Esse evento exame. Terra, conflitos de terra e identidade/
pioneiro reuniu cerca de oitenta pessoas de identificação se constituíram como alguns
várias áreas e nunca mais foi repetido sob o dos objetos principais de pesquisa, como
mesmo formato. Desde então, em várias áreas comprova a coleção anteriormente referida,
temáticas, por exemplo, a história, a etno- que assegurou também inserção para vários
-história, a antropologia social e histórica, atores coletivos no âmbito da luta pela terra
o número de pesquisadores e de produção no estado de Alagoas (ALMEIDA; LIMA;
aumentou, consideravelmente, no Nordeste. OLIVEIRA, 2013). No caso do Nordeste,
No final dos anos 1990, já havia uma realmente há necessidade de pensar toda a
quantidade considerável de pessoas engajadas questão relativa à posse da terra e, para os

79
povos indígenas, investigar as relações que eles analisa o Museu Tapeba pela noção de espaço
estabelecem, variáveis no tempo e no espaço, de transculturação.
sob alianças diferentes e disputas diversas – Os resultados das pesquisas atuais de ca-
além dos posseiros e fazendeiros invasores e ráter histórico desenvolvidas por antropólogos
vizinhos – com grupos e organizações, como e historiadores mostram os genocídios, etno-
sindicatos rurais, assentamentos de reforma cídios, violências sob distintas modalidades e,
agrária, reservas ambientais e comunidades de na medida do possível, as reações dos índios,
quilombos. Essa é uma vertente de pesquisa entre as quais a ocultação da identidade e das
que permanece altamente relevante e presente práticas diferenciadas, assim como as peram-
em um número considerável de situações bulações, fugas e migrações de pessoas, famílias
atinentes a esses povos. e parentelas, tentando encontrar um local para
Todas as questões relacionadas à territo- ter uma vida menos inquieta e relativamente
rialidade e identidade indígena são, é claro, autônoma. Às vezes, buscam um novo local; às
multidimensionais e afetam toda a experiência vezes, reúnem-se a outros povos ou frações de
vivida das pessoas envolvidas. Elas também se povos – cf., por exemplo, os trabalhos de João
relacionam aos diversos lados – como povos Pacheco Oliveira (2011) e Reesink (2013).
indígenas em conformação étnica e o Estado Observamos, dessa maneira, no século
dominante, com um regime etnomórfico de XX, uma visão que parte fortemente do pres-
indianidade –, para os quais a expressão religio- suposto da baixa distintividade cultural dos
sa sempre desempenha o papel de um dos prin- povos no Nordeste e que, ao mesmo tempo,
cipais vetores de identificação de indianidade. procura vestígios de certas organizações sociais
Há, ademais, uma complexa relação entre o (como metades, em Hohenthal) – mas, em
estabelecimento da dominação interétnica do particular, investiga o campo cosmológico
início da conquista e a passagem para um regi- (notadamente rituais e crenças) para verificar
me de relação assimétrica que perdura até hoje. o grau de distintividade. Afinal, esses achados
Levando em conta a direção, a intensidade e eram utilizados para medir o grau de india-
a amplitude do fluxo intercultural, as trans- nidade, para o que se fazia necessário certo
formações implementadas, sob o uso da força patamar de distintividade. Após o estabeleci-
ou não, produzem transculturação – aceitação mento do regime de relação assimétrica e sua
imposta mas também parcialmente voluntária forte repressão à distintividade de caráter reli-
e estratégica, sempre acompanhada de um gioso, tal exigência poderia parecer um tanto
componente de criatividade cultural, de acor- surpreendente, paradoxal mesmo. Porém, até
do com Azevedo (1959), um autor ignorado o advento da antropologia mais moderna,
injustamente (REESINK; REESINK, 2015) depois dos anos 1970, as pesquisas revelam
em toda a literatura posterior, mas que utiliza certa tenacidade dos índios em manter uma
conceitos, como “fluxo intercultural” e outros, linha de continuidade religiosa pré-cabralina.
que somente serão retomados muito tempo Na etnografia pioneira de Bandeira (1972)
depois. Aliás, o termo “transcultural” faz cada sobre os Kiriri, ela mostrou como, no campo
vez mais parte do vocabulário conceitual e das práticas religiosas, prevaleciam certas
é incorporado como adjetivo ou processo, continuidades e de que modo esse campo se
sem mais remissão à sua fonte de proposta apresentava como o único domínio em que os
original, o cubano F. Ortiz, o que é sinal de caboclos obtinham algum prestígio perante os
aceitação generalizada. Por exemplo, Soares regionais (por eles denominados portugueses).
(2010) refere-se a transcultural no título e Consequentemente, as primeiras sínteses do

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estado da arte (CARVALHO, 1984; 1988; dos massacres, físicos e simbólicos, aos quais os
SAMPAIO, 2011) enfatizaram a dimensão seus povos foram submetidos. Por outro lado,
religiosa como passível de revelar tanto a con- hoje é consenso que a visão da etnologia das
cepção de continuidade como a necessidade perdas subestimou a persistência dos índios
de reforçar ou retomar continuidades tidas como outro, diferente dos regionais, mesmo
como existentes no passado (rituais como o nos casos de vizinhos aparentemente indis-
toré, praiá e ouricuri). Foi assim para que, desse tinguíveis (RIBEIRO, 1977). Nessa época, o
modo, se fortalecesse a indianidade específica, protagonismo de buscar fazer reconhecer os
no intuito de reconquistar os territórios, já índios e sua necessidade de proteção coube
que sempre – não conhecemos exceções – os aos clérigos, em especial ao padre Alfredo
índios foram alijados, pela força, de partes Dâmaso, que logrou apoio para os Fulni-ô.
importantes de suas terras (REESINK, 2000). Mas um antropólogo como Carlos Estevão se
As pesquisas desenvolvidas sob a orientação de deixou estimular por esse padre para registrar
João Pacheco Oliveira (1998) corroboram essas fatos etnográficos entre outros povos, como
deduções, ainda que estejam pouco presentes os Pankararu, e, ao apresentar em especial
na síntese, de sua autoria, que fecha esse ciclo. aspectos religiosos, reclamar ajuda do Estado
Nos anos 1990, então, confirma-se um para populações oprimidas (ARRUTI, 1996).
circuito de feedback entre rituais considerados Embora o fato de a terra fulni-ô estar
indígenas por índios e não índios (muitos arrendada tenha pesado na escolha desse povo
com uso de jurema e/ou uma modalidade para a instalação do primeiro posto indígena
de xamanismo) –, autoconvencimento e al- na região (PERES, 1999), de certo modo o
terconvencimento da indianidade (com uma exemplo fulni-ô criou um “molde de reco-
concepção mais geral em toda a região) e de nhecimento estatal” – muitas vezes chamado
pertencimento específico (de caboclo a índio, de etnogênese – que exigiu o ritual do toré
pelo vínculo com os ancestrais) –, com coesão como prova de indianidade (embora a in-
social, etnopolítica e luta pelo reconhecimento fluência dos clérigos tornasse, às vezes, esse
identitário e reconquista da terra para recom- “teste” desnecessário, como ocorreu entre os
por o território e a própria territorialidade. Kiriri e os Kaimbé nos anos 1950, desauto-
Se essa última conclusão parece-nos ser rizando, assim, a afirmação mais ou menos
justificada, em um sobrevoo pela literatura, recorrente de que há necessidade absoluta da
falta hoje um trabalho crítico mais englobante prática ritual e da sua representação. Note-se
que sintetize o estado da arte da história dos que o toré sempre foi visto como um ritual
povos indígenas no interior do Nordeste: algo indígena com conteúdo religioso, apesar de
a respeito da persistência demonstrada em poder ser entendido, pelo observador externo
permanecer nos locais de origem, das migra- eventual, como um mero sinal diacrítico, uma
ções forçadas, temporárias e definitivas (em performance “para brasileiro ver”. Mesmo
diferentes épocas históricas) e dos circuitos de assim, sua adoção, salvo alguma possível e
troca de diversos tipos (inclusive rituais) entre rara exceção, sempre implicou aprendizagem
diferentes povos e frações de povos. Justamente de práticas religiosas, com fortes implicações
quando os poucos primeiros antropólogos, a cosmológicas, como registra toda a literatura
partir dos anos 1930, começaram a visitar os do século passado (REESINK, 2000). Dada
poucos locais seguros quanto à presença de sua posição diacrítica e sociocosmológica cen-
remanescentes de índios, o termo remanes- tral, essa via de investigação dos rituais, em
cente conotava, corretamente, os resistentes especial o toré e o uso da jurema, tem sido

81
objeto de uma multiplicidade de pesquisas, teses (GROSSI, 2004; SOUZA, 2015) foram
inclusive com novas dimensões, como a música produzidas sobre os Pataxó relativamente aos
indígena – veja-se a coletânea de Grünewald dois temas em foco. A título de exemplo de
(2005) e a tentativa de Nascimento (2013) descoberta etnográfica de persistência indíge-
de abarcar todo esse domínio. na, vale observar que Fabiano Souza (ibidem,
p. 170-172) registrou um detalhado mito, cuja
Identidade e territorialidade em tradução para o português atual se manteve
distintos contextos: sul, extremo bastante fiel a uma versão pré-cabralina na
sul e centro-oeste de Minas Gerais língua indígena.
(encantados, retomadas, alianças Supomos possível afirmar que os três
estratégicas, premonição e autonomia) povos indígenas concebem seus territórios,
a um só tempo, como pertencentes aos en-
Os povos indígenas Pataxó, Pataxó cantados – conjunto de seres humanos (ou
hãhãhãi e Tupinambá estão estabelecidos no ex-humanos) e extra-humanos com os quais
sul e extremo-sul baianos, compondo uma convivem e pelos quais se deixam guiar, como
unidade etnológica mais ou menos discre- já referido –, construídos pelos antepassados e
ta no denominado contexto etnográfico do visualizados como a única condição de possi-
Nordeste, no âmbito do qual se distinguem sob bilidade de uma vida autônoma. Parece, por
vários aspectos, o que leva certas organizações outro lado, haver consenso de que caboclo e
de ação indigenista a classificá-los na porção encantado são, em certa medida, intercambi-
leste, com os Aranã (MG), Guarani Mbyá áveis, designando, na Serra do Padeiro, seres
(ES), Tupiniquim (ES), Krenak (MG), Kaxixó da sobrenatureza (UBINGER, 2012, p. 16).
(MG), Maxakali (MG), Xakriabá (MG) e os Grossi (2004) reitera que, entre os Pataxó,
Pataxó fixados em Minas Gerais. A produção o universo onde as duas entidades circulam
etnológica sobre eles tem aumentado, nos está sempre aberto a transformações históricas
últimos anos, graças a um volume considerá- contínuas, cuja indeterminação é grande. Os
vel de dissertações – Warren (2001), Couto encantados têm domínios territoriais mais
(2008), Mejía Lara (2012), Macêdo (2007), ou menos exclusivos, que podem ser pedras
Magalhães (2010), Ubinger (2012), Alarcón (caboclos da Laje Grande e da Lasca da Pedra),
(2013a) e Sallum (2016), entre outras – e uma a mata (Sultão da Mata, entre outros) e as
tese (VIEGAS, 2007) sobre os Tupinambá, águas. Outros estão associados a certas árvores,
que ganharam visibilidade em 2001 devido domínios que não restringem, contudo, sua
ao seu reconhecimento como indígenas pela livre circulação pelo território. Em certas oca-
Fundação Nacional do Índio (Funai), embora siões, eles comunicam sua presença sutilmente,
sempre tenham permanecido ao longo da costa mediante cheiros característicos, como os do
marítima da vila de Olivença até a Serra das tabaco e da cachaça. Outras vezes, se insinuam
Trempes e a Serra do Padeiro (idem, 2010). pelo vento ou pela sombra, em abertas na
Eles vivenciaram longos processos de territoria- mata ou tapas velhas, isto é, casas abandonadas
lização e territorialidade na região, cujo marco (MEJÍA LARA, 2012, p. 72).
foi o estabelecimento do aldeamento jesuítico Historicamente, a região da Serra do
de Nossa Senhora da Escada, em 1680, no Padeiro – onde está situada a maior parte
que hoje corresponde à sede do distrito de da aldeia homônima – constituiu-se como
Olivença, a aproximadamente 21 km do mu- lugar de refúgio no marco da territorialização.
nicípio de Ilhéus (ALARCÓN, op. cit.). Duas Alarcón (2013a) reporta ter ouvido indígenas

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ali fixados referirem-se à resistência dos ante- A estratégia acionada pelos Tupinambá
passados remotos que não se deixaram alde- para seu processo de recuperação territorial
ar. Pesquisas históricas e antropológicas, que foi muito eficaz, material e simbolicamente.
coincidem com relatos contemporâneos dos Eles formaram um semicírculo, cingindo a
Tupinambá, indicariam que as serras eram afloração rochosa – Serra do Padeiro – que dá
locais de morada e de passagem também de nome à região e que é considerada o centro da
outros povos indígenas (ibidem, p. 25-26). aldeia; o rio de Una atuava como eixo, ao longo
Nessa região do sul e extremo-sul baianos, do qual vinham sendo realizadas retomadas,
há uma prática de territorialidade que tem se em ambas as margens. Rodeando a aldeia,
tornado recorrente: as chamadas retomadas – ou os indígenas agiam como os encantados, ao
“forma retomada” (idem, 2013b), noção que serem invocados na roda do toré: “Rodeando a
essa autora afirma ter sido inspirada no mo- aldeia, rodeando a aldeia./ Rodeando a aldeia,
delo de análise desenvolvido por Lygia Sigaud rodeando a aldeia./ Os caboclos chegam,/
(2000) para os acampamentos sem-terra em rodeando a aldeia”. Restava claro que, por
Pernambuco –, sobre as quais a literatura tem meio dessas ações, os Tupinambá estavam
conferido atenção. A retomada de 1982, por tratando de emendar porções do território
exemplo, foi um marco na organização política, que já estavam em sua posse, ampliando sig-
social e cultural dos Pataxó Hãhãhãi: famílias nificativamente a área que ocupavam, a des-
indígenas com diferentes histórias e distintas peito de esta permanecer ainda descontínua
origens étnicas, embora ligadas à antiga reserva (ALARCÓN, 2013a, p. 169). As emendas,
indígena criada pelo estado da Bahia em 1926, por outro lado, observavam uma práxis ditada
retornam, após anos de dispersão, e recuperam pelas circunstâncias. Ou seja, a presença, em
quase todo o território por meio dessa prática determinada área, de um pequeno produtor
(CARVALHO et al., 2012). ou mesmo de um fazendeiro – desde que fosse
Alarcón (2013a) lembra, muito oportuna- um bom vizinho e zelasse adequadamente
mente, que um paralelo pode ser estabelecido pela área em sua posse – introduzia exceções.
com a primeira retomada realizada pelos Kiriri, As evidências apontadas parecem sugerir
no norte da Bahia, em 1982, quando eles estarmos diante de uma nova prática político-
ocuparam a fazenda Picos, considerada um -territorial que tende a implicar mudança nos
baluarte da oposição à demarcação da terra comportamentos até então adotados com vis-
indígena. Do ponto de vista dos Kiriri, sua tas à territorialização, provavelmente, em novas
posse representava não apenas uma questão formas de territorialidade. Se tradicionalmente
de sobrevivência, mas também a possibilida- reivindicava-se ao Estado as demarcações, com
de de neutralizar seu inimigo mais influente frequentes deslocamentos a Brasília para pres-
(BRASILEIRO, 1997, p. 192). Mas cabe sionar a instância indigenista oficial, presente-
lembrar também que, imediatamente após mente retoma-se o que, por direito, pertence
o retorno dos Hãhãhãi, três dos seus líderes ao povo indígena, funcionando como suporte
foram convidados pelo cacique kiriri Lázaro comprobatório para a retomada do domínio
Gonzaga de Souza para visitá-los. Os visitantes dos limites do território. A reivindicação ao
afirmam ter, então, conhecido o toré kiriri. Estado passa a ser algo complementar, não
Mas, muito provavelmente, as ações de reto- mais o fundamental: “Hoje nós leva o povo.
mada devem ter sido a motivação principal Pode não ter terra demarcada, mas temos o ter-
para o deslocamento (CARVALHO et al., ritório, nós temos nossa terra na mão. Você não
2012, p. 16). vai encontrar nenhum índio que diz, hoje,

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‘eu não tenho o que comer em casa’; você participação do MPF, contudo, só se efetivou
não vai encontrar um índio que não tem o por volta de 1996, quando os próprios índios
seu queixo erguido, esperança”, diz o cacique ingressaram em juízo. O procedimento admi-
Babau (SALLUM, 2015, p. 94, grifo nosso). nistrativo foi instaurado para matéria ligada à
Tal mudança parece embasada, pelo menos destruição de sítios arqueológicos considera-
no que diz respeito aos Tupinambá, em uma dos sagrados por esses índios, portanto, uma
concepção de autonomia crescente. motivação relacionada à defesa do patrimônio
Tal autonomia, no caso específico, foi histórico. O procurador da República Álvaro
construída por meio de três estratégias que, Ricardo de Souza Cruz solicitou na 6ª Câmara
implantadas sucessivamente, passaram a fun- de Coordenação e Revisão um perito, tendo
cionar de modo complementar. A criação da sido indicada a analista pericial Ana Flávia
Coordenação de Articulação Política dos Povos Moreira Santos, que, após mais de um ano e
Indígenas no Extremo Sul da Bahia, em 2009, meio de trabalho de campo, confirmou que
que daria origem, no ano seguinte, à Federação os Caxixó formavam uma comunidade indí-
Indígena dos Povos Pataxó e Tupinambá do gena, ao contrário, portanto, da conclusão
Extremo Sul da Bahia (Finpat) – cujo logotipo do primeiro laudo. Um terceiro laudo – de
é uma imagem étnica expressiva, o Monte desempate – foi imediatamente solicitado, o
Pascoal –, visando a institucionalização da que foi concretizado pela intermediação da
organização regional indígena (idem, 2016, Associação Brasileira de Antropologia (ABA),
p. 110) e a criação da Associação Indígena que indicou João Pacheco de Oliveira, cuja
Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP), conclusão foi também favorável aos índios. Em
encarregada de proceder à gerência das áreas 13 de novembro de 2001 a Funai procedeu ao
retomadas. isto é, à manutenção das roças de reconhecimento étnico dos Caxixó (SANTOS;
cacau e seringais decorrentes das retomadas e OLIVEIRA, 2003, p. 11).
a comercialização de seus produtos (ibidem, p. A unidade dos Caxixó como povo se firma
157). Houve estreita aliança social e política da tanto no presente quanto no passado mítico:
AITSP com a coordenação do assentamento antes de 1500, no tempo dos caciques, eram
de reforma agrária Terra Vista, implantado, em todos selvagens donos da terra. A selvageria
1994, no município de Arataca (BA), a cerca é a anticivilização, estágio anterior e simulta-
de 60 km da Serra do Padeiro. Dessa aliança neamente contrário à colonização, e também
inicial decorreu a participação dos Tupinambá substância do permanente elo de civilização
– de Olivença e da Serra do Padeiro – na Teia entre os vários grupos, consubstanciados nos
de Agroecologia dos Povos da Cabruca e da caboclos d´água, casados com habitantes de
Mata Atlântica, organização liderada pelo refe- ambas as margens do rio Pará (ibidem, p. 134).
rido assentamento e cujo objetivo é articular os As marcas de ocupação histórica são, por
diversos movimentos sociais pela solidariedade sua vez, o sinal da chegada dos brancos e da
do princípio de luta (ibidem, p. 150-151). progressiva expropriação a que o grupo teria
Em 1992, os autointitulados Caxixó – ha- sido submetido. As covas – onde teriam sido
bitantes no município de Martinho Campos, enterrados os caciques dos vários povos forma-
à margem esquerda do rio Pará, região centro- dores dos Caxixó, assassinados como parte da
-oeste de Minas Gerais –, diante de um laudo estratégia de dominação – constituem marcas
antropológico que lhes negava o reconheci- de resistência que o grupo utiliza, para afirmar,
mento da identidade étnica como tal, apela- no presente, a reivindicação sobre a terra que,
ram ao Ministério Público Federal (MPF). A acolhida pelo aparato político-administrativo,

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teria sido determinante para sua territoriali- (BARROS JUNIOR, 2010). Certamente o
zação (ibidem, p. 135). campo de instititucionalização por parte dos
próprios índios, com crescente protagonismo
Pernambuco e Ceará (retomadas, burocrático também em instâncias estatais, é
premonição e circuitos) característico dos últimos 20 anos.
Em relação aos Tapeba – cujo processo
A prática das retomadas não se limita ao demarcatório tramita desde 1986 –, Tófoli
sul e extremo-sul baianos. Ela parece estar (2009) afirma que já houve várias retomadas,
muito disseminada entre os vários povos indí- em diferentes localidades e com motivações
genas no Nordeste, assim como externamente e objetivos diversos, as duas primeiras tendo
a esse contexto etnográfico, como veremos ocorrido em meados de 1990 e asseguran-
adiante. A literatura recentemente produzi- do-lhes uma área contígua que interliga três
da registra-a entre os Xukuru de Pesqueira aldeias. Na sequência, foram realizadas mais
(PE) e os Tapeba, no Ceará – entre, muito doze retomadas, que garantiram espaço para
provavelmente, outros. No primeiro caso, a a construção de cinco escolas indígenas, área
primeira retomada, em 1990, foi um bom para um posto de saúde, acesso a recursos
demonstrativo do fortalecimento do toré como naturais e controle sobre a região considerada
prática ritual integrada ao cotidiano: ao longo sagrada (TÓFOLI, 2009, p. 224). Ora, esse
dos noventa dias de acampamento nas matas, caso também exemplifica que garantir terra
as noites eram dedicadas à prática do ritu- libera energias para perseguir outras metas. Os
al para assegurar sucesso na luta. A relação Tapeba se engajaram em diversas atividades,
revelou-se tão forte que, ao conquistarem a como a instalação da Casa da Memória Tapeba,
aldeia Pedra D’Água, o lugar até então utiliza- onde visitantes e turistas assistem o toré dentro
do como acampamento tornou-se o primeiro do círculo simbólico, apresentado como um
terreiro de toré do grupo (OLIVEIRA, K. evento do sagrado (SOARES, 2010).
E., 2009, p. 57). Essa luta, como é sabido, Os Kaingang, no sul do Brasil, e os
foi mais uma a criar um mártir: o cacique Guarani Ñhandeva, no sul do estado de
xukuru Chicão, cujo assassinato terminou São Paulo, assim como os Terena, Kaiowá e
com a produção de efeito contrário ao preten- Guarani, no Mato Grosso do Sul, têm utilizado
dido, já que confirmou sua relevância como a retomada. Bruno Martins Morais (2017), ob-
líder, chamou atenção para sua capacidade de servando a vida diária nos acampamentos, tem
mobilização e reforçou a causa de seu povo percebido que os Kaiowá e Guarani transitam,
(FIALHO; NEVES; FIGUEROA, 2011). simultaneamente, entre uma reivindicação
Os Xukuru valem, assim, como exemplo de clara de demarcação de um território específico
uma tendência altamente preocupante muito e o estreito vínculo a uma rede de relações que
mais geral: a criminalização dos movimentos abarca as famílias de um dado acampamento,
indígenas (dentro da tendência maior de crimi- dos outros acampamentos e de outras terras
nalizar movimentos populares, os assassinatos indígenas e, de muitas maneiras, envolve os
de índios e camponeses no país persistem, vivos e os mortos. Assim sendo, os espaços dos
assustadoramente). Outrossim, as conquistas acampamentos lhes permitiriam a experiência
de terra possibilitaram um fenômeno tam- de memória e a reiteração de alianças outras
bém mais amplo: o estabelecimento de uma que não as disciplinadas pelo cerco colonial.
organização não governamental (ONG) indí- Embora Morais esteja atento ao fato de que
gena orientada para o etnodesenvolvimento um modelo de territorialidade sob a forma de

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acampamentos como espaços de resistência também fez Batista (2008, p. 12) entre os
e contestação só é passível de demonstração Truká: “o meu avô dizia que esse era nosso
por um traçado amplo das relações de paren- território e que um dia ele ia ser nosso”. Nesse
tesco e do apoio de uma etnografia das redes último caso, a interlocutora indígena relatava
regionais de sociabilidade kaiowá e guarani, ao à antropóloga que, com o trabalho do toré,
acompanhar, no período 2013-2014, os três “os índios estão levantando a aldeia […] e
mil indígenas mobilizados nos acampamentos agora é chegado o momento de se recuperar
da retomada do Yvy Katu – terra indígena a herança”.
localizada entre os municípios de Japorã e No entanto, se o regime de índio
Iguatemi, na fronteira do Mato Grosso do (CARVALHO, 2011; GRÜNEWALD, 1993)
Sul com o Paraguai –, seus registros corro- e o lócus estratégico do ritual toré se mostra-
boraram, em linhas gerais, a hipótese desse vam dominantes em certa fase da busca de
novo modelo de territorialidade ao lado do reconhecimento, houve mudança de para-
primeiro modelo, mais sedentário e fechado, digma depois de 2000. Os notórios laudos de
do território reivindicado para demarcação atestação da indianidade foram sendo substi-
(MORAIS, 2017, p. 186-187). tuídos pela instrução da Convenção 169 da
No Nordeste, quase sempre se constata Organização Internacional do Trabalho (OIT)
que a força incontornável dos encantados sobre Povos Indígenas e Tribais, que prescreve
parece se sobrepor a todos os fatores secula- que o critério principal a ser observado pelo
res. Comenta-se, na Serra do Padeiro, sobre Estado é a autoidentificação. Essa nova situ-
jovens e adultos que teriam sido veículos ação aliviou um pouco a tensão em torno do
de premonição ou presságio, em sonhos ou processo de reconhecimento e, depois dos
em situações de surto psicótico, comumente Tapeba, colaborou para o crescimento, até
referidos como loucura. “Eu, quando enlou- então não previsto, de núcleos menos rurais
queci, e outras pessoas que enlouqueceram ou até exclusivamente urbanos.
também… a gente dizia que a terra ia voltar No Ceará, mais particularmente em
e ninguém acreditava. Essa terra sempre teve Cratéus, de acordo com os registros de
premonição” (ALARCÓN, 2013a, p. 158- Estevão Martins Palitot (2009b), há cerca de
159, grifo nosso). Premonição ou profecia uma dezena de núcleos indígenas localizados
é o termo local para tais manifestações, glo- nas periferias da cidade que se originaram
sadas como a capacidade de os encantados de mobilizações populares estimuladas pelos
transmitirem suas mensagens pela boca dos agentes pastorais da diocese. Além dessas con-
indivíduos em que desciam. centrações urbanas, o movimento indígena na
Os Xukuru do Ororubá – Pesqueira (PE) região dispõe também de uma rede translocal
– e os Truká da Ilha da Assunção, também em de comunidades indígenas na zona rural de
Pernambuco, reportam-se ao mesmo presságio. Crateús e nos demais municípios da região,
Edmundo Monte (2016) ouviu e registrou de todas decorrentes da ação da pastoral Raízes
uma xukuru, ao evocar sua infância e juventu- Indígenas, que teve atuação destacada na dio-
de difíceis, confinadas na terra que sabia lhes cese durante a década de 1990 e nos primei-
pertencer, mas cujo pretenso dono não lhes ros anos do século XXI. Nos municípios de
permitia sequer soltar os bodes: “Mas essa terra Tamboril e Monsenhor Tabosa, um conjunto
era nossa, e nós ainda vamos ser donos dessa de dezessete aldeias e quatro etnias ocupa um
terra. Um dia nós vamos ser. Meu pai falava território contínuo nas fraldas da Serra das
isso, né?” (MONTE, 2016, p. 39). Assim Matas (PALITOT, 2009b, p. 271-272).

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No mesmo estado do Ceará, mas na Serra e Kalabaça, em Poranga, na Serra (SILVA,
das Matas, estão concentrados cerca de 2.600 2013). Se a busca por raízes ganhou impulso
indígenas que compõem distintos núcleos pelo estimulo de uma pastoral, a pesquisa foi
familiares: os Gavião, pela família Rodrigues; empreendida pelos professores indígenas, que
os Potiguara, que abrangem as famílias Paixão, cada vez mais se tornam agentes mediadores e
Bento, Ugena e Da Luz; os Tubiba-Tapuia, produtores de cultura, observação válida para
que compreendem parte da família Bento, todo o Nordeste. Na condição de pesquisa-
que vive no local denominado Pau Ferro; e os dores, buscaram apoios acadêmicos diversos
Tabajara, que se compõem das alianças con- para a narração da história. Por exemplo, en-
jugais estabelecidas entre as famílias Canuto, trevistaram os mais velhos, considerados como
Ambrosio e Braz (LIMA, 2009, p. 233). Eles fontes privilegiadas de informações históricas,
costumam utilizar os relatos das suas peram- e criaram um circuito de pesquisas – como
bulações – termo local – para acionar as iden- consta no título da dissertação do etnógrafo
tidades étnicas: as famílias Bento e Da Luz Silva (2013). Especialmente em contextos
reivindicam que os antepassados chegaram à urbanos, enquanto a escola representa um
Serra das Matas após um massacre de índios, espaço indígena na procura também de au-
o massacre do Rio do Sangue ou Riacho do toconvencimento da indianidade, ela ainda
Sangue; já a família Rodrigues afirma que a concretiza, reifica e visibiliza a indianidade
causa para a perambulação foi uma migração, pela sua presença física e vínculo formal com
provavelmente forçada. A antepassada Maria a educação do estado.
Rodrigues migrou para o Piauí, onde teve
filhos com um índio gavião (Timbira oriental/ O sertão de Alagoas, um exemplo
jê), tendo retornado para o local de origem de redes no complexo pankararu
após a morte do cônjuge, cujo nome ela in-
corporou. Os descendentes de Maria Gavião No circuito dos povos do Ceará, todos que
são os atuais Gavião de Monsenhor Tabosa entraram nas redes do movimento indígena
(LIMA, 2009, p. 239-240). tomaram conhecimento do toré, ritual sempre
Dois fenômenos mais recentes devem representado nas assembleias (no Nordeste in-
ser destacados neste artigo: a mudança do teiro, diga-se). Alguns aprenderam, assim, um
paradigma da etnogênese pelo da autoidentifi- toré de apresentação em eventos em que par-
cação, em que o toré desempenha papel muito ticipam como índios, mas não apreenderam o
menos significativo, e as migrações de diversos ritual na acepção mais profundamente religio-
tipos, inclusive com a busca de reconhecimen- sa, o que, lembramos, difere do século passado.
to por parte dos chamados índios urbanos, Que o mesmo aconteça no Centro Cultural
que tentam consolidar sua presença também Tapeba, que também é um museu indígena,
nesse contexto. Crateús localiza-se próximo é significativo. Há que referir uma crescente
à Serra de Ipiaba, onde havia uma presença movimentação para que os próprios povos
indígena historicamente grande e que também criem seus museus indígenas, cujos efeitos são
deu origem a frações populacionais que mi- visibilidade e convencimento, para dentro e
graram (hoje, há um grupo no outro lado da para fora, e uma crescente patrimonialização
Serra, no Piauí, na cidade de Piripiri). O que é no Nordeste e no Brasil. Para um muito bom
novo, nesse caso, é que o autorreconhecimento exemplo no Ceará, cf. Gomes (2012).
passou por uma procura de origens que inspi- Por outro lado, o ritual religioso pode ser
rou pesquisa por parte dos próprios Tabajara necessário, em certos casos. Vejamos o que

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ocorre no Alto Sertão de Alagoas. Foi com (ANDRADE, U. M., 2004, p. 107-108). Os
o auxílio formal de uma rede regional de Kalankó e os Geripankó estreitaram relações,
comunicação interétnica que a denominada já como duas pontas de rama pankararu – os
etnogênese kalankó começou a se tornar ma- segundos atuando, solidária e similarmente
nifesta. Aliás, para toda a fase de etnogênese, ao que ocorreu com vários outros povos in-
observa-se o papel muito significativo do dígenas, como líderes dos primeiros no plano
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ritual. As visitas, em festas rituais – Menino do
tanto em produzir e articular essas redes Rancho, Corrida do Umbu, Praiá e Toré –, do
como em apoiar o movimento dos próprios pajé kalankó à aldeia geripankó do Ouricuri
índios, cada vez mais significativo (WARREN foram estratégicas para o aprendizado. Em
2001); vale notar que a Articulação dos Povos pouco tempo, os Kalankó já participavam
e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas do movimento indígena (ANDRADE, U.
Gerais e Espírito Santo (Apoinme) trata os M., 2004, p. 108).
povos estabelecidos na região leste como in- Atualmente, os Gerinpankó se distribuem
cidentes no Nordeste (OLIVEIRA, K. E., em várias comunidades próximas, a exemplo
2013). Para o desencadeamento da etnogê- da acima referida Ouricuri, que constitui o
nese kalankó, foi necessária a autorização das centro: Piancó, Campinhos, Figueiredo e
famílias do sítio Januária, o primeiro local Pedrinhas, entre outras. Essa divisão é ape-
onde se estabeleceram as famílias oriundas nas física, por questões territoriais, uma vez
da aldeia pankararu de Brejo dos Padres, que o povo indígena compartilha os mesmos
em Pernambuco, e alguns grupos indígenas cacique e pajé e prossegue reportando-se aos
de Alagoas, como os Geripankó e Karuazú. Pankararu, em Pernambuco (PEIXOTO;
Fundamental, todavia, foi o apoio diretamen- GUEIROS, 2016, p. 115).
te oriundo de Brejo dos Padres para que os Para Ugo Andrade (2004, p. 109), o
Kalankó pudessem utilizar um dos referen- desafio adicional que se apresentou aos
ciais históricos que compõem o longo etnôni- Kalankó foi a produção de uma identidade
mo pankararu (Pancarú Geritacó Cacalancó translocal, uma vez que não podiam ser mais
Umã Canabrava Tatuxi de Fulo), eloquente Pankararu e, ao mesmo tempo, pertenciam
indicador de uma unidade social heterogê- a esse universo sociocosmológico. A alter-
nea, resultante de desterritorializações, fu- nativa adotada passou pelas categorias de
sões e reclassificações operadas por agentes territorialidade desenvolvidas ao longo de
coloniais (ARRUTI, 1996; ANDRADE, U. quatro gerações e que, não confrontando a
M., 2004, p. 107), com ênfase nas medi- origem sociocosmológica pankararu nem os
das adotadas pela política fundiária após o vínculos com a aldeia de Brejo dos Padres,
Diretório pombalino e pela Lei de Terras, em permitiam o desenvolvimento de uma topo-
1850, que aceleraram o desmantelamento dos filia pelo depósito de fragmentos de memória
aldeamentos e o acirramento da política da em topônimos ou estabelecendo-se uma cum-
mistura (MURA, 2013, p. 42). plicidade com o lugar de onde eles tiravam
Assim, estavam preenchidos os requisitos o sustento durante os anos mais drásticos
para que os Kalankó se tornassem, de pleno de secas e privações (ANDRADE, U. M.,
direito, uma ponta de rama dos Pankararu e a 2004, p. 109). Certamente se construiu um
sua etnogênese um processo de enxamamento, domínio do lugar (CARVALHO, 1984), uma
isto é, de formação de uma nova identidade, relação profunda cognitiva e afetiva com uma
embora afiliada à aldeia de Brejo dos Padres terra que se torna território.

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Em suma, Geripankó e Kalankó fazem Cativeiro, territorialidade
parte do complexo pankararu, que abriga topológica, “saber andar”
uma série de povos cuja origem se reporta ao
Brejo dos Padres e que costuma compartilhar “Quem falava em medição? Nesse tempo
os mesmos rituais da aldeia de origem (além ninguém conhecia leis, não existia perturba-
dos cinco no Alto Sertão pernambucano, ção, ordem de branco – só ordem da velha
já se conhecia povos, como os Pankararé e mãe – ninguém falava em medição, em proibir
Kantaruré, na Bahia, do outro lado do rio nada, em rumo […]. Nossa terra não tinha
São Francisco). Uma riqueza cosmológica é limite, embargue; hoje tem.” (CARVALHO,
compartilhada, portanto, por todos os povos 2008, p. 206). A declaração é de um pajé
no Alto Sertão alagoano, que se encontram pataxó, mas provavelmente poderia ter sido
relativamente próximos do centro de irra- proferida por qualquer indígena compelido
diação pankararu – Geripankó, Kalankó, a cingir-se, por força do contato, a limites
Karuazu, Katokinn e Koiupanka – e cujas espaciais exíguos, situação que afeta, parti-
trajetórias de dispersão e reagrupamento, cularmente, as terras indígenas no Nordeste.
como “rama” e “ponta de rama”, se asseme- A constante eclosão de conflitos e a formação
lham. Os quatro povos K causaram certo de novos grupos locais no extremo-sul baiano
impacto pela forma incomum adotada para – das sete terras indígenas, a de Barra Velha
anunciar seu reaparecimento, por intermé- do Monte Pascoal foi objeto de reestudo, ele-
dio de uma aparição pública denominada vando os atuais 8.000 hectares para 44.000,
“festa do ressurgimento”, realizada, todavia, processo há algum tempo interrompido, e a
em espaços e tempos distintos, com o que de Comexatiba foi apenas identificada (28.000
preservaram, simultaneamente, a singulari- ha) – têm seguramente, como fator motivador,
dade étnica e seu protagonismo etnopolítico entre outros, o confinamento espacial. Muitos
(AMORIM, 2010). outros casos poderiam ser referidos.
No caso kalankó descrito por Herbetta Não é, pois, de surpreender que, ao
(2013), fica nítido que, para esse povo e seus mesmo tempo em que envidam esforços pelas
vizinhos, a questão da autonomia étnica passa demarcações, haja quem tema suas consequ-
pela via da autonomia ritual, que atinge um ências negativas. É o caso, seguramente não
momento de ultrapassagem do complexo ritual único, dos Mbyá (GARLET, 1997, p. 91;
pankararu: novos encantados serão acrescen- SÁEZ, 2015, p. 279), que, longe de exul-
tados aos da aldeia de origem. Afiguram-se, tarem com a perspectiva de ter suas terras
então, a encantados específicos do lugar, aque- demarcadas, temiam que essa demarcação
les que particularizam um povo autônomo. supusesse uma espécie de cativeiro, um meio
Desse modo, as novas unidades comparti- para mantê-los concentrados e controlados.
lham do mesmo complexo ritual, mas também Temor que, como enfatiza Sáez, está afinal
dele se diferenciam. Herbetta adere à ideia da justificado por sua história (ibidem). No
“baixa distintividade”, mas procura analisar Nordeste pós-estabelecimento das missões
letras e músicas do toré como indícios de uma ocorreu, fundamentalmente, o mesmo.
cosmologia que, contrariamente ao que ele Em Aldeia Velha, parte do território pata-
parece propor, apontam para uma riqueza xó cuja formação resultou de retomadas reali-
cosmológica própria ao complexo pankararu zadas nos anos 1990, “saber andar” é um ideal
que restará oculta se não houver etnografia e de sociabilidade equivalente a “saber viver”: ter
análise mais aprofundadas (REESINK, 2014). a casa como um “passa chuva”, ter “um primo

89
em cada aldeia” e nunca ficar sem abrigo é ampla “para sustentar ciclos de fissão e fu-
uma espécie de receituário para se atingir a sões (ibidem, p. 273). Esse é um ponto que
condição de índio pleno (PEDREIRA, 2013; julgamos importante e que desautoriza a re-
2017). Saber viver implica uma disposição lação espúria costumeiramente estabelecida
ontológica similar àquela vivenciada pelos entre o tamanho de um território indígena e
antepassados que se distribuíam em peque- a longevidade do contato, o que o exemplo
nos grupos para escambo, visitas aos parentes pataxó, entre prováveis muitos outros, traduz
dispersos e estabelecimento de novas alianças, eloquentemente.
o que os compelia a um movimento de dis- O alto grau de dispersão dos Maxakali
persão/concentração pendular, não só entre a é também notório. Seus agrupamentos são
mata e a área de praia, mas sobre a superfície fluidos, mutáveis e altamente suscetíveis às
topológica de perambulação. dissidências. Estas produzem um efeito em
Desse modo, o que tem sido entendido cadeia, redundando na recomposição das
como “a instabilidade yaminawa” – desloca- aldeias e na desarticulação dos chamados
mentos constantes das terras indígenas para bandos – unidade social de consenso e arti-
a capital do Acre, Rio Branco, e permanência culação social mais complexa –, que, então,
ali por longos períodos e em condição franca- se reúnem para identificar possíveis soluções.
mente desfavorável – está longe de constituir Colabora para a acentuação do fracionamento
uma idiossincrasia yaminawá. Não se trataria, a liderança entre esses grupos, igualmente
aqui, como em outros casos, de “infidelidade difusa, fluida e restrita à aldeia de cada líder
às raízes nativas”, mas justamente do contrário: (PARAÍSO, 1999). Índios maxakali são vis-
por serem fieis ao seu passado, os Yaminawá tos, frequentemente, em vários municípios da
“não o diferenciam desse presente em que, região fronteiriça entre Minas Gerais e Bahia,
de acordo com as melhores expectativas, eles onde foram aldeados.
deveriam se recluir nas suas terras parecen- É importante assinalar que, no sul da
do tanto mais índios quanto fosse possível” Bahia e áreas limítrofes de Minas Gerais e
(SÁEZ, 2015, p. 278). Espírito Santo, havia um complexo de povos
Tais perambulações dever-se-iam à prio- afiliados linguística e culturalmente dos quais,
ridade conferida às relações sociais, hoje, somente conhecemos os Maxakali e os
Pataxó. Parece haver certa similitude entre
que criam território em qualquer lugar, os padrões de circulação e fluidez dos atuais
sobre o território entendido como con- Pataxó e Maxakali e o padrão amazônico ya-
dição das relações. […] Antes que espa- minawá, entre possíveis outros. Por hipótese, a
cial, essa territorialidade é topológica: o ser melhor aferida, teríamos aqui um “regime
espaço que ela exige é aquele que permite de socialidade territorial de circulação” em vez
organizar as relações de modo que pro- de, digamos, um “regime de territorialidade
ximidades e distâncias sejam eficientes. sedentária”, característico de outros povos indí-
(ibidem, p. 272) genas? Indo um pouco mais longe, estaríamos
diante de uma disposição e de um padrão
Após quase duas décadas de fragmenta- de circulação de alta distintividade, estrutu-
ção/dispersão, Sáez supõe que os Yaminawá ralmente similares ao padrão pré-cabralino?
aparentam estabilidade no conjunto das suas Nessa mesma acepção, e com a precaução
aldeias, o que atribui ao fato de esse conjunto devida, aventamos a possibilidade de que ou-
já compor uma pluralidade suficientemente tras continuidades transformadas possam vir

90
a ser percebidas e registradas, desde que haja sendo antes necessário eliminar as barreiras
sempre o interesse de proceder a um controle interpostas à compreensão da vida ameríndia
comparativo entre as populações regionais, no Nordeste e ao longo e denso conhecimen-
para discernir melhor e aferir com mais rigor to americanista que, por razões históricas,
o grau de distintividade persistente, evitando, foi se consolidando a partir de etnografias
assim, conclusões mais apressadas. sobre a Amazônia. A alternativa que a ela se
João Pacheco de Oliveira (1996, p. 9) já apresenta é, então, integrar o conhecimento
há certo tempo observou não ser da natureza etnográfico sobre os índios estabelecidos no
das sociedades indígenas estabelecerem limites Nordeste aos debates americanistas no âmbito
territoriais precisos para o exercício de sua so- de múltiplas estratégias comparativas (ibidem,
ciabilidade. Por outro lado, a mobilidade espa- p. 67-68). É o que Viegas faz tanto em sua tese
cial não pode ser entendida como “uma espécie de doutorado quanto no artigo que compõe
de prova de que não há território” (GALLOIS, o dossiê Transformações das Territorialidades
2004, p. 39) ou, como afirma Rivière (1984, Ameríndias nas Terras Baixas (Brasil), cuja
p. 95 apud. GALLOIS, p. 39), “de que há organização ela compartilha com Marta
ausência de um senso de territorialidade”. Os Amoroso e José Glebson Vieira (2015).
casos descritos nesta seção atestam o contrário, A avaliação de Viegas requer alguns pou-
bem como asseveram que a necessidade de cos comentários. Preliminarmente, a autora
estabelecimento de limites territoriais precisos expressa que tem havido pouquíssima com-
(ou de um “território fechado”) advinda da paração e engajamento no diálogo entre a
situação colonial (OLIVEIRA, op. cit., p. 9) etnologia produzida no Nordeste e a etnologia
é, na prática, em larga medida contornada. mais geral das Terras Baixas. Podemos resumir
a questão mediante a simples constatação de
Uma inflexão amazônica: o que boa parte da etnologia orientada para o
Nordeste nas Terras Baixas Nordeste sempre partiu do pressuposto de
baixa distintividade cultural dos povos ali
A tese de doutorado de Susana de Matos estabelecidos. Assim, é oportuno lembrar
Viegas, defendida em 2003 na Universidade que, antes de 1970, houve uma fase em que
de Coimbra e publicada em livro em 2007 o conceito-chave de aculturação e a busca de
(Terra calada: os tupinambá na Mata Atlântica persistências da distintividade sociocultural
do sul da Bahia) conclui, no capítulo II, subi- pré-cabralina prevaleceram em uma paisa-
tem “Uma alternativa americanista para uma gem étnica tacitamente pensada e entendida
antropologia do Nordeste indígena”, que o como sendo de baixa distintividade. Quando
Nordeste é uma das áreas onde a antropologia os poucos primeiros antropólogos, a partir dos
das sociedades indígenas mais se ampliou e a anos 1930, começaram a visitar os poucos
etnologia menos se desenvolveu (VIEGAS, locais conhecidos por terem remanescentes
2007, p. 65). Tal defasagem, supõe a autora, de índios, o termo “remanescente” conotava,
dever-se-ia ao fato de a etnografia resultante corretamente, os resistentes e sobreviventes
das abordagens ali desenvolvidas se circunscre- dos massacres, físicos e simbólicos, aos quais
ver ou à etnogênese ou à análise da criatividade seus povos foram submetidos. Por outro lado,
cultural no gerar de tradições, o que significa hoje é consenso de que a visão da etnologia
que a questão por Viegas suscitada é de natu- das perdas subestimou a persistência da per-
reza teórica (ibidem, p. 66-67). Limitar-se a cepção indígena de ser um outro, diferen-
essa via interpretativa parece-lhe um equívoco, te dos regionais e rejeitado por parte desses

91
não índios. Desse modo, concentrar-se na fenômeno às quais se pode atribuir maior ou
etnogênese resultou em certa surpresa com menor relevo de acordo com o que sinalizam
o fenômeno e em uma posição etnopolítica o campo e a sensibilidade etnológica de cada
para apoiar esses povos em busca de reconhe- autor. Neste balanço, só trataremos mais deti-
cimento. Seguramente, há vários motivos para damente dos artigos de Viegas e Vieira, por se
que, por exemplo, todos os trabalhos citados reportarem ao Nordeste indígena, assim como
desenvolvidos no Museu Nacional partam já referimos, muito brevemente, ao de Sáez.
desse princípio e porque tenham sido, justa O estudo de Viegas descreve os processos
e explicitamente, considerados como objeto de apropriação espacial pelos índios Tupinambá
de reflexão por parte de Oliveira (1998), ao – a parcela estabelecida em Olivença, costa
indagar, inesperadamente, sobre a etnologia atlântica –, tradicionais habitantes da missão
dos índios misturados com sua baixa distintivi- de Nossa Senhora da Escada, no sul da Bahia,
dade. Já foi dito que, na expansão da produção visando contribuir para a compreensão his-
acadêmica dos últimos vinte anos, a partir do tórica de longo termo da posse da terra, do
Nordeste, muitas vezes os autores se limita- pertencimento territorial e de suas dinâmicas
ram a aplicar os conceitos da época anterior, históricas. A Vila de Olivença, antiga sede
pouco renovando em termos teóricos. Desse da missão jesuítica e entorno do aldeamento
modo, uma linha de estudos a partir de um jesuítico, se mantém permanentemente como
pressuposto de “alta distintividade” é uma das ponto de referência e de apropriação funda-
poucas inovações mais recentes. mental pelo cultivo das roças ou da criação
O dossiê citado constitui uma contri- de uma dinâmica cíclica de concentração e
buição relevante ao tema da territorialidade dispersão. Trata-se de uma territorialidade
e, por extensão, da identidade. A abordagem pontilhada por deslocamentos, por regimes
adotada – história transformacional ameríndia de posse associados a regimes de socialidade
– é avaliada pelos organizadores como sendo (VIEGAS, 2015, p. 95), a exemplo de outras
cada vez mais imprescindível, por articular, de tantas territorialidades registradas pela litera-
forma complexa, processos de imposição de tura etnológica mais ampla. A modalidade de
certas formas territoriais, regularmente iden- viver entre a sede e a mata teria instituído um
tificados com o que João Pacheco de Oliveira padrão de territorialidade passível de explicar
(1998) designou por processos de territoria- as atuais reivindicações de inclusão da vila
lização, e procedimentos de vivência dessas na demarcação da terra indígena. O que nos
imposições, denominados territorialidades interessa, vale ressaltar, é como a autora pensa
(VIEIRA; AMOROSO; VIEGAS, 2015, p. a longa duração e como a história teria resul-
12-13). Viegas retoma, de certa forma, a antiga tado em um padrão de ligação ao território
distinção suscitada por Viveiros de Castro tributário de uma especificidade indígena.
(1999, p. 115) entre o que ele designa como A proposta de José Glebson, por outro
uma perspectiva centrada no polo colonial, lado, é proceder à análise da organização social
“uma sociologia do Brasil indígena que toma os potiguara, partindo do parentesco e de sua
índios como parte do Brasil”, e uma perspec- articulação com os ideais de viver bem que
tiva centrada no polo nativo, “uma antropo- traduzem a possibilidade de viver nas aldeias
logia dos índios situados no Brasil” – que, do e entre parentes e demarcam a centralidade do
nosso ponto de vista, nunca se apresentaram parentesco no processo de socialidade exami-
de forma tão irremediavelmente polarizadas, nado (VIEIRA, 2015, p. 287). As histórias de
mas, no máximo, como faces de um mesmo deslocamentos – movimentos incessantes de

92
concentração e dispersão em busca de novos requer atenção. As únicas tentativas de longa
conhecimentos e pessoas mais distantes (pes- duração para não tupi, salvo engano nosso,
soas de outras aldeias, da cidade ou de outras concernem aos rituais e ao uso da jurema
localidades) – resultam em um padrão de habi- (NASCIMENTO, 1994; 2013; REESINK
tação e uma tendência à dispersão das famílias, 2002). Assim, nesse último caso, a conti-
ao passo que os movimentos deles decorrentes nuidade de longa duração transformada é
levam à produção de uma concepção nativa de garantida, ainda que seja necessário melhorar
mistura e de um modo peculiar de ocupação o nosso entendimento sobre o processo dessas
do espaço (ibidem, p. 297). Dessa manei- transformações.
ra, é possível constatar que os dois autores
compartilham, desde a escrita de suas teses, Considerações finais
da mesma proposta da longa duração e de
tomar a etnologia mais ampla como medida Vale observar que, em geral, na literatura
de comparação. Para nossos fins, duas obser- produzida no Nordeste tende a faltar apro-
vações se impõem. Por um lado, realmente fundamento nas comparações, de modo a
parece-nos faltar um diálogo etnográfico e permitir verificar em que medida os fenôme-
teórico com a Amazônia (e o Sul, mas essa nos são especificamente indígenas. Por exem-
parece ser uma região quase desconhecida em plo, as noções de família (parentela) e tronco
nossa literatura, apesar de certas semelhanças (metáforas de parentesco) estão presentes,
significativas, como a noção anterior da “baixa consistentemente, em estudos camponeses,
distintividade” (CARVALHO; REESINK, mas ainda estão a merecer aprofundamentos
2016). Por outro lado, o que uma leitura de- – até mesmo porque há muito se aponta para
tida revela dos dois artigos é que há tendência uma espécie de “idioma comum de filiação
de superestimar o aporte distintivo por não substantiva indígena” (REESINK, 1999b).
se reportarem suficientemente à literatura da Evidentemente, no que tange especialmente
suposta “baixa distintividade”, o que resulta aos rituais indígenas e à sua diacriticidade
em um não diálogo porque, de antemão, o – como cultura entre aspas ou como o que
diálogo é considerado pouco produtivo ou podemos chamar de “cultura diacrítica” –,
improdutivo. esses têm sido objeto de investigação desde
Ambos se debruçam, por exemplo, sobre os anos 1980 e continuam a ter presença
a questão do parentesco de modo muito in- garantida na atualidade. O que socialmente
teressante, com conceitos como regime de importa, por outro lado, é como os índios e
socialidade e viver bem – temas, de fato, os segmentos não indígenas definem o que é
não suficientemente estudados. Todavia, se a cultura diacrítica que vale como justificativa
há comparação com o contexto amazônico de indianidade para os primeiros.
e seus conceitos recentes, nem sempre, ou Porém, há possibilidades de pesquisar o
quase nunca, há comparação com a biblio- que poderíamos denominar de “cultura indí-
grafia do Nordeste e de segmentos sociais gena oculta”, querendo dizer com isso que há
vizinhos para verificar em que medida esses concepções e práticas que têm sua origem na
conceitos e práticas nativos são derivados de longa duração, mas que não foram incluídas
uma linha de continuidade pré-cabralina em na cultura diacrítica, e nem sempre são reco-
transformação e, portanto, específicos dos nhecidas pelos índios e/ou não índios como
povos de origem tupi pesquisados. Trata-se específicas. Contudo, nem sempre os antro-
de um aspecto que, do nosso ponto de vista, pólogos têm se dado conta de continuidades

93
transformadas mais ocultas, embora exemplos assinalamos alguns temas que surgiram no
existam: um mito com afinidade entre os Jê período, como museus e centros culturais
do Norte e os Kiriri (REESINK, 1999a) e, indígenas administrados pelos índios, a
revisitando a etnografia kiriri de Bandeira, produção de textos escritos por estes, suas
todo um levantamento amplo de concepções próprias associações e, em geral, um cres-
e práticas indígenas muito bem registradas, cente protagonismo deles sobre suas pró-
mas não postas tanto em evidência na totali- prias vidas. Deixamos de mencionar alguns
dade da monografia original (CARVALHO, temas, como (sem, em absoluto, pretender-
2005). Não é à toa, então, que Carvalho mos ser completos) uso da internet, turismo
tenha procedido à inversão do pressuposto (GRÜNEWALD, 2001; NEVES, 2012) e a
normal no Nordeste e proposto que a hipó- produção correlata de artesanato, educação e
tese de baixa distintividade prevalecente no escola (e o crescente nível escolar dos índios),
campo seja mais aparente do que pressupo- saúde (com questões fora do xamanismo),
mos. Realmente, muito embora seja bastante etnobiologia e etnoecologia (MODERCIN,
provável que, em certos casos etnográficos, 2010) e migrações – inclusive para cidades
a distintividade seja mesmo baixa, falta in- como São Paulo (ALBUQUERQUE, 2011).
vestigar melhor seu grau em muitas outras Porém, além das questões da distintividade e
ocorrências e em domínios em que não se da cosmologia, outras estão mal ou incomple-
tem pesquisado sob esse aspecto. Afinal, a tamente estudadas (por exemplo, o já men-
literatura comprova que mais de 450 anos de cionado parentesco e a campesinidade); a
genocídios e etnocídios, no âmbito do regime que chama mais atenção é a da economia
de relação assimétrica, resultaram em povos indígena – camponesa, mas crescentemente
indígenas que aprenderam a persistir em es- combinada a outras atividades e fortemente
feras socioculturais próprias, ocultando-as o articulada com a economia nacional, com
máximo possível aos olhos dos dominantes, uma ou outra exceção (CAMPOS, 2006).
em particular na esfera social compartilhada Tivemos também de passar ao largo de muitos
com os últimos e em que esses outros exercem povos e suas bibliografias específicas, algo que
seu domínio. O maior exemplo disso é o a produção acadêmica tende a acompanhar,
segredo dos Fulni-ô (HERNÁNDEZ DÍAZ, mas em relação à qual estamos defasados.
2015). E isso abrange, como é sobejamente Desse sobrevoo, com as devidas ressalvas,
sabido, os antropólogos. ficamos com a impressão de que, salvo pelas
Neste balanço, já previamente admitido lacunas etnográficas mais evidentes, a quan-
como parcial, só suscitamos algumas questões tidade nem sempre corresponde à qualidade.
e alguns eixos de discussão. Provavelmente A interlocução entre a etnologia pro-
sobrecarregaríamos demais o artigo se ali- duzida no Nordeste e aquela amazônica se
nhássemos todos os textos produzidos nos nos afigura possível, observadas as suas ca-
últimos vinte anos com conexão direta ou racterísticas e especificidades. Por um lado,
indireta aos temas aqui tratados. Tal fato o quiasmo categorial entre caboclo e índio
também se pode constatar pelas coletâne- deve ser superado por todos, o que parece
as de textos que apareceram nos últimos poder ser resolvido pela dupla via da filiação
anos (CARVALHO; CARVALHO, 2012; substantiva do parentesco – sempre – e de
CARVALHO; REESINK; CAVIGNAC, um ritual religioso indígena – nem sempre
2011; OLIVEIRA, J. P., 2011; PALITOT, – mediado pela herança substantiva do dom
2009; SCHRÖDER, 2011). Aqui e ali para atividade xamânica, um vetor sociomoral

94
em geral (REESINK, 2011). Os rituais em indígenas do Nordeste e os da Amazônia,
questão têm circuitos diferentes e o único hoje sabemos que não é assim e que distintas
que parece universal é o toré (com raríssi- modalidades amazônicas desse fenômeno
mas exceções, como o torém dos Tremembé, podem ser identificadas. A remoção de su-
cuja denominação parece remeter à mesma postos grandes divisores tenderá a reduzir
origem), o que mostra bastante variação em as distâncias etnográficas e teóricas, desde
importância e significado. Desse modo, entre que sejam envidados esforços para promover
a “alegoria do índio autêntico” e o “ritual comparação no âmbito de um mais amplo
sociocosmológico totalizador”, o toré pare- espectro, passível de se estender a todas
ce ser a cultura diacrítica compartilhada no as diferentes regiões no país. Trata-se, ao
Nordeste, invariante em sua denominação, mesmo tempo, de colaboração com vistas a
porém variante em sua expressão sociocul-
uma comunicação mais regular e simétrica,
tural cognoafetiva: o toré tem sido como
acerca da qual os próprios povos envolvidos
que um fluxo transcultural em toda a região,
têm dado mostras de franco interesse. Troca
que se atualiza em uma variante local com
de mensagens e visitas regulares revelam a
tendência forte a se transformar em variante
clara disposição dos povos indígenas para
etnocultural específica sem perder seu caráter
reconhecidamente transcultural. intensificar suas relações, ultrapassando dis-
Desse modo, apontamos para a pos- tinções linguísticas e culturais, enquanto
sibilidade de conferir certa especificidade os antropólogos, mais cautelosos, parecem
à etnologia das Terras Baixas no Nordeste medir cuidadosamente os passos que lhes
brasileiro ao mesmo tempo em que finali- serão requeridos e as vantagens e desvanta-
zamos com uma breve referência aos novos gens que decorrerão dessa eventual interlo-
registros que tendem a alterar o cenário cução. Da nossa parte, supomos ter, aqui,
etnográfico, requerendo reposicionamen- prestado uma pequena contribuição em
tos. Se, João Pacheco de Oliveira (1998, p. direção a um provável longo caminho a ser
53) afirmava que a etnogênese constituía o percorrido para uma “etnologia comparada
fator distintivo entre os povos e as culturas das transformações socioculturais” no Brasil.

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Resumo

Uma etnologia no Nordeste brasileiro: balanço parcial sobre territorialidades e identificações


Neste balanço parcial, discutimos o estado da arte da etnologia das terras baixas da América do Sul no Nordeste
Brasileiro, no que concerne aos conceitos de territorialidade e identidade. Após proceder à revisão do conceito de
etnicidade nos anos 1970 e sua recepção no Brasil, elaboramos uma síntese de alguns artigos pioneiros, dos anos
1980 e 1990, mas de relevância ainda atual, para dispormos de uma visão da produção do século passado. Para tratar
dos últimos vinte anos, foi inevitável a escolha de algumas áreas e temas, devido à volumosa produção antropológica
que não mais permite mencionar todos os autores e resenhar todos os tópicos. Por fim, baseados na questão do grau
de distintividade sociocultural no Nordeste e do significado transcultural do ritual Toré, lançamos uma proposta
provisória para caracterizar a unidade da etnologia produzida nesse contexto etnográfico.

Palavras-chave: Etnologia Sul-americana; Nordeste; Território; Identidade; Cultura Diacrítica.

Abstract

An ethnology of Northeast Brazil: a partial appraisal of territorialities and identifications


In this article we discuss the state of the art concerning the concepts of territory and identification in the Northeast of
Brazil as part of the Ethnology of Lowland South America. After reviewing the concept of ethnicity in the 70’s and its
impact in Brazil we summarize the some pioneering articles in the 80’s and 90’s. These articles still are relevant today
and permit us some idea of the state of the art of the past century. In order to discuss the burgeoning anthropological
literature of the current century it has become inevitable to choose certain authors, themes and we elaborate upon
some specific perspectives on the ‘degree of the sociocultural distinctivity’ of the Northeast and the ‘transcultural
significance’ of the Toré ritual. Concluding the discussion we present a provisional proposal to characterize the
ethnological unity produced in this ethnographic regional context.

Keywords: Ethnology of Lowland South America; Northeast; Territory; Identity; Diacritical Culture.

102
Resumé

Une ethnologie du Nordest du Brésil: un bilan partiel de territorialités et identifications


Dans ce bilan partiel, nous discutons de l’état de l’art de l’Ethnologie des Basses Terres de l’Amérique du Sud dans
le Nordeste Brésilien concernant les concepts de territorialité et d’identité. Après avoir passé en revue le concept
d’ethnicité dans les années 1970 et son accueil au Brésil, nous avons élaboré une synthèse de quelques articles
pionniers des années 1980 et 1990 toujours pertinents aujourd’hui, afin d’avoir une vision de la production du siècle
dernier. Pour traiter de ces vingt dernières années, le choix de certains endroits et thèmes fut inévitable en raison de la
production anthropologique massive qui ne permet plus de mentionner tous les auteurs et présenter tous les thèmes.
Enfin, en se basant sur la question du degré de différences socioculturelles dans le Nordeste et de la signification
interculturelle du rituel « Toré », nous avançons une proposition provisoire pour caractériser l’unité de l’ethnologie
produite dans ce contexte ethnographique.
Mots-clés: Ethnologie sud-américaine; Nordeste; Territoire; Identité; Culture Diacritique.

103
DOI: 10.17666/bib8705/2018

Uma incontornável diferença: parentesco nas


Terras Baixas da América do Sul (1996-2016)

Nicole Soares-Pinto1

Evidentemente, não é sempre fácil O objetivo deste artigo é realizar uma revi-
definir o que é um universo social. são bibliográfica de tais estudos sobre as TBAS,
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002a, p. 148) cobrindo o período de 1996 a 2016. Muito do
que se escreveu partiu de um ponto de vista
Introdução local e/ou regional e incidiu, em primeiro
lugar, sobre um campo de literatura interno
A dificuldade apontada na epígrafe é, às áreas etnográficas e/ou linguísticas (tupi,
digamos, elementar para a antropologia. jê, pano, Noroeste Amazônico, arawá etc.)2.
Formulava-se na ocasião o valor transcen- Contudo, foram propostas, desse ponto de
dental da afinidade enquanto codificadora da vista “localizado”, inflexões sobre a teoria geral
inimizade e a necessidade da abertura canibal do parentesco – seus conceitos e modelos–,
na legibilidade das sociedades amazônicas. Ali, e ao conceito de parentesco ele mesmo. As
a afinidade desempenharia o papel mediador contribuições mais significativas dos estudos
entre categorias tão importantes quanto hu- na TBAS para a teoria geral do parentesco
mano e divino, amigo e inimigo etc. (LÉVI- encontram-se na obra de Eduardo Viveiros
STRAUSS, 2000, p. 720). Essa característica de Castro (1996; 2002a; 2002b). Podemos
marca a história dos estudos de parentesco depreender três principais atos. O primeiro
na Terras Baixas da América do Sul (TBAS), movimento introduziu a história das relações
seja para generalizar o valor da afinidade, seja (o tempo) na teoria dos sistemas de aliança; o
para deslocá-lo ou circunscrevê-lo, desde pelo segundo descolou a categoria de afinidade do
menos os trabalhos de J. Overing, na década cálculo categorial, transformando-a na verda-
de 1970, permanecendo até os dias atuais, pe- deira categoria sociocosmológica amazônica
ríodo ao longo do qual se impuseram questões ao determinar as transformações estruturais
fundamentais sobre a natureza englobada ou do componente de distância enquanto “ter-
incluída do domínio do parentesco dentro de narização” e “concentrização” do campo do
campos sociais mais vastos (VIVEIROS DE parentesco ameríndio, antes que dual e dia-
CASTRO, 2002a, p. 148). metral; o terceiro propôs uma teoria geral da

1 Professora do Departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo, Pós-doutora em


Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Antropologia
Social pela Universidade de Brasília, Mestre em Antropologia Social e graduada em Comunicação Social pela
Universidade Federal do Paraná. E-mail: nicsoares@gmail.com
2 O artigo se apoia, sempre que necessário, em referências anteriores a 1996 ou mais recentes, de 2017 e 2018 (em
menor medida), e cobre principalmente, mas não exclusivamente, etnografias de povos em território brasileiro.
As paisagens etnográficas e/ou linguísticas aqui abordadas são aquelas cujo conjunto de etnografias julguei mais
expressivo do ponto de vista dos estudos de parentesco e organização social. A paisagem chaquenha é uma das
que mereceria maior atenção.

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 105-132. 105
socialidade amazônica a partir de seu conceito de seus mundos4. De modo que as análises
de parentesco, isto é, do fato de que, ali, a de parentesco, enraizadas como estão (esta-
afinidade é o dado do qual se parte e para o vam?) em um conjunto específico de técni-
qual constantemente se volta nas operações cas de pesquisa – especialmente o “método
de construção da consanguinidade. genealógico” –, incorporam um conceito de
Dentre os efeitos dessa sinfonia em três parentesco inevitavelmente discrepante dos
atos estão: a discussão sobre a pertinência conceitos vernaculares –, mas, ao que parece,
do modelo amazônico de Viveiros de Castro indispensável para que o etnógrafo possa
na descrição de paisagens que não seriam, a descrever para si mesmo e para outros sua
princípio, pertinentes a ele, como o Alto Rio experiência do parentesco indígena enquanto
Negro (ARN) e o Brasil Central; a contra- outra experiência que não a dele mesmo. Esse
posição desse modelo de afinidade potencial estatuto paradoxal faz com que o campo,
por outro de metafiliação (FAUSTO, 2008); e tanto nas TBAS como alhures (nesse alhures
um deslocamento paralelo, e mais geral, apre- que é a “teoria antropológica”), pareça estar
endido como a dissolução da caracterização sempre dividido entre uma faceta cool ou soft
tipológica das sociedades em favor de uma – da prática e do comportamento – e outra
inscrição transformacional, cuja possibilidade hard ou hot – da terminologia e da inscrições
se situa no investimento crescente na corpo- matemáticas –, para usar os termos de M.
ralidade ameríndia como objeto primeiro do Godelier, T. Trautmann e F. Tjon Sie Fat
parentesco e da organização social. (1998, p. 5).
Inflexões que parecem evidenciar que a As cores primárias de composição da
antropologia não pode (ainda?) prescindir paisagem nas TBAS foram propostas pelo
do parentesco como termo equívoco, que idioma da troca da escola aliancista fran-
mantenha como um de seus referentes o ob- cesa, segundo a qual “a função de um sis-
jeto tal como fabricado pela forma como o tema de parentesco é gerar possibilidades e
conhece e dá a conhecer o etnógrafo3. Isso impossibilidades de matrimônios” (LÉVI-
porque o parentesco não é um objeto ape- STRAUSS, 1969, p. 127). A descoberta de
nas “pesquisado”, mas vivido pelos sujeitos que, aqui, a linhagem e os grupos corporados
com os quais dialogamos e pelo antropólo- (em termos africanistas) não eram o princí-
go enquanto alguém que participa de uma pio organizador (KAPLAN, 1977), forçou os
“tradição cultural específica”. Esse último etnólogos a desenvolverem novos modelos.
aspecto não é, em si, exclusivo ao campo do Decisivo foi o ataque à ideia de “grupo” rea-
parentesco – podemos imaginar que todos, lizado por Kaplan (1977), em paralelo com
como os ocidentais, tem política ou religião Wagner (1974): inadequada não era apenas
–, mas não se pode contornar o fato de que a ideia de grupo de descendência, mas a
o parentesco mesmo é imaginado por antro- suposição de que o coletivo (ameríndio ou
pólogos não indígenas como sendo o “dado” da Papua Nova Guiné) tinha a forma do

3 Devo as ideias contidas nesse parágrafo a Marcela Coelho de Souza, a quem agradeço vivamente o diálogo
duradouro e imprescindível sobre as questões aqui apresentadas. Devo, a Marcela, João Vianna, Karen Shiratori
e aos pareceristas anônimos do BIB, comentários e críticas preciosas ao manuscrito.
4 Cuide-se que esta não é uma maneira de generalizar o contraste nós/eles, mas fazer com que, ao longo desse
contraste, os desdobramentos da antropologia como transformação de conceitos que têm diversas origens possam
ser experimentados (STRATHERN, 1988). Adiante, retorno a essa diferença.

106
grupo. Contribuiu para essa constatação essa equação seja análoga ao fato de que, na
o fato de que a continuidade social piaroa sociocosmologia yudjá, “para os porcos, os
não aparecia como inscrita no paradigma da humanos são seus afins potenciais” (LIMA,
descendência (da triangulação com um as- T. S., 1996, p. 38), dado que ambas as sen-
cendente), mas no da afinidade – sequência tenças destituem a relação de troca como
de laços matrimoniais (KAPLAN, 1975). sendo simples oposição entre Eu e Outro para
Os efeitos de interioridade social come- multiplicá-la ou complexificá-la em termos
çam a perder saliência quando Seeger, Da da disputa sobre a posição de humano ou
Matta e Viveiros de Castro (1977) instauram das perspectivas envolvidas. A intercambia-
a corporalidade ameríndia como idioma lidade entre aspectos corporais e espirituais,
da constituição sociológica. O parentesco culminando na erosão entre sociologia e cos-
como conjunto de construções culturais a mologia, é um dos seus efeitos.
partir de laços biológicos, coincidentes com Ao enriquecer etnograficamente a noção
a ideia de consanguinidade euro-americana, de pessoa, variáveis como sociocentramen-
começava a ruir (MELATTI, 1976) – e, to e egocentramento, dualismo e triadismo,
com ele, a pressuposição da distinção entre identidade e alteridade, interior e exterior,
o pessoal e o social como variável de toda consanguinidade e afinidade etc. passaram
sociedade (SEEGER, 1981). A caracteriza- por tratamento “perpectivístico”, que remonta,
ção da íntima relação entre estrutura social evidentemente, ao célebre “As organizações
e cosmologia permitida pelos estudos jê e do dualistas existem?” de Lévi-Strauss (1956). Ao
Brasil Central (CARNEIRO DA CUNHA, seu passo, a própria noção de perspectivismo
1978; MAYBURY-LEWIS, 1979) adian- ameríndio se enraíza no debate do parentesco
taram um movimento geral realizado na realizado nas TBAS, pois, no desconcertan-
TBAS: não só uma dissolução da fronteira te descolamento (progressivo) e reencontro
tipológica entre sociedades egocentradas e (constante) que a categoria de afinidade man-
sociedades sociocentradas, mas também uma tém em relação aos pressupostos anteriores da
espécie de abertura do campo do parentes- teoria aliancista, encontramos talvez a tônica
co para outros mais vastos, inicialmente dos últimos 20 anos.
tratado por meio do problema da relação De lá para cá, os estudos de parentesco
entre interior e exterior social (colocada nas TBAS procederam por meio de planos de
por Kaplan e Rivière), e a necessidade de clivagem e diferenciação que são, sugiro, con-
pensá-lo em termos não contratuais e não dição de sua continuidade. Certa percepção
substancialistas. geral de que seu objeto estaria ultrapassado
Esse último impulso, depois de lon- (out of fashion) convive com a constatação de
gos anos, nos levou à coextensividade da que as pesquisas da subdisciplina empurram
construção dos campos do parentesco e da os limites conceituais da própria antropolo-
humanidade ameríndias (VIVEIROS DE gia. Essa contínua incorporação da diferença,
CASTRO, 2002c). Não há de surpreender devolvendo ao objeto parte de sua estranheza,
que o perspectivismo ameríndio internas e não ocorre sem a impressão desconcertante de
intensivas, tal como o parentesco: “o sangue que o parentesco é, ao mesmo tempo, uma
dos humanos é o caium do jaguar exatamente “parte” específica – um domínio – e o “todo”
como minha irmã é a esposa do meu cunha- indígena, isto é, a abordagem das categorias
do, e pelas mesmas razões” (VIVEIROS DE básicas da socialidade indígena passa pelo
CASTRO, 2002c, p. 385). Suponho que conceito de parentesco.

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Dravidianato amazônico: troca matrimonial. Em suma, a descoberta de
primeira transformação que o cruzamento não dravidiano (isto é, não
dedutível do princípio MBCh/FZCh = H, W)
No início da década de 1990, perseguia-se podia embasar um sistema de alianças foi uma
a consideração de uma teoria geral para os das primeiras contribuições dos estudos da
sistemas de trocas restritas. Viveiros de Castro TBAS (TAYLOR, 1989).
(1990) sugeriu o regime de intercâmbio multi- De início colocados de fora dos proble-
bilateral como figura-chave na paisagem sul-a- mas do dravidianato por não apresentarem
mericana, na qual cada ente trocador estabelece estruturas elementares de parentesco, os jê
alianças com número indeterminado de parcei- encontraram nos trabalhos de Ladeira (1982)
ros. Na Amazônia, vigeria um sistema de troca e Lea (1995) uma nova conceitualização ou
patrilateral local e de fórmula restrita inclusiva “elementarização” do seu sistema de alianças
(VIVEIROS DE CASTRO; FAUSTO, 1993). por meio da conexão entre regime matrimo-
Nos sistemas de fórmula global, o casamento é nial, transmissão de nomes e amizade formal.
um operador macrossociológico; nas fórmulas Para a primeira, a troca de nomes e a troca
locais, as categorias de parentesco não admitem de cônjuges são distribuídas complementar-
definição outra que não a egocêntrica e não mente, de maneira exclusiva. A métrica da
é possível tomar uma modalidade de união nominação aproxima os parentes patrilaterais
matrimonial por um algoritmo de integração que se dispersam pela aldeia, bloqueando a
do socius, ao menos não em uma só geração. possibilidade de casamento; quando não efe-
Daí a solução com três ou quatro objetos que tuada, ela o permite (LADEIRA, 1982, p.
interdita o casamento com primos cruzados 52). A segunda autora chama atenção para a
de 1º grau, segundo “um modelo egocêntrico, operação da amizade formal mebengokre no
de repetição a cada três gerações, no qual cada cálculo de alianças: “em troca das mulheres
classe ‘vê’ as demais distribuídas igualmente à cedidas às outras patrilinhas, cada patrilinha
sua volta como afins: aliados de aliados serão recebe mulheres dos amigos formais de seus
também aliados” (VIVEIROS DE CASTRO, próprios receptores de mulheres: os amigos
1996, p. 16)5. Antes disso, a bibliografia em formais de meus wife-takers são meus wife-gi-
geral recorria na ideia de que a presença de vers” (LEA, 1995, p. 336). Formulações mais
termos específicos de afinidade nas terminolo- recentes, como as de Odair Giraldin (2000;
gias de tipo iroquês6 comumente encontrada 2011), demonstram que o casamento apinayé
na TBAS se explicaria pela ausência de regra seria de fato viabilizado pela amizade formal,
de casamento de primos cruzados ou, mais mas esta, por sua vez, derivaria do padrão de
especificamente, pela ausência de estrutura de nominação. Além disso, “a aliança entre duas

5 Segundo o autor, na Amazônia, afins de afins são também afins; na teoria dumontiana, afins de afins são
necessariamente consanguíneos. A lei estrutural amazônica desse modelo – donde ainda se pode falar em dravidianato –
seria “a presença de uma oposição não neutralizável em G+1: a oposição entre consangüíneos e afins resultante
da troca simétrica que teve lugar na geração imediatamente anterior a de Ego, e que comanda a transmissão de
afinidade nas gerações subsequentes” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 83).
6 No modelo dravidiano, filhos de primos cruzados de mesmo sexo são cruzados, e filhos de primos cruzados de
sexo oposto são paralelos. No modelo iroquês, dá-se o inverso. Para a história da determinação dessa diferença,
cf. Silva (2012a).

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pessoas pode ser extendida até a terceira ge- exprime um cruzamento de tipo ngawbe com
ração”7 (GIRALDIN, 2011, p. 420, tradução interferência oblíqua; Goulard e Barry (1998)
nossa). Existiriam duas bases para o cálculo consideraram o casamento tikuna como en-
de casabilidade: “uma pela consanguinidade, caixe entre a troca de irmãs e um “casamento
através da interdição de casamento por até oblíquo composto”.
três gerações; outra pelos cálculos das rela- Em termos da etnografia tupi, Fausto
ções através da amizade formal” (GIRALDIN, (2001) chamou a atenção para a instabilidade
2000, p. 195). das classificações para os primos cruzados, pois
Para o caso alto-xinguano, Coelho de as terminologias tupi-guarani não possuem
Souza (1995, p. 187) aventou ser possível termos exclusivos para essa categoria de pa-
o tipo de cruzamento iroquês, em vista dos rentes9. Sua analítica refere-se à interferência
casos de casamentos “intertribais” que arti- entre uma estrutura horizontal dravidiana e
culam ampla rede de relações e que, “embora uma estrutura oblíqua avuncular, determi-
exógamos do ponto de vista local, são endóga- nando o avunculato como transformação da
mos do ponto de vista das parentelas amplas”, fórmula patrilateral de casamento de primos
possibilidade posteriormente confirmada por (FAUSTO, 2001). Interpretações importantes
Guerreiro Junior (2008) para o caso kalapalo. vêm a favor da primazia lógica do casamento
A incorporação do princípio de lateralidade avuncular sobre o esquema dravidiano – Dal
para o caso waimiri-atroari (como expressão Poz Neto (2004) para os Tupi Mondé – e
de “distância social”), bem como a alternância de um modelo interpretativo da organização
sistemática de cálculos de parentesco agnático/ dualista kagwahiva como imbricação entre um
cognático, reivindicava a pertinência de uma sistema de parentesco dravidiano e um sistema
matriz terminológica concêntrica (SILVA, M. de metades exogâmicas (PEGGION, 2011).
F., 1995, p. 36). Sistemas complexos – a não A não coincidência entre distinção termino-
incidência de casamentos que façam coincidir lógica para primos cruzados e regra prescritiva
genealogia e aliança – foram encontrados entre de casamento, bem como a “subordinação
os wari’ (VILAÇA, 1995) e os yaminawa, do conhecimento genealógico aos fatores de
entre os quais há proibição de casamento residência e intensidade de interação social”
até o terceiro ou quarto graus de parentesco (PEREIRA, 1999, passim) estaria presente
(CALAVIA SÁEZ, 2006, p. 106). entre os kaiowá. Essa mesma subordinação,
Questões de determinação do tipo de por sua vez, marca a terminologia dravidiana
cruzamento envolvido num sistema de alian- paumari, em que um sobrinho paralelo será
ça foram levadas adiante em outros lugares: chamado por filho somente se residir conti-
Marcio Ferreira da Silva (2012b), com os guamente – caso contrário, ego chamará seu
enawenê-nawê, observa um tipo de casamen- sobrinho paralelo como chama seus cruzados
to iroquês8, sem a repetição dessa aliança na (BONILLA, 2007, p. 317).
geração seguinte; Soares-Pinto (2016) obser- Para sistemas de alianças não detectáveis
vou que o sistema de casamento djeoromitxi de maneira “artesanal”, um grupo pungente

7 No original: “the alliance between two people can be extended to a third generation”.
8 Para os tipos de cruzamento dravidiano, iroquês, ngwabe e kuma e suas diferenças, ver Viveiros de Castro (1996,
p. 62).
9 Para a revisão da bibliografia tupi anterior, cf. Laraia (1987).

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de pesquisadores (DAL POZ NETO; SILVA, potenciais, até aqueles que não são conhecidos
2009; HOUSEMAN; WHITE, 1998) formu- – Viveiros de Castro (2002a) coloca as pedras
laram recentemente ferramentas computacio- fundamentais do regime ternário amazônico e da
nais, utilizadas posteriormente em trabalhos circunscrição da lógica extensiva do parentesco
etnográficos (BUENO, 2008; FLORIDO, pela exterioridade inimiga.
2013; MAIZZA, 2012; MATAREZIO, 2015; A superposição do gradiente próximo/
SILVA, M. F., 2017). Propõe-se modelizar as distante ao contraste binário consanguíneo/
redes genealógicas, as quais demonstram que afim, isto é, a interferência estrutural do com-
a frequência de casamentos por vezes contraria ponente de distância na grade dual dravidiana,
as acepções ideais nativas, bem como indica conduz à ternarização do campo social, concei-
a pertinência do casamento com não paren- tuação de grande influência no modo como os
tes. Em consideração a esse fato, M. F. Silva etnólogos passaram a descrever a morfologia
(2017, p. 368) propõe a realização de uma social ameríndia. Nos sistemas amazônicos, a
“genealogia do observado”, a partir do que o oposição entre consanguinidade e afinidade
autor denomina ironicamente de “doutrina funcionaria “segundo um regime concêntrico,
da universalidade da proibição do incesto”, potencialmente ternário, e graduável” (ibidem,
que determina o caráter fundacional da troca p. 134). A pragmática social cessa de ser inter-
e dos circuitos matrimoniais da definição de pretada em termos de subordinação simples
um coletivo (ibidem, p. 374). à sintaxe terminológica (constatação que se
Da década de 1990 até hoje, os trabalhos baseia, entre outros, na presença de termos
nas TBAS que tiveram como objeto o sistema separados para afinidade e no uso generalizado
matrimonial atestaram a recorrência de cálculos da tecnonímia) e passa a ser lida em termos da
de cruzamento outros que não o dravidiano, a sobredeterminação efetuada pelo gradiente de
não pertinência do sociocentrismo e a não inci- cognação, infletindo no cálculo de classes na
dência da circularidade categorial. Tais estudos terminologia e escalonando o campo social
lograram tanto testar a fecundidade e renova- de maneira concêntrica e hierárquica: “No
ção da teoria da aliança quanto aprofundar interior da esfera dos cognatos, a afinidade é
a abertura analítica (já presente no Harvard dominada pela consanguinidade: um afim é
Central-Brazil Project – HCBP) dos estudos de uma espécie de consanguíneo […]. Na extre-
parentesco para outros campos da vida social. midade distal deste gradiente, a consanguini-
dade é dominada pela afinidade (VIVEIROS
Passagens entre o dois e o três DE CASTRO, 2002a, p. 123-124).
(o um é sempre muita coisa) A distinção importante é entre troca e
aliança: a afinidade potencial recolhe em si
Na determinação das fórmulas locais de os valores do conceito de troca. “A afinidade
aliança para as TBAS, foi o conceito de parentes- potencial é a primeira determinação sociológica
co mesmo que acabou tensionado: “os limites do da alteridade” (ibidem, p. 161). Daí a categoria
parentesco se traduzem numa limitação do foco dos “terceiros incluídos”, como atualizações
sobre o parentesco no dar conta das propriedades singulares da afinidade potencial. Os terceiros
globais dos sistemas da região” (VIVEIROS DE incluídos seriam figuras centrais na socialidade
CASTRO, 2002a, p.106). Inspirado na descri- ameríndia, pois escapam ao dualismo categórico
ção de Bruce Albert (1985) sobre a classificação e terminológico de afinidade/consanguinidade:
concêntrica dos grupos yanomami – dos corre- incluem-se normalmente a parentela distante, os
sidentes (amigos e aliados), inimigos e inimigos afins de afins e os não corresidentes. Isso porque

110
a predação – como preensão de perspectivas, dado e construído. Esse conjunto multidual era
ou seja, predação da posição ontológica do formulado, por um lado, pelo paradigma da
Outro – seria o protótipo da relação amazônica, relação de parentesco como “relações de consubs-
e, assim, circunscreveria e determinaria a eco- tancialidade entre membros da mesma família
nomia política do casamento, que se torna sua nuclear […], [na qual] o parentesco é dado” e,
face local. É porque a afinidade se descola do por outro lado, por “um elenco de transações
cálculo matrimonial que ela pode ser alçada a cerimoniais que permite construí-lo” (COELHO
uma verdadeira categoria. Numa passagem que DE SOUZA, 2004, p. 42).
ficou conhecida, o autor afirma que “o verda- Coelho de Souza (2002) aproximou todo
deiro afim é aquele com quem não se trocam o material jê das formulações amazônicas de
mulheres, mas outras coisas: mortos e ritos, Viveiros de Castro, mostrando que não se tra-
nomes e bens, almas e cabeças” (VIVEIROS tavam de duas sociomorfologias naturalmente
DE CASTRO, 2002a, p. 157). contrastantes e antitéticas, mas de um grupo
Distinções clássicas da etnologia das TBAS de transformações em sentido lévi-straussiano,
foram impactadas pelo concentrismo amazôni- reelaborando as teorizações sobre as conexões
co. Lembremos o importante contraste entre entre sangue, incesto e sistemas terminológi-
dois conjuntos de sociedade das TBAS até então cos, centrando suas análises na pertinência
alimentado: as fluidas ou amorfas (tupi, carib e da noção de pessoa e na coextensividade do
piaroa das Guianas), um complexo definido por campo do parentesco e da humanidade (mais
endogamia, ambilocalidade, cognação e termi- adiante). Ewart (2000) sugeriu que o dualismo
nologia dravidiana, que exibiam simples redes diametral panará era concêntrico, ressaltando a
egocentradas, reduzidas às parentelas bilaterais, dualidade constitutiva do Outro e invertendo
com importante recorrência da uxorilocalida- o fundamento clássico centro/periferia, mos-
de e do avunculato; e as de estrutura social trando como o centro era o lugar da história e
complexa (jê, bororo e tukano do Noroeste da mudança, enquanto a periferia era o local
Amazônico), caracterizadas por divisões tidas da permanência e da estabilidade de forças.
por sociocentradas – metades, clãs ou linhagens, Lea (2001) se valeu do conceito de “Casa”
classes de idades – e, no caso dos jê, sistemas lévi-straussiano, fundado na aliança e no pa-
terminológicos sem correlatos matrimoniais rentesco cognático, realizando uma espécie
evidentes e com feições crow-omaha. de torção conceitual: a propriedade dos bens
Num dos lados desse contraste, as torções simbólicos agentivos da sociedade mebêngôkre
de três autoras, a saber, Marcela Coelho de Souza (nomes e nekréts) deve ser atribuída às Casas
(2002), Elizabeth J. Ewart (2000) e Vanessa da periferia da aldeia, definidas por ela como
Lea (2001), lograram reverter certa perspectiva pessoas jurídicas ou unidades corporadas e
dualista rígida de alguns autores anteriores10, perpétuas de descendência matrilinear, cujo
que conceitualizavam analogicamente os dualis- conjunto compreenderia a sociedade kaiapó.
mos centro-brasileiros de acordo com algumas A partir da década de 1990, impôs-se a etno-
oposições, como doméstico feminino e público grafia pano como dobradiça entre povos jê e tupi.
masculino (político-cerimonial), parentesco e Os povos pano encarnariam a passagem entre
não parentesco, próximo e distante, biológico o triadismo concêntrico da Amazônia e o dua-
e social, corpos e nomes, substância e relação, lismo diametral jê, apresentando um dualismo

10 A saber, principalmente, Turner (1979; 1984) e teóricos do Harvard Central-Brazil Project (HBCP).

111
diametral com valores concêntricos (VIVEIROS ordens alternativas de uma mesma sociedade,
DE CASTRO, 2002a, p. 146). Note-se, dessa segundo a vantagem do regime concêntrico
forma, que o vernáculo nawa, “o estrangeiro”, “é sobre o diametral (ibidem, p. 106), do egocen-
sempre o nome de uma das metades no sistema trismo sobre o sociocentrismo e da “atividade
dualista pano” (CALAVIA SÁEZ, 2006, p. 85). do olhar” sobre a “atividade do fazer-se ver”
A imbricação de onomástica e sistema de pa- – modalidades do perspectivismo, a primeira
rentesco foi um dos pontos mais explorados baseada no deslocamento de pontos de vista
na etnografia pano: a questão da conservação produzido pelo efeito alterizador do colírio
do estoque de nomes pessoais liga os pano aos yaminawa ou da ayahuasca, e a segunda ba-
jê, mas sua estrutura dravidiana os conecta ao seada na ornamentação corporal (troca de
panorama amazônico. O padrão de casamento pele) típica do Brasil Central (ibidem, p. 336).
de primos de estrutura dravidiana de referência Entre as elaborações referentes a conjun-
predomina, mas liga-se a um esquema kariera de tos linguísticos, destacam-se ainda aquelas
transmissão de nomes entre gerações alternas, o sobre a organização social arawá (APARICIO,
qual consolida-se em seções de feição australiana, 2015; BONILLA, 2007; FLORIDO, 2011;
manifestada pela terminologia vocativa11. Além 2013; LORRAIN, 1994; MAIZZA, 2012;
disso, a onomástica pano é sociocêntrica e a jê é POLLOCK, 1985), no que ficou conheci-
egocêntrica: os nomes pessoais pano são “resu- do como padrão “madiha” ou “deni”: “cada
mos” (ERIKSON, 1993, p. 327) das relações grupo local Aruá vivendo em uma mesma casa
de parentesco e vinculam pessoas às divisões comunitária reunia parentes pertencentes a
segmentares. Com exceção do cálculo katukina, um mesmo grupo localizado idealmente en-
egocentrado e cruzado de transmissão de nomes, dógamo, associado a um nome de animal ou
o que faz com que os termos de parentesco não vegetal” (BONILLA, 2005, p. 16). Pequenos e
sejam recíprocos entre as gerações alternadas móveis subgrupos nomeados que antigamente
(LIMA, E. C., 1997, p. 12). guerreavam entre si, cuja denominação não se
O paradigma sociocentrado pano também refere “a ancestrais comuns ou a uma origem
foi desfeito por Calavia Sáez ao explorar o o mítica comum, mas sim a um ou vários locais
parentesco yaminawa de um ponto de vista conhecidos e situados geograficamente” (ibi-
mais próximo ao paradigma canibal amazô- dem, p. 16). Os paumari projetam em todo
nico, demonstrando a relativa rentabilidade o universo as diferenciações de tipo madiha:
de suas divisões segmentares (os kaios seriam “distinguindo assim ‘nações’ de humanos po-
pertinentes somente do ponto de vista dos tenciais”. Prova disso são os casamentos entre
chefes). Entre os yaminawa convive uma grade paumari e pamoarihi de animais, que “expõem
dravidiana de referência e uma terminologia explicitamente as normas sociais ideais refe-
vocativa “ultrakariera”, quando “o enuncia- rentes ao casamento (residência, procriação
dor desdobra a grade a partir de sua posição” e relações com afins) e que coincidem com
(CALAVIA SÁEZ, 2006, p. 96-97), produ- características descritas dos subgrupos localiza-
zindo mais diferença nas posições nas quais a dos e nomeados dos outros Aruá” (BONILLA,
grade dravidiana tende a apagá-la (nas gerações 2005, p. 20-21). Por sua vez, os subgrupos
−1 e −2), congruente com o viés egocentra- katukina-djapá, “aglomerados multialdeãos
do de seu sistema de nominação. Revelam-se articulados a uma maloca” (COSTA, 2016, p.

11 Cf. Kensinger (1991).

112
103), são congruentes com o padrão madiha, a interconectividade entre diversas aldeias e
mas suas descrições são acopladas às capa- diversos povos (GALLOIS, 2005). Perseguiu-
cidades dos -warah (termo que significa, ao se “a extensão e qualidade das relações entre
mesmo tempo, “chefe”, “corpo”, “dono”) de pessoas e grupos para além do espaço local e
fornecer imagens para as formas societais em visível”, priorizando a profundidade temporal
diversas escalas e para diversas pessoas (xamãs, e a incorporação de relações “não apenas entre
mulheres e chefes) que visam estabilizar um humanos” (RIVIÈRE et al., 2007, p. 258)13. No
coletivo (COSTA, 2007, p. 46-47). Vamos registro do parentesco, destaca-se a exogamia
agora a outros impactos da noção de afinidade tyrió de subgrupos patriorientados – itüpü,
potencial no campo sociológico nas TBAS. “continuações de gente” (RIVIÈRE et al., 2007,
p. 261; GRUPIONI, 2005).
Conjuntos (ou o sistema No caso do Alto Xingu, a descrição é an-
como transformação) corada em classes de idade, grupos de trabalho
e chefaturas aldeãs, insistindo, em elaborações
A sistematização até aqui adotada, em que mais recentes, numa “imagem da chefia que a
o tratamento da afinidade e da consanguini- situa em relação a outras formas xinguanas e
dade nas TBAS foi disposto segundo a filiação ameríndias de produção de coletivos, humanos
linguística (tupi, jê, pano e arawá), concorre e não-humanos” (GUERREIRO JUNIOR,
paralelamente com divisões/agrupamentos por 2015, p. 489). No ARN, são destacadas prer-
região, com destaque para o Brasil Central rogativas cerimoniais distribuídas de acordo
(principalmente Alto Xingu), ARN e, mais com a ordem hierárquica de nascimento mítico
lateralmente, as região das Guianas12. num conjunto de siblings, sibs e fratrias. É a esse
Interconexão é a tônica das etnografias das conjunto que me volto agora.
Guianas, do ARN e do Alto Xingu, paisagens No ARN14, trabalhos clássicos de Irving
caracterizadas por intercasamentos, comércio e Goldman, Jean Jackson, Janet Chernela,
vida ritual intensa. Foi essa ideia de conexão que Stephen Hugh-Jones e Christine Hugh-Jones
incidiu na redescrição da paisagem guianense, articulavam terminologia e casamento dravi-
inicialmente caracterizada como conjunto de diano com classificação sociopolítica de grupos
mônadas sociais – um ideal de grupo endogâ- linguísticos exogâmicos, patrilineares e virilo-
mico sociologicamente homogêneo (RIVIÈRE, cais. Hierarquia e segmentaridade avalizariam
1969; 1984). Por meio da crítica de etnógrafos noções reiteradas de ordem e interdependência
da região, a imagem das mônadas foi substituída entre os grupos. Uma sequência de etnografias
pela imagem da “rede de relações”, sublinhando colocou essa caracterização em dúvidas, para as

12 Caracterizações de “conjunto” para povos de língua arawak são encontradas em termos de hierarquia, chefia hereditária
e estratificação social (COMBÈS; VILLAR, 2007; HILL; SANTOS-GRANERO, 2002), mas trabalhos de outros
autores destoam no entendimento de que um conjunto de índices perfariam unidades sociocosmológicas (GOW,
2001; MATOS, M. A., 2018). Ademais, os traços sociocentrados arawak (com existência passada ou presente, a
depender do caso) não parecem recobrir um elemento de concentricidade, ficando os afins em “um campo que
circunda os parentes não casáveis” (FLORIDO, 2008, p. 166).
13 A publicação é um debate em torno do livro Rede de relações das Guianas, em que também se encontra a resposta
de Rivière e a réplica dos demais autores.
14 Onde convivem pessoas dos grupos tariano, warekena, baniwa e coripaco (língua arawak), baré (língua nheengatu),
tukano, desana, pira-tapuia, arapasso, tuyuka, wanano, makuna, cubeu (língua tukano oriental), hupda, hup,
yuhup e dâw (língua maku).

113
quais a formulação das unidades sociais tukano não são consanguinizados terminologicamente”
no Uaupés como “Casas” (HUGH-JONES, (ibidem, p. 245). Os “filhos de mãe” encar-
1993) manteve-se como dobradiça imprescin- nariam a possibilidade de reclassificação do
dível. O trabalho de Andrello (2006) dispõe campo social, quando as relações agnáticas estão
mulheres, animais, não indígenas e cunhados entremeadas pela coafinidade (ibidem, p. 253).
numa linha de afinidade, da potencial à efe- Fato é que, nos trabalhos de Cabalzar, os coafins
tiva – cf. Viveiros de Castro (2002b) –, em seriam um limite inferior da consanguinidade,
oposição à consanguinidade que se associa aos e não da afinidade.
demiurgos ancestrais. Aliado a valores de an- A questão da descendência e da relação
cestralidade e hierarquia, o sistema funcionaria “política” com “filhos de mãe” parece recente-
a partir da “continuidade diacrônica entre mente ceder espaço ao problema da afinidade
vivos e mortos” e “descontinuidade sincrônica potencial e da abertura ao Outro, seja pela
entre os vivos” (ibidem, p. 431), diferença detecção de um componente afim nas rela-
apresentada ao paradigma amazônico e jê. Para ções de germanidade tukano (ANDRELLO,
Cayón (2013), entre os makuna, a regra de 2016), seja pela reclassificação baniwa em
residência virilocal e a definição de unidades coafins (e posteriormente como afins), quando
sociais exogâmicas são categorias debatíveis – e, tais “consanguíneos” se tornam corresidentes
ainda que o autor reconheça a importância da (VIANNA, 2017). Para tal, a não contiguidade
hierarquização e da especialização ritual dos espacial entre sibs de uma mesma fratria seria
clãs (ibidem, p. 141), seu ponto é sobretudo um aspecto essencial das relações relativamente
determiná-los como unidades de gestão cos- hierárquicas de parentesco baniwa (ibidem).
mopolíticas do mundo. Vianna terminou por aproximar a paisagem
A redescrição da organização social dos rionegrina das elaborações amazônicas, de-
grupos alto-rionegrinos em termos da impor- monstrando que tanto o parentesco quanto o
tância das relações de afinidade (JOURNET, mito do jurupari baniwa estão numa dinâmica
1988) vem também aliada ao ternarismo em- de figura-fundo, segundo um “dualismo em
butido na classificação dos “filhos de mãe” – perpétuo desequilíbrio” (LÉVI-STRAUSS,
denominação primeiramente utilizada por C. 1991), remetendo antes à afinidade potencial
Hugh-Jones para primos paralelos matrilaterais que à ancestralidade.
em sua categorização do funcionamento da dis- Afinidade potencial e abertura ao Outro são
tância social desana. Os “filhos de mãe” passam os termos da “descentralização” recentemente
a ser pensados como fator de desestabilização da operada sobre o sistema alto-rionegrino. Não
grade terminológica dual dravidiana (ROCHA, obstante, a etnografia hupda aparece mais cons-
2007), dado que esses são consanguíneos do tantemente como uma anomalia, espécie de
ponto de vista categorial, mas pertencentes a clãs “exterior do interior”. Seus etnógrafos destacam
diferentes de ego e, portanto, “potencialmente” a mobilidade intensa, a inexistência da regra
afins. Nessa esteira, Cabalzar (2008) imprime de exogamia linguística, a não pertinência da
simetria às relações de afinidade e consangui- hierarquia clanica, o cognatismo pungente, a
nidade. Sua proposta de “nexo regional” inclui redução e a frequente fissão dos agrupamentos
relações de contiguidade espacial entre grupos hupda quando comparados a outros povos da
patrilineares tuyuka, denunciando o não en- região (LOLLI, 2010; MARQUES, 2009, 2015;
quadramento dos dados tuyuka nos modelos POZZOBON, 2011). Suspeito que a diferença
amazônicos: “os consanguíneos distantes não que esses coletivos encarnam, se articulada com
são afinizados, assim como os afins próximos as etnografias tukano e baniwa recentemente

114
produzidas, vá potencializar a descentralização maestria opera, à maneira da afinidade si-
da noção mesma de sistema regional no ARN. métrica, como um ‘operador cosmológico’”
(FAUSTO, 2008, p. 348).
*** É, pois, interessante saber se o esquema
da predação generalizada (meta-afinidade), é
Formulações refratárias à generalização comparável à predação familiarizante (meta-
do modelo amazônico se baseiam, de um filiação), de modo que possam ser pensadas
lado, na identificação de “limites” locais como “duas configurações relacionais […]
para a teoria geral da afinidade potencial, difundidas entre as sociedades amazônicas”
e, de outro, na elaboração de um modelo ou como “princípios de orientações gerais
alternativo que aponta a filiação (ou consan- que se articulam com relações de parentesco
guinidade assimétrica) como um idioma de de forma variada e complexa”, como afirma
base alternativo para se pensar as sociedades Costa (2016, p. 111-112). Nesse ponto, tenho
indígenas (FAUSTO, 2008). No primeiro algumas questões. Entendo que é preciso, antes
caso, Andrello, Guerreiro e Hugh-Jones de tudo, caracterizar a diferença entre os “dois
(2015) propõem a existência de temporali- princípios” ou “configurações relacionais”, e
dades específicas (descendência nas chefaturas desconfio que tal diferença não resida na sua
alto-xinguanas e idade relativa num conjunto difusão ou capacidade de articulação social –
de germanos no alto rio Negro) para advogar embocadura que parece pressupor uma série
pela manutenção do conceito de ancestrali- de diferenças internamente constitutivas de
dade e hierarquia nas duas regiões, fato que cada “tipo” de sociedade15. Em vez disso, a
não obstrui uma chave espacial articuladora diferença entre eles me parece melhor residir
de noções de tempo e genealogia (ibidem, p. na interpretação do que seja uma interpretação.
701) – mas que, por isso, na sua argumenta- A categoria de base do modelo de predação
ção, ergueria limites à teoria da afinidade po- generalizada, a afinidade potencial, não é toma-
tencial. No segundo caso, teríamos a filiação da como uma configuração relacional específica.
adotiva como relação modelar da maestria/ Pelo que entendo, ela é a expressão conceitual
domínio (FAUSTO, 2008, p. 333), identi- de uma matriz relacional que gera atualizações,
ficada como vetor que atravessaria diferentes dentre as quais estão tanto as relações de filia-
domínios nas sociocosmologias indígenas. ção (assimétrica) quanto aquelas de afinidade
Fausto argumenta pela importância da relação (simétrica), ou vice-versa. Essa matriz não se
assimétrica entre dono-mestre (que implica, confunde com as relações de predação, embora
ao mesmo tempo, controle e cuidado) e xe- guarde com elas conexões simbólicas impor-
rimbabo, que seria “tão central à compreensão tantes. É preciso antes entender a predação
das sociocosmologias indígenas quanto a de como relacionalidade (Relação com maiúscula)
afinidade” (ibidem, p. 330): “a relação de ou preensão de perspectivas. Não é por acaso

15 Tomo aqui uma rota inspirada na tese de Coelho de Souza, quando esta diz: “[A]s diferentes formas sociais
observadas na Amazônia indígena não correspondem a tipos distintos de sociedade que se poderia remeter a
outros tantos modelos nativos, mas a atualizações historicamente particulares, não exatamente de um mesmo
modelo, mas de uma ‘mesma’ relação – a de afinidade como esquema de uma diferença cuja atualização responde,
por um lado, pela produção de coletivos capazes de portar identidades singulares e, de outro lado, pela reposição
continuada das diferenças (‘internas’ e ‘externas’) que constituem a condição de todo o processo” (COELHO
DE SOUZA, 2002, p. 212).

115
que o idioma do “modelo” é abandonado por Fausto, quando diz: “a adoção é, por assim dizer,
Viveiros de Castro no mesmo movimento de uma filiação incompleta. Ela não produz uma
abandono de uma noção do englobamento identidade plena, senão uma relação ambivalente,
hierárquico do contrário: a operação de en- em que o substrato da inimizade é obviado, mas
globamento do contrário é o próprio modo não inteiramente neutralizado”. Com efeito,
de enunciação de um modelo. O esquema de talvez seja o que se entende por “substrato” e
predação generalizante não é um modelo, nes- “obviação da inimizade” a rota para a evidenciar
ses termos, pois, emprestando a expressão de a incomensurabilidade das duas interpretações
Bateson (2000, p. 151, tradução nossa), pode-se (meta-afinidade e metafiliação). Tomando-as por
dizer que “trata-se apenas de relacionalidade, incomparáveis, evita-se pensá-las como partes de
não de qualquer relação identificável”16 (grifo um todo ou, ainda, que a substituição de uma
do autor). Antes de ser uma tipologia, ela é da pela outra lograria melhor perspectiva sobre o
ordem da invenção (de acordo com R. Wagner) todo. Afinal, que todo indígena seria esse?
ou da alegoria (como a pintura balinesa a partir
da qual Bateson escreve). Parentesco como processo (ou a
Ao seu passo, o modelo da predação fami- vida secreta das substâncias)
liarizante se baseia, pelo meu entendimento, na
possibilidade de generalização de tipos de relações A teoria do parentesco amazônico
– afinidade simétrica (cunhadio), filiação assimé- como teoria da relacionalidade generalizada
trica/adotiva, filiação simétrica (germanidade) e (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b) vem aliada
afinidade assimétrica (relação sogro-genro). Para à autocrítica do autor sobre a inadequação
Fausto (2008, p. 349), na Amazônia, só os dois da linguagem da hierarquia como modo de
primeiros tipos teriam essa capacidade, enquanto relação entre afinidade e consanguinidade.
os últimos “não possuem, senão em contextos Em diálogo com o idioma de Roy Wagner,
específicos, o nível da generalidade do cunhadio foi a analítica entre dado e construído e de
e da filiação adotiva”. reversão figura-fundo que tomou seu lugar, “a
Daí minha questão: é impossível compa- afinidade como dado genérico, fundo virtual
rar as duas interpretações (a metafiliação e a contra o qual é preciso fazer aparecer uma
meta-afinidade) e dizer que se distribuem de figura particular de sociedade consanguínea. O
maneira diversa como duas configurações rela- parentesco é construído, sem dúvida, ele não
cionais17. Pois, se a meta-afinidade não se preten- é dado. Pois o que é dado é a afinidade poten-
de exatamente um modelo, a questão colocada cial” (ibidem, p. 423). A afinidade potencial é
não é nunca sua generalização ou aplicação por “diferença universalmente dada” que deve ser
comparação, mas as transformações por ela pos- atualizada, isto é, diferenciada intencionalmen-
sibilitadas – questão, inclusive, que me parece te: a consanguinidade deve ser absorvida de
prefigurada ao final do artigo programático de modo a remetê-la a suas condições exteriores de

16 No original: “it is only about relationship and not about any identificable relation”.
17 Uma terceira “posição” é, ainda, adotada por Santos-Granero (2007) e Killick (2005), propondo a insuficiência
da dualidade afinidade/consanguinidade, especialmente em relação a formas de amizade, sumarizada no que
segue: “Os Ashéninka rejeitam a consanguinidade como um modo de pensar englobante, então sua busca em
conhecer outros para interagir também sugere um limite à importância que eles atribuem à afinidade” (ibidem,
p. 58, tradução nossa). Ver Soares-Pinto (2014), Vianna (2017) e Marcos de Almeida Matos (2018) para formas
de amizade e camaradagem caracterizadas como de “afinidade potencial”.

116
possibilidade (ibidem). Não obstante, “tem-se corpos ameríndios e sua instabilidade crônica,
uma pressão constante de retorno ao virtual por estarem remetidos à alteridade pré-cosmo-
a cada movimento de atualização” (ibidem, lógica (VILAÇA, 1998; 2002; 2005). Abriu-se,
p. 453), dado que “o corpo deve ser produz- nesses últimos 20 anos, o caminho definiti-
ido a partir da alma, mas também contra ela vo para a determinação do parentesco como
[…] tornar-se um corpo humano por meio construção da humanidade (no consumo da
do envolvimento corporal diferencial de e/ou diferença potencialmente dada), realizada por
com outros corpos, tanto humanos quanto meio da comensalidade, da atividade sexual,
não humanos”18 (VIVEIROS DE CASTRO, do aconselhamento, dos resguardos – enfim,
2009, p. 246). A construção do parentesco o parentesco como processo de becoming
permanece sempre “inacabada”, tal qual suas (RIVAL, 1998). No enfoque da consangui-
“unidades sociais”: o potencial de metamorfose nidade enquanto construção corporal, por
e “incompletude” está como que embutido no meio do estudo das substâncias e da memória
processo de fabricação do parentesco. produzida por meio de atos de cuidado, a obra
A relação entre parentesco e predação de Gow (1991; 1997) é pioneira. Dentre suas
como figura internalizada de alteridade foi consequências, está o entendimento de que,
explorada paradigmaticamente no traba- entre os ameríndios, o campo do parentesco
lho de Taylor (2001): laços consanguíneos e o da humanidade são coextensivos – as re-
constituem não relação. Entre os achuar, o lações societais e individuais são as mesmas
casamento é tomado como processo de aman- (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 439;
samento prefigurado na infância na relação COELHO DE SOUZA, 2001; 2002; 2004).
entre germanos de sexo oposto, segundo uma Em grande número de povos indígenas, os
conexão entre amansamento e sedução, caça resguardos pós-nascimento, doenças, enlu-
masculina e cultivo feminino, que inscreve a tamento etc. revelam “o corpo como uma
conjugalidade/afinidade no idioma da preda- realidade de mesmo tipo que as relações de
ção e vice-versa. Entre os yaminawa, os afins parentesco” (LIMA, 2002).
aparecem como excelentes parceiros animais Como um dos modos dessa inscrição, as
ou como humanos de hábitos detestáveis, le- relações de compadrio foram salientadas como
vando ao valor afim como aquele que deve se conectadas a procedimentos de humanização
efetivar entre corpos suficientemente distan- (corte do cordão umbilical, por exemplo),
tes, transformando a afinidade numa relação cujas descrições são curiosamente mais adensa-
entre espécies – cf. Calavia Sáez (2006, p. das na Amazônia ocidental – Gow (1991), para
110) e Bonilla (2007, p. 318-324) para os os piro; Surrallés (2003), para os candoshi;
paumari. Em outro âmbito, a metamorfose Soares-Pinto (2009), para os wajuru; Walker
(o perigo de “virar bicho”) como codificadora (2013), para os urarina; V. C. Silva (2017)
do incesto entre os jê foi amplamente descrita para os chiquitano; e M. A. Matos (2018),
(COELHO DE SOUZA, 2002; 2004). para os manxineru.
A dialética entre identificação e dife- Em termos jê, ao recuperar a discussão do
renciação formatou uma série de etnografias HCBP (anteriormente mencionada), Coelho
que apontaram para o caráter construído dos de Souza (2002, p. 574) desfaz os clássicos

18 No original: “the body must be produced out of the soul but also against it, […] becoming a human body through
the differential bodily engagement of and/or with other bodies, human as well as non-human”.

117
dualismos projetados na noção de pessoa, cha- 2015, p. 287). Já o conceito de “memória do
mando atenção para o fato de que o nome é parentesco” toma lembrança e esquecimento
parte da pessoa: “nome […] é ‘corpo’, [ou,] mais como dois vetores de assemelhamento e di-
especificamente, ‘pele’. […] [O que] correspon- ferenciação cuja relação estrutura o processo
de à objetificação das relações que constituem do parentesco karajá (NUNES, 2014; 2016).
a pessoa como parente”. Deriva daí uma série Entre os tupi-guarani, a relação de ca-
de pequenas torções realizada pela autora sobre samento foi pensada como de criação, esta-
o multidualismo jê (antes citado), a principal belecendo “continuidade ontológica entre
delas seria a assunção de que, entre estes, a “con- maestria e casamento” (FAUSTO, 2001, p.
substancialidade também é algo que se constrói” 432; GARCIA, 2015, p. 95-97), o que atesta
(COELHO DE SOUZA, 2004, p. 44). Essa a determinação do parentesco por relações
construção, tomada como um “efeito real de ecológicas ou vice-versa (CORMIER, 2003;
uma ‘manipulação’” (ibidem, p. 26), pode ser GARCIA, 2015). O aparentamento como re-
mapeada por meio de um regime terminoló- sultado de um processo de “andar junto” e de
gico eminentemente performativo, isto é, no ações deliberadas de cuidado entre parentes é
qual classificação corresponderá a reclassifica- a base para a formulação de Pissolato (2007)
ção permanente de parentes (COELHO DE e Ramo y Affonso (2014) para a circulação
SOUZA, 2002; 2004). Em outro conjunto de palavras, substâncias corporais, comida,
linguístico, a etnografia de Teixeira-Pinto (1997, afetos etc., segundo uma “perspectiva da
p. 239-257) entre os uxorilocais arara (carib) dádiva”. Uma importante incorporação de-
demonstra que a lógica de alimentação (cerveja leuziana-spinozista explora a corporalidade
e leite) identifica M e Z, produzindo a com- guarani como “potência” (MACEDO, 2013).
binação de diferentes sistemas terminológicos Nas distinções de parentesco produzidas a
(horizontal para corresidentes e oblíquo para partir de objetos, os enfeites mamaindê (nam-
parentes distantes). biquara) são entendidos como componentes
Entre os pano, define-se o termo desse da pessoa (MILLER, 2007); produtos da roça
processo de constituição de pessoas como e da caça conformam múltiplas formas espaço-
“corpo repleto de saberes” ou “corpo que co- -temporais de socialidade entre os Arara tupi-
nhece” (KENSINGER, 1995), composto por -ramarama (SANTOS, 2016); nomes e objetos
relações de memória e afetividade – Lagrou míticos vinculados a clãs tukano são a base
(2007), McCallum (1996a; 1996b; 2015) e da noção de pessoa (HUGH-JONES, 2002;
Surrallés (2003) entre os candoshi de língua 2006; 2009) e conhecimento (OLIVEIRA,
chapra. A importância das relações de afinida- M., 2016) ou concebidos como operadores
de potencial e a inoculação de diferenças em de perspectivas (ANDRELLO, 2006, p. 419).
sua articulação com a constituição corporal foi O tema ameríndio de parentesco vegetal
apontada por Calavia Sáez, Carid e Gil (2003) merece também destaque: Descola (1986),
e B. A. Matos (2014). Entre os tupinambá, Taylor (2001), Rival (2001), Belaunde
a repetição continuada dos atos de cuidado e (2001), Ewart (2005), Lagrou (2007), Cabral
alimentação para o reconhecimento dos laços de Oliveira (2012), Maizza (2014), Bonilla
de parentesco legítimos (VIEGAS, 2007) co- (2005), Morim de Lima (2017) e Shiratori
dificam o parentesco entendido como história/ (2018). As etnografias enfatizam algo como
memória (GOW, 1991), como na “composição processo de codomesticação ou aparentamento
e organização das famílias e dos círculos de mútuo, “em que, nas interações humano-culti-
aliança e cooperação” potiguara (VIEIRA, vares, ambos são constituídos e transformados,

118
afetam e são afetados” (MORIM DE LIMA, 2014, p. 21-22) –, passando pela formula-
2017, p. 456). Não se trata de simples extensão ção karitiana do sangue como “amarra dos
semântica do campo do parentesco para o vivos entre si” e de sua ausência em corpos
campo dos cultivares, mas antes a um evidente cujo comportamento social é desaprovado
paralelismo entre cultivo e crescimento dos (VANDER VELDEN, 2004, p. 156). Muitas
vegetais, produção de corpos de parentes e dessas etnografias se beneficiam do estudo de
suas formas coletivas/aldeãs (ibidem, p. 459). Belaunde (2006, p. 210) sobre a hematologia
Há ainda uma leitura da articulação entre con- amazônica, na qual o sangue é sobretudo
sanguinidade e afinidade à dualidade vegetali- relação ou “operador de perspectivas”, que
dade/animalidade entre os kalapalo do Brasil tanto une quanto divide os seres humanos
Central (GUERREIRO JUNIOR, 2015). em homens e mulheres e salienta o valor do
Originalmente ameríndio, o tabaco aparece sangramento na troca de pele/corpo. A par-
como constituidor da humanidade para diversos ticipação e diferença recíproca que o sangue
grupos no continente (ARAÚJO E., 2016), masculino e a bebida fermentada feminina
com certo destaque para a “gente do centro”, (como caça e sangue menstrual) tem na alian-
“clãs patrilineares que vivem na região dos rios ça e no pertencimento grupal djeoromitxi – e,
Caquetá e Putumayo, na Colômbia, e falam as inversamente, em elaborações sobre incesto e
línguas uitoto, muinane, eoke, ocaina, bora, metamorfose –, insiste na saliência analítica
miraña e nonuya” (LONDOÑO SULKIN, das relações de sexo oposto, em especial da
2006, p. 350). Entre os muinane, o tabaco diz conjugalidade (SOARES-PINTO, 2017).
“‘este é meu próprio corpo’, ao reconhecer a si Na investigação dos processos de atuali-
mesmo no corpo de outros” (LONDOÑO zação e contraefetuação do virtual, podemos
SULKIN, 2005, p. 12 apud ARAÚJO, 2016, localizar o trabalho de Vanzolini (2015) entre
p. 51). Ademais, o caráter genuinamente pa- os aweti no Alto Xingu. Sem seu avesso (a
trilinear do conhecimento associado a rodas de feitiçaria), seria impossível produzir as di-
consumo de mambe – mistura de folhas de coca ferenciações de que se serve o parentesco.
torradas e moídas e cinzas de folhas de cecropia É na perversão do jogo de distanciamentos
– chama atenção na descrição muinane acerca e aproximações – e da circulação de bens e
da construção de admirabilidade e dignidade pessoas – que caracteriza o parentesco que
(LONDOÑO SULKIN, 2006). as flechas de feitiçaria invadem e acessam
É preciso ainda destacar o valor operativo abusivamente o corpo de outrem. Ainda no
do sangue (GOW, 1991) na constituição registro da abertura do parentesco ao campo
da pessoa ameríndia como um dos idiomas da ação xamânica, localiza-se o parto dos
mais adensados pelas etnografias recentes: do bebês hup (RAMOS, 2014), as gestações
incesto tikuna como “mistura de sangues” propiciadas pela busca de almas realizada
(ROSA, 2015) até a “barriga do pai” como pelos pajés djeoromitxi, bem como as tensões
vinculo agnático/territorial dos nomes aike- e negociações entre os bandos de espíritos
wara – povo tupi-guarani cuja organização auxiliares dos especialistas quando estes en-
“clânica” passa a ser entendida na base de um tram em uma relação de afinidade efetiva do
movimento anti-genealógico (CALHEIROS, tipo sogro/genro (SOARES-PINTO, 2014)19.

19 Não estou incluindo aqui, evidentemente, os casamentos e as famílias interespecíficas que marcam o campo do
xamanismo no continente.

119
I. Araújo, por seu turno, ao estudar os “es- humanidade/socialidade ameríndia quanto
peciais/ cabeças doidas” karitiana, afirma registro da história de relações desses povos
que é a gramática do cuidado, inerente ao em seus próprios termos. Daí sua perpétua
parentesco, o que os mantêm na convivência dissolução.
da aldeia, pois os pais “preferem demonstrar Coelho de Souza ([201-2018]) afirma
que sabem criar – mesmo que o filho se pareça que parentesco é, em si, a obviação (mútua
um não parente – do que perdê-los para os pressuposição e negação) entre a “endoga-
outros mundos” (2014, p. 143). mia verdadeira” – o incesto (não relação com
humanos) – e a “exogamia verdadeira” – o
Por que, ainda, o parentesco? casamento interespecífico (pura relação com
não humanos). Tomando essa formulação, a
Do corpo ameríndio, pode-se afirmar indicação final é que houve enriquecimento
ser uma equivocação controlada (VIVEIROS e complexificação etnográfica nos últimos 20
DE CASTRO, 2004) das práticas de co- anos, mas as possíveis rupturas que o processo
nhecimento e constituição da pessoa, que de “contraefetuaçãodo virtual” pode engendrar
formaram a base da investigação sobre a na teoria antropológica do parentesco ainda
noção de relação nas TBAS, bem como de restam ser exploradas.
seu desiderato: a dissolução – digamos, su- A corporalidade é, por certo, chave con-
ficientemente convincente – de fronteiras solidada e promissora, mas já não pode ser
tipológicas entre essas sociedades. Esta é uma lida como “substantiva” (e sim pronominal),
das conclusões deste artigo: os estudos de ainda que tomada ou traduzida (por indí-
parentesco evidenciaram que os subconjun- genas e não indígenas) como substancial.
tos societários ameríndios deviam antes ser Se concordamos que o corpo, como sede
entendidos como unidades topológicas em de perspectivas, implica que a alma seja
transformação recíproca (VIVEIROS DE também um corpo quando disposta à visão
CASTRO, 1986) do que encarnações de de Outrem (LIMA, T. S., 1996), vindica-
tipos sociais (cosmológicos etc.). Inspirada remos a incorporação da pronominalidade
em Gow (2001), uma proposição de T. S. nas investigações sobre o dado dos mundos
Lima (2005, p. 372) parece alinhavar a ques- ameríndios. Desconfio ainda que o enfoque
tão: “a diversidade do conjunto é a unidade na afinidade de sexo oposto – em oposição
diversa de cada uma”, de modo que nos resta às clássicas teorias do parentesco – e seus
“fazer que a unidade de cada uma só possa ser jogos de perspectivas (LIMA, T. S., 2005)
remirada pelas outras e o conjunto, remirado forneça a rota de exploração adequada. O
por cada uma”. ponto não nos permitiria negar que a meta-
Minha hipótese é que o “parentesco” se morfose seja um estado em que se processa
consolidou como chave ou código privile- uma redefinição de afeções e capacidades
giado desse imenso grupo de transformação corporais, mas tampouco obstruiria a pos-
chamado TBAS sem permitir fazer de si um sibilidade de pensar a fabricação corporal
núcleo duro resistente às transformações his- em termos metamórficos. Quiçá seja essa
tóricas, tampouco depor a favor de sua nu- a continuidade da devolução diferida que
lificação (CALAVIA SÁEZ, 2006, p. 114). os estudos de parentesco impõem à noção
As transformações do parentesco são tanto (antropológica) de humanidade. Que não
uma aproximação antropológica da noção de cessemos de estranhar.

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Resumo

Uma incontornável diferença: parentesco nas Terras Baixas da América do Sul (1996-2016)
Os estudos de parentesco nas Terras Baixas da América do Sul (TBAS) foram marcados pelo investimento nas
categorias de diferença e afinidade, em contraposição às teorias que vindicam a identidade e a descendência como
princípios de organização social. Nos últimos 20 anos, essa marcação elaborou problemas à noção de humanidade e
seus correspondentes (indivíduo/grupo), instituindo o idioma da corporalidade e pessoa como aspectos fundamentais
da sua investigação. Os estudos de parentesco nas TBAS foram responsáveis por uma série de transformações na teoria
antropológica em geral, as quais este artigo visa mapear.
Palavras-chave: Parentesco; Terras Baixas da América do Sul; Etnologia; Afinidade; Corporalidade.

Abstract

An irrefutable difference: kinship in Lowland South America (1996-2016)


Kinship studies in Lowland South America (LSA) were marked by the investment on the categories of difference and
affinity, in contrast to the theories that vindicate the identity and descent as principles of social organization. In the
past two decades, this position posed problems to the concept of humanity and its correspondents (individual/group),
installing the language of corporality and person as fundamental patterns of investigation. Kinship studies in Lowland
South America (LSA) were responsible for a series of transformations in the anthropological theory, in general, which
are mapped in this article.
Keywords: Kinship; Lowland South America; Ethnology; Affinity; Corporality.

Résumé

Une différence irréfutable: la parenté dans les basses terres d’Amérique du Sud (1996-2016)
Les études  de  parenté  des  Basses  Terres  d’Amérique du Sud (BTAS) ont été marquées par  un  investissement
dans les catégories de  la  différence et  l’affinité, par opposition aux théories qui revendiquent l’identité et la
descendance comme principes d’organisation sociale. Aucours des vingt dernières années, cette démarche a posé des
problèmes à la notion d’humanité et à ses correspondants (individu / groupe), en établissant le langage de la corporalité
et de la personne entant qu’aspects fondamentaux pour son investigation. Les études de parenté dans les BTAS ont
été responsables d’une série de transformations dans la théorie anthropologique en général, transformations que cet
article vise à cartographier.
Mots-clés: Parenté; Terres Basses d’Amérique du Sud; Ethnologie; Affinité; Corporalité.

131
DOI: 10.17666/bib8706/2018

As artes indígenas: olhares cruzados

Els Lagrou1
Lucia Hussak van Velthem2

Artes indígenas: uma introdução vida indígena, a arte configura uma expressão
de conhecimento que é material, técnica e prá-
No Brasil, o interesse pelo estudo, nas so- tica e se exerce em diversos campos da criação
ciedades indígenas, das relações entre estética, e utilização das obras produzidas (VELTHEM,
arte e antropologia, apesar da riqueza do ma- 2009). A produção não se constitui propria-
terial disponível, pode ser considerado como mente em uma especialidade individual, res-
relativamente tímido. Nos últimos trinta anos trita a poucos indivíduos, mas é, na maior
surgiram coletâneas, artigos, catálogos, livros parte dos casos, acessível a todos e, assim, se
e teses que apresentaram novas perspectivas e reproduzem e se recriam estilos estéticos pela
lançaram luz sobre este campo de pesquisa rico atividade de muitas pessoas produzindo juntas
e complexo. Nos debates atuais ganharam rele- artefatos que se assemelham, mas não por
vo os temas relacionados com a corporalidade, isso deixam de ser únicos (ERIKSON, 1996;
o estatuto ontológico de imagens e artefatos, LAGROU, 2007). A produção não possui
os poderes agentivos dos objetos materiais o caráter de uma “obra coletiva”, enquanto
e dos sistemas gráficos, assim como o lugar somatório de obras individuais, porque cada
dos artefatos nas abordagens perspectivistas. pessoa é dona da sua própria produção. Nas al-
Nesse sentido, as análises se referem tanto às deias e comunidades, os saberes se manifestam
articulações entre arte e cosmologia, entre por meio de habilidades e variações pessoais,
arte e xamanismo, como às vinculações entre o que permite a rápida e precisa identificação
grafismo e figuração. Outros estudos revelaram de determinado indivíduo criador.
a complexa relação existente entre ritual e cria- A experiência estética indígena se conecta
ção artística, em particular o papel desempe- a variadas formas e não se concentra apenas na
nhado pela pintura corporal e pelas máscaras, produção de objetos, nas coisas que podem ser
e destacaram as performances musicais e as transportadas, como os cestos, as panelas de
artes verbais. No campo da materialidade, as barro, as redes de dormir, os arcos, as flechas
categorias mais enfocadas pelos estudiosos das e que resultam de técnicas manufatureiras.
artes indígenas amazônicas permanecem sendo Essa experiência está presente tanto na com-
a plumária, a cestaria e a cerâmica. posição de efêmeras pinturas corporais como
Visando circunscrever o assunto e apontar também nas duradouras casas comunitárias e
alguns temas relevantes, enfatiza-se que, na residenciais e no estabelecimento das aldeias

1 Professora de Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, pela Universidade do


Rio de Janeiro (UFRJ), e pesquisadora do CNPq.
2 Antropóloga e pesquisadora do Museu Paranaense Emílio Goeldi (MCTIC).

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 133-156. 133
– as quais refletem a concepção de espaço cantos rituais e na sua exegese, uma vez que
e de organização social – estreitamente as- constituem domínios intimamente associados.
sociadas à visão de mundo, como as aldeias Um artefato pronto se definirá de acordo
em forma circular com seus caminhos radiais com os usos e funções, com a possível reci-
encontrados no Alto Xingu e entre os grupos clagem ou descarte e, também, em algumas
de língua jê. A intenção estética ameríndia regiões, por intermédio do amplo circuito das
alcança ainda domínios que estão conectados redes de intercâmbio existentes e a serem cria-
a outras técnicas e propósitos, relacionados das. Em alguns casos, os artefatos entram em
com a oralidade, os movimentos, a execução circuitos novos como da comercialização ou
de instrumentos musicais. Os relatos míticos, musealização. A confecção de artefatos rituais
a música vocal e instrumental, os cânticos de requer a posse de conhecimentos especializa-
cura, as danças e evoluções coreografadas cons- dos sobre a complexa adequação material e
tituem experiências que se infiltram e evoluem cosmológica dos elementos constitutivos, cujo
em diferentes esferas da vida cotidiana e ritual. ajustamento é essencial para a sua valorização
Tanto no cotidiano quanto no contexto ceri- e eficácia nesses contextos.
monial, artefatos intermediam as interações Para determinados povos indígenas, a au-
de pessoas e diferentes coletivos com a esfera dição está em relação direta com a aquisição
cosmopolítica, marcada pela onipresença das de conhecimentos – históricos, mitológicos,
relações com seres não humanos. musicais – em grande parte porque são trans-
Conhecimentos múltiplos – ambientais, mitidos oralmente; para outros povos, a visão
técnicos, éticos, estéticos, mitológicos e ritu- e os olhos constituem os elementos que pro-
ais – são necessários para fabricar artefatos de piciam e resguardam os saberes; as mãos, por
uso cotidiano ou ritual. Tais conhecimentos sua vez, desempenham importante papel nas
se conectam às matérias-primas empregadas formas de avaliação do resultado de uma elabo-
– vegetais, animais, minerais –, o lugar onde ração técnica e formal. Em um objeto, forma
podem ser encontradas e a forma de proces- e função estão intimamente relacionadas e sua
sá-las para produzir artefatos. Outros saberes incorporação social só se concretiza quando ele
se referem aos locais e momentos favoráveis está terminado e, portanto, pode ser utilizado.
para a atividade criativa e também às práticas Os objetos integram redes de sentidos,
propiciatórias e às evitações relacionadas aos próprias a cada cultura indígena. A valorização
donos da matéria-prima usada, dos conheci- estética de um artefato nem sempre está contida
mentos e dos lugares. Conhecimentos espe- nele, mas antes nos processos de produção,
cíficos remetem às técnicas de manufatura e nas diferentes relações que são tecidas por seu
abrangem as formas de principiar, conformar intermédio. O significado de um artefato não
um objeto e o arrematar, assim como aos grafis- se separa do uso a que se destina, e o apreço
mos, sua origem mítica e sua correta aplicação estético e funcionalidade se reforçam mutua-
aos diferentes suportes. A arte gráfica pode mente na atribuição de valor. Como armadilha
ser encontrada em diferentes suportes – nos de caça ou de pesca, a eficácia estética de um
corpos humanos, nos artefatos, nos elementos artefato se alimenta da complexidade da rede
arquitetônicos – e é executada por meio da de intencionalidades na qual o artefato se in-
pintura, da gravura e da tecelagem. A maes- sere. Muitos artefatos não se inserem em uma
tria técnica de reprodução dos grafismos se categoria unívoca e, dessa forma, se apresentam
faz acompanhar, entre os povos indígenas, de e se conformam de acordo com as circunstan-
saberes ontológicos contidos nos mitos, nos cias, os contextos e as suas possíveis conexões.

134
Coloca-se em evidência o fato de os artefatos primeiro momento, de insights produzidos prin-
não constituírem simples “coisas inertes”, mas cipalmente na etnologia feita na Melanésia, que
de se aproximarem da noção que os considera desde cedo se concentrou nas relações entre pes-
como providos da capacidade de agir sobre a soas e coisas (STRATHERN, 1988; WAGNER,
vida indígena, de maneiras específicas. 1975). Gell sugere que artefatos sejam tratados
Discorrer de forma aprofundada sobre a como pessoas, ou seja, como agentes inseridos
importância que cerca as artes indígenas no em redes relacionais, em que intenções huma-
contexto dos estudos antropológicos é um nas podem ser abduzidas a partir da agência
exercício temerário porque será forçosamente dos artefatos que produzem ou concebem. A
incompleto. Este texto constitui certo olhar recepção da obra de Gell significou importante
cruzado de duas autoras que há muito tempo revitalização do debate em torno do tema da
se debruçam sobre o tema e propõem aqui arte e da estética na disciplina. A obra de Gell
explorar tão somente alguns aspectos que con- pode ser considerada precursora da chamada
sideram determinantes das artes indígenas: a “virada ontológica” na antropologia, que con-
impossibilidade de separar os aspectos mate- tribuiu para recolocar no centro da atenção da
riais dos imateriais e a necessidade de explorar disciplina as diferentes relações possíveis entre
sua relação. Para este volume, que trata da humanos e não humanos, entre pessoas e coisas,
antropologia feita no Brasil, privilegiamos os entre corpos e imagens.
estudos antropológicos que se inspiraram e se É importante salientar, no entanto, o
embasaram na cultura dos povos indígenas que quanto essa virada já estava prefigurada na
vivem na Amazônia brasileira, apesar de ser própria etnologia ameríndia e seus estudos
necessário às vezes ultrapassar essas fronteiras sobre artefatos, pessoas e imagens. A relação
que, para o mundo indígena, são artificiais. entre artefatos e pessoas, por exemplo, em que
artefatos incorporam capacidades agentivas
Artefatos e a virada ontológica de seres vivos e são, portanto, produzidos e
pensados como quase corpos, está presente na
O estudo da estética ameríndia, na sua re- literatura etnológica bem antes da chegada do
lação com a etnologia e a antropologia da arte, paradigma da agência da arte por meio de Gell.
tem à sua disposição um material riquíssimo, Como exemplo podemos citar a descrição de
ainda pouco explorado em termos teóricos e Velthem (2003, 2009) do tipiti que é como uma
comparativos, para contribuir para o renovado cobra constritora, só que sem cabeça e sem rabo.
interesse na antropologia das imagens, das fi- O tipiti é, portanto, um animal incompleto,
gurações e das coisas (LAGROU, 2007, 2009, despedaçado. Um instrumento, artefato, é assim
2018b). Duas obras seminais, ambas surgidas um ex-proto ou quase ser vivo, como atestam
no final dos anos 1990, contribuíram para pro- os mitos da “revolta dos objetos” coletados
blematizar o modo como a antropologia tem por Lévi-Strauss nas mitológicas (LAGROU,
pensado a relação entre pessoas e coisas: Arte e 2009; LÉVI-STRAUSS, 1971). Corpos (de
Agência, de Alfred Gell (1998), e a formulação animais e gente) e artefatos possuem “donos”
do modelo de perspectivismo como ontologia distintos, mas são feitos por meio de técnicas
ameríndia por Eduardo Viveiros de Castro e similares (ARONI, 2011; BEYSEN; FERSON,
suas consequências para o estatuto dos objetos 2015; ERIKSON, 1996; HUGH-JONES,
(VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2004). 2009, LAGROU, 1998; MILLER, 2009;
Alfred Gell propõe uma nova abordagem SANTOS-GRANERO, 2009; VELTHEM,
para a arte na antropologia, partindo, num 2003). Vivemos num mundo habitado por

135
intencionalidades outras que se materializam podem passar a ter significados muito diferen-
em artefatos, animais, plantas e outros fenô- tes de acordo com o contexto no qual estão
menos visíveis e invisíveis. O modo como esses inseridos. Levar outras ontologias a sério con-
seres se relacionam tem a ver com o modo como sistiria em não mais separar a coisa significada
eles se dão a ver, e tudo isso leva a uma estéti- e o conceito que a ela se refere. Desse modo,
ca relacional bem especificamente amazônica para traduzir conceitos nativos, seria preciso
(LAGROU, 2018a; 2018b). produzir novos conceitos que se acoplam aos
A etnologia feita nas Terras Baixas da conceitos colocados em relação no pensamento
América do Sul tem se concentrado mais nas nativo, como a tradução do ajé afro-cubano
relações entre seres humanos e não humanos por pó-poder, tendo em vista que ambos os
do que nas relações entre artefatos e humanos, conceitos se implicam mutuamente (HENARE;
com exceções (BARCELOS NETO, 2008; HOLBRAAD; WASTELL; 2007).
HUGH-JONES, 2009; VELTHEM, 2003). Exemplos para pensar segundo essas linhas
Essa diferença de ênfase em comparação com a abundam na etnologia ameríndia e não é, por-
etnologia feita na Melanésia pode ser explicada tanto, por acaso que este ramo da antropologia
por diversos fatores: a complexidade dos siste- contribuiu em grande medida para a virada
mas de troca por lá e a potencial subjetivação ontológica na disciplina. Desde os escritos dos
de todas as coisas por aqui pode ser uma das primeiros viajantes lidos por pessoas como
razões, apesar de termos grandes diferenças La Boetie e Montaigne, passando por Lévi-
internas a esse respeito também. A teorização Strauss e Clastres que, por sua vez, influencia-
em torno da compreensão de que o ponto de ram Deleuze, percebe-se que as Américas têm
vista se encontra no corpo e que é o corpo esse potencial de induzir seus estudiosos a uma
que determina o que se vê (VIVEIROS DE inversão copernicana de perspectiva. O mesmo
CASTRO, 1996), por outro lado, tornou a vale para o conceito de arte na antropologia
reflexão sobre o estatuto da imagem nova- (LAGROU, 2009). A arte indígena nos ensina
mente relevante. Em Fabrique des images, outro modo de pensar a arte e sua relação com
Descola (2010) propõe abordar as diferenças a vida (OVERING, 1991), outra maneira de
que existem nos modos como ontologias dis- pensar sua relação com o corpo. Em vez de
tintas concebem suas relações com outros seres pensar arte como distinto de artefato, como
do mundo, a partir dos diferentes modos de entre nós invertemos a perspectiva e, ao não
figuração que os acompanham. A ontologia mais separar arte e vida, podemos perceber a
ameríndia, animista, serve de ponto de parti- arte indígena como uma estética específica do
da a ser contrastada, tanto com a naturalista viver. As ontologias ameríndias são eminente-
quanto com a totêmica e a analógica. mente estéticas. Pois, se a perspectiva está na
No livro Thinking through things, Henare, forma que os corpos assumem, e as formas são
Holbraad e Wastell (2007) foram os primeiros altamente instáveis, podendo se transformar
a chamar de “virada ontológica” uma radicali- umas nas outras, a estética se torna a chave para
zação da empreitada antropológica no sentido viver essa ontologia transformacional, em que
de levar outras ontologias a sério, virada esta pessoas vivem o devir-pássaro, o devir-múlti-
que teria sido preparada pelas obras de Marilyn plo, o devir-jiboia, e uma multiplicidade de
Strathern, Roy Wagner e Eduardo Viveiros de outros devires no cotidiano e no ritual. Se
Castro. Uma das consequências dessa abertura a cura depende da possibilidade de olhar o
para o pensamento de outros tempos e lugares mundo a partir de outra forma, da forma do
seria, segundo os autores, que coisas e imagens duplo que tenta capturar seu predador, então

136
toda terapia tem que ser estética. E é isso que Destaca-se, na edição atualizada do
as artes ameríndias nos ensinam a ver. Handbook of South American indians, o volume
intitulado “Arte índia”, coordenado por Berta
Primeiras abordagens Ribeiro (1987). Essa primeira coletânea inclui
artigos sobre arte, pintura corporal, máscaras,
Precursoras análises das artes dos povos instrumentos musicais e adornos plumários.
indígenas se concretizaram nos anos 1950 e A introdução enfatiza o simbolismo revelado
foram fundamentadas em pesquisas de campo pela cultura material e um dos artigos comenta
e coleções etnográficas musealizadas, como é a perfeição formal das criações indígenas e
o caso de Gastão Cruls (1952) – um dos pri- suas principais funções, a saber, diferenciar
meiros a usar a expressão “arte indígena”. Os os povos indígenas entre si e os humanos dos
fundamentais estudos de Claude Lévi-Strauss animais (RIBEIRO, D., 1987).
(1955), sobre a função social da arte e os sen- Em 1992 surge o livro Grafismo indígena:
tidos reflexivos da pintura facial, precederam estudos de antropologia estética, que representa
e embasaram análises posteriores, dedicadas à um marco na antropologia da arte no Brasil,
identificação das artes indígenas. Nesses estudos temática que conduziu a múltiplos desdo-
destaca-se, sobretudo, o papel de sistema ou de bramentos e influenciou posteriores estudos,
veículo de comunicação dessas artes, que for- voltados para a compreensão dos significados
mariam códigos estilísticos ou uma linguagem das pinturas corporais e outras formas de trans-
simbólica que desvendasse a estrutura social formação do corpo humano, assim como das
(MÜLLER, 1976; RIBEIRO, B., 1989, 1993; coisas, dos objetos e dos artefatos. Efetivada
RIBEIRO, D., 1987; VIDAL, 1978). Essa sob a inspiração e a orientação de Lux Vidal
abordagem, entretanto, não se resumia a esses (1992), essa publicação reuniu textos de et-
aspectos, pois, como destaca Lux Vidal (1978), nólogos que abordaram, de modo detalhado,
nas sociedades indígenas as expressões artísticas os sistemas gráficos de sociedades indígenas
estão presentes para significar e não apenas para específicas, tanto sob o ponto de vista técnico
representar; trata-se de algo muito estruturado e constitutivo como de sua simbologia e dos
que se articula com outras esferas da cultura. mecanismos da criação artística e da expressão
(RATTS et al., 2000). estética. Os artigos destacam que tais mecanis-
Segundo os estudiosos daquela época, mos conferem aos povos indígenas os meios
outros aspectos relacionados ao tema eram para definir concepções consideradas relevan-
igualmente significativos, entre os quais a tes sobre a vida social e as conexões entre a
excelência técnica, os padrões gráficos e as sociedade, a natureza e o cosmo, assim como a
representações visuais. As categorias artesanais compreensão de algo muito mais amplo, como
tiveram lugar destacado nessas primeiras análi- a sociedade se pensa e, consequentemente, se
ses e foram abordadas enquanto representantes representa (VIDAL; SILVA, 1992).
de tradições estilísticas específicas ou então Reunidos em bloco, os textos dedicados
de forma ampla, a partir do detalhamento à pintura corporal descrevem, através da es-
material, formal e funcional de objetos de tética, como as categorias internas à socieda-
certas categorias, sobretudo cerâmica, cesta- de se expressam: as dinâmicas dos ciclos de
ria e plumária (COELHO, 1981; COSTA, vida, as distinções dos grupos sociais e etários,
1978, 1988; DORTA, 1981; RIBEIRO, B., as definições de papeis e de relações sociais,
1980; RIBEIRO, D., 1980, 1993; RIBEIRO; as diferenciações entre os humanos e os de-
RIBEIRO, 1957; SCHOEPF, 1985). mais componentes cosmológicos. No mais

137
detalhado dos artigos da coletânea, Vidal ex- objetos de diferentes categorias artesanais, o
plicita como a pintura corporal Kayapó-Xikrin que permite ressaltar a relação entre objetos
expressa, de modo sintético e gramatical, a e pessoas, consideradas à luz dos mitos e dos
compreensão da estrutura social desse povo sistemas cosmológicos. No universo Jê, Lea
indígena e revela sua vontade de ultrapassar (1986) e Gordon (2009, 2011) mostram como
as condições da existência humana. a apreensão do sistema de objetos, entre os
As conclusões dessa coletânea (VIDAL; Kayapó e Xikrin, está atrelada às noções de
SILVA, 1992) definem que as artes indígenas propriedade e de prestígio, em registros que
se conectam a dois enfoques principais. No remetem a uma ideia de distinção derivada
plano expressivo, alguns povos privilegiariam da posse de “nomes bonitos”.
conceitos relacionados com a vida em socie- No âmbito deste artigo propomos um
dade, enquanto outros concederiam especial recorte específico, que visa pensar o universo
atenção às concepções de fundo cosmológico. ameríndio a partir de sua produção material/
No primeiro caso, as artes revelariam aspectos visual, portanto, nos ateremos aos textos que
da estrutura social e, assim, comunicariam discutem esses temas. Por falta de espaço
por intermédio de imagens visuais o estatuto não será possível incluir os trabalhos sobre
da pessoa ou de coletivos sociais. As artes artes verbais, música, dança, performance e
indígenas diretamente vinculadas aos con- cinema indígena.
ceitos cosmológicos dariam a ver concepções Olhemos mais de perto a temática rela-
existentes sobre a composição do universo e cionada com a corporalidade e os sistemas
dos seres/componentes que o habitam. Nesse gráficos, temas que implicam reflexões sobre o
caso, expressariam as particularidades de estatuto ontológico dos objetos e sua agência.
seres externos ao sócio, tais como animais,
espíritos, inimigos, sobrenaturais, com os Corporalidade e o estatuto
quais é, no entanto, necessário estabelecer dos artefatos
relações específicas. A presença de motivos
gráficos que referem a esses seres nas peles e Na antropologia, o tema da corporalidade
nos objetos das pessoas mostra como todo não é propriamente recente como nos indica
interior é feito da controlada incorporação o seminal artigo de Anthony Seeger, Roberto
de agências não humanas. DaMatta e Eduardo Viveiros de Castro (1987).
A partir dos anos 1990 surgem novos A questão da corporalidade é central na vida
trabalhos voltados para as experiências estéticas indígena e está vinculada a um sistema de
dos povos indígenas amazônicos, como os de relações entre corpos, bem como ao pensamen-
Müller (1990) entre os Asurini, de Velthem to de que a humanidade de um corpo não é
(1992, 1998) entre os Wayana-Apalai, os de inata, mas deve ser construída culturalmente,
Coelho (1993) entre os Wauja, de Erikson de modo contínuo (TAYLOR; VIVEIROS
(1996) entre os Matis, os de Lagrou (1998) DE CASTRO, 2006, VILAÇA, 2005). Para
entre os Kaxinawa (Huni kuin) e, posterior- tanto são desenvolvidas práticas que objetivam
mente, os de Barcelos (2002), cujo trabalho facilitar a transformação de um corpo para
representa um marco na abordagem das más- dotá-lo das qualidades sociais requeridas, assim
caras no mundo amazônico. Os trabalhos têm como para modificar sua natureza e aspecto.
como ponto de partida a transformação cor- Técnicas variadas e complexas efetivam
poral por meio da pintura e de adornos de amplas mudanças corporais, muitas das
materiais diversos, e a produção concreta de quais relacionadas a uma elaboração estética,

138
enquanto uma intervenção que ultrapassa reunidos na coletânea organizada por Santos-
o sentido restrito de “decoração” corporal. Granero (2009).
Constituindo parte essencial do processo de As possibilidades de uma análise estética
transformação da pessoa, essas técnicas comu- do ritual que esteja aberta para as relações
nicam diferentes intenções e são específicas de entre formas visuais e sonoras, e entre corpos
cada povo indígena. A corporalidade não se e artefatos rituais, podem ser vislumbradas
restringe ao corpo e ao que ele apresenta, mas no volume Burst of breath: indigenous ritual
pressupõe diferentes tipos de comunicação wind instruments in lowland South America,
social e também cosmológica. editado por Jean-Pierre Chaumeil e Jonathan
A elaboração estética não se restringe Hill (2011) em torno do complexo de flautas
aos humanos, mas também se aplica aos rituais na Amazônia. O volume The occult life
objetos, e se conecta a técnicas que são of things: native amazonian theories of mate-
comuns a esses diferentes suportes, tais riality and personhood, editado por Fernando
como a pintura, as incisões e as amarrações. Santos-Granero (2009), conta, igualmente,
Humanos e objetos são igualmente deco- com grande contribuição de trabalhos feitos
rados porque compartilham uma série de em território brasileiro e aponta para os dife-
faculdades, entre as quais a antropomorfia, rentes regimes de subjetivação encontráveis em
uma vez que para muitos povos indígenas diferentes grupos ameríndios. Nem todos os
os artefatos são compreendidos enquanto artefatos possuem agência, nem a possuem em
seres corporificados. Tais artefatos-corpos mesmo grau de intensidade. Alguns artefatos
não são necessariamente comparáveis aos são tão intensamente associados com aquele
seres humanos, podendo expressar outros que os fez e/ou usa, que nunca podem ser
corpos – não humanos – e reproduzi-los trocados ou vendidos e precisam desapare-
de forma parcelada ou integral, adquirindo cer junto com seu dono (ERIKSON, 1996).
assim visibilidade e capacidade de ação em Outros artefatos são transformações de seres
determinados momentos da vida social. primordiais (HUGH-JONES, 2009) ou
A continuidade existente entre corpos possuem donos poderosos e ciumentos. As
e objetos coloca em evidência a capacidade relações de continuidade entre humanos, fa-
ativa desses últimos e a qualidade construtiva bricantes de artefatos e os donos dos materiais
dos primeiros. Ademais, os artefatos não se ganham formas muito distintas de acordo
constituem, geralmente, em simples “coisas com as etnias estudadas. Este livro, que tem
inertes”, mas se aproximam da noção que os o estatuto dos artefatos no mundo ameríndio
considera como providos da capacidade de como foco, segue outro – Artifacts and society
agir, de influir na vida indígena, de muitas in Amazonia –, de circulação mais restrita,
maneiras. Em geral os objetos possuem dono editado por Myers e Cipoletti (2002).
e sua vida depende da relação com aquele Outro volume merece ser mencionado:
que os engendrou, mas em princípio, como Masques des hommes: visages des dieux, editado
explicado no mito, objetos podem adqui- por Jean-Pierre Goulard e Dimitri Karadimas
rir existência própria, e assim deixar de ser (2011). O volume reúne artigos sobre o uso
apenas “coisas”, transformando-se em seres de máscaras por povos ameríndios e dialoga
vivos, sujeitos, constituindo agentes da trans- de perto com as temáticas expostas nos livros
formação, movimento este que constitui um citados antes, como a presentificação de seres
conceito central das cosmologias e das artes não humanos e seus donos, a relação com os
indígenas, como revelaram diferentes estudos, ancestrais e sua proximidade com as diferentes

139
faces assumidas pela alteridade. A maior parte afirmação étnica e da condição humana, ou
dos artigos trata de etnias que habitam o ter- então para a apropriação de qualidades desejá-
ritório brasileiro: os Wayana, Wauja, Tikuna, veis de outros seres, possibilitando a interação
Matis e os grupos de língua tupi. com o mundo sobrenatural ou, ainda, como
uma possibilidade de expansão visual para que
Sistemas gráficos sejam percebidos, por meio dos grafismos,
aspectos ocultos da visão ordinária.
Desde o surgimento da coletânea organi- Na arte ameríndia, os contornos dos pa-
zada por Lux Vidal (1992), o olhar antropo- drões gráficos expressam a articulação existente
lógico tem conferido expressiva atenção aos entre diferentes domínios e uma única repre-
sistemas gráficos e à eficácia das imagens. A sentação pode congregar elementos visíveis e
onipresença da pintura corporal no universo invisíveis, o sentido figurativo sendo múltiplo
ameríndio e sua importância social e cognitiva e remetendo a outras representações e a outros
é uma das razões. Outra explicação possível seres. Esse acúmulo indica uma tensão entre
para esse interesse tem a ver com o “poder o que os grafismos revelam e o que ocultam,
ativo” dos grafismos que nas sociedades indíge- ambos tendo equivalência como suporte de
nas são dispostos sobre a pele das pessoas e que significados. Esse aspecto pode ainda ser tradu-
também distinguem os artefatos. Diferentes zível por uma dialética do visível e do invisível
estudos entre variadas etnias enfatizam que os em que o dado visual presume a revelação de
sistemas gráficos ameríndios constituem for- uma determinada imagem que mascararia uma
mas de expressão particulares, cujo valor deriva inteligibilidade a ser desvendada.
de complexas cosmologias que tais sistemas As tendências de estilo que recaem sobre
materializam. Paralelamente, incorporam sem a criação e a propriedade dos sistemas gráfi-
cessar elementos novos, advindos de variados cos indígenas têm correspondência com as
tipos de interação, de troca, de visualização múltiplas relações existentes com múltiplos
que assinalam a importância constitutiva da seres não humanos, permitindo evidenciar
incorporação da alteridade na produção de a predação em seus diferentes aspectos. Essa
“corpos pensantes”. Tais incorporações podem perspectiva efetiva a compreensão do entrela-
também engendrar processos de reinvenção çamento existente entre a arte, a estética e os
cultural, extremamente criativos e desenvol- diferentes domínios cosmopolíticos nas socie-
vidos, dentro da lógica própria das ontologias dades indígenas. Um dos eixos fundamentais
indígenas envolvidas. é constituído pela propriedade não humana
Segundo algumas análises, os sistemas do repertório gráfico cuja origem, via de regra,
gráficos integram a essência mesma dos ele- é atribuída pelos indígenas aos animais, espí-
mentos ao qual são aplicados, pois se consti- ritos, heróis culturais, sobrenaturais. Assim,
tuem em intervenções que são tanto técnicas a propriedade raramente se confunde com a
como “simbólicas”. Objetivam certamente o criação individual ou coletiva; a origem alheia
embelezamento, mas buscam, sobretudo, im- dos itens culturais constituindo, justamente,
primir determinada “marca social” em pessoas a condição que permite valorizá-los.
e coisas, pois de outra forma permaneceriam Um grafismo constitui uma intervenção
incompletos e despersonalizados cultural- que é tanto técnica como estética, social, e,
mente (VELTHEM, 2003; VIDAL, 1992). muitas vezes, terapêutica ou profilática, e
Os propósitos específicos desta intervenção objetiva quase sempre imprimir uma marca
são variados, podendo se direcionar para a em pessoas e coisas. A expressão formal e o

140
significado que é atribuído a cada grafismo guinada e renovação teórica que marcou a
pode revelar múltiplas percepções que se sobre- antropologia da arte em direção de aborda-
põem, mas quase sempre direcionam o olhar gens mais praxiológicas, fugindo do paradig-
para o que é essencial. Os sistemas gráficos ma comunicativo e simbólico que marcava
dos povos indígenas amazônicos procuram abordagens anteriores. A partir da relação do
antes “sugerir do que representar” (LAGROU, grafismo (pintado, trançado ou tecido) com
2007, 2013b). Isso significa que os grafismos os diversos suportes sobre os quais se aplica
não apresentam propriamente a configuração e que ajuda a constituir, os autores propõem
de um ser humano ou de um animal, vegetal, uma antropologia da percepção que analisa o
espírito ou sobrenatural, mas seus contornos estatuto e a agência da imagem na sua relação
expressam as concepções que caracterizam e com o universo cognitivo particular no qual
identificam cada um desses elementos e, por opera. Constatou-se na arte ameríndia um
esta via, são estabelecidas relações e o acesso marcante minimalismo figurativo que in-
dos seres humanos a diferentes mundos. Em siste em sugerir muito mais do que mostrar,
muitos casos, é a compreensão dessa duplicida- o que levou à conclusão que essa arte leva
de relacional que capacita uma pessoa indígena ao extremo a tensão entre imagem material
a percorrer o longo caminho de conformação e imagem mental. É por essa razão que os
do ser social. grafismos que aderem aos corpos tendem a
Entre os Wayana e Aparai (VELTHEM, uma abstração que oculta uma figuração às
1998, 2003), os grafismos englobam as noções vezes apenas virtual (LAGROU, 2011). É
de padrão, desenho, motivo e se aglutinam nesse contexto que o diálogo com o conceito
enquanto um repertório de um ser específico. de quimera, formulado por Severi, se impõe.
Os grafismos expressam propósitos represen- O livro reúne textos que exploram dois
tativos e conceituais e, ao serem enfocados tipos de relação entre grafismo e figuração
individualmente, colocam em evidência sua num universo marcado por uma ontologia
característica figurativa. Como sublinham a que tem o xamanismo como prática ritual
existência de algum elemento de semelhança constitutiva: a relação entre grafismo e a figu-
entre a forma visualizada e seus significados, ração (e/ou desfiguração) dos corpos, por um
são, portanto, icônicos. Ademais engendram lado, e a relação entre cognição e percepção,
imagens diversificadas que se desdobram em por outro. Neste último caso, a imagem surge
relações sucessivas, um grafismo sendo, assim, como instrumento de mediação entre os lados
uma evocação referencial porque expressa uma visível e invisível do mundo fenomenológi-
e múltiplas realidades. co, sendo a visibilidade dos seres o resultado
Trinta anos depois da publicação de da qualidade relacional que une os corpos.
Grafismo indígena (VIDAL, 1992), o volu- Atenção particular é dada à relação entre ritual
me Quimeras em diálogo: grafismo e figuração e criação artística, assim como à relação entre
nas artes indígenas, editado por Els Lagrou e os diferentes meios artísticos que no contexto
Carlo Severi (2013), é o primeiro a voltar a da performance ritual revelam todo seu poten-
reunir trabalhos sobre grafismo indígena, em cial sinestésico: constata-se, desse modo, que
sua maior parte, escritos por autores traba- as relações, correspondências e transformações
lhando no Brasil. Os autores, nesse volume, entre música, ritmo, movimento e grafismo se
com alguns autores que já estavam presentes mostram tão ou mais relevantes no contexto
no volume editado por Vidal (como Van ritual ameríndio que a relação entre a palavra
Velthem, Müller e Langdon), participam da ritual e sua codificação gráfica.

141
Outra publicação que resultou da co- outras expressões culturais, pois compartilham
laboração teórica com Carlo Severi – autor de um mesmo modelo de experiência coletiva e
que tem contribuído de forma sistemática à refletem, portanto, a visão e o sentido de uma
redefinição de um campo de pesquisa que comunidade indígena particular.
une a reflexão sobre a ontologia da imagem Essa publicação antecipa o interesse pelas
ao estudo praxiológico do ritual e às técnicas artes dos povos indígenas que, no futuro, os
de memorização entre sociedades orais – é catálogos de exposições sempre irão apresentar,
o livro editado por Carlos Fausto e Carlo muitas vezes de modo exclusivo. Apesar do
Severi (2016), Palavras em imagens. No livro fato destas análises estarem, de uma forma ou
convivem textos sobre sistemas gráficos ou de outra, relacionadas aos aspectos materiais e
artefatuais amazônicos e textos sobre essa expressivos das artes indígenas, pois vinculadas
mesma temática em outras partes do mundo, aos artefatos apresentados na exposição, veri-
incorporando novos autores ao campo da fica-se que muitos dos textos não se atêm ex-
reflexão sobre estética ameríndia, como Pierre clusivamente a esses condicionantes. Procuram
Déléage (2007) e Pedro Cesarino (2011). ir além, conectando os objetos e grafismos às
lógicas das concepções simbólicas, das cosmo-
As artes indígenas em logias, das funções e relações sociais, enquanto
exposições e catálogos elementos-chave para a compreensão das ideias,
das cosmologias, das experiências, das conexões
Há tempos, a cultura e a imagem indígena que são executadas por intermédio dos objetos.
vêm sendo expostas no Brasil, em variadas Os catálogos de exposição constituem,
formas e com finalidades as mais diversas. certamente, preciosas fontes para a compreen-
Constata-se que são absorvidas pela sociedade são das artes indígenas. Exemplos pertinentes
urbana por meio de reportagens jornalísticas são as publicações Os índios, nós, coordenada
e televisivas, livros, catálogos, revistas e de por Brito (2000); Unknown Amazon, editado
exposições em espaços diversificados. por Mc Ewan, Barreto e Neves (2001); e Índios
A mostra Arte plumária do Brasil no Brasil, organizado por Lucia van Velthem,
(BRASIL, 1980) inaugurou o ciclo das ex- Gustaaf Verswijver, Thiago Oliveira. Esta úl-
posições temporárias de artefatos indígenas tima publicação (THYS, 2011) se caracteriza
no país, oriundos de acervos museológicos. por apresentar um amplo painel da cultura
Seguiram-se outras exposições e catálogos, tais material ameríndia, os artefatos selecionados
como Arte e corpo: pintura sobre a pele e ador- sendo abordados enquanto elementos atuantes
nos de povos indígenas brasileiros (FUNARTE, na vida cotidiana, na fabricação da pessoa ou
1985) e o catálogo Índios no Brasil: alteridade, no estabelecimento de relações com os não
diversidade e diálogo cultural (GRUPIONI, humanos. Para comentar os artefatos expostos,
1992). Este contém textos sobre os povos in- especialistas em cada etnia representada foram
dígenas no curso da história e na perspectiva convidados para contextualizar e analisar as
das questões relacionadas com a diversidade, peças por meio de verbetes.
a territorialidade e as projeções para o futuro. Duas exposições e seus respectivos ca-
Aspectos relacionados com as artes indígenas tálogos marcaram o início do século XXI. A
são abordados em artigo específico de Velthem primeira integrou as comemorações dos 500
(1992), que ressalta o fato de que a considera- anos da chegada dos portugueses ao Brasil e,
ção dessas artes não deve ter uma perspectiva assim, foram organizadas em São Paulo e no
puramente intraestética, mas deve englobar Rio de Janeiro mostras que abarcaram todo o

142
leque das manifestações artísticas nacionais. finalidades meramente representativas, seu
O módulo Artes Indígenas apresentou objetos campo de atuação é mais amplo, pois inclui
de museus brasileiros e europeus, coletados e aspectos identitários, ações, emoções, sentidos
datados do século XVIII ao XX, e o catálogo de alcance relacional e não tanto conceitual.
(AGUILAR, 2000) que o acompanhou con- Permitem, ademais, a comunicação e a inte-
tém textos sobre os campos das artes indíge- ração entre sujeitos diversificados, porque o
nas, apontando aspectos essenciais para sua valor atribuído às formas expressadas reside em
compreensão. seu poder de condensar, transmitir e renovar
Um dos textos (VELTHEM, 2000) subli- – por meio da criatividade – os processos de
nha o fato de que as criações dos povos indíge- pensar e de ver o mundo e a sociedade. Essas
nas são concebidas e executadas em contextos disposições vão ao encontro da fecunda dis-
que não compartilham da noção de arte e sua cussão sobre patrimônio indígena (GALLOIS,
finalidade tal como é entendida no ocidente 2011) que integra o mencionado catálogo da
e no presente. Essas artes estão inseridas em exposição Índios no Brasil.
dimensões históricas e simbólicas próprias, As publicações voltadas para a descrição
direcionadas para o cumprimento de um papel e qualificação de acervos etnográficos cum-
ativo na vida de seus produtores. Menciona prem um significativo papel enquanto meio
igualmente que as criações dos povos indí- de informação sobre os patrimônios culturais
genas expressam preocupações específicas e, indígenas, sua constituição e localização nas
portanto, uma qualificação no singular – arte instituições museais brasileiras. Esses acervos
indígena – não pode ser considerada, pois não são ainda pouco conhecidos e estudados, mas
existe uma arte que lhes seja comum e geral. as evidencias indicam que a plumária indígena
A pluralidade – artes indígenas – se impõe em continua a ser um foco de grande interesse. Tal
todos os contextos e formulações. Destaca, percepção pode ser constatada em dois catálo-
enfim, que as artes indígenas refletem não gos: A plumária indígena brasileira (DORTA;
apenas as mudanças efetivadas no decorrer do CURY, 2000); e Xikrin: uma coleção etnográfica
tempo, mas se constituem, elas mesmas, em (SILVA; GORDON, 2011), que enfocaram as
um arcabouço transformativo que proporciona coleções do Museu de Arqueologia e Etnologia
às sociedades indígenas os meios de adapta- da Universidade de São Paulo. Os autores da
ção a novas realidades, nas quais identidades última dessas obras destacam a ampliação do
diferenciadas são afirmadas. reconhecimento do estudo de coleções etno-
A exposição Brésil Indien é coadjuva- gráficas, quando efetivadas sob a perspectiva
da por significativo catálogo (GRUPIONI, que as considera enquanto documentos que
2005) que apresenta e analisa as artes ame- representam veículos de acesso aos diferentes
ríndias – antigas e contemporâneas e no qual aspectos da vida social, do universo simbólico
se destaca um grupo de artigos que são reu- e da percepção estética dos povos indígenas
nidos sob o título Olhares sobre as artes indí- que os produziram. Esse catálogo merece ainda
genas (GALLOIS, 2005; LAGROU, 2005; destaque por ter se organizado em torno da vi-
PERRONE-MOISÉS, 2005). Diferentes em sita à coleção por especialistas Xikrin (Kayapó)
sua composição os textos possuem pontos em da nova geração que examinaram as peças
comum ao destacarem questões pertinentes em diálogo com a colecionadora, Lux Vidal,
que atravessam e caracterizam as artes dos especialista no assunto, que as coletou entre
povos indígenas. Apontam, assim, para o fato quarenta e trinta anos atrás, e com antropólo-
de que entre esses povos, a arte não possui gos que trabalham atualmente entre os Xikrin.

143
A acessibilidade às coleções musealiza- doenças e os conflitos trazidos pela invasão dos
das e sua requalificação, em parceria com os não indígenas em seu território. A miçanga
produtores indígenas, deveria ser uma prática constitui um item relacional por excelência
corrente nos museus, e não algo muito raro a conectar continentes distantes, nativos e
de acontecer. Os museus e suas reservas téc- estrangeiros, vivos e mortos, humanos e seres
nicas constituem territórios indutores de rica não humanos. É por causa desta conectivida-
reflexão sobre a continuidade e a reinterpre- de que a miçanga se presta tão bem a pensar
tação de coleções por povos que continuam como surgiu a separação e diferenciação entre
produzindo diversificados artefatos para uso os seres no mundo ameríndio, entre índios
cotidiano e ritual3. e brancos, vivos e mortos, sendo os mortos
Outra exposição, com curadoria de Els aqueles que se tornaram outros, às vezes muito
Lagrou, foi inaugurada pelo Museu do Índio próximos dos brancos, outras vezes deuses,
em agosto 2015. Denominada No caminho da animais ou ancestrais. Os resultados dessas
miçanga, um mundo que se faz de contas, esta pesquisas foram publicados no catálogo que
exposição constitui o fruto de um trabalho conta com textos de pesquisadores indígenas
de longa duração em parceria com pesqui- e não indígenas de grande número de etnias
sadores indígenas, linguistas e antropólogos. brasileiras e algumas não brasileiras.
Praticamente todas as peças expostas foram Todos esses exemplos mostram o comple-
produzidas para a exposição e em diálogo com xo entrelaçamento entre enfeites e os corpos
a proposta curatorial, o que fez as coleções que ajudam a fabricar. Outras etnografias, tais
que compõem a exposição já terem nascido como sobre os Mebêngôkre (DEMARCHI,
qualificadas, sendo que as peças expostas foram 2014) e Krahô (LIMA; ARATANHA, 2016),
identificadas e contextualizadas pelos próprios ou mais recentemente para o Xingu (LEITE,
produtores indígenas que, muitas vezes, eram 2018), exploram as inovações estéticas possi-
também os cineastas a filmarem a produção das bilitadas pela introdução de novas matérias-
peças, seus usos e os mitos a eles associados. -primas como a miçanga de vidro, com sua
A exposição se insere, assim, no contexto de gama infinita de cores, a serem exploradas de
reflexão sobre novas políticas e práticas de qua- forma magistral pelo cromatismo particular
lificação e constituição de acervos, ligadas ao de cada povo.
crescente protagonismo indígena no processo A exposição Dja Guata Porã: Rio de
de concepção e elaboração destes. Janeiro indígena, instalada no Museu de Arte
Os mitos revelaram que as miçangas se do Rio de Janeiro (MAR) em 2017, representa
constituem em item privilegiado para uma outra marca por causa da participação indíge-
complexa e diversificada reflexão indígena na que pôde ser notada de forma marcante.
sobre o aparecimento dos brancos na sua vida. Durante o complexo processo de concepção da
Para alguns indígenas esta história é recente, exposição, coordenado por José Bessa Freire,
para outros, antiga; alguns povos consideram Clarissa Diniz e Pablo Fuentes, e que envolvia
a miçanga como parte integrante da fabrica- temas políticos atuais e conflituosos, lideran-
ção de seus corpos, outros a julgam como ças indígenas faziam parte das discussões e
vetor de mudanças que traz no seu lastro as Sandra Benites foi convidada para fazer parte

3 Nesse contexto vale mencionar a tese de doutorado de Thiago Oliveira (2015) sobre as coleções etnográficas do
Alto Rio Negro.

144
da curadoria. A exposição mostra o quanto a grafismos e elementos linguísticos, despertam
discussão sobre artes indígenas e não indígenas interesse crescente em atores urbanos que
não pode ser feita, hoje, separada das discus- se utilizam dessas criações e expressões de
sões sobre as políticas indígenas e o respeito modo descontextualizado e desprovido da
por sua presença no cenário urbano. remuneração devida.
O reconhecimento do direito exclusivo de
As artes indígenas: experiências determinado povo indígena sobre suas tradi-
e ações afirmativas ções artísticas se beneficia das ações de registro
e documentação e em sua posterior difusão.
Para além das exposições e acervos muse- Efetivados por meio do trabalho pioneiro do
ais, outras experiências se detiveram sobre as Museu do Índio – Funai no Rio de Janeiro,
artes indígenas que se expressam por artefatos e foram concretizadas diferentes publicações
grafismos, assim como por meio de performan- sobre as artes indígenas, tais como Kusiwa: pin-
ces rituais. Referimo-nos às iniciativas afirmati- tura corporal e arte gráfica Wajãpi (GALLOIS,
vas em um contexto mais amplo de proteção ao 2002); Ikú ügühütu higei arte gráfica dos povos
patrimônio cultural imaterial, conduzido pelo Karib do Alto Xingu (FRANCHETO, 2003);
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Arte visual dos povos Tiriyó e Kaxuyana: pa-
Nacional (Iphan)4. Ações articuladas nesse drões de uma estética ameríndia (GRUPIONI,
campo resultaram na produção de dossiês e 2009); e o Livro da arte gráfica Wayana e Aparai
no registro, enquanto Patrimônio Cultural (VELTHEM; LINKE, 2010), os dois últimos
Imaterial do Brasil, de saberes ameríndios, editados em parceria com o Iepé. Outras publi-
tais como “Arte Kusiwa: pintura corporal e cações resultaram de exposições temporárias ou
arte gráfica Wajãpi”, em 2008; “Ritual Yaokwa de longa duração no Museu do Índio e contam
do povo indígena Enawene Nawe”, em 2010; com importantes contribuições de pesquisado-
“Ritxóko: expressão artística e cosmológica do res indígenas e antropólogos, como Tisakisü,
povo Karajá”, em 2012. tradição e novas tecnologias da memória, Kuikuro
Outras experiências são encabeçadas por (FAUSTO; FRANCHETTO, 2008); Ritual
instituições culturais, tais como museus, com da imagem: arte Asurini do Xingu (MÜLLER,
a colaboração de universidades, de organi- 2009); Cantobrilho Tikm˜u’˜un (TUGNY,
zações não governamentais e das próprias 2010); Tape Porã: impressões e movimento Mbya
associações indígenas. Buscam aprimorar (PISSOLATO, 2012); Iny (Karajá): povo do
estratégias para documentar conhecimentos rio (WHAN, 2012); Ashaninka, o poder da
tradicionais, em um contexto voltado para o beleza (BEYSEN; FERSON, 2015); Metoro
fortalecimento cultural. A preocupação com Kukràdjà, Mebengôkrê-Kayapó (DEMARCHI;
a valorização cultural, presente em muitas co- OLIVEIRA, 2015); A presença do invisível:
munidades tradicionais, não é propriamente vida cotidiana e ritual entre os povos indígenas do
recente e se conecta, em muitos casos, com Oiapoque (VIDAL; LEVINHO; GRUPIONI,
a questão dos direitos autorais, a qual afeta 2016); e Artesanias do cerrado: Mehi Jahi Xà
diretamente as artes indígenas e seus criado- (LIMA; ARATANHA, 2016). O catálogo
res. Bens culturais indígenas, como músicas, da exposição pinturas da floresta por artistas

4 Para importante contribuição a essa discussão da patrimonialização e da presença indígena no mercado das artes
no Peru, ver Belaunde (2012, 2016).

145
Ticuna, no Centro Cultural Banco do Brasil indígenas ativistas. O campo das artes se re-
em 2004, por sua vez, constitui importante encontra, hoje, com sua vocação de crítica
registro dessa nova e poderosa arte figurati- cultural e a arte como ativismo está de volta
va. O Instituto Socioambiental e Associações com muita força.
Indígenas – Foirn, Atix, Hutukara – organi- Sabemos que desde o movimento mo-
zaram publicações sobre a cultura material dernista na arte Ocidental, a arte teve como
de diferentes povos indígenas da região: Arte vocação não a imitação fiel do mundo lá fora,
Baniwa (RICARDO, 2001); Arte indígena mas sua torção. As imagens não visam refle-
Parque do Xingu (ATHAYDE, 2001); Kumurõ: tir o mundo, mas nos ensinam a olhá-lo de
Banco Tukano (CABALZAR, 2003); assim modo diferente. É nesse sentido que o artista
como Xapiri Theã Oni, palavras escritas sobre e o xamã possuem papéis convergentes nas
os xamãs Yanomami, editado em 2014. diferentes sociedades. Ambos nos ensinam a
As publicações referidas apresentam deta- ver o que não é dado a ver à primeira vista,
lhamento formal, material, técnico, repertório nos ensinam a ver o não óbvio. Tornam o
dos grafismos e seus suportes, a origem mítica. invisível visível e, uma vez que aprendemos
Ultrapassam, entretanto, os objetivos etnográ- a ver o mundo de modo diferente, ele nunca
ficos, informativos, pois estão marcados pelas mais será o mesmo. É assim que a relação
intenções de cada um dos povos enfocados e entre a antropologia e a história da arte com
que, trabalhando em estreita parceria com an- o conceito de alteridade deve ser entendida.
tropólogos e a instituição museu, contribuíram Ontologias, filosofias e modos de vida minori-
efetivamente para sua elaboração. Essa lista tários resultam num modo diferente de pensar
certamente não é completa, porque novas inicia- as relações possíveis entre arte e vida, arte e
tivas pelo país afora não deixam de se multipli- artefato, autoria e inovação (LAGROU, 2009).
car. O mesmo vale para teses e dissertações em Se não encontramos nas línguas indígenas
elaboração ou recém-terminadas, que podem ter conceitos que se traduzem facilmente como es-
escapado. É importante registrar, igualmente e tética ou arte, devemos entender que a dificulda-
de forma separada, o surgimento das primeiras de de tradução não aponta para uma falta, mas
pesquisas acadêmicas feitas por intelectuais indí- para uma diferença. As ontologias ameríndias
genas em contexto universitário. Nesse sentido são relacionais, que seguem a lógica da imanên-
vale mencionar a dissertação de mestrado de cia em vez da lógica da transcendência. Esse foi
Nelly Varin Mena Marubo (DUARTE, 2017), um dos principais argumentos de Alfred Gell
que aborda a pesquisa feita com as mestras de (1998) contra a teoria da arte vigente na própria
sua comunidade em torno da complexa estética antropologia da arte, o de que, contrariamente
relacional que surge em torno da fabricação e ao que muitos pensam, a instrumentalidade de
uso dos enfeites do molusco aruá. um artefato não o desvaloriza enquanto artefato
artístico. A agência de uma armadilha, que
Conclusão: pistas para o futuro captura a caça, o olhar, o pensamento, passa a
no cenário contemporâneo ser o modelo para um modo diferente de pensar
a arte, enquanto materialização de intenções,
Como conclusão, gostaríamos de inserir conhecimentos, ações e relações. A relação entre
algumas reflexões sobre o cenário contem- arte e armadilha deu origem ao Estado Oculto
porâneo do mundo das artes no Brasil, sua na Bienal de Medellín, em 2013, de curadoria
relação com o mundo indígena e a recente de Rodrigo Moura e Paulo Figueiredo Maia,
atuação de algumas figuras-chave, os artistas onde eram expostos diferentes tipos de obras,

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indígenas e não, que continham a ideia de ar- ramos no mundo da ciência, acordaram para
madilha (FIGUEIREDO; MOURA, 2013). uma revolução de perspectiva que se produz na
Na exposição “Estado oculto” aparece uma antropologia sob o nome de virada ontológica.
obra de Meirelles que é icônica para a ideia Esta virada nada mais é que a radicalização da
expressa: a obra consiste no próprio modelo e intenção na antropologia de levar as filosofias
um esboço de um prego-espinho, que serve para de outros povos a sério, sua novidade consis-
capturar caminhões que retiram ilegalmente tindo sobretudo no impacto causado em outras
madeira de áreas indígenas. Essa e outras obras disciplinas que até então tinham ficado longe
contemporâneas, que se inspiram na ideia de da leitura de detalhadas etnografias sobre povos
armadilha, dividiam o espaço com uma rede minúsculos e longínquos. O correlato dessa
dos Huni Kuin, que lá estava por causa de sua virada é a demanda por maior simetrização, de
tecnologia de capturar o olhar através do de- dar mais espaço para outras visões de mundo
senho labiríntico. se manifestarem, pois foi ao substituir as on-
É interessante lembrar, como o fazem tologias relacionais pela oposição entre sujeito
Figueiredo e Mouro, que o artista Bené e objeto que o Ocidente se inventou como
Fonteles foi curador em 1990 de uma expo- máquina de conquistar mundos, englobando
sição do mesmo nome, “Armadilhas Indígenas” todos, mesmo os mais resistentes. Esse modelo
(MASP, São Paulo), seis anos antes do texto de se mostrou insustentável e agora se abriga nas
Gell sobre armadilhas ser publicado como res- grandes bienais, como na de São Paulo de 2016,
posta a uma polêmica causada pela exposição obras como a “Oca Tapera Terreiro”, de Bené
de uma rede de caça como obra de arte. Em Fonteles, em que este organizou “conversas para
2016, o mesmo Fonteles organizará uma ree- adiar o fim do mundo” com importantes lide-
dição de “Armadilhas Indígenas” no Memorial ranças/artistas indígenas como Ailton Krenak
dos Povos Indígenas, em Brasília, da qual par- e Davi Kopenawa, autor de A queda do céu:
ticipam artistas de renome internacional como palavras de um xamã yanomami (Kopenawa;
Ernesto Neto e os artistas indígenas Ailton Albert, 2010), com intenção de ensinar ao povo
Krenak e Daiara Tukano. queixada – os brancos que fuçam a terra à pro-
Como na época dos movimentos do cura de minério – de que é hora de escutar a
Dadaísmo e do Surrealismo, que nasceram no voz da floresta. O livro já foi tema de exposição
entre guerras na Europa, junto e em estreito e tem inspirado muitos debates e intervenções
diálogo com a antropologia, e que, revoltados no mundo das artes contemporâneas5.
com a grave crise moral de uma Europa que Damiana Bregalda, na sua tese de dou-
se autodestruía, procuravam respostas e alter- torado na qual acompanha os Guarani nas
nativas para a crise da modernidade capitalis- Bienais de São Paulo entre 2014 e 2016,
ta e imperialista em outras tradições culturais descreve três performances impactantes de
(CLIFFORD, 1981), vivemos hoje uma nova atores indígenas no entorno da Bienal. Uma
aliança entre o mundo da arte e a antropologia. é o exemplar gesto de Ailton Krenak que,
Com a crescente consciência dos perigos do vestido num terno impecavelmente branco,
antropoceno, de que podemos estar ativamente pintou o rosto de preto com graxa, enquanto
contribuindo para o fim do mundo que conhe- falava de forma incisiva, mas calma, para a
cemos, artistas e curadores, assim como alguns Assembleia Constituinte em 1987. Não é um

5 Para uma reflexão sobre a presença ainda limitada de artistas indígenas nas recentes bienais ver Vincent, 2017.

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acaso que esta performance ressurge hoje na 2017). O ¡MIRA! é, sem dúvida, um marco
qualidade de gesto artístico altamente incisivo na história de legitimação das artes indígenas.
e urgente. Outra performance foi a efetuada A exposição “Histórias Mestiças”, com
pelos Guarani e simpatizantes que, em 2013, curadoria de Adriano Pedrosa e da historiadora
pintaram de vermelho as indígenas vítimas dos e antropóloga Lili Schwarcz, de 2014, também
bandeirantes na famosa escultura de Brecheret faz parte desse movimento. É nessa exposição que
na entrada do pavilhão da Bienal, pichando aparecerá, pela primeira vez no Brasil, a obra de
as frases “não à PEC 215” e “bandeirantes Ernesto Neto em diálogo com o ritual do nixi
assassinos”. Como acompanhamento do ato, pae (ayahuasca) dos Huni Kuin6. Ao lado da
Marcos Tupã escreveu um manifesto do qual instalação de sua obra, mas independente dela,
retiro a seguinte frase: “A pedra sangrou. E, estava exposta uma sequência de quadros do
para nós, arte é outra coisa. Ela não serve para coletivo MAHKU, conjunto de artistas Huni
contemplar pedras, mas transformar corpos Kuin liderados por Ibã Sales Huni Kuin, exímio
e espíritos. Para nós, arte é o corpo transfor- cantor de nixi pae. Os trabalhos do coletivo
mado em vida e liberdade e foi isso que se MAHKU têm estado cada vez mais presentes em
realizou nessa intervenção” (MARCOS TUPÃ exposições de arte contemporânea (MATTOS;
apud BREGALDA, 2017, p. 289). A última IBÃ, 2017). O coletivo MAHKU – ao lado dos
performance escolhida para mostrar o tipo artistas Jaider Esbell, artista Makuxi, e Denilson
de arte ativista que começa a ser produzida Baniwa, designer e artista – foi indicado ao prê-
por lideranças/intelectuais/artistas indígenas mio PIPA Online, do qual Jaider Esbell acabou
é a que Naine Terena, artista e professora de sendo vencedor7. A entrada de produções indíge-
arte na Universidade de Goiás, realizou por nas no espaço de artes não indígenas não é restrita
ocasião da vivencia de artistas e curadores da ao campo da pintura, mas se faz notar também
Bienal de 2016. Ao fazê-los vestir os chinelos de modo expressivo no campo do cinema e da
daqueles que se foram há dez anos em violento música, temas que infelizmente estão fora do
conflito com fazendeiros, a artista levou seu escopo deste trabalho.
público às lágrimas (BREGALDA, 2017). Com essa conclusão, visamos mostrar
Muitos são os caminhos que se abrirão como é fluida e natural a passagem do artefato,
para a reflexão quando o mundo da arte abrir que faz os corpos e a vida relacional indígena,
suas portas para pensadores e artistas indígenas. para uma arte indígena contemporânea, ati-
Esse caminho começa aos poucos a ser trilhado. vista ou não, que tematiza questões vitais para
Nesse sentido, não podemos deixar de mencio- a vida comunitária e dá a ver cosmopolíticas
nar a exposição ¡MIRA!, organizada em 2013, diversas e relacionais. Basta querer ver que
em Belo Horizonte, por Maria Inês de Almeida, um novo mundo de possibilidades relacionais
que reúne obras de artes visuais contemporâ- e ontológicas se abre, não somente para os
neas dos povos indígenas de vários países da aprendizes de antropólogo, mas para todos
América do Sul, com oficinas e vivências que que querem e podem ver. É por isso que a
permitiram a estes artistas a criação de redes e entrada dos indígenas no mundo das artes
troca de experiências (MATOS; BELAUNDE, metropolitanas é crucial, importante e urgente.

6 Para uma primeira abordagem sobre a relação entre Neto e o universo ayahuasquerio, ver Goldstein e Labate (2017);
para um esboço de pesquisa em preparação sobre a relação entre Neto e os Huni Kuin, ver Lagrou (2018b).
7 Sobre o movimento MAHKU, ver também a recém defendida dissertação de Daniel Dinato (2018).

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Resumo

As artes indígenas: olhares cruzados


Neste artigo, duas especialistas que se debruçam há anos sobre o universo dos artefatos e grafismos indígenas e seus
desdobramentos contemporâneos revisitam a produção dos últimos trinta anos e analisam as mudanças de paradigma
que marcaram a disciplina da etnologia como um todo e a etnologia das artes indígenas em particular.
Palavras-chave: Artes Indígenas; Antropologia da Arte; Grafismo, Artefatos.

Abstract

Indigenous arts: an encounter of viewpoints


In this article two specialists who for years have worked with the universe of indigenous graphic systems and artefacts,
as well as the contemporary manifestations, revisit the production of the last thirty years and analyse the changes of
paradigm that marked the discipline of ethnology as a whole and the ethnology of indigenous arts in particular.
Keywords: Indigenous Arts; Anthropology of Art; Graphism, Artifacts.

Résumé

Arts indigènes: regards croisés


Dans cet article deux spécialistes des systèmes graphiques et des artefacts indigènes, ainsi que de ses dédoublements
contemporains, revisitent la production des derniers trente ans et analysent les changements de paradigme qui ont
marqué la discipline d’ethnologie en générale et l’ethnologie des arts indigènes en particulier.
Mots-clés: Arts Indigènes; Anthropologie de l’Art; Graphisme; Artefacts

156
DOI: 10.17666/bib8707/2018

Gestão intergovernamental: evolução, abordagens teóricas e perspectivas analítica

Eduardo José Grin1


Fernando Luiz Abrucio2
Martina Bergues3

Introdução exceção. Especialmente em países federais, a


crescente expansão das políticas nacionais adi-
Relações intergovernamentais (RIGs) im- ciona complexidade na sua implementação em
plicam desafios para políticas públicas, pois a nível subnacional. Nesse contexto, destaca-se
gestão compartilhada de programas e políticas a função crucial na administração de progra-
envolve mais de um nível de governo. Para ges- mas que envolvem mais de um ente federativo,
tores de políticas públicas, gerenciar por meio de mostrando a centralidade da gestão intergover-
governos e de múltiplas organizações na matriz namental – IGM (O’TOOLE JR.; MEIER,
complexa do federalismo tem se tornado uma 2004). Mesmo em países não federativos e com
das atividades mais relevantes (AGRANOFF; mais de uma esfera governo, a IGM cresce em
MCGUIRE, 2001a; CONLAN; POSNER, importância (AGRANOFF, 2013).
2008; MCGUIRE; LEE; FYALL, 2013; As mudanças que os governos vêm sofren-
WRIGHT, 1990). O sucesso das políticas pú- do em termos de restrições fiscais e exigências
blicas intergovernamentais parece depender, em por serviços de maior qualidade só ampliam
grande medida, da gestão bem-sucedida dessa a complexidade, número e tamanho das ini-
complexidade (WRIGHT, 1974). ciativas intergovernamentais entre diferentes
O aspecto intergovernamental das políti- esferas de governo (CONLAN; POSNER,
cas públicas tem se tornado mais regra do que 2008; WRIGHT; KRANE, 1998). Trata-se de

1 Eduardo José Grin é doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/São
Paulo), onde também é professor da Escola de Administração de Empresas e da Escola de Economia. Desenvolve
pesquisas sobre federalismo, relações intergovernamentais e políticas públicas. É coeditor dos livros Federalismo y
relaciones intergubernamentales en México y Brasil (Editorial Fontamara, 2017) e El gobierno de las grandes ciudades
gobernanza y descentralizacion en las Metropolis de America Latina (Centro Latinoamericano de Administración
para el Desarrollo e Universidad Autonoma de Chile, 2017). E-mail: eduardo.grin@fgv.br
2 Fernando Luiz Abrucio é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da FGV-SP e
chefe do Departamento de Gestão Pública. Ganhou o Prêmio Moinho Santista de Melhor Jovem Cientista Político
brasileiro (2001). Pesquisa temas relacionados ao federalismo, políticas públicas e gestão pública, tendo publicado
vários artigos, no Brasil e no exterior, sobre esses temas. Autor dos livros Os barões da Federação (Hucitec, 1998)
e Cooperação intermunicipal: experiências de arranjos de desenvolvimento da educação no Brasil (Editora Positivo,
2017). E-mail: fabrucio@gmail.com
3 Martina Bergues é mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-SP, bacharel em Ciências Sociais
pela USP e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Atualmente trabalha como analista de políticas públicas e gestão governamental na Secretaria Municipal de Inovação
e Tecnologia da Prefeitura de São Paulo. Pesquisa temas relacionados ao federalismo, relações intergovernamentais
e burocracias na gestão intergovernamental. E-mail: martina.bergues@hotmail.com

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 157-180. 157
reduzir a probabilidade de os governos encon- IGM são de origem norte-americana. O le-
trarem soluções falhas para problemas sociais vantamento bibliográfico em outros países,
baseados em estratégias isoladas (go-it alone sobretudo europeus, não mostrou uma pro-
strategies) (MCGUIRE, 2013). Igualmente, é dução acadêmica desenvolvida. Acadêmicos e
uma alternativa ao “federalismo oportunista”, investigadores europeus e sul-americanos, em
em que governos exploram formas de controlar sua grande maioria, valem-se dessa literatura.
relacionamentos intergovernamentais em vez Portanto, esse trabalho foi construído majori-
de buscarem estratégias administrativas par- tariamente a partir da produção norte-ameri-
tilhadas (MCGUIRE; LEE; FYALL, 2013). cana. Por fim, embora essa revisão tome por
Considere-se também o realinhamento nas referência a realidade de países federais, IGM
RIGs, revisão no escopo de serviços e pro- não se restringe apenas a essa forma de divisão
gramas intergovernamentais e mudanças nas territorial do poder (AGRANOFF, 2013).
demandas de responsabilidade fiscal para os A segunda ressalva é que a sugestão de
governos (WRIGHT; KRANE, 1998). organização desse campo é apenas uma das
A crescente interdependência e comple- muitas possibilidades de sistematização da lite-
xidade intergovernamental para implementar ratura. Em primeiro lugar, pois, exceto alguns
políticas e serviços públicos mostra a relevân- poucos trabalhos (WRIGHT, 1990; WRIGHT;
cia desse campo teórico. Essa abordagem é STENBERG, 2006), há poucos esforços para
fundamental para analisar o funcionamento sistematizar esse campo de estudos; em segundo,
das políticas públicas, especialmente em sis- porque as fronteiras entre IGM e RIGs são
temas federativos em que a autonomia dos tênues e difusas. Assim, optou-se por selecionar
entes subnacionais é essencial no sucesso das trabalhos com enfoque mais teórico ao priorizar
políticas. Os estudos em IGM surgem in- autores que, na sua abordagem sobre IGM,
fluenciados por três forças organizacionais propõem definições ou contribuições, e não
incorporadas ao funcionamento dos sistemas apenas uma retomada dos estudos clássicos
federais: a “era da organização”, que ampliou como os de Deil Wright, por exemplo. Por fim,
o papel do Estado na vida social, econômica destaque-se a proximidade com os estudos sobre
e política; a escalada da regulação nas RIGs; governança pública e multinível, bem como
e a emergência da questão administrativa na sobre implementação de políticas.
gestão pública. Todas reforçam a análise das Tendo dito isso, esta revisão está organizada
habilidades gerenciais que cruzam fronteiras como segue. Após a introdução, apresenta-se
organizacionais (WRIGHT, 1990; WRIGHT; uma delimitação conceitual de IGM mediante
KRANE, 1998;). outros enfoques que lidam com interação inter-
Este trabalho realiza um balanço das dife- governamental e com atores não governamen-
rentes lentes teóricas sobre IGM, mostrando tais. Em seguida discute-se a gênese do termo
perspectivas, avanços e possibilidades de uti- e suas especificidades em relação às RIGs e ao
lização no campo da administração pública e Federalismo como campos centrais de compa-
da ciência política. Também busca sintetizar os ração com IGM. A próxima seção desenvolve a
principais aspectos que definem esse conceito, evolução dos estudos de IGM, passando pelas
visando propor um ponto de partida mínimo abordagens top-down, bottom-up e outros mo-
para discutir as perspectivas abertas por essa delos explicativos. A terceira parte enfoca as
abordagem teórica. formulações disponíveis na literatura visando
Duas ressalvas iniciais são importantes. localizar uma definição mínima de IGM. Por
A primeira é que a maioria dos estudos sobre fim, são propostas três perspectivas analíticas

158
nos estudos da IGM: barganha e negociação Portanto, assume um enfoque buscando ex-
federativa, redes e estudos de coordenação. Essas plicar como organizam-se processos de gestão
visões foram definidas com base na pesquisa para solucionar problemas intergovernamen-
das principais bases de artigos científicos nor- tais. Todavia, não significa que variáveis estru-
te-americanas (JSTOR, EBSCO e Sage) e nos turais sejam irrelevantes, uma vez que a IGM
modelos de gestão propostos por Agranoff e se insere no seu interior, mas que não têm cen-
McGuire (2001a). tralidade por não estarem sujeitos a mudanças
de curto prazo (WRIGHT; KRANE, 1998).
Delimitando IGM diante de Esse é o objeto central de estudo, visando
enfoques teóricos de interação analisar os arranjos resultantes de colaboração
intergovernamental intergovernamental.
Ao tomar políticas e programas como
Esse conceito (intergovernamental mana- ponto de partida, IGM não se confunde com
gement, no inglês) entrou no léxico norte-a- a literatura de implementação de políticas,
mericano da administração pública a partir embora a distinção não seja tão nítida quanto
da década de 1970, buscando distinguir um propõem os autores desse campo. Mas, dadas
campo de análise não abordado pelo fede- as variáveis-chave das análises de implemen-
ralismo e pelas RIGs. O primeiro trata do tação (SABATIER, 1993), IGM se debruça
contexto constitucional e legal que define sobre as estratégias de interação para atingir
parâmetros para decisões sobre políticas. As objetivos de política (abordagem top down) ou
RIGs ocupam-se das interações (cooperação definição de policy issues (na versão bottom-up).
e/ou concorrência) entre entes governamentais Analisa meios e técnicas gerenciais de interação
cujos atributos, ações e atitudes moldam es- em rede para implementar políticas, menos
colhas sobre a produção de políticas públicas. que os seus fins e resultados. Nem o ciclo for-
IGM trata do processo de solução de pro- mulação-implementação-avaliação ou a ideia
blemas intergovernamentais sob condições de de que implementação reformula uma política
incerteza e complexidade, por meio de redes são objeto das análises de IGM.
de atores governamentais e não governamen- No continuum política e administração,
tais, para implementar programas (WRIGHT; IGM enfatiza o processo de gestão (WRIGHT;
KRANE, 1998). Essa é a principal unidade de KRANE, 1998) e suas variáveis institucionais
análise. Trata-se de um termo menos abrangen- (contexto constitucional, legal e das normas
te, pois engloba a gestão interjurisdicional de de administração pública) e comportamentais
políticas intergovernamentais. Embora a polí- (ações e atitudes de administradores e especia-
tica não seja dissociada da gestão, a adminis- listas de políticas). As variáveis-chave que ca-
tração é uma dimensão-chave da IGM, já que racterizam o que é e o que não é IGM, quando
seus atores-chave são servidores públicos em comparada com federalismo e RIGs, seguem
todos os níveis hierárquicos e governamentais no Quadro 1. Adiante, volta-se a discutir essas
(KINKAID; STENBERG, 2011; WRIGHT; três formas de interação intergovernamental.
STENBERG; CHO, 2009). Assume destaque nessa literatura gestão
Essa abordagem analisa vínculos intergo- em redes não hierárquicas e administração de
vernamentais assumindo que politics, policies programas intergovernamentais, unificados
e programas estão dados, e concentra-se mais em uma teoria da “gestão pública colaborati-
sobre ajustes incrementais nas atividades de va” pautada na barganha, negociação e ajustes
gestão que reforçam a entrega de serviços. incrementais em atividades conjuntas. Essa é

159
uma fusão e um compromisso mútuo entre fe- WRIGHT; STENBERG; CHO, 2009). Essa
deralismo e gestão (AGRANOFF; MCGUIRE, é a abordagem teórica que buscar ancorar as
2001a; 2003; 2004). Assim, gestão pública análises de IGM, diante da natureza geralmente
colaborativa descreve a interdependência em ateórica dos estudos nesse campo (O’TOOLE
arranjos interorganizacionais para solucionar JR.; MEIER, 2004). Redes buscam realizar uma
problemas administrativos na execução de pro- melhor coordenação para superar deficiências
gramas e que não podem ser equacionados por administrativas e organizacionais na execução
um único ente governamental (Idem, 2003; de programas de cunho intergovernamental.

Quadro 1
Contrastando federalismo, RIGs e IGM
Características Federalismo RIGs IGM
Período de
Século XIX Década de 1930 Década de 1970
surgimento
Atores-chave e arranjos Problemas inerentes ao
Moldura constitucional e
Abrangência e escopo formais e informais que processo de implementação de
legal para policy decisions
adotam policy choices programas

Unidades de RIGs mais:


Entidades União, estados e
União e estados, e estes continuum policy-in-
jurisdicionais municípios em relações
entre si administration e mix setor
envolvidas binárias ou tripartites
público e privado
Relações de Supremacia nacional Hierarquia percebida Redes não hierárquicas (matriz
autoridade (autoridade contingente) (autoridade assimétrica) de gerenciamento)
Barganha, vínculos informais,
Meios de resolução Competição entre os entes
Leis, cortes e eleições negociação e resolução de
de conflitos e/ou coalizões cooperativas
litígios
Dispositivos Poder (sanções e induções) Prioridades (trade-offs) Métodos e procedimentos
Foco: construção de consenso
Propósitos (missão): Perspectivas dos atores
entre objetivos conflitantes
Valores liberdade e direitos jurisdicionais (políticas na
e resultados de programas
constitucionais administração)
(gerenciamento/eficiência)
High level politics Políticas em nível Low level politics (políticas de
Quociente de política
(partidarismo) no governo intermediário (políticas de implementação e solução de
partidária
nacional coordenação) problemas)
Atores Administradores Profissionais especialistas/
Líderes políticos eleitos
interjurisdicionais generalistas gestores de programas
Ênfase Politics Policy Administração
Fonte: Wright (1990), Wright e Krane (1998) e Wright e Stenberg (2006).

Em linha com Schechter (1981), se ajuste-se aos fins definidos nos marcos das
federalismo e RIGs são compatíveis, como RIGs e do federalismo com o recurso de meios
fazer para que instrumentos de gestão pos- não hierárquicos. IGM é process-oriented nas
sam funcionar para os fins do federalismo interações demandadas por programas inter-
democrático? Princípios (fins) constitucio- governamentais, ao invés de orientar-se para
nais e princípios gerenciais ditam que IGM substantive results, e direciona o “evangelho da

160
eficiência” para os fins limitados do governo governamentais os responsáveis pela tomada
constitucional ao combinar esforços de mais de decisão. Ainda que o papel dos governos
um nível de governo. esteja mudando, o escopo de ação do setor
A delimitação conceitual da IGM tam- público não parece estar diminuído. Desse
bém pede discussão sobre temas abordados modo, para Wright e Krane (1998), IGM é
na literatura sobre governança multinível e uma abordagem mais adequada para analisar a
multissetorial. Compreender o que fazem e “divisão de reponsabilidade” na interação entre
como operam gestores por meio de fronteiras atores governamentais e não governamentais.
governamentais, IGM precisa dialogar com o Portanto, o crescimento de redes de cola-
tema da governança, entendida como gestão de boração com atores não governamentais não é
redes (O’TOOLE JR.; MEIER, 2004). Para a fração dominante das atividades públicas, o
os autores que trabalham com essa perspectiva que resulta antes em um complemento que um
teórica, a gestão pública colaborativa pode desafio à autoridade governamental. Enquanto
ser associada com os enfoques de governança IGM ocorre em contexto legal e institucional
como um produto expandido das redes inte- mais bem-definido, que garante uma gover-
rorganizacionais (WRIGHT; STENBERG; nança democrática com mais responsabilida-
CHO, 2009). Dessa maneira, redes de ges- de, governança multinível costuma enfatizar
tão públicas são vistas como instrumentos relacionamentos mais informais e acomoda-
de governança contemporânea (MCGUIRE; tivos para a tomada de decisão. Assim, não é
FYALL, 2014). a presença plural de atores governamentais e
Na literatura sobre IGM, governança inter- privados que diferencia análises de governança
governamental e gestão não são enfoques estra- pública/multinível das análises de IGM, mas
nhos entre si. Redes interorganizacionais, gestão a maior responsabilidade administrativa e go-
colaborativa intergovernamental e governança vernamental (WRIGHT, 1990; WRIGHT;
multissetorial são meios correlatos e associados STENBERG; CHO, 2009).
de interações intergovernamentais e entre atores Considerando essa delimitação conceitual,
públicos e privados, tendo em vista a solução observa-se que há um esforço de sistematização
de problemas administrativos no processo de teórica diante de cinco abordagens que lidam
implementação de programas e políticas. Atores com o tema da interação intergovernamental
em redes de IGM estão frequentemente loca- em programas e políticas públicas. Mas, em
lizados em burocracias públicas que, por sua linha com a revisão realizada, faz sentido a res-
vez, estão conectadas com organizações externas salva de Wright e Krane (1998, p. 1162): o con-
às linhas formais de autoridade (WRIGHT; ceito “é ambíguo, de uso recente e especializado,
STENBERG; CHO, 2009). possui limitada visibilidade e uma maturidade
A despeito dessa aproximação conceitu- incerta”. Porém, a discussão evidencia que não
al, Wright, Stenberg e Cho (2009) destacam se trata de um desdobramento da agenda de
diferenças entre processos de governança mul- temas já abordados pelo federalismo e RIGs,
tinível e IGM. Há limites de accountability e o mas de outro enfoque para lidar com mais uma
problema da transferência de responsabilidade dimensão da interação intergovernamental,
em arranjos de governança. Como o ajuste conforme sintetizado no Quadro 1.
entre jurisdições e redes de governança pode A discussão dessa seção mostra que
ser pouco claro, questões sobre quando, como, o conceito de gestão pública colaborativa
onde e quais governos importam podem não (AGRANOFF; MCGUIRE, 2001b, 2003,
ser bem-definidas, mas seguem sendo os atores 2004) é um caminho promissor para uma

161
melhor definição teórica da IGM. Ao mesmo Prioridades de gastos, escolhas de pro-
tempo, trata-se de uma perspectiva analítica gramas e práticas gerenciais em todos os ní-
que se apropria de formulações de outras abor- veis governamentais cada vez mais refletem
dagens (análise de redes, governança multinível a influência da nacionalização das agendas
e os modelos de gestão top-down e bottom-up de políticas. A necessidade de envolver os
utilizados na literatura sobre implementa- entes subnacionais os transforma em critical
ção de políticas). Nessa linha comparativa, workhorses para implementar iniciativas. E
a próxima seção resenha a bibliografia sobre isso ocorre em um contexto em que as receitas
federalismo, RIGs e IGM. subnacionais são cada vez mais constrangidas
por federal preemption5, mudanças tecnológicas
Gênese da IGM e as diferenças e pressões econômicas em nível nacional e
com relação ao federalismo e RI global. Esse contexto afeta a distribuição de
poder no sistema de gestão intergovernamen-
O surgimento do conceito IGM nos tal e pressiona sua capacidade e flexibilidade
Estados Unidos coincidiu com o crescente (CONLAN; POSNER, 2008).
envolvimento do governo federal nos assuntos A literatura identifica o surgimento do
subnacionais nas décadas de 1960 e 1970. conceito de IGM paralelo à substituição de
Wright (1990) identifica outros dois aspectos um federalismo mais cooperativo por outro
que também impulsionaram sua emergência: de cunho mais competitivo. A reformulação
(1) dificuldades de implementar programas in- do federalismo caminhou na direção da cen-
tergovernamentais; e (2) o hiato entre burocra- tralização e fortalecimento do governo fede-
tas especialistas e atores políticos generalistas. ral (KINCAID, 1990; STENBERG, 1981).
Os primeiros estudos buscavam compre- Portanto, é compreensível que muitos estudos
ender as interações entre os entes federativo iniciem localizando IGM a partir da existência
na gestão das subvenções em ajuda (grants- dos conflitos intergovernamentais. Essas dispu-
-in-aid)4 (STENBERG, 2008; WRIGHT; tas são entendidas como um comportamento
STENBERG, 2006) ou contratos em pro- derivado da interdependência que precisa ser
gramas intergovernamentais (AGRANOFF; gerida para produzir relações mais cooperativas
MCGUIRE, 2004). Esse instrumento de (BUNTZ; RADIN, 1983).
apoio financeiro, ao ampliar as regulações fe- Em vez de uma “antiquada” visão de
derais sobre como gastar os recursos, trouxe à barganha e negociação pautada por batalhas
tona maior qualidade administrativa para os ideológicas na política intergovernamental,
governos subnacionais. Igualmente, passou a seria preciso adotar uma abordagem mais ad-
exigir maior domínio de temas técnicos nas ministrativa nessas interações (AGRANOFF;
interações intergovernamentais para lidar com MCGUIRE, 2001b; MCGUIRE; LEE;
a gestão das regras inseridas nos programas FYALL, 2013). Menos do que perguntar qual
federais. governo deveria assumir responsabilidades por

4 Recursos financeiros concedidos pelo governo federal norte-americano aos entes subnacionais para ser investido
em políticas públicas ou em programas específicos. Geralmente são regulados por normas de utilização e sobre
como gastar os valores repassados.
5 Ocorre quando conflitam leis federais e estaduais e as primeiras deslocam (preempting) as segundas. O ente federal,
via Congresso ou ordens executivas, promulga leis que seriam competência estadual, o que os impede de definir
regras para o mesmo tema.

162
políticas, a questão que importa é: como os crescem para todos os níveis de governo diante
diferentes entes atuam conjuntamente para das exigências da existência de redes de gestão
encontrar soluções para problemas que reque- intergovernamental.
rem atuação conjunta em termos de gestão? Feita essa ressalva, é importante voltar às
Nos estudos sobre RIGs assumem des- variáveis comparadas sobre federalismo, RIGs
taque autores como Daniel Elazar (1987), e IGM apresentadas no Quadro 1, em linha
William Anderson (1960) e Deil Wright com Wright (1990), Wright e Krane (1998) e
(1974; 1988). Para Anderson (1960, p. 3), Wright e Stenberg (2006), ao longo de seis di-
RIGs são “um corpo importante de ativida- mensões: (1) atores principais das análises; (2)
des ou interações ocorrendo entre unidades envolvimento das jurisdições; (3) escopo das
do governo de todos os tipos e níveis dentro atividades realizadas; (4) meios para resolver
do sistema federativo”. Esses estudos analisa- conflitos; (5) tipos de relações de autoridade
ram as relações entre os entes federativos e o entre unidades federativas; e (6) o quociente
compartilhamento de funções, considerando político envolvido. Sobre essas comparações,
aspectos estruturais, legais e constitucionais Wright (1990) enfatiza serem para propósitos
(WRIGHT, 1988). heurísticos para diferenciar a variedade de
As análises de IGM de programas federais relacionamentos intergovernamentais, sobretu-
destacam a dimensão administrativa das redes do no sistema político-administrativo federal
colaborativas de gestores governamentais e ato- americano. Não se trata de um modelo norma-
res não governamentais. Desse modo, o objeto tivo ou preditivo, mas sim de tipos distintos
de análise são as rotinas administrativas entre de interações entre níveis de governo.
redes de burocratas6 no interior do sistema O federalismo se preocupa com high po-
federativo (AGRANOFF; MCGUIRE, 1999; litics e distribuição de poder (MCGUIRE,
2001b). Busca-se identificar o processo cola- 2013; WRIGHT, 1990) e as análises de IGM
borativo entre entes governamentais interde- priorizam o lower level da solução de proble-
pendentes na gestão de um programa, ao invés mas administrativos na implementação de
de analisar-se a coordenação de RIGs entre políticas. Mas isso não significa uma lógica
unidades que são politicamente autônomas. que separe política e administração no interior
Conforme Conlan e Posner (2008), na das redes intergovernamentais (WRIGHT,
medida em que iniciativas federais crescem em 1990). Quanto às questões jurisdicionais, redes
número e complexidade, amplia-se seu alcance de IGM envolvem entes governamentais e
nos níveis subnacionais com forma e inten- organizações privadas, mas destacam a respon-
sidade novas no sistema intergovernamental. sabilidade governamental na sua condução.
Os estudos de IGM se alinham ao federalismo No que tange às relações de autoridade,
e suas injunções constitucionais e à política a diferença essencial entre federalismo/RIGs
intergovernamental como coordenação de e IGM é a sua natureza não hierárquica ex-
conflitos e arena de barganhas e/ou negociação. pressa nas redes colaborativas (AGRANOFF;
Porém, seu foco reside em analisar os desafios MCGUIRE, 2003). Distintamente do fede-
que derivam de aspectos administrativos que ralismo e das RIGs, que costumam enfatizar a

6 Menos que formular políticas, burocratas são gestores públicos atuantes em policy communities que vinculam
diferentes níveis de governo em torno da gestão administrativa e implementação de políticas públicas, em linha
com a literatura de IGM.

163
autoridade decisória e capacidade de coordena- enfrentamento e resolução de problemas”
ção do governo nacional, IGM destaca a rede (networking, strategic and coping behavior and
completa de relações, incluindo as verticais, problem solving) inerentes à administração de
horizontais e com o setor privado, com ou programas intergovernamentais (WRIGHT;
sem fim de lucros, para implementar políticas. KRANE, 1998; MANDELL, 1988). Essas
Não há um único centro de poder, mas graus
redes não hierárquicas revelam a busca de
variados de dependência entre os atores em
um padrão de autoridade mais compartilhada gestão intergovernamental interdependente
(WRIGHT, 1990). como arranjo para alcançar objetivos que ex-
Em relação aos atores, o federalismo con- trapolam as fronteiras de instituições isoladas
sidera os políticos eleitos como os protagonis- (MANDELL, 1988).
tas, enquanto burocratas de alto escalão que Esse é o instrumento principal utili-
influem na formatação das escolhas de políticas zado por administradores públicos para
públicas são o foco central das análises de solucionar problemas que não podem ser
RIGs. A referência a atores privados, com ou resolvidos por uma única organização, o
sem fins lucrativos, distingue análises de IGM
que demanda uma “intergovernamenta-
daquelas do federalismo e RIGs. Exigências
lidade colaborativa” apoiada em técnicas
de gestão e administração de programas não
são passíveis de análise com os recursos dis- de gestão (MCGUIRE, 2013). O foco são
poníveis nas teorias do federalismo e de RIGs “acomodações interativas e ajustamentos
(WRIGHT; STENBERG, 2006). negociados” apoiados em soluções técnicas
Para a resolução de conflitos, cortes ju- para as exigências de ordem prática na gestão
diciais e eleições são os meios mais usuais nas de programas (AGRANOFF; MCGUIRE,
abordagens do federalismo. RIGs podem ser 2004, p. 501). Se o federalismo destaca o
analisadas sob a ótica do mercado (unidades aspecto constitucional e as RIGs enfatizam
governamentais podem competir ou cooperar), a dimensão política, IGM aborda soluções
conforme os jogos interativos que estabele-
para os conflitos nas redes intergovernamen-
cem. O enfoque de IGM analisa o processo
tais de gestão colaborativa entre especialistas
de barganha, negociação e vínculos informais
para a solução de litígios e problemas geren- e técnicos alocados nos diferentes níveis de
ciais entre especialistas de políticas. Como governo (AGRANOFF; LINDSAY, 1983).
as interações entre esses são mais contínuas, Contudo, na literatura, não há consenso
amplia-se a probabilidade de obter acordos sobre a relação entre IGM, RIGs e federalismo.
em suas subsequentes interações (WRIGHT, Para alguns, IGM é uma extensão do federalismo
1990; WRIGHT; STENBERG, 2006). em “tempos de gerencialismo” (SCHECHTER,
Abordagens de IGM como redes estruturais 1981), para outros, uma dimensão negligenciada
são caracterizadas por aspectos observáveis nas no interior das RIGs (AGRANOFF; LINDSAY,
redes comportamentais e na ação discricionária
1983). Mesmo esforços, como o realizado por
de administradores públicos para serem ativos
nas redes gerenciais (GAGE; MANDEL, 1990; Wright (1990), revelam as dificuldades de uma
O’TOOLE JR.; MEIER, 2004). separação nítida entre essas abordagens. Segue,
Por essa razão, conforme Wright (1990, pois, sendo um desafio para que IGM constitua
p. 170), IGM foca questões de “construção seu arsenal teórico e analítico. Essa é a discussão
de rede, comportamento estratégico e de da próxima seção.

164
A evolução dos estudos de IGM 1970. Enfatizava-se o alcance de metas na-
cionais por meio da ação de atores subnacio-
A origem desse campo de estudos remon- nais que, além de legalmente independentes,
ta, nos Estados Unidos, ao início da década de em muitos casos, eram politicamente hos-
1970, a partir de uma edição especial da Public tis (AGRANOFF; MCGUIRE, 1999). O
Administration Review dedicada ao tema da comportamento desses entes era considerado
gestão interjurisdicional (WRIGHT; KRANE, secundário diante da liderança e controle do
1998; WRIGHT; STENBERG; CHO, 2009). governo federal por meio de suas burocra-
As formulações iniciais relacionavam-se a po- cias especializadas (WRIGHT; STENBERG;
líticas provenientes de Washington que eram CHO, 2009). A posse de recursos financeiros
largamente hierárquicas em seu formato. A e autoridade legal para definir regras admi-
expansão da ação federal, desde preemption, nistrativas e gerenciais visando implementar
regulações e “mandatos federais não financia- políticas residiria nesses atores (AGRANOFF;
dos” (unfunded federals mandantes)7, associa- MCGUIRE, 2001B). Os ecos dessa aborda-
da à dificuldade de implementar programas gem são ainda influentes, diante do crescente
nacionais, trouxe à tona o tema da IGM. papel do governo federal, conforme Posner e
Partindo-se da necessidade de implementar Conlan (2008, p. 341, tradução nossa):
políticas nacionais, elevou-se a importância
de um processo executivo de gestão das po- “As novas políticas nacionais têm utilizado ferramen-
líticas. Assim, ampliou-se e necessidade de tas de governança mais indiretas para alcançar seus
objetivos, acompanhadas pela confiança em uma
comunicação intergovernamental e redes para gama cada vez mais ampla de terceiras partes, princi-
tomada decisão (WRIGHT; STENBERG; palmente governos estaduais e locais. Simplificando,
CHO, 2009). as ambições políticas dos líderes federais excederam
Similar ao desenvolvimento da literatura em muito a capacidade administrativa, legal, fiscal
e política do governo federal. Portanto, os governos
sobre implementação e, em parte, contem- estaduais e municipais, bem como uma ampla gama
porânea a ela, os estudos de IGM também de corporações privadas e sem fins lucrativos, têm
foram influenciados pelas abordagens teóri- sido contratados como terceiras partes para realizar
cas top-down e uma bottom-up (WRIGHT; iniciativas federais por meio de uma série de fer-
ramentas governamentais, incluindo subvenções e
KRANE, 1998; WRIGHT; STENBERG; empréstimos, além de ferramentas reguladoras”.
CHO, 2009). Além dessas duas, Agranoff e
McGuire (2001a) também destacam mais três
modelos para analisar a gestão do federalismo: Nas décadas de 1980 e 1990, acompa-
o enfoque doador e destinatário, o modelo nhando a evolução dos estudos de RIGs e do
jurisdicional e abordagens de redes de gestão. federalismo, as análises de IGM reduziram
A perspectiva top-down e hierárquica o viés puramente hierárquico. O enfoque
(STEVER, 1992) na relação entre admi- passou a ser a compreensão interativa do
nistradores federais e outros níveis de go- processo de políticas públicas ao conside-
verno (STENBERG, 2011; WRIGHT; rá-las como oportunidade de barganha para
STENBERG, 2006) teve seu auge nos anos os entes subnacionais (INGRAM, 1977;

7 Expressão proveniente dos Estados Unidos e diz respeito a definições do governo federal que transferem
responsabilidades para os entes subnacionais ou organizações não governamentais (ONGs) executarem, mas sem
recursos financeiros garantidos.

165
MCGUIRE, 2006a). Nesse caso, os estu- para a gestão de políticas. Porém, o desa-
dos de Elazar (1987), Grodzins (1966), fio é organizar a participação dos cidadãos
Anderson (1960) e Wright (1988) sobre em políticas intergovernamentais que ope-
RIGs influenciaram essa mudança de en- ram em diferentes jurisdições e hierarquias
foque nos estudos de IGM. (MCGUIRE; LEE; FYALL, 2013).
A ênfase na hierarquia e nas definições do A terceira abordagem é o modelo de
nível federal foi substituída pela busca de re- análise de IGM baseado nas relações doador
lações horizontais e práticas vindas de “baixo e destinatário (AGRANOFF; MCGUIRE,
para cima” (bottom-up) dos entes federativos. 2001a). A referência central está em Presmann
Assumiram relevância os relacionamentos em (1975, p. 106-107, tradução nossa):
rede, “colaboração contingente” ou “colabora-
ção” entre níveis governamentais (WRIGHT; o doador e o destinatário precisam um do outro,
STENBERG; CHO, 2009), de forma que mas nenhum deles têm a capacidade de controlar
totalmente as ações dos outros. Assim, o processo
entes locais não fossem considerados meros de ajuda assume a forma de barganha parcialmente
“destinatários” das políticas (AGRANOFF; cooperativa e parcialmente antagônica entre um
MCGUIRE, 2004). Em linha com a visão conjunto de atores mutuamente dependentes.
bottom-up e de redes estão as abordagens
da “gestão pública colaborativa centrada O modelo apoia-se na relação entre doa-
no cidadão” – citizen-centered collaborative dor (governo federal) e destinatário (governos
public management (COOPER; BRYER; locais) e as exigências de IGM para imple-
MEEK, 2006) e “governança participativa mentar programas nacionais por meio de
empoderada” – empowered participatory go- colaboração intergovernamental. O modelo
vernance8 (FUNG; WRIGHT, 2001). Para analítico não envolve atores privados, tal como
essa última proposição, a governança de- os enfoques de redes de IGM, mas apenas
mocrática nas experiências de orçamento entes governamentais.
participativo em cidades brasileiras serve de Conforme o modelo, há uma zona de
exemplo. Governos deveriam reduzir suas intersecção em uma “administração compar-
lógicas centralizadas e hierárquicas mediante tilhada” que resulta da definição de objetivos
a sociedade no processo de produção e gestão de programas e a realização de ações para im-
de políticas públicas (KATHI; COOPER, plementá-los. Situa-se, então, entre os modelos
2005) e encorajar estruturas colaborativas top-down, com suas diretrizes de obediência
(MCGUIRE, 2006b). nacionais, e os enfoques bottom-up, que anali-
O cidadão deve participar do processo sam a discricionariedade em nível local. Mas,
administrativo e da produção intergover- assim como na visão top-down, ao final, a so-
namental de políticas ao invés de apenas lução de problemas de gestão deve orientar-se
aconselhar um gestor público quando e se pelos objetivos definidos pelo governo federal.
for convocado (COOPER; BRYER; MEEK, Essa forma de análise assemelha-se aos es-
2006). IGM analisa a participação de atores tudos iniciais sobre implementação de políticas
privados nos arranjos intergovernamentais realizados por Pressman e Wildavsky (1973)

8 Na literatura sobre o federalismo americano, IGM é um termo comumente utilizado para referir-se a questões
que em outros contextos são analisados sob a lente das abordagens de multi-level governance. Esta refere-se a um
processo de partilha de autoridade, responsabilidade e implementação em vários níveis administrativos – verticais,
horizontais e com a participação da sociedade (CONLAN; POSNER, 2008).

166
e Pressman (1975). Ambos mostraram que, normas, atores e recursos necessários para o ter-
a despeito da decisão do governo nacional, ritório, tipicamente para implementar planos
implementar um programa enfrenta vários de desenvolvimento. Em oposição ao modelo
obstáculos em nível local, de modo que não se doador-destinatário, destaca que grants-in-aid
restringe apenas ao cumprimento da política. não são a única forma de assistência e que, no
Segundo Berryl Radin (2008), o problema sistema intergovernamental, o governo federal
é conhecido: agências federais desenvolvem não é o único ator que pode operar localmente.
meios para avaliar resultados da aplicação de Administradores locais têm autonomia para
verbas transferidas aos entes subnacionais e gerenciar interações, barganhas e ajustamentos
estes estão interessados em ampliar seus níveis estratégicos com atores públicos e privados sem
de autonomia. A esfera central visa tornar os depender do nível federal. Diante da crescente
entes subnacionais responsabilizáveis e essas descentralização de responsabilidades para os
unidades federativas buscam mais flexibili- entes subnacionais, essa forma mais horizon-
dade e discricionariedade. Para escapar do talizada de IGM deve ampliar sua importân-
comando, controle e hierarquia, arranjos de cia. Por fim, o modelo jurisdicional enfatiza
IGM buscariam conectar governo federal e aspectos de inovação na ação dos governos
entes subnacionais na gestão de programas locais (AGRANOFF; MCGUIRE, 2001a).
intergovernamentais. A quinta abordagem, que atualmen-
Nessa linha, o livro de Peterson, Rabe e te predomina na literatura, conforme visto
Wagon (1986), When federalism works, analisa anteriormente, são as redes de IGM. Estas
as relações entre os entes federativos durante independeriam do governo nacional, pois po-
a gestão dos grants-in-aid. Os autores condu- deriam ser criadas de forma incremental por
zem uma análise documental e embasada em atores administrativos e não governamentais
entrevistas com todos os níveis federativos interdependentes. Redes são uma resposta
procurando compreender por que alguns pro- à crescente necessidade de informações que
gramas funcionam e outros fracassam. Entre servem de subsídio para formular estratégias
os fatores-chave para o sucesso das conexões das redes de gestão intergovernamental. Estas
intergovernamentais destaca-se o grau de pro- são consideradas recursos necessários para
fissionalismo dos burocratas profissionais. Por implementar programas públicos complexos
fim, Rosenthal (1984) propõe avaliar o sucesso (GAGE; MANDELL, 1990).
de programas intergovernamentais com base Distintamente dos modelos top-down, em
em três questões essenciais. A primeira é ava- redes de IGM, a liderança é colaborativa e a par-
liá-los de forma holística com seus aspectos ticipação dos atores não é uma escolha, mas uma
políticos e administrativos ao invés de tratar as necessidade para solucionar problemas incapazes
duas dimensões autonomamente. A segunda de serem abordados isoladamente apenas por
é que o desenho e a gestão dos programas um nível de governo. Ao invés de subordinação,
intergovernamentais são determinantes para organizam-se estruturas de interdependência e
seu desempenho. A terceira é considerar a ajustamentos mútuos visando realizar uma ta-
gestão no nível federal de forma “indireta”, refa coletiva. Não se trata de justapor estratégias
uma vez que a responsabilidade da execução isoladas, mas de gerar compromissos comuns e
reside nos níveis subnacionais. formas compartilhadas de encontrar respostas
O quarto enfoque – o modelo jurisdi- para a operação e implementação de programas
cional – pauta-se por analisar de que forma (AGRANOFF; MCGUIRE, 2001b; O’TOOLE
governos, sobretudo em nível local, definem JR.; MEIER, 2004).

167
O jogo intergovernamental não se resume sem que o comportamento possa ser expli-
aos grants-in-aid, tipicamente analisado pelo cado pela dicotomia hierarquia-autonomia
modelo doador e destinatário, ou a obediência (AGRANOFF; MCGUIRE, 1998).
de normas federais definidas de forma top-down. Redes de IGM buscam compreender
O planejamento à gestão conjunta entre esferas ações gerenciais e mecanismos utilizados para
de governo é norma em políticas intergoverna- conjugar as necessidades da política com a
mentais. A busca de soluções em redes gover- realidade da gestão. Em vez de descrever IGM
namentais mais horizontais não reduz o papel em termos de qual governo tem mais poder
das agências estatais, mas cria oportunidades ou se os entes subnacionais têm autonomia,
para gerar soluções provenientes de atores pú- examina-se como burocratas locais interagem
blicos e privados. Problemas complexos exigem estrategicamente na arena intergovernamental
sistemas de gestão intergovernamental comple- para implementar políticas públicas. Trata-
xos (AGRANOFF, 2017; MCGUIRE, 2013; se da “gestão da colaboração” por meio de
POSNAN; CONLAN, 2008). fronteiras organizacionais e entre esferas de
Análises de rede de IGM fazem parte de governo (MCGUIRE; LEE; FYALL, 2013).
um esforço que, nas duas últimas décadas IGM baseia-se em soluções conjuntas cons-
do século XX, buscou superar a dicotomia truídas por discussão e consenso para lidar com
bottom-up versus top-down. Destaque para o desafio de alinhar procedimentos de admi-
Wright (1988) e sua formulação sobre o fe- nistração intergovernamental com distintas
deralismo de cercados (picket fenced federalism) heranças institucionais. As decisões demandam
para investigar como redes de especialistas de persuasão mútua sobre os efeitos benéficos da
políticas em todos os níveis de governo buscam participação intergovernamental para solucio-
implementar objetivos setoriais nacionalmente nar problemas relativos à implementação de
definidos. Esses vínculos geram comportamen- programas (KEAST; BROWN; MANDELL,
tos mais adaptativos na cooperação intergo- 2007). Busca-se a construção de “parcerias
vernamental (WRIGHT, 1988). Contudo, administrativas” ou “parcerias intergoverna-
barganha e negociação intergovernamental em mentais” para lidar com “problemas perversos”
comunidades de políticas que acarretam perda (wicked problems) (AGRANOFF, 2017). Cabe
de visão sistémica na relação entre governos, aos governos estimular essas redes, pois, como
tal como analisado pelo modelo jurisdicional. principal instituição de legitimidade demo-
O “caminho do meio” proposto por crática, distribuem poder e responsabilidades.
Wright, Stenberg e Cho (2009) considera que IGM depende dos instrumentos de políticas
dominância central não pode ser sinônimo de empregados e das habilidades de administrado-
controle hierárquico. Como IGM incorpora res em todos os níveis de governo (MCGUIRE,
atores privados na entrega de serviços públicos, 2013; WRIGHT; STENBERG; CHO, 2009).
seria possível existir relações não hierárquicas
entre esses e os governos. Da mesma forma, Perspectivas analíticas e uma
análise de redes de IGM distingue-se do en- proposta de conceituação de IGM
foque bottom-up baseado na autonomia local
para definir estratégias de implementação. O Embora inexistam definições consolida-
“modelo empírico” volta-se a compreender a das de IGM, um bom ponto de partida está
gestão intergovernamental de outra forma: em Wright (1990) e Wright, Stenberg e Cho
entes subnacionais e atores privados são capa- (2009, p. 170): trata-se de buscar “solução de
zes de operar no sistema intergovernamental problemas, capacidade de enfrentamento das

168
demandas e construção de redes”. Análises de das políticas (WRIGHT; KRANE, 1998;
IGM focam em problemas administrativos WRIGHT; STENBERG, 2006).
enfrentados por atores governamentais e não
governamentais, assumindo como “dadas” as Partindo dessa definição mínima, suge-
instituições federais e as regras dos programas rimos que há três perspectivas analíticas para
(WRIGHT, 1990; WRIGHT; KRANE, 1998). os estudos de IGM em linha com os modelos
Analisa o processo administrativo que inten- propostos por Agranoff e McGuire (2001a,
ta solucionar problemas intergovernamentais 2001b) e apoiadas na pesquisa em bases de
complexos por meio de redes de IGM. Essa artigos científicos norte-americanas (JSTOR,
perspectiva de “solução dos problemas”, ou de EBSCO e Sage). No agrupamento dos mode-
“fazer as coisas que precisam ser feitas”, ocorre los geraram-se três perspectivas: IGM e bar-
por meio de redes relacionais que envolvem inte- ganha (mais assemelhada ao modelo doador
rações entre as partes envolvidas (AGRANOFF; e destinatário); IGM e redes (que aproxima
LINDSAY, 1983; 1986; AGRANOFF; os enfoques bottom-up e análise de redes); e
MCGUIRE, 1998, 2001; THOMPSON, IGM e coordenação (mais alinhada à aborda-
2013; WRIGHT; KRANE, 1998). gem top-down). Busca-se mostrar que a gestão
Assim, conforme a revisão realizada, su- intergovernamental possibilita estudos com
gerem-se as seguintes características mínimas distintos enfoques.
para definir IGM:
IGM e coordenação
1. trata-se da dimensão político-administra-
tiva9 das RIGs (AGRANOFF; LINDSAY, Essa perspectiva se aproxima dos estudos
1983); top-down, pois seu olhar primordial está no
2. prioriza a resolução de problemas “roti- governo federal e nos instrumentos utilizados
neiros” da implementação de políticas para coordenar e controlar a implementação de
públicas (WRIGHT, 1990; WRIGHT; programas intergovernamentais. A premissa é
KRANE, 1998); o sistema intergovernamental e o interesse pú-
3. possui um aspecto interacional constitu- blico se resume, na sua totalidade, as iniciativas
tivo nas redes de atores governamentais do governo federal (WRIGHT; STENBERG;
e não governamentais (AGRANOFF; CHO, 2009). Essa perspectiva embasa uma
MCGUIRE, 1999, 2000); visão da “IGM centrada no Executivo” em
4. considera gestores de políticas públicas, que as interdependências com outros níveis
burocratas (WRIGHT, 1990) e atores de governo provêm do nível central a quem
não governamentais como foco da análise cabe coordenar ações baseadas na obediência às
(AGRANOFF; MCGUIRE, 2001b); suas definições. Portanto, colaborar em redes
5. toma instituições federais e programas como intergovernamentais é considerado difícil e
“dados” para focar nos ajustes incrementais frequentemente não desejável (AGRANOFF;
e atividades de gestão para a implementação MCGUIRE, 2001b).

9 Agranoff e Lindsay (1983) definiram IGM como a dimensão administrativa das RIGs para diferenciar essa esfera
da dimensão em que participam os atores estritamente políticos. Mas, superada a dicotomia administração versus
política e buscando destacar aspectos políticos do processo, optamos por defini-la como a dimensão político-
administrativa. Consideramos as atividades que ocorrem no campo dos burocratas, mas julgamos que podem
expressar visões políticas (como definir objetivos de políticas públicas) que não são partidariamente orientadas.

169
O modelo top-down destaca o poder do 1977). Isso permite que sejam feitos ajustes
governo federal na gestão de políticas públi- nos programas intergovernamentais que re-
cas no federalismo, ressaltando seu poder de sultam em inovação na implementação de
controle sobre as esferas subnacionais. O papel políticas (AGRANOFF; MCGUIRE, 2004;
desses entes é garantir e fiscalizar a conformi- CLINE, 2010).
dade às diretrizes nacionais. Burocratas sub- Helen Ingram (1977), no livro Policy im-
nacionais devem seguir as regras nacionais, plementation through bargaining: the case of
monitorar a implementação dos programas federal grants-in-aid, mostrou como transferên-
intergovernamentais e garantir que os recursos cias intergovernamentais não representavam
federais sejam gastos adequadamente (Ibidem). apenas um controle do governo federal, mas
As práticas dos burocratas subnacionais abriam oportunidades para a barganha. O
são pautadas, majoritariamente, por atividades financiador e o receptor possuem diferentes
de avaliação, revisão e auditoria da implemen- recursos ao seu alcance e, ao invés de “com-
tação. Um tempo considerável do cotidiano prar obediência”, os grants criavam espaços
dos gestores subnacionais é dedicado a atender de barganha. Se burocratas federais gostariam
as exigências para a implementação dos pro- de vincular os entes subnacionais à política
gramas e políticas (AGRANOFF; MCGUIRE, federal, estes últimos buscam aumentar sua
2001). Os estudos visam compreender como margem de manobra para atingir seus próprios
o governo federal busca garantir que entes objetivos valendo-se da assistência federal.
subnacionais implementem as políticas con- Similar é a abordagem de Pressman
forme o desenho original (STEVER, 1992; (1975) na análise da relação entre doador e
SUNDQUIST; DAVIS, 1969). O impacto destinatário como uma relação de barganha.
regulatório dos programas federais (“governo Burocratas federais dependem das ações de
por controle remoto”) por meio de ações de suas contrapartes subnacionais para atingir
preemption do nível central reduz a autono- seus objetivos. O receptor necessita dos recur-
mia dos entes subnacionais e também gera sos do doador, e estes precisam implementar
a permanência de IGM baseada em hierar- os programas nacionais. Desse modo, o pro-
quia, comando e controle (AGRANOFF; cesso de transferências transforma-se em uma
MCGUIRE, 2001b). barganha entre atores mutuamente depen-
dentes em uma interação que é parcialmente
IGM e barganha cooperativa e parcialmente antagônica. Nessa
linha, Cline (2010), em seu estudo sobre
Essa perspectiva deriva das abordagens “relações de trabalho”, aborda os contatos
que enfatizam a barganha e a negociação fe- formais e informais entre burocratas fede-
derativa. Ambas são consideradas importantes rais e subnacionais na gestão de programas
para os administradores públicos soluciona- intergovernamentais. Analisar as relações de
rem problemas na gestão de programas inter- trabalho é um aspecto crítico para compreen-
governamentais. A premissa é que programas der a negociação e barganha, pois serve para
federais não representam necessariamente caracterizar a natureza da negociação, que
um controle sobre os entes subnacionais. Em pode ser cooperativa ou conflitiva.
muitos casos podem significar uma oportuni- Ao investigar 237 cidades norte-ame-
dade para negociação e ajustes mútuos entre ricanas, Agranoff e McGuire (1998) con-
governos (AGRANOFF; LINDSAY, 1983; cluem que, como o sistema intergoverna-
AGRANOFF; MCGUIRE, 2004; INGRAM, mental é interdependente, quanto maior o

170
comportamento de barganha por parte dos locais, já que os objetivos são interdependen-
entes subnacionais, maior o nível de atividade tes (AGRANOFF; MCGUIRE; 2001a); (2)
intergovernamental. Como consequência, envolve atores governamentais e não governa-
essas cidades evidenciaram mais chance de mentais. Essas estruturas de interdependência
êxito na implementação de programas inter- em rede ultrapassam os entes federativos ao
governamentais. Agranoff e McGuire (2004) incluírem também atores privados. Trata-se
destacam que barganha e negociação se es- de arranjos multiorganizacionais para resolver
tendem além dos grants, pois incluem outras problemas que não podem ser equacionados
transações administrativas. Administradores por uma única organização (Idem, 2001a).
valem-se desses recursos para implementar Nesse aspecto há convergência entre IGM e
programas intergovernamentais, já que esse a busca para a solução de problema (Idem,
comportamento é encorajado pelo próprio 2003, 2006; O’TOOLE JR., 1995, 1997;
federalismo. O’TOOLE JR.; MEIER, 2004; WRIGHT;
Há quatro pilares que delimitam o pro- CHO, 2005).
cesso de barganha e negociação: (1) reconhe- O’Toole Jr. e Meier (2004) analisam a
cimento dos níveis subnacionais como juris- dimensão intergovernamental das redes da
dições autônomas; (2) burocracia nacional educação pública nos Estados Unidos, com
limitada; (3) contínua necessidade de ação ênfase para os distritos escolares e sua relação
de dois ou mais governos nas arenas de po- com o Departamento de Educação Estadual.
líticas públicas; e (4) ações administrativas Os laços intergovernamentais da IGM mos-
recíprocas: papel essencial dos burocratas na tram como ela ocorre em uma rede de atores, e
interdependência administrativa na gestão não em uma única organização. O sucesso de
intergovernamental, sobretudo em países fe- programas intergovernamentais requer redes
derais (AGRANOFF, 2017; AGRANOFF; de colaboração com atores organizacionais e
MCGUIRE, 2004). governamentais nas quais os gestores reduzem
seu poder de controle. Nas redes, os atores ge-
IGM e redes ralmente localizam-se em organizações conec-
tadas além das linhas formais de autoridade.
O enfoque nas redes de gestão intergo- Vale lembrar os trabalhos de Agranoff e
vernamental opõe-se aos métodos de contro- McGuire (2001b) sobre a ação dos gestores pú-
le e comando por parte do governo federal blicos nas estruturas públicas de redes, e a pes-
(BERRY; BOWER, 2005). Busca analisar quisa, também de Agranoff e McGuire (2003),
políticas públicas como resultado de uma sobre frequência e tipos de contatos nas redes
rede de atores em que nenhum possui poder de IGM. A coletânea organizada por Gage e
suficiente para determinar completamente as Mandell (1990) intenta compreender esse para-
ações do outro. Redes de gestão intergover- digma da IGM que não é pautado por hierarquia
namental são um bom exemplo para explorar e coordenação exclusiva do governo federal. A
as dimensões de interdependência na gestão dimensão intergovernamental das redes possibi-
pública (AGRANOFF, 2017; O’TOOLE JR.; lita uma compreensão mais completa da gestão
MEIER, 2004). pública e da implementação de políticas públicas
As duas principiais diferença com o enfo- quando envolvem mais de um nível federativo e
que da barganha são: (1) não se trata de uma interorganizacional. Os estudos mostram como
estratégia dos atores subnacionais para adaptar redes de IGM alteraram o papel dos governos
os programas federais para alcançar objetivos na gestão intergovernamental.

171
Todavia, a literatura também matiza a 2009) e McGuire, Lee e Fyall (2013), o processo
visão otimista das redes de IGM diante das de construção consensual ou de governança de-
dificuldades de atores governamentais altera- mocrática não pode ser considerado um sucedâ-
rem coletivamente procedimentos adminis- neo que secundariza a importância de instituições
trativos mais cristalizados. Ademais, a tomada políticas e governamentais.
de decisão baseada em consenso pode inibir a
participação nesses arranjos, pois pode protelar Considerações finais
definições, gerar compromissos mais fracos
e consumir tempo e energia (MCGUIRE; A discussão da literatura mostrou que o
LEE; FYALL, 2013). A gestão administrativa campo de estudos de IGM, ainda que não
estimula uma reduzida harmonia interjuris- seja recente, segue merecendo maior adensa-
dicional, pois muitas interações que produ- mento teórico e metodológico. Por essa razão,
zem políticas refletem tensões e conflitos, o essa revisão mapeou as principais abordagens
que torna o consenso em IGM algo difícil de teóricas que buscam avaliar a gestão inter-
se atingir (MCGUIRE, 2006a; WRIGHT; governamental. Nesta revisão, procurou-se
STENBERG; CHO, 2009). diferenciar IGM das abordagens do federa-
Os entes interagem com variados graus de lismo e RIGs, visto que analisam a interação
dependência e muitos gestores encaram cons- intergovernamental sob distintos enfoques,
trangimentos políticos e administrativos que objetos e unidades de análise.
podem diminuir as possibilidades das redes Os conceitos que circundam esse debate
de IGM. Portanto, talvez não seja demasiado são variados: gestão pública colaborativa, “ges-
lembrar que substituir burocracias por redes tão através das divisões organizacionais” (ma-
horizontais de gestores pode ser uma estratégia naging across boundaries), redes de influência
limitada diante dos constrangimentos políticos e governança por meio de redes (WRIGHT;
e institucionais (OLSEN, 2006). Redes de STENBERG; CHO, 2009). Essa proliferação
IGM podem ressentir-se de “energia da política conceitual é um indicativo de um campo teó-
pública”, mesmo que agências governamentais rico ainda em desenvolvimento. Ainda assim,
venham ampliando suas conexões com outras suas possibilidades analíticas são relevantes
organizações e níveis de governo. para as áreas de administração pública e ciência
Custos de transação altos possibilitam política, especialmente porque a IGM auxilia a
dificultar a condução cooperativa de agendas compreender dimensões que, tradicionalmen-
comuns, o que pode gerar dois problemas: (1) te, são menos consideradas nas abordagens de
gaming (jogar)10 com as medidas de performance RIGs e federalismo.
de programas organizadas nessas estruturas; (2) Nesse sentido, conforme Kincaid e
efetividade pode ser mais um objeto de publici- Stenberg (2011), as formulações de IGM
dade do que uma realidade efetiva (MCGUIRE; são úteis para responder uma das “grandes
FYALL, 2014). Em linha com Peters e Pierce questões” da gestão pública: podem RIGs
(2004 apud WRIGHT; STENBERG; CHO, gerar políticas públicas mais eficiente e

10 Dentre as possibilidades de gaming na administração pública, nesse caso, importa destacar “a distorção de
objetivos”: redução do escopo da qualidade de uma meta, ainda que quantitativamente ela tenha sido atingida.
Por exemplo, reduzir tempos de atendimento ao cidadão em uma repartição pública às custas da qualidade dos
serviços entregues. IGM por meio de redes pode ser induzida a “mínimos comuns” que mantenham metas com
essas características, pois esse pode ser o “máximo possível” de acordo entre os atores.

172
efetivas, bem como sua implementação, sem de governo e atores sociais cada vez mais
considerar a relevância da IGM? Diante da assume um status de condição necessária no
nacionalização de problemas públicos e das processo de implementação de programas
soluções para alinhar os níveis de governo em governamentais
torno de políticas, as abordagens de IGM são Por fim, uma nota sobre IGM e suas
um aporte conceitual mais apropriado para possibilidades para os estudos nas áreas de
lidar com as exigências de gestão intergover- administração pública e ciência política no
namental de programas. Brasil. Pesquisando periódicos e bancos de
A intergovernamentalização e suas exigên- teses, constatou-se que a produção biblio-
cias de responsabilidade democrática eviden- gráfica nacional ainda não se apropriou dessa
ciam uma nova forma de lidar com questões discussão conceitual. Todavia, é válido ob-
de cunho mais gerencial na agenda de entes servar que diversos estudos que têm ocupado
governamentais e atores não governamentais a análise de políticas públicas – sobretudo
(POSNER; CONLAN, 2008). Portanto, uma considerando a realidade do federalismo e
explícita compreensão das semelhanças entre das RIGs no Brasil, após 1988 – poderiam
redes de gestão e intergovernamentais é um valer-se do arsenal teórico e analítico da
importante passo para integrar abordagens de IGM.
produção de políticas, administração e gestão Entre as possibilidades abertas para uti-
em uma única abordagem teórica (O’TOOLE lizar essa abordagem em uma agenda de pes-
JR.; MEIER, 2004). quisa mais pertinente podem ser lembradas
A IGM fornece ferramentas teóricas e as redes de IGM em políticas públicas. Esse
analíticas que permitem aos administradores é o caso da saúde e assistência social com suas
públicos cada vez mais compreender políti- comissões gestoras que envolvem os governos
ca e gestão intergovernamental (POSNER; federal, estaduais e municipais. Igualmente, os
CONLAN, 2008; WRIGHT, 1990). De um desafios para a implementação de programas
lado, fronteiras entre níveis de governo e or- que exigem interface entre gestores em pro-
ganizações da sociedade têm se tornado cada gramas que são intergovernamentais, como
vez mais permeáveis e interdependentes, o é o caso do Bolsa Família. No plano local,
que pode obscurecer a transparência sobre as a expansão de consórcios intermunicipais e
respectivas responsabilidades sobre políticas experiências de participação e controle so-
e resultados. Em contraposição, lidar com cial também poderiam valer-se dos estudos
“problemas perversos” e essa rede de atores de IGM para descortinar novas perspectivas
governamentais e sociais impõe-se pela dinâ- de análise. No primeiro caso, relações entre
mica complexa das sociedades atuais. Portanto, gestores públicos municipais e, no segundo, a
análises de IGM inserem-se em ambientes de dinâmica das conexões entre administradores
incertezas e complexidade para responder às públicos e arenas como conselhos de políticas
demandas dos cidadãos. e orçamento participativo.
Portanto, administradores públicos atu- Ainda que os exemplos possam ser am-
ando de forma isolada de gestores em outros pliados, o importante é destacar que IGM,
níveis de governo e de atores sociais serão como campo teórico, introduz um olhar
crescentemente menos capazes de inserir-se analítico para investigar novos fenômenos
nesse mundo da gestão intergovernamental. nas políticas públicas implementadas no
Assim, o intercâmbio de recursos organiza- federalismo brasileiro. Da mesma forma,
cionais e administrativo com outras ordens amplia os recursos disponíveis para ampliar

173
Um olhar à frente para os desafios do futuro sugere
as informações sobre estudos já realizados que a gestão intergovernamental continuará a ca-
sob o arcabouço teórico das RIGs e do fe- racterizar a abordagem de nossa nação para futuros
deralismo, tal como são os exemplos acima. problemas de políticas públicas. Seja abordando
Esse arcabouço teórico e analítico abre novas a segurança interna, o aquecimento global ou a
educação da futura força de trabalho, a parceria
janelas de oportunidade para analisar a gestão
entre os governos continuará a ser também a pa-
pública e as iniciativas que de forma crescente lavra de ordem deste século. A questão é se vamos
vêm envolvendo horizontal e verticalmente projetar e administrar parcerias intergovernamentais
distintos níveis de governo e atores não go- engajando atores-chave intergovernamentais, não
vernamentais no Brasil. Em síntese, conforme apenas quando as coisas dão errado, mas projetando
programas e políticas para refletir os reais interesses
Posner e Conlan (2008, p. 350, tradução e capacidades de todas as partes que são tão críticos
nossa), IGM deverá se transformar, cada vez para lidar de forma bem-sucedida com problemas
mais, em um conceito basilar, pois: complexos e gerenciar sistemas complexos.

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Resumo

Gestão intergovernamental: evolução, abordagens teóricas e perspectivas analíticas


Este trabalho apresenta um balanço da literatura de gestão intergovernamental (IGM) com suas bases teóricas e
principais concepções analíticas. Destacam-se as possibilidades teóricas e analíticas deste conceito, sua gênese e evolução,
assim como os avanços, vicissitudes e desafios dos estudos de IGM. Discute-se a relação entre IGM e as abordagens
do federalismo e relações intergovernamentais (RIGs), observando as diferenças e paralelos entre os conceitos. Ao
sistematizar a literatura existente, essa revisão propõe uma conceituação mínima de gestão intergovernamental capaz de
compendiar os principais autores do campo. Partindo dessa definição, sugere-se uma organização do debate ao redor de
três perspectivas analíticas: (1) barganha e negociação federativa, (2) redes e (3) estudos de coordenação. Dessa forma,
contribui-se com a literatura ao sistematizar uma abordagem teórica ainda pouco utilizada nos estudos de ciência
política e administração pública no Brasil.

Palavras chave: Federalismo; Gestão Intergovernamental; Relações Intergovernamentais; Redes Interorganizacionais;


Gestão Pública Colaborativa.

Abstract

Intergovernmental Management: evolution, theoretical frameworks and analytic perspectives


This study reviews the literature on intergovernmental management (IGM) with its theoretical bases and main
analytical concepts. Theoretical and analytical possibilities of this concept, genesis and evolution are highlighted, as
well as the advancement, varieties and challenges of IGM studies. It discusses the relationship between IGM and the
approaches of federalism and intergovernmental relations (IGRs), comparing the differences and parallels between
concepts. By systematizing the existing literature, this review proposes a basic conceptualization of intergovernmental
management capable of summarizing the main authors of the field. Based on this definition, a specific discussion
organization around three analytical perspectives is suggested: (1) federative bargaining and negotiation, (2) networks
and (3) coordination studies. Thus, it contributes to the literature by systematizing a theoretical approach that is still
barely used in studies on political science and public administration in Brazil.

Keywords: Federalism; Intergovernmental Management; Intergovernmental Relations; Interorganizational Networks;


Cooperative Public Management.

Résumé

Gestion Intergouvernementale: évolutions, approaches théoriques et perspectives analytiques


Ce travail présente un équilibre entre la littérature de gestion intergouvernementale (IGM), ses bases théoriques et ses
principales conceptions analytiques. Les possibilités théoriques et analytiques de ce concept, sa genèse et son évolution,
ainsi que les avancées, les vicissitudes et les défis des études IGM se distinguent. Il discute de la relation entre IGM et
les approches du fédéralisme et des relations intergouvernementales (RIG), en notant les différences et les parallèles
entre les concepts. En systématisant la littérature existante, cette revue propose une conception minimale de la gestion

178
intergouvernementale capable de résumer les principaux auteurs du domaine. De cette définition, il est suggéré une
organisation du débat autour de trois perspectives analytiques: (1) de négociation fédérale et la négociation, (2) la mise
en réseau et (3) des études de coordination. Ainsi, il contribue à la littérature en systématisant une approche théorique
encore peu utilisée dans les études de science politique et d’administration publique au Brésil.
Mots-clés: Fédéralisme  ; Gestion Intergouvernementale  ; Relations Intergouvernementales  ; Réseaux
Interorganisationnels ; Gestion Publique Collaborative.

179
DOI: 10.17666/bib8708/2018

Estudos feministas de mídia e política: uma visão geral

Rayza Sarmento1

Introdução
são arenas fundamentais para a compreensão
Este texto apresenta uma revisão biblio- das dinâmicas de reprodução da desigualdade
gráfica dos chamados feminist media studies, de gênero. No âmbito acadêmico, as pesquisas
a partir de autoras, obras e objetos empíri- começarão a ter maior proeminência junto do
cos fundamentais. Os estudos feministas de Centre for Contemporary Cultural Studies
mídia preocupam-se, fundamentalmente, com (CCCS), em Birmingham. A publicação de
a compreensão das relações de gênero dispostas obras como Images of women e Women take
em diferentes produtos midiáticos. Eles se ali- issue, do grupo de mulheres culturalistas,
nham aos questionamentos da teoria feminista marca o início de uma importante fase nos
que buscam pensar a forma como estruturas estudos feministas de mídia (ESCOSTEGUY;
de subjugação das mulheres estão presentes MESSA, 2006; VAN ZOONEN, 1994)2.
em diferentes arenas da vida social, tais como O objetivo deste texto é apresentar quais
os meios de comunicação (WALBY, 1990). os ângulos mais comuns de análise e objetos
Esses estudos se desenvolvem, sobretudo, a dos estudos feministas de mídia, especialmente
partir dos anos de 1960 e têm nas discussões quando se pensa a relação mais detida com
sobre entretenimento e cultura popular seus a política. Em um primeiro momento, traz a
focos iniciais. revisão de obras centrais e principais preocupa-
A narrativa comum dos feminist media stu- ções no tangente aos objetos midiáticos anali-
dies, em geral, começa com uma obra de 1963. sados. Em seguida, apresenta-se a forma como
É dada a Betty Friedan a maternidade dessas o jornalismo foi pensado como um âmbito
discussões (KEARNEY, 2012; STEINER; desses estudos, a fim de diagnosticar a presença
CARTER, 2004; VAN ZOONEN, 1994). Seu de mulheres (1) como produtoras de notícias
livro, A mística feminina, com a crítica sobre as e dirigentes em diferentes escalas dos meios
revistas femininas e a denúncia da sociedade de comunicação e (2) como sujeitos do noti-
de consumo americana, é tido como prógono ciário jornalístico. Em um terceiro momento,
do entendimento de que os textos midiáticos são revisados os achados de estudos acerca da

1 Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa (DCS-UFV). Doutora
em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCP-UFMG). E-mail: yzasarmento@gmail.com
2 No Brasil, a perspectiva culturalista deu a tônica dos estudos de mídia e gênero, desenvolvidos em grande parte
dentro dos programas de pós-graduação em comunicação. Ana Carolina Escosteguy, da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), é o nome mais proeminente no campo nacional, dada a produção
contínua desde a década de 1990 e sua inserção em espaços como a revista Feminist Media Studies. É dela uma
das primeiras sobre comunicação e gênero do país (ESCOSTEGUY, 2008), bem como a “tradução” do debate
feminista dentro dos estudos culturais para o nosso contexto (Idem, 1998).

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 181-202. 181
cobertura das mulheres políticas (candidatas influências e forças advindas de outros subsistemas,
e/ou eleitas) e do movimento feminista ao recriando formações particulares (MAIA, 2006, p. 25).
longo de diferentes temporalidades e países.
Ao realizar a revisão bibliográfica sobre A noção de mídia que tomamos aqui vai
os feminist media studies, dialogamos com de encontro ao que postulam Antunes e Vaz
obras escritas em diferentes contextos, tem- (2006), em uma compreensão mais relacional
pos e focadas em produtos de comunicação e menos tecnicista.
também diversos. Dessa forma, cabe nesta
introdução uma ressalva importante acerca De saída, mídia pede uma definição para além de um
da utilização dos termos “mídia” e “meios de aparato técnico (da qual ela se compõe) e de uma
forma discursiva (que ela permite produzir). A mídia
comunicação” ao longo do texto. Estamos é, então, algo capaz de transmissão que permite uma
cientes de que, tal como pontua Azevedo modalidade de experiência assentada no transporte e
(2017), que ao falarmos de mídia estamos deslocamento incessante de signos […]. Os produtos
dizendo de sistemas complexos, com diferen- midiáticos carregam consigo uma remissão a uma
multiplicidade de sujeitos sociais, técnicas, lugares
tes marcos regulatórios de funcionamento, e e dispositivos (ANTUNES; VAZ, 2006, p. 44-45).
de articulação políticas e econômicas que se
diferenciam a depender do contexto. Também
sabemos, como propõe Azevedo (2017) em Nesse sentido, ainda na trilha de Antunes
extensa revisão teórica sobre mídia e parale- e Vaz (2006), Alzamora et al. (2018, p. 78)
lismo político, que, para além do conteúdo propõem que usemos o termo “dispositivo mi-
discursivo, é preciso atentar às ligações orga- diático”, estendendo a expressão “para além
nizativas da mídia, o partidarismo da audiên- de sua materialidade, geralmente associada à
cia, os graus de regulação institucional e de sua reificação tecnológica e à sua cristalização
profissionalismo, a circulação de elites, entre institucional”. A compreensão não estanque de
outros aspectos. Contudo, entendemos que dispositivo midiático é central quando olhamos
ao revisar os achados dos estudos feministas a presença das relações de gênero como com-
de mídia, é perceptível como a desigualdade ponente histórico das sociedades. Alzamora et
estrutural de gênero tão enfatizada pelas te- al. (Idem, p. 69) defendem que, ao falarmos de
orias feministas (YOUNG, 2000) atravessa dispositivo, estamos diante de um “entendimen-
esses contextos. to de que este se enreda em outros dispositivos,
em uma dinâmica de afetação recíproca que
A partir da perspectiva sistêmica não se nega que a contamina a configuração circunstancial da
lógica econômica – isto é, a tentativa de capturar a materialidade midiática”. Essa perspectiva não
atenção da audiência e, assim, dominar as ações do
mercado (sobretudo na condição dos conglomerados
se pretende a-histórica ou ignora as diferentes
empresariais) – concorre com a lógica política. A com- marcações já mencionadas por Azevedo (2017),
petição econômica é um fator que favorece a autonomia mas colabora para pensar atravessamentos de
e a independência dos media, mas este é apenas um sentido para além de um contexto ou produto
entre outros fatores. Tão importante quanto a com-
petição econômica é a diferenciação das instituições
comunicacional específico.
da mídia de outros grupos e setores sociais, tais como
elites político-partidárias, grupos ligados à Igreja ou Os estudos feministas de mídia
à universidade. A consideração de que as instituições
da mídia apresentam ligações endêmicas, em graus
variados, com grupos econômicos, religiosos, políticos
Se Betty Friedan é tida como precursora da
ou regionais em todas as sociedades modernas faz ver discussão, é Gaye Tuchman a responsável pelo
que a tentativa de maximizar os lucros se cruza com primeiro esforço acadêmico-científico acerca

182
da relação entre mídia e gênero (BYERLY; em torná-las um objeto de estudo “sério” na
ROSS, 2006; ROSS, 2010a; THORNHAM, academia, além da tensão entre expectativas
2007; VAN ZOONEN, 1994). Seu texto “The e objetivos das pesquisadoras feministas com
symbolic annihilation of women by the mass o conteúdo dessas produções, dado que re-
media”, na coletânea Hearth and home: images presentavam “aquilo que elas não queriam”
of women in the mass media (1978), é uma ou mesmo não desejam acerca dos padrões
discussão sobre o apagamento/aniquilamento feminilidade (BRUDSON, 2000, p. 212).3
simbólico das mulheres na mídia americana, De forma parecida com as soap operas,
em especial na televisão. Embora possua uma as revistas voltadas para o público feminino
perspectiva bastante instrumental sobre os também mereceram bastante atenção. Elas
meios de comunicação, não mencionando as ensejaram pesquisas sobre os conteúdos mais
possibilidades de resistência das mulheres, o comuns em suas páginas, a forma como re-
trabalho de Tuchman é pioneiro em mostrar forçavam mitos sobre a feminilidade, como
a influência dos discursos sobre feminilidade atuavam ao influenciar as mulheres no que diz
construídos nos processos de mediação. A respeito a questões de moda, beleza, saúde,
seguir, revisamos os objetos midiáticos mais bem como seu papel histórico de “acompa-
comuns desses estudos. nhar” as mudanças ocorridas.
As mulheres – e só depois as relações de Com as telenovelas e revistas, em especial,
gênero, incluindo os estudos de masculinida- o estudo sobre audiências se mostrou importante
des – foram o alvo inicial dos feminist media para desnaturalizar as preconcepções e revelar
studies. Byerly (2012) fala de dois caminhos as resistências e reações do público acerca da
de análise. O primeiro focado na ausência, visibilidade das relações de gênero (STEINER;
em pesquisar espaços não ocupados por elas, CARTER, 2004). O trabalho de Press (1991)
e o segundo, mais forte, preocupado com a discute as diferenças ao associar classe, gênero e
representação de padrões sobre o feminino geração no consumo de televisão por mulheres
nos media. O entretenimento e a ficção, es- americanas, identificando modos pelos quais
pecialmente as soap operas e as revistas femi- as mulheres da classe trabalhadora negociam
ninas, foram os objetos mais lidos nesse início sentidos com os programas, reivindicando por
(BYERLY; ROSS, 2006). maior realismo.
Nas soap operas, o conjunto de autoras No cinema, o trabalho entendido como
preocupadas com as imagens das mulheres e pioneiro é o de Laura Mulvey (2012) –
com a recepção é bastante extenso. Entendidas “Visual pleasure and narrative cinema”, pu-
historicamente como um gênero midiático blicado em 1975 (BYERLY; ROSS, 2006;
feminino, esses produtos provocaram as pes- THORNHAM, 2007). A autora discute,
quisadoras a entender padrões de visibilidade e a partir dos aportes da teoria psicanalítica,
negociação de sentido (BYERLY; ROSS, 2006; como a imagem produzida pelos/nos filmes
STEINER; CARTER, 2004; THORNHAM, hollywoodianos recoloca as mulheres como
2007). Charlotte Brudson (2000), uma das objetos passivos de um espectador masculino.
principais autoras sobre tal gênero narrativo, Atualmente, muitos estudos se voltam para
reconta a relação entre os estudos feminis- as mudanças engendradas na cultura popu-
tas com as soap operas tratando do esforço lar com o protagonismo de mulheres, tais

3 No original: “soap opera represented to feminists what they didn’t want”.

183
como nos sucessos Star Wars e Harry Potter discurso publicitário têm atraído as feminist
(STEINER; CARTER, 2004). Um estudo media scholars, tal como cita Gallagher (2001)
importante acerca das imbricações entre ci- sobre uma campanha da Nike, em que se arti-
nema, gênero e raça é o de Bell Hooks – Reel cula a prática esportiva como empoderamento:
to real (1996) – acerca da percepção e resis- “A ideia de que a Nike apóia o empoderamento
tência das espectadoras negras. A partir de feminino só pode ser aceita se as mulheres
entrevistas com mulheres, a autora descobre vietnamitas que fabricam calçados Nike, traba-
que elas não se sentiam representadas mesmo lhando 12 horas por dia para um salário entre
nos race films, enfatizando que apareciam de US$ 2,10 e US$ 2,40 por dia, forem mantidas
forma servil e para reforçar a feminilidade fora da tela” (STABILE, 2000, p. 199 apud
branca como um objeto de desejo. GALLAGER, 2001, p. 65, tradução nossa)5.
Já a publicidade foi um dos alvos da crítica Os estudos sobre masculinidades e mídia,
feminista mais incisiva, dada a grande presença por sua vez, iniciaram a partir dos anos 1990,
de mulheres em campanhas, a partir das dis- mostrando as expectativas recorrentes sobre os
cussões sobre exploração do corpo feminino, comportamentos masculinos e a forma como
ênfase na venda de produtos domésticos e a mídia e a cultura popular lidavam com os
cuidado com a família. De acordo com Ross inesperados desvios (CARTER, 2012). Dennis
(2010a, 15, tradução nossa), ao olhar histori- (2012) reconstrói a história dessas preocupa-
camente essa relação, percebe-se uma ambiva- ções, e trabalhos como o de Godfrey e Hamad
lência recorrente entre a esposa-dona de casa (2012) mostram como acontecimentos, tais
e a mulher fatal: “a dicotomia ‘vadia’-‘santa’ como o 11 de setembro de 2001, colaboram
é perfeitamente capturada pela indústria da para a construção e reforço de papéis mas-
publicidade”4. A pesquisa mais citada sobre a culinos, especialmente ligados à identidade
forma como homens e mulheres aparecem na nacional americana, com a celebração da mas-
publicidade é de Erving Goffman – Gender culinidade protetora.
advertisements (1976). O autor analisou o Por fim, as relações entre tecnologia-inter-
que chama de infantilização e subordinação net e gênero são o foco atual de uma série de
ritualizada das mulheres na publicidade comer- estudos feministas de mídia. Da expectativa
cial, a partir de descrições das características ciberotimista de que a rede seria mais women-
anatômicas, expressões faciais e relações com -friendly que os demais meios de comunicação
demais elementos dos anúncios. à comprovação das práticas cibermachistas,
Gill (2008), ao se dedicar a entender as essas pesquisas têm documentado, destacam
mudanças nos discursos sobre as mulheres Byerly e Ross (2006), uma série de fenôme-
na publicidade nos últimos anos, argumen- nos, tais como: (1) as diferenças de acesso,
ta que as campanhas passaram da mais clara uso e frequência de mulheres e homens na
objetificação para slogans de escolha e empo- internet ou o digital divide; (2) a presença de
deramento, mas que precisam ser olhados mulheres nos games, historicamente domina-
criticamente. Essas contradições inerentes ao dos por homens; e (3) o ativismo feminista

4 No original: “the slut-saint dichotomy is perfectly captured by the advertising industry”.


5 No original: “The ideia that Nike supports women’s empowerment can only be believed as long as the Vietnamese
women who make Nike shoes, working 12-hour days for a wage of between $2.10 and $2.40 a day, are kept off
the screen”.

184
on-line, com a criação de redes de resistência Estado ou grandes corporações); e (3) a re-
entre as mulheres. presentação sobre o movimento de mulheres.
No cenário brasileiro, os trabalhos sobre Os dois últimos pontos, embora ligados mais
gênero e mídia que observam os produtos diretamente ao jornalismo, também podem
supracitados são mais recorrentes a partir ser observados em materiais como campanhas
dos anos 2000. Almeida (2007) e Escosteguy políticas e publicidade.
(2012) são autoras fundamentais na com- Na organização de Carter et al. (1998)
preensão das narrativas sobre mulheres em e Byerly (2014), os trabalhos têm obser-
produtos da cultura popular, em especial na vado três níveis: (1) o macro, preocupado
televisão. Acerca das imagens e discursos das com a chamada economia política da mídia
revistas feministas, Buitoni (2009) ainda é a (LEE, 2014) e as mulheres no contexto de
principal referência, com obra sistemática, no governança midiática; (2) o médio, com a
contexto nacional. produção e inclusão de mulheres jornalistas;
Como é possível notar, o entretenimento e (3) o micro, com pesquisas sobre imagens
motivou, com muita razão, uma série de aten- e discursos ou representação, sendo este o
ções desse subcampo de estudos. Mobilizamos foco mais comum.
a todo o momento nas interações os discur- Esses trabalhos nos servem como ponto
sos, imagens, expressões que circulam nessas de partida para mapear a relação entre mídia,
diferentes produções midiáticas. Entretanto, gênero e política, com foco no jornalismo.
nosso interesse maior é apresentar uma revi- Para isso, buscaremos apresentar a seguir essa
são bibliográfica mais detida na discussão da literatura focada nas as mulheres no contexto
(in)visibilidade das mulheres e as dinâmicas de produção jornalística e na presença de mu-
de gênero nas relações mais próximas com o lheres como sujeitos das notícias, com aten-
jornalismo e política. ção especial às candidatas/eleitas e às ativistas
feministas.
Estudos político-feministas de mídia
As mulheres no contexto de
Como todos os estudos feministas nas produção jornalística
humanidades, os que se voltam para a mídia
têm uma dimensão política fundante. Olham Ao se debruçar no contexto da produção
para modos desiguais de visibilidade, seja para jornalística, os estudos feministas de mídia têm
identificá-los ou sugerir mudanças. Alguns documentado uma feminização da profissão,
trabalhos, contudo, estão mais ligados ao que com o aumento da quantidade de mulheres
poderíamos chamar de estudos político-femi- nesses postos de trabalho. Contudo, as pesqui-
nistas de mídia, por tornarem mais explícita a sas documentam de forma incisiva a ausência
preocupação com processos políticos ligados ou marginalização delas nos cargos de alto
às esferas formais ou informais. escalão da indústria midiática ou mesmo em
Norris (1997a) possui uma forma inte- editorias de assuntos considerados como do
ressante de organizar os estudos sobre mídia, “universo masculino” – política, economia e
gênero e política. Em Women, media, and poli- esportes (BYERLY; ROSS, 2006). O número
tics, a autora tem como foco três processos fun- de mulheres negras nessas posições de poder
damentais: (1) as mulheres como jornalistas; e prestígio é ainda menor (NICHOLSON,
(2) a representação de mulheres em posições 2007). Mais do que uma historiografia das
de poder (candidatas, eleitas ou membras do mulheres na imprensa, essas pesquisas alertam

185
para a desigualdade estrutural percebida com trabalho de Harp (2014) sobre os jornais mais
o ingresso das mulheres na profissão. lidos nos Estados Unidos, a presença feminina
O cenário macro de governança e pro- cresce, mas os homens brancos ainda são
priedade dos media é pouco animador. Byerly maioria como articulistas.
(2014) e Ross (2014) mostram, com dados
atuais, como as mulheres ainda ocupam menor A maioria das mulheres jornalistas em todo o mundo
espaço quando se olha comparativamente os concordou que as mulheres jornalistas enfrentam
barreiras profissionais que seus colegas do sexo
grandes conglomerados. Nicholson (2007) masculino não enfrentam e que o principal obstá-
argumenta que essa marginalização está rela- culo para as mulheres na gestão é continuamente
cionada a padrões de relações sociopolíticas provar suas habilidades aos colegas e supervisores.
que condicionam a atuação das mulheres não (FROHLICH, 2007, p. 163, tradução nossa)6
apenas nas empresas de mídia, mas em dife-
rentes postos de trabalho. Chambers et al. Chambers et al. (2004a) e Mills (1997)
(2004b) tratam como glass ceiling tais machis- também levantam uma questão que atravessa
mos, sutis porém enraizados, limitadores as esses estudos: se a entrada de mais mulheres
posições ocupadas por mulheres. As autoras muda o jornalismo. Segundo as autoras, há
afirmam, baseadas em dados da Federação indicativos de que a presença feminina tende
Internacional dos Jornalistas, que de 30% a incluir mais tópicos como discriminação e
a 40% da força de trabalho da profissão no assédio sexual nos temas das notícias, a “hu-
mundo é composta por mulheres, mas elas manizá-las”, bem como a ouvir mais mulhe-
não chegam a 1% nos postos executivos quan- res. É como se as mulheres identificassem o
do olhadas de forma transnacional. Quando potencial noticioso em coisas que passam ao
alcançam essas posições, precisam lidar com largo da percepção masculina ou que tornasse
assédios verbais, bem como questionamentos mais críticos os tradicionais valores-notícia
a todo o momento sobre a rotina com família (BARKER-PLUMMER, 2010; MELLOR,
e filhos (BARKER-PLUMMER, 2010). 2012). No entanto, essas pesquisas são pouco
No tocante ao nível médio (BYERLY, conclusivas e se alternam em realizar a impor-
2014), ou seja, as rotinas organizacionais de tante crítica da marginalização e construir um
produção da notícia, os trabalhos tratam de essencialismo perigoso.
quais espaços estão as mulheres jornalistas e Mulheres em cargos eletivos entrevistadas
como sua experiência como mulheres impacta por Ross (2002), por exemplo, relataram que
o exercício da profissão. mulheres jornalistas, por vezes, eram mais
Os trabalhos comparativos na Europa agressivas em sua cobertura com elas, como
Ocidental identificam o aumento das mu- se precisassem mostrar que eram “boas de
lheres nos cursos e o emprego delas em serviço” no noticiário político, dominado por
espaços considerados como de soft news homens. Não sabe se essa “massa crítica” é
(FROHLICH, 2007) ou os pink ghettos realmente transformadora das notícias, con-
(CHAMBERS et al., 2004c, p.70). Nas pá- tudo, é notável que a presença delas mostra,
ginas de opinião ou em editoriais, atesta o cada vez mais, que a objetividade jornalística,

6 No original: “majority of women journalists worldwide agreed that women journalists face professional barriers
that their male colleagues do not and that the top obstacle for women in management is continually proving their
abilities to colleagues and supervisors”.

186
que os retira os profissionais da vida comum de mulheres nas redações brasileiras na déca-
como se suas experiências “não contassem” da de 1960 era visto com naturalidade pelos
(CARTER et al., 1998) encontra na discussão homens responsáveis pelos jornais.
da economia política feminista dos meios de
comunicação uma contraprova. Lembramos nosso espanto, em 1968, quando ouvi-
Uma série de estudos têm tentado ofe- mos, na condição de aluna do curso de Jornalismo
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
recer possíveis soluções para os problemas de São Paulo, do então professor, jornalista e ad-
mencionados. Experiências de monitoramen- vogado do jornal O Estado de S. Paulo, Flávio de
to de mídia voltadas para identificar o lugar Almeida Prado Galvão, suas “explicações” sobre
das mulheres, proposições de mudança nas a redação do jornal ser um lugar impróprio para
mulheres. Para elas, restavam os suplementos fe-
legislações para frear violações de direitos e mininos. (Ibidem, p. 4)
educação direcionada para jornalistas, com
cursos de formação específicos, estão entre
trabalhos de advocacy preocupados como a
questão (BYERLY; ROSS, 2006; MONTIEL, As mulheres nas notícias, as
2010). É necessário salientar que muito dessa notícias sobre mulheres
agenda de pesquisa caminhou ao lado da atu-
ação de organismos internacionais (BYERLY, Próximo ao que ocorre no contexto de
2012; CERQUEIRA; CABECINHAS, 2012; produção jornalística, o número de mulheres
MONTIEL, 2010). Cerqueira (2015) se dedi- como fontes em notícias também passa por
ca a entender esses esforços dos atores políticos mudanças. É o que atestam os dados do maior
globais em pautar a discussão sobre igualdade estudo longitudinal sobre a desigualdade de
de gênero na mídia, em especial nos postos de gênero nos media. A versão 2015 do The Global
trabalho. Ressalta, contudo, ao olhar diversas Media Monitoring Project (GMMP) traz dados
iniciativas da Organização das Nações Unidas atualizados sobre como mulheres e homens
para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), possuem tipos diferentes de visibilidade nas
que pouco se sabe sobre a penetração dessas notícias em 144 países. O Brasil não integra
campanhas nas indústrias. o corpus de análise.
No Brasil, sabe-se que a feminização da O projeto, iniciado em 1995 e realizado
profissão também é uma realidade. Dados de a cada cinco anos, investiga em todos os con-
uma pesquisa recente da Federação Nacional tinentes um dia de notícias no ano, em rádio,
dos Jornalistas no Brasil (Fenaj), de 2013, televisão e mídia impressa, com a primeira
revelou que 64% dos profissionais de jorna- tentativa de monitorar sites e Twitters noticio-
lismo são mulheres. Há poucos dados no país, sos no ano passado. A presença de mulheres
inclusive divulgados por pesquisas acadêmicas, nas notícias chegou a 24%, em 2015, após as
que discutem a presença feminina nos postos margens de 21% em 2005 e 17% em 1995.
de governança de mídia. O que se sabe, se- Os dados por continente, bem como a média
gundo a pesquisa da Fenaj (Idem), é que as mundial, podem ser observados no Gráfico 1.
“jornalistas, mais jovens, ganhavam menos Entre as categorias do monitoramento,
que os homens; eram maioria em todas as destacam-se as funções assumidas pelas mulhe-
faixas até cinco salários mínimos e minoria res quando são ouvidas. A Figura 1 evidencia
em todas as faixas superiores a cinco salários que é mais comum aparecerem relatando ex-
mínimos”. Koshiyama (2001) relata, a partir periências pessoais do que como comentaristas
de sua trajetória pessoal, como o não emprego ou experts.

187
Gráfico 1
Dados do GMMP ao longo de 20 anos de monitoramento das notícias

Fonte: Macharia, (2015, p. 26).

Figura 1
Funções das mulheres como fontes de notícias nos dados do G

Fonte: El Proyecto de Monitoreo Global de Medios (2015, p. 4).

Os dados sobre as funções das fontes fe- estão “como um exemplo anônimo de opi-
mininas se articulam com uma desigualdade nião pública uniformizada, como dona de
maior. Os estudos de jornalismo documentam casa, consumidor, vizinha ou como mãe,
que é comum as notícias acessarem fontes irmã, esposa” (HOLLAND, 1987, p. 138
oficiais com frequência e essas pessoas, em apud CARTER et al., 1998, p. 5, tradução
grande maioria, são homens. É o que Byerly nossa)7. É de posse dessa percepção de um es-
e Ross (2006, p. 47) denominam de um “male paço diferenciado ocupado pelo feminino nos
orderd cicle”. Quando aparecem, geralmente, textos jornalísticos que se desenvolvem os dois

7 No original: “as an anonymous example of uniformed public opinion, as housewife, consumer, neighbour, or as
mother, sister, wife of the man in the news”.

188
caminhos mais comuns de análise dos estudos chamadas de jornais de 1997, quando 120
político-feministas de mídia: a cobertura sobre mulheres foram eleitas ao parlamento britânico
mulheres políticas e sobre ativistas feministas. e tratadas como as Blair’s Babes (ADCOCK,
2010).
Cobertura de mulheres políticas Norris (1997b), ao comparar a cobertura
de dez mulheres líderes em diferentes con-
Entre os estudos preocupados com o jor- textos, tais como Margaret Thatcher (Reino
nalismo e as questões de gênero e política, os Unido), Indira Gandhi (Índia) e Benazir
mais proeminentes são os que olham para a Bhutto (Paquistão), organiza a cobertura em
cobertura de mulheres candidatas ou já em três frames. O primeiro com (1) as pioneiras,
cargos eletivos. No Legislativo, especialmen- com a marcação das primeiras mulheres a
te como deputadas, e no Executivo, como assumirem os cargos políticos; (2) as outsi-
presidentas ou primeiras-ministras, nota-se ders, por vezes subestimando suas carreiras,
que o gap de representação feminina (com mostrando-as como intrusas naquele lugar;
exceção dos países nórdicos) é acompanhado e (3) as agentes de mudanças, recaindo sobre
por tipos recorrentes de visibilidade depre- elas as expectativas de que possam moralizar
ciativa ao longo de vários países (ADCOCK, a política, “limpando-a”. Para além dos frames
2010; MIGUEL; BIROLI, 2011; NORRIS, comuns, Holtz-Bacha (2013) argumenta que
1997b; ROSS, 2002; 2016; ROSS et al., 2013; a cobertura sobre representantes femininas
SRERBERNY; VAN ZOONEN, 2000). incorre no double bind:
Norris (1997b) e Ross (2002; 2016) são
referências importantes dessa agenda e traça- Se uma mulher se apresenta como fria, calculista e
ram os caminhos mais comuns pelos quais o agressiva, como é esperado nos negócios políticos,
ela corre o risco de ser rejeitada como uma virago,
jornalismo fala sobre as mulheres candidatas uma mulher masculinizada. Se, por outro lado, ela
ou eleitas. A regra é que sejam tornadas ob- se apresenta sob traços explicitamente femininos,
jetos de debate público características como ela pode ser vista como inapta para os desafios dos
a idade das representantes, aparência física, negócios políticos. (HOLTZ-BACHA, 2013, p. 48)
vestimenta, relações pessoais e domésticas,
com atenção para traços de personalidade. Ross (2002), em pesquisa comparativa,
Ao pesquisar o tratamento da mídia america- a partir de entrevistas sobre a percepção da
na a Geraldine Ferraro, Patricia Schroeder e cobertura midiática com mulheres políticas no
Hillary Clinton, entre os anos 1980 e 1990, Reino Unido, Austrália e África do Sul, afirma
Montalbano-Phelps (2005) afirmou que as que elas notam a cobertura diferenciada sobre
roupas e penteados das candidatas se tornaram suas ações e contam que, frequentemente, seus
grandes eventos midiáticos. familiares são acionados para opinar sobre
Segundo Ross (2002), o “normal” é que sua atuação ou comportamento, o que não
apareçam primeiro como mulheres e depois acontece com os colegas homens. Quando
como políticas. Ou que sejam “avaliadas sob as eleitas têm parentesco com políticos, esse
critérios que não vêm do campo da política capital familiar é acionado pelos media mesmo
e que não aparecem na avaliação de políticos que a competência política esteja para além
do sexo masculino” (HOLTZ-BACHA, 2013, dele (HOLTZ-BACHA, 2013).
p. 48) e pouco tratadas como “interlocutoras Além disso, os termos do discurso usados
sérias” (ROSS et al., 2013, p. 9). Um exemplo nas notícias mudam, identificando, por exem-
clássico mencionado nesses estudos foram as plo, os homens como brilhantes oradores e as

189
mulheres como mães de crianças. No Reino Cobertura do feminismo
Unido, uma forma da linguagem usada para
inferiorizar as mulheres é chamá-las pelo pri- Os estudos sobre a presença do feminismo
meiro nome, enquanto os homens continuam ou das feministas nas notícias são minoritários
a ser tratados pelo sobrenome (ADCOCK, se comparados aos demais veios de análise que
2010; ROSS, 2002; 2016). apresentamos até aqui, atestam as pesquisa-
Um argumento que atravessa todas essas doras que trilham esse caminho (BARKER-
pesquisas é quanto ao risco democrático inci- PLUMMER, 2010; CERQUEIRA, 2012;
tado por essa cobertura, que obscurece as habi- HIGH-PIPPERT, 2005; LIND; SALO, 2002;
lidades políticas das mulheres: “esse caminho MENDES, 2011a; NORTH, 2009).
pode ser visto como meramente irreverente, Embora marginal dentro dos já margi-
mas sinaliza uma tendência perigosa de ba- nais estudos feministas de mídia, a pesquisa
nalizar e neutralizar a potência das mulheres sobre o ativismo das mulheres nas notícias é
para serem atrizes e líderes no palco político” fundamental para a compreensão da relação
(ROSS, 2002, p. 81, tradução nossa)8. pública do movimento com a sociedade, com
No plano nacional, é crescente o interesse a forma como suas pautas, atrizes, caminhos,
pelas dinâmicas de gênero na midiatização ganhos passados e expectativas para o futuro
da política, com vários esforços de análi- são apresentados.
se de campanhas ou programas eleitorais,
a exemplo de Freitas (2013), Mendonça e Quando a relação entre mulheres, política e mídia
Ogando (2012) e Mota e Biroli (2014). Ao é explorada, os pesquisadores geralmente se con-
centram nas elites políticas. Cientistas políticos
jornalismo, especificamente, é preciso citar têm se interessado em como o gênero do candidato
o longo trabalho de Miguel e Biroli (2011), afeta a cobertura da mídia durante uma campa-
em Caleidoscópio convexo, pesquisa com jor- nha política e quando o candidato é eleito para o
nais televisivos e revistas semanais, durante cargo. A cobertura da mídia de mulheres ativistas
é uma área importante que tem sido negligenciada
os anos de 2006 e 2007, em períodos pré e nesse corpo de pesquisa. (HIGH-PIPPERT, 2005,
pós-eleitoral. Os autores apontam que em p. 199, tradução nossa)9
matérias referentes à política, apenas 12,6%
dos personagens que aparecem nos telejornais
são mulheres, número que cai para 9,6% nas No caso do feminismo, para além da di-
revistas. Trata-se do trabalho mais sistemático ficuldade já documentada do relacionamento
feito no país acerca da cobertura de diferentes da mídia com os movimentos sociais, há uma
mulheres políticas. série de distanciamentos provocados de forma
Se com as mulheres em altos postos de cíclica tanto pelos veículos quanto pelas pró-
poder os estereótipos são recorrentes, eles se prias ativistas. Vista na maioria das vezes como
acentuam ainda mais no tratamento das ati- inimiga do movimento, dadas as repetidas
vistas feministas, como veremos a seguir. construções estereotipadas sobre mulheres,

8 No original: “this way might be seen as merely irreverente, but it signals a dangerous tendency to trivialize and
neutralize the potency of women to be actors and leaders on the political stage”.
9 No original: “When the relationship between women, politics and media is explored, researchers typically
concentrate on political elites. Political scientists have been interested in how candidate’s gender affects media
coverage both during a political campaign and once the candidate is elected to office. Media coverage of women
activists is an important area that has been overlooked in this body of research”.

190
as ativistas, por vezes, recusam essa interação aparecer nos trabalhos mais recentes. Segundo
(BARKER-PLUMMER, 2000). ela, a cobertura opera a partir de três processos:
Contudo, é inegável, afirmam as autoras, demonização, personalização e polarização.
que os meios de comunicação são arenas fun- Demonizar as feministas, tratá-las como
damentais para a compreensão da importante desviantes, hostis, anormais é um traço mar-
visibilidade ampliada de pautas (como violên- cante. Lind e Salo (2002, p. 219) analisaram
cia doméstica, por exemplo) ou da constru- rádios e TVs americanas entre 1993 e 1996
ção mais pejorativa do feminismo (HUDDY, e identificam as ideias depreciativas mobi-
1997; LIND; SALO, 2002; MENDES, lizadas contra as ativistas, ao deslocarem os
2011a, TERKILDSEN; SCHNELL, 1997; padrões que regularmente se espera das mu-
VAN ZOONEN, 1992). Não investigá-los é lheres – “que rejeitam padrões tradicionais de
perder uma parte significativa do entendimen- feminilidade são ridicularizadas” (tradução
to sobre como a “identidade pública” (Ibidem) nossa)10. Essa construção do desvio aparece
ou a “memória popular” sobre o feminismo também em Van Zoonen (1992), na pesquisa
(SHERIDAN et al, 2006) são construídas ou sobre notícias acerca do movimento feminis-
circulam ao longo do tempo. ta holandês, e em Sheridan et al (2006), na
No decorrer dos anos, as pesquisas têm análise de mídia impressa australiana. Em
observado duas características acerca dos mo- diferentes localizações geográficas e temporais,
mentos ou dinâmicas temporais de visibilidade as tensões na ordem do que era tido como
do feminismo. De acordo com Sheridan et al. comum para os papéis de gênero provocaram
(2006), o movimento é mais acionado quando uma reação negativa oriunda da imprensa. É
suas pautas já atingiram o sistema político. importante ressaltar, como fazem Jaworska e
Já Barakso e Schaffner (2006) lembram que Krishnamurthy (2012), que há uma ênfase
é pouco provável que haja matérias sobre o na imprensa de qualidade, dado que é mais
ativismo o tempo todo, enfatizando “ciclos raro tais questões aparecerem em tabloides.
de atenção”, momentos em que a cobertura A personalização do movimento feminista,
se acentua, mas esmaece depois. Ao observa- segundo esse conjunto de estudos, está ligada
rem a cobertura do feminismo de 1900 até a dois processos principais. O primeiro é o
1977, no New York Times, Cancian e Ross foco excessivo na aparência das mulheres, tal
(1981) afirmam que há um gap de visibilidade qual ocorre com as representantes políticas,
entre as lutas por sufrágio e as manifestações com uma atenção negativa a questões como
do women’s liberation, dado que os jornais vestimentas e depilação. O segundo é a ênfase
se interessam por eventos e não por ques- em algumas líderes específicas, como represen-
tões, e ações diretas são cobertas com maior tantes de todo o movimento. Huddy (1997), ao
proeminência, ideia corroborada por Kahn e analisar a cobertura da segunda onda americana
Goldenberg (1991). no New York Times e nas revistas Time, News e
A respeito dos conteúdos das notícias US News, entre 1965 e 1993, afirma que com
sobre feminismo, o texto de Rhode (1995) muita recorrência os periódicos acionavam as
é um primeiro esforço importante. O que mesmas vozes, minimizando a diversidade entre
autora encontra ao observar a visibilidade as feministas e criando superstars do movimento.
do feminismo na década de 1970 continua a Também relacionavam o feminismo sempre

10 No original: “who reject traditional standards of femininity are ridiculed”.

191
com grupos muito bem organizados e profis- BRONSTEIN (2005) estudou nos perió-
sionais. A designação de feminista “tem sido dicos americanos o que chama de terceira
reservada para ativistas proeminentes (famosas)” onda, de 1992 a 2004, e identificou que as
(Ibidem, p. 198, tradução nossa)11. notícias estabelecem comparações entre os
Já a polarização se caracteriza pela re- momentos, sendo a segunda onda descrita
corrente oposição entre as feministas versus na terceira de forma demonizada e a partir
homens e, ainda, feministas versus mulheres de um distanciamento entre as lutas atuais e
normais. A “guerra dos sexos”, diz Van Zoonen aquelas das “queimadoras de sutiã”. Jaworska
(1992), foi uma das caricaturas mais acionadas e Krishnamurthy (2012), a partir de dados
nessa construção da imagem pública do mo- obtidos com os maiores jornais da Alemanha e
vimento. Outra tão perigosa quanto é a que Reino Unido entre 1990 e 2009, encontraram
distancia as ativistas das mulheres comuns. discursos tratando o feminismo como um
Essa comparação enseja o perigo de reforçar movimento já datado, tanto que duas palavras
uma ideia de descolamento do feminismo dos frequentes nos textos, dizem as autoras, são
problemas “reais” das mulheres. dead (morto) e past (passado).
Essa tentativa de “matar” o feminismo
Este padrão pode servir para reforçar a percepção ou diferenciar entre o aceito e o não aceito no
de que o feminismo não é relevante nem parti- movimento está diretamente ligada com as dis-
cularmente aplicável à maior parte da vida diária
para a maioria dos cidadãos. Segundo, o padrão de
cussões sobre o pós-feminismo (MCROBBIE,
representação midiática das lutas feministas pode 2004) e os impactos perversos da relação entre
implicitamente mostrar ao público que as feministas feminismo e capitalismo. Dean (2010), na
não são “normais”, nem mesmo “comuns”, nem pesquisa sobre o feminismo nos jornais do
mesmo “reais”. As mulheres reais têm lares, moram
em lugares reais (cidades, municípios etc.), e se en-
Reino Unido, de 2006 a 2008, afirma que
gajam em atividades regulares de trabalho e lazer no ocorre uma “domesticação” do ativismo pela
dia a dia. Mulheres de verdade fazem o tipo de coisas imprensa, com seleção e indicação do que é
que nós (público em geral) fazemos, mas é muito aceitável de ser celebrado – “domesticação
menos provável que feministas sejam retratadas
em tais situações como são as mulheres “comuns”
refere-se à garantia de um espaço legítimo para
(LIND; SALO, 2002, p. 224, tradução nossa)12. que um feminismo ‘moderado’ seja afirmado
por meio de um repúdio a um feminismo
‘excessivo’”(Ibidem, p. 393, tradução nossa)13.
Um tipo de polarização também docu- Nesse sentido, o trabalho de Mendes
mentado pelas pesquisadoras é aquele que (2011a, 2011b; 2012; 2015), como uma
tenta tornar contraditórios o ativismo de hoje longa análise longitudinal, traz resultados
e o de outrora (MENDES, 2011a; 2012). que merecem reflexão. Mendes se debruçou

11 No original: “has been reserved for proeminente activists”.


12 No original: “All told, this pattern may serve to reinforce the perception that feminism is neither relevant nor
particularly applicable to the bulk of daily life for the majority of citizens. Second, the pattern of mediated
representation of the site of feminist struggles may further implicitly show the audience that feminists are not
quite “normal,” not quite “regular,” not quite “real.” Real women have homes, live in real places (cities, towns,
etc.), and engage in regular day-to-day work and leisure activities. Real women do the types of things we (audience
members) do, but feminists are much less likely to be portrayed in such situations than are ‘regular’ women”.
13 No original: “domestication thus refers to the securing of a legitimate space for a ‘moderate’ feminism to be
affirmed via a repudiation of an ‘excessive’ feminism”.

192
sobre quatro jornais dos Estados Unidos e imbricada desses periódicos do século XX
outros quatro do Reino Unido, de diferentes com a trajetória pessoal de líderes feministas.
espectros políticos, entre os anos de 1968 a Woitowicz (2008, 2012) tem discutido con-
2008, a fim de discutir quais os frames sobre tinuamente a imprensa feminista brasileira de
o feminismo desde sua segunda onda. Os es- 1970 a 1990, com esforço comparativo. Isso
tereótipos que apresentamos anteriormente sem mencionar a vasta produção oriunda dos
aparecem na pesquisa da autora, mas há dois campos da história e das letras, especialmente
dados bastante surpreendentes. Ela afirma sobre as mulheres escritoras nos séculos XVIII
que, para além do frame de oposição, houve e XIX. Mais recentemente, Rizzotto (2014)
também um frame de suporte ao movimento e analisa um espaço na internet como local de
outro em que ele é apresentado com complexo, contranarrativa e crítica de mídia feminista.
com suas disputas internas. O que é bastante Em pesquisa recente, Sarmento (2017)
relevante para superar uma agenda monolítica investiga, a partir de 579 textos, a cobertura do
de pensar a mídia como uma grande inimiga movimento feminista brasileiro na imprensa
do feminismo (BARKER-PLUMMER, 2010). nacional, especificamente na Folha de São
Contudo, a autora afirma que a cobertura Paulo, no intervalo entre os anos 1921 e 2016,
favorável apresenta delineamentos bem claros, a fim de entender como sujeitos e pautas do
próximos ao que Dean (2010) diz ser uma feminismo em diferentes fases foram alvos da
domesticação. Os jornais analisados acabam visibilidade midiática e como as ativistas bra-
construindo os limites do tolerável para o sileiras interagem como os meios de massa. A
ativismo – “uma feminista, não uma militante análise, dividida em três momentos, discute os
feminista” (MENDES, 2011b, p. 491) – e enquadramentos do feminismo no jornalismo
possuem foco menos no movimento e mais nas a partir da ideia de ondas da historiografia
questões individuais, em termos de escolha, feminista. No primeiro momento (1921 a
dadas as recentes conquistas. 1959), observa-se que os enquadramentos
No Brasil, há estudos robustos sobre a sobre o sujeito se alternavam na construção
forma como pautas, reivindicações e campa- da feminista desviante e da feminista aceitá-
nhas específicas ligadas ao movimento femi- vel. No segundo momento (1960 a 1989),
nista têm sido alvo de cobertura jornalística, a o quadro da feminista desviante permanece
exemplos de Cal (2016) e Mantovani (2017). nos textos analisados. Passa a aparecer uma
Há pouca literatura sobre a cobertura do mo- ideia mais forte da organização política e da
vimento em si como ator político, tal como o pluralidade do movimento, nomeado de a
supramencionado estudo de Mendes (2011b). feminista organizada. No terceiro momento
Muitos dos esforços estão concentrados na (1990 a 2016), novamente, a manutenção do
própria imprensa feminista. O trabalho de sujeito feminismo como desviante e uma nova
Cardoso (2006), por exemplo, construiu uma ênfase na dimensão individual do ativismo. A
cartografia dos periódicos feministas brasileiros pesquisa mostra como a ideia de um desvio é
desde a década de 1970 e dentre seus achados permanente na cobertura nacional e admite
mais relevantes está o que aponta a extensão que não se pode falar de silêncio sobre o femi-
nacional dessas publicações, dado que, por nismo ou de invisibilidade do movimento, mas
anos, olhou-se para expoentes como Brasil de uma cobertura profundamente dinâmica.
Mulher, Nós Mulheres e Mulherio, construí- Diante dessa relação entre feminismo e
dos no eixo Sul-Sudeste. Pesquisas como a de mídia, para além da observação das arenas de
Debértolis (2002) também tratam da relação visibilidade, dois caminhos bastante instigantes

193
se colocam para a agenda. O primeiro, a exem- interessante dessa comparação é a presença
plo de North (2009), é a investigação de como marcante do quadro do desvio no contexto
repórteres, de ambos os gêneros, elaboram brasileiro e internacional no retrato das ativis-
significado sobre o que é o feminismo para si tas feministas, que sinaliza para a dificuldade
próprios e na construção de seu trabalho. O da construção pública dessas atrizes como mu-
advocacy de gênero, voltado para os profissionais lheres comuns, que estão lutando pelos seus di-
da mídia, ainda carece de produção científica. reitos. Entender mais detidamente os motivos
O segundo flanco é sobre a necessidade disso (seja a partir de entrevistas com pessoas
de entender o investimento que organizações comuns ou com profissionais da imprensa) e
feministas fazem no relacionamento com a im- construir estratégias de desconstrução pode ser
prensa (CERQUEIRA, 2012). Barker-Plummer um caminho acadêmico e político relevante.
(2010) faz uma provocação importante sobre As negociações entre ativistas e profissionais
isso ao dizer que é preciso ir além do questio- da comunicação, as experiências de media
namento de como o feminismo foi coberto e advocacy (para além da imprensa feminista),
investigar a interação entre o movimento e a as estratégias de comunicação que tornem as
mídia, deixando claro que essa não é uma via pautas mais inteligíveis também podem ser
de mão única. A autora enfatiza os perigos em caminhos para pesquisas futuras.
considerar a mídia um “mal necessário” e não Uma segunda questão que se coloca can-
se envolver em relação de disputa de sentidos. dente nos dias atuais é o entendimento dos
Ao se negarem a designar alguém para falar pelo usos e relações do feminismo com a internet.
movimento, por exemplo, as ativistas abrem Há pouca discussão ainda, em solo nacional
uma brecha para que os meios assumam uma – em especial nas ciências sociais – sobre se
porta-voz, dado que o jornalismo trabalha mo- houve mudanças no ativismo feminista a partir
bilizando fontes de “autoridade”. Mais do que do uso, em especial, de redes sociais digitais.
recusa, a autora fala de assumir a perspectiva Embora a pesquisa sobre ativismo on-line
pragmática e estratégica na relação com os caminhe a passos largos, acerca do feminismo,
meios e vê-los “menos como oponentes e mais os trabalhos ainda são residuais. Um veio de
como recursos que podem ser potencialmente pesquisa importante é entender, diante das
negociados” (BARKER-PLUMMER, 2010, diferentes nomenclaturas (“ciberfeminismo”,
p. 172-173, tradução nossa)14. “feminismo on-line”, “feminismo digital”),
como esse ativismo feminista que se projeta na
Considerações finais internet se contrapõem às narrativas históricas
presentes nos meios de comunicação.
De posse do estado da arte da pesquisa Como se vê, a agenda de pesquisa em
sobre os estudos feministas de mídia e política, feminismo, mídia e política é bastante fértil
entendemos que algumas considerações finais e diversificada. Com este texto, nosso interes-
são relevantes. A primeira delas é acerca da se foi mapeá-la e nos somar aos esforços das
necessidade do investimento em pesquisas pesquisadoras brasileiras que já caminham
comparativas e longitudinais, a fim de ob- nessa estrada, a fim de adensar discussões tão
servar as transformações e permanências, em fundamentais sobre a relação entre comuni-
especial na cobertura jornalística. Um exemplo cação e gênero.

14 No original: “less as an opponent and more as a resource that could potentially be negotiated”.

194
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200
Resumo

Estudos feministas de mídia e política: uma visão geral


Este texto apresenta uma revisão bibliográfica dos chamados feminist media studies, a partir de autoras, obras e objetos
empíricos fundamentais. Começa com as discussões sobre entretenimento e cultura popular fundadoras do campo,
mas tem como foco principal mostrar as pesquisas preocupadas com as relações entre mídia, feminismo e política
mais detida à prática jornalística. Mobilizamos os trabalhos que se ocupam da participação de mulheres na indústria
da comunicação midiática e da representação delas como sujeitos das notícias, com atenção especial à visibilidade de
mulheres candidatas e/ou eleitas e ativistas feministas.
Palavras-chave: Feminismo; Mídia; Política.

Abstract

Feminist Media and Political Studies: An Overview


This study presents a bibliographical review of “feminist media studies”, from female authors, works and fundamental
empirical objects. It begins with discussions about entertainment and popular culture which founded the field, but its
main focus is to show researches concerned with relations between media, feminism and politics that are more involved
in journalistic practices. We mobilized studies that are concerned with the participation of women in communication
and their representation as news subjects, paying close attention to the visibility of women who are candidates and /
or already elected and feminist activists.
Keywords: Feminism; Media; Politics.

Résumé

Études féministes des médias et de la politique: une observation générale


Cet article présente une revue bibliographique des «  feminist media studies  » (études féministes médiatiques), à
partir d’auteurs féminins, des travaux et des objets empiriques fondamentaux. Il commence avec des discussions sur le
divertissement et la culture populaires fondateurs du sujet, mais l’objectif principale est de montrer les recherches qui
concernent les relations entre les médias, le féminisme et la politique plus impliquée dans les pratiques journalistiques.
Nous mobilisons des études qui concernent la participation des femmes dans l’industrie de communication médiatique
et leur représentation en tant que sujets d’actualité, avec une attention particulière à la visibilité des femmes candidates
et/ou élues et des activistes féministes.
Mots-clés : Féminisme; Médias; Politique.

201
DOI: 10.17666/bib8709/2018

Abordagens teóricas em torno de sentidos de cidadania1

Anna Cláudia Campos e Santos2


Rennan Lanna Martins Mafra3

Introdução pode trazer. Afinal, falar de cidadania signi-


fica trazer questões sobre o Estado, políticas
Este artigo tem como objetivo identificar o públicas, esferas econômicas, políticas, sociais,
que alguns autores têm pensado sobre a temá- culturais etc.
tica da cidadania a partir do que chamamos de Nesse sentido, o objetivo deste artigo é
modelos de democracia. No Brasil, José Murilo identificar como determinados modelos de
de Carvalho (2007) é a principal referência democracia orientam a operacionalidade da
para nos ajudar em uma perspectiva de com- cidadania nos contextos democráticos cons-
preensão de como tal construção se deu. Porém, tituídos tanto por relações institucionais
seu foco histórico não permite identificar para (relação com o Estado – do ponto de vista
fins acadêmicos e até didáticos o que podemos dos aspectos formais) quanto por relações de
considerar relevante para a construção de uma sociabilidade (na sociedade – do ponto de
concepção melhor delineada acerca da cidada- vista dos aspectos informais). De modo geral,
nia4. Nosso esforço neste trabalho se dá exata- em meio a esses modelos, a cidadania aparece
mente nesta direção. Nota-se, nos trabalhos como a materialização da democracia tanto
de autores brasileiros, uma ênfase maior em do ponto de vista das relações institucionais,
estudos da temática a partir, sobretudo, do pro- quanto das relações da vida social. Assim, o
cesso de abertura democrática (CLEMENTE; que será discutido são os diferentes matizes que
JULIANO, 2013) com a Constituição de 1988 a noção de cidadania recebe em cada modelo,
(DAGNINO, 2004). Porém, outros trabalhos matizes estes que passam a orientar práticas
realizam uma abordagem muitas vezes de forma sociais diversas, desembocando nos modos de
vaga ou bastante heterogênea. Assim, contribuir operacionalização da cidadania nos Estados
para o debate em torno da noção de cidadania contemporâneos.
significa também ampliar as perspectivas em Desse modo, é possível encontrar nestes
torno das inúmeras discussões que tal noção modelos três aspectos que possibilitam discutir

1 Este artigo é parte dos resultados da dissertação intitulada “A institucionalização da cidadania no meio rural
brasileiro pós-88: uma análise a partir do campo discursivo em torno do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (Pronaf )” (SANTOS, 2017).
Os autores agradecem as valiosas críticas e sugestões dos pareceristas anônimos, incorporadas ao longo do artigo.
2 Doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal de Pelotas. E-mail: accamposesantos@gmail.com.
3 Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor da Pós-Graduação em
Educação na Universidade Federal de Viçosa. E-mail: renna.mafra@ufv.br.
4 Clemente (2016, 2015, 2013) desenvolve trabalhos importantes no mapeamento da noção de cidadania, porém sua
abordagem se difere da proposta aqui realizada, ainda que seja relevante destacar suas contribuições para o tema.

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 203-215. 203
as diferenciações encontradas acerca da cidada- espaço neste estudo, foi preciso realizar al-
nia: motivação, operacionalização (mecanismo e gumas escolhas. Assim, selecionamos os se-
âmbito de exercício) e resultado a ser alcançado. A guintes autores: Hannah Arendt, John Rawls,
motivação pode ser entendida como conjunto Jürgen Habermas, Axel Honneth e Chantal
de aspectos que apontam para um horizonte Mouffe. A terceira e última parte do artigo
de valores indicado pela cidadania, e o resultado tece apontamentos finais buscando explicitar
a ser alcançado pode ser compreendido como nossa intenção de contribuir e complexificar
o conjunto de aspectos práticos que indicam o debate em torno da cidadania e das ações a
a concretude desses horizontes. O mecanismo elas relacionadas.
pode ser entendido como a reunião dos elemen-
tos que operacionalizam práticas cidadãs, com A cidadania de Thomas Marshall
vistas a um resultado a ser alcançado, baseado
numa motivação. E, por fim, os âmbitos de Marshall ([1963] 1967) busca identificar
exercício são os espaços físicos e/ou simbólicos, historicamente na modernidade como se deu
presenciais e/ou constituídos por tecnologias o processo de construção da cidadania, e opta
e linguagens, nos quais mecanismos cidadãos assim por dividi-la em três aspectos – civil,
ganham existência e possibilitam o exercício de político e social –, correspondentes à conquista
sujeitos, das mais diferentes formas. Tomamos de direitos pautados por tais aspectos. Desse
como referência o fato de que estes modelos são modo, é possível, antes de tudo, reconhecer
concepções heurísticas, construídas a partir de que a visão normativa de Marshall (Ibid.[1963]
momentos históricos datados, em que revelam 1967) indica que a cidadania se constitui nos
contextos pelos quais os autores foram influen- Estados Constitucionais contemporâneos pela
ciados, e demonstram também uma influência/ conquista de direitos civis, políticos e sociais.
debate sobre eles. O autor atenta que tais direitos não devem ser
De forma mais ampla, busca-se tam- vistos como processos linearmente identifi-
bém demonstrar como essa discussão sobre cáveis – ainda que sublinhe sua conquista se
cidadania vem adquirindo novas roupagens deu a partir de contextos advindos dos séculos
e novas implicações a fim de se aperfeiçoar a XVIII, XIX e XX, respectivamente, e que, de
sua discussão e abordagens nas sociedades ao alguma forma, a conquista dos dois últimos
longo do tempo. esteve interligada de modo considerável.
Nesse sentido, este artigo foi desenvol- Assim, o processo de conquista dos di-
vido da seguinte maneira: na primeira parte, reitos civis se deu no século XVIII. Tais di-
delineia-se a concepção clássica de Thomas reitos se relacionam a aspectos individuais
Marshall ([1963] 1967) de cidadania. Num tais como liberdades de ir e vir, de imprensa,
segundo momento, ao identificarmos algumas pensamento e fé, conquista da propriedade e
limitações de seu modelo, discute-se como a da conclusão de contratos válidos e direito à
noção de cidadania vem sendo abordada por Justiça. A conquista dos direitos civis ocor-
alguns autores. A escolha de tais autores se reu por meio da ampliação de um status já
deu após uma longa pesquisa em torno de existente de liberdade, cabendo, deste modo,
estudiosos que tivessem ganhado relevância apenas aos homens livres ter sua concessão. A
nos estudos da ciência política ao longo do ampliação do status de liberdade e, assim, a
tempo e merecessem ser explorados a partir concessão dos direitos civis se deu a partir da
de nossa temática principal. Ainda que reco- transformação do trabalho servil em trabalho
nheçamos que outros estudiosos mereceriam livre, no qual a liberdade se tornou um direito

204
para os indivíduos, e não um privilégio. Nesse a adoção do sufrágio universal5 que ocorre o
sentido, a liberdade é tida como sinônimo de abandono da base econômica para se pensar
cidadania, e esta adquiriu um caráter nacional a garantia dos direitos políticos, cabendo ao
por meio da doação de velhos direitos a novos status pessoal a definição básica para condição
setores da população. de tal direito.
Marshall (Ibid.) afirma que, do ponto de Já o processo de conquista dos direitos
vista da cidadania democrática, os direitos po- sociais se deu no século XX, tendo forte relação
líticos no século XVIII podem ser considerados com os demais direitos, sobretudo com os di-
deficientes no que diz respeito ao seu potencial reitos políticos. Tais direitos estão relacionados
de distribuição, dado que o direito ao voto era tanto à busca por um mínimo de bem-estar,
monopolizado por grupos específicos. Por isso, quanto à garantia de levar a vida de acordo com
relaciona historicamente o século XIX com o os padrões da sociedade (Ibidem), lançando
processo de conquista de tais direitos, que se mão, para isso, de um investimento público
referem ao direito de “participar no exercício em estruturas de saúde, educação, assistência
do poder político, como um membro de um social, lazer, dentre outras. Maior atenção foi
organismo investido da autoridade política dada aos direitos sociais no século XX, dado
ou como um eleitor dos membros de tal or- o contexto predominantemente mercadoló-
ganismo” (Ibid., p. 63). gico, em que o mercado possibilitava chances
Os direitos políticos neste momento não de modificação do status e modos de vida
conferiam um status de cidadania, mas sim de dos indivíduos. Nesse momento viu-se, em
privilégio às classes econômicas mais favoreci- termos globais, o estabelecimento de relações
das, uma vez que a condição de participação e interações entre vários países do mundo, o
estava diretamente relacionada à condição mercado revelando suas contradições e eviden-
econômica dos sujeitos. A cidadania, até este ciando opressão e desigualdade. A base para a
momento, não se mostrava como um direito, conquista de tais direitos se deu inicialmente
mas “reconhecia uma capacidade”, uma vez por meio da participação em comunidades
que o sujeito era livre para conseguir condi- locais e associações funcionais. Essa base foi
ções econômicas suficientes para que lhe fosse ampliada e modificada a partir de outras ações
permitido o uso do direito ao voto, de modo e políticas realizadas pelo Estado, e, dadas as
que tal processo era facilitado pelos direitos modificações e momentos históricos, surge
civis garantidos a ele (Marshall, 1967.). a Lei dos Pobres. Considerada como grande
Desta forma, tem-se no século XIX o originária dos direitos sociais, essa Lei, segundo
reconhecimento dos direitos políticos como Alves (2015, p. 53) pode ser resumida como
um produto secundário dos direitos civis. Da “um conjunto de regras assistenciais que visava
mesma forma, há, em seguida, um abandono fornecer auxílio aos mais necessitados”.
de tal visão a partir do século XX, na medi- Assim, em um panorama geral, ainda
da em que os direitos políticos são, a partir que o século XIX tenha propiciado os passos
de então, vistos como relacionados direta ou iniciais para a conquista dos direitos sociais, o
indiretamente à noção de cidadania. É com reconhecimento dos direitos como intrínsecos

5 Marshall chama atenção para o caráter universal do voto, que, até o momento histórico descrito pelo sociólogo,
não adquire o caráter amplo como a noção de universal nos remota. Insiste no uso do termo pois afirma que houve
grande avanço em termos de ampliação do voto, ainda que permanecessem desigualdades baseadas em questões
econômicas.

205
à cidadania foi veementemente negado, le- aspecto da teoria republicana para se pensar
vando ao seu quase desaparecimento. Desse a questão da igualdade e dos direitos sociais.
modo, Marshall ([1963] 1967) identifica que Hannah Arendt (ibid.), filósofa republica-
o primeiro grande passo dado em relação à na, situa sua discussão a partir da participação
conquista dos direitos sociais ocorreu no sé- direta dos indivíduos na vida pública, porém,
culo XX e se relaciona ao desenvolvimento da enfatiza o fato de que a cidadania deve ser pen-
educação primária pública, tida, pelo autor, sada, sobretudo, pela pluralidade e diversidade
como essencial para a formação de adultos dos sujeitos. A visibilidade, o aparecimento, a
conscientes. importância de os indivíduos ouvirem e serem
Como visto acima, Marshall ([1963] ouvidos por todos os demais, bem como a exis-
1967) é um autor clássico quando se trata tência da pluralidade humana, impedem a anu-
da noção de cidadania. Seu estudo se dá no lação das diferenças na construção da sociedade
sentido de identificar o processo de construção e devem orientar os homens para a construção
da cidadania pela conquista de direitos civis, de uma cidadania no espaço público.
políticos e sociais. Sua concepção é tida como De modo mais específico, o espaço
pautada em uma noção de cidadania passiva, público se efetiva a partir da participação
já que esta é pensada a partir da conquista de ativa dos sujeitos, por meio de estruturas
direitos sem a necessidade da participação ativa de comunicação pública, baseadas na ação e
dos sujeitos na vida pública. Assim, ao enfati- no discurso, envolvendo a presença de inú-
zar uma concepção histórica de tal processo, meras visões e perspectivas. Assim, no espaço
segundo segundo Kymlicka e Norman (1997), público, os indivíduos convivem uns com
o autor deixa de considerar duas grandes ques- os outros na medida em que estabelecem
tões: (1) a participação ativa dos sujeitos a noções básicas para a convivência comum
partir da concepção de responsabilidade e – e, simultaneamente, reconhecem-se em
virtudes cidadãs; e (2) o pluralismo social e cul- suas individualidades –, situação na qual a
tural das sociedades contemporâneas enquanto singularidade de cada sujeito é considerada.
aspectos que devem ser pensados na definição Assim, o espaço público seria, nas palavras
e manutenção de tal noção. Nesse sentido, é da filósofa (ARENDT, 2007, p. 62), “como
importante mapear como os estudiosos da uma mesa [que] se interpõe entre os que se
contemporaneidade têm pensado a cidadania assentam ao seu redor; […] como todo inter-
nos contextos democráticos constituídos tanto mediário, [e] […] ao mesmo tempo separa e
por relações institucionais quanto por relações estabelece uma relação entre os homens”. A
de sociabilidade. construção da cidadania se dá, então, a partir
da vida pública que possibilita aos indivíduos
Teoria republicana: soberania do verem e serem vistos pelos diversos pontos de
povo e a aceitação da pluralidade vista, permitindo que a realidade se construa.
Segundo Arendt (Ibidem), o espaço público
A teoria republicana vê a participação permite que a realidade se manifeste de ma-
política dos sujeitos como de extrema rele- neira digna, levando, assim, à construção de
vância para se pensar a construção da socie- um mundo comum (Ibid.; TELLES, 1990).
dade e o reconhecimento da pluralidade e da A perda do espaço público e a não exis-
diversidade. Assim, abordaremos a filósofa tência de um mundo comum a todos os indi-
Hannah Arendt ([1958] 2007), enfatizando víduos são indícios da prevalência apenas de
que a participação política se torna o principal uma visão e de uma perspectiva na orientação

206
de questões e decisões para todos os indivíduos e à pluralidade, quanto na garantia da liber-
(ARENDT, 2007; MAGALHÃES, 2009). O dade e da igualdade.
fim do espaço público acarreta não só a perda A teoria republicana, a partir da visão
da liberdade, como também a caracterização de Hannah Arendt, possui como principal
da individualidade dos sujeitos, levando ao motivação da cidadania a soberania do povo,
desinteresse por questões relacionadas aos de- a pluralidade e a diversidade com vistas a
mais indivíduos, perdendo-se assim o lugar de alcançar a criação de um mundo comum,
possibilidade de ouvir e ser ouvido. direitos sociais, liberdades civis e igualdade.
Para a filósofa, liberdade é uma noção Isso se cumpre a partir de mecanismos de
que adquire extrema importância para pen- operacionalização como estruturas de comu-
sar a cidadania. Isso porque a liberdade está nicação política e a participação política direta
relacionada ao direito do indivíduo de poder dos sujeitos no espaço público e nos espaços
se expressar, além de ser condição básica para formais e informais.
que os indivíduos possam colocar seus direitos
em pauta. Portanto, a construção da cidadania, Teoria liberal igualitária: a
para Arendt ([1958] 2007), acontece a partir justiça como equidade
de uma perspectiva na qual é essencial ao in-
divíduo poder ter a liberdade de fala, sendo, A grande preocupação de Rawls
a partir disso, reconhecido como pertencente ([1993]2011, [1971] 2008) está em pensar
a uma comunidade política. os direitos dos sujeitos a partir de uma base
A perda dessa liberdade pública faz as mais sólida que a abordagem utilitarista. Para
diferenças serem convertidas em critérios o autor, o utilitarismo possui uma visão es-
políticos ou em normas legais, e os sujeitos treita de indivíduo, sem considerar seriamente
passarem a ser julgados “não por suas ações as diferenças existentes entre os sujeitos, em
e opiniões, mas pelo que são, em função dos que a sociedade é percebida do ponto de vista
azares da vida, tal como atributos definidores estritamente da escolha racional. Para Rawls
do seu lugar no mundo” (Teles, 1990, p. ([1993] 2011; [1971] 2008), tal aspecto se
40), impedindo não só o exercício de sua torna restritivo para se pensarem questões
liberdade, como também o poder de fala e individuais. Assim, o autor busca estabelecer
a busca por seus direitos, essenciais para se uma concepção de justiça fundada na im-
pensar a cidadania. parcialidade, dadas as diversas demandas dos
Assim, a relação entre Estado e socieda- sujeitos, suas tentativas variadas de constituir
de se dá de forma mais estreita, na medida noções para o estabelecimento de normas bá-
em que a participação dos indivíduos é tida, sicas estruturais da sociedade6 e a garantia dos
para tais autores, como algo extremamente direitos individuais. (CLEMENTE, 2016;
relevante: ao reverberar nas esferas formais OLIVEIRA, 2015, 2000; RAWLS, 2011;)
da sociedade, tal participação influencia no Sua teoria é desenvolvida a partir de as-
funcionamento e nas decisões das institui- pectos presentes nas concepções de liberdade
ções, tanto no que diz respeito à diversidade dos antigos e dos modernos, desenvolvidos por

6 Tais bases estruturais são, em outras palavras, a maneira como as instituições sociais distribuem direitos e deveres
fundamentais e os pontos positivos da cooperação social.

207
Constant7 (1985). Isso porque, para Rawls, é ([1993] 2011, [1971]2008) por meio da ga-
preciso pensar as liberdades políticas iguais e os rantia das liberdades individuais fundamentais
valores da vida pública (aspectos relacionados e da igualdade. Neste sentido, tal concepção
à liberdade dos antigos), e, ainda, direitos de é pensada por meio de uma concepção de
pensamento e de consciência, certos direitos justiça que permita basear toda a estrutura
fundamentais da pessoa e de propriedade (as- da sociedade, sem desconsiderar dimensões
pectos estes relacionados à liberdade dos moder- importantes da esfera individual dos sujeitos,
nos). Para Rawls, é também por meio de uma incluindo a igualdade e a dimensão dos direitos
concepção de justiça que se terá a garantia de (civis, políticos e sociais).
que a perda de algumas liberdades individuais O autor considera também relevante a
não possa ser justificada a partir de um bem ação de instituições e de políticas públicas (as-
maior compartilhado (AVITA, 1992). Nesse sistência social, previdência, saúde, educação
sentido, preocupa-se em pensar uma teoria e renda básica), a fim de que se possa garantir
que propicie aos sujeitos viverem e serem livres as liberdades fundamentais e responder às de-
e iguais, permitindo-lhes expressar os valores sigualdades básicas existentes nas sociedades.
da liberdade e da igualdade em seus direitos Simultaneamente as instituições do mercado
e liberdades fundamentais (RAWLS, 2011). adquirem relevância, já que a livre iniciativa
As liberdades fundamentais e suas ga- aparece como importante para a consecução
rantias sociais são justificadas com base em e desenvolvimento dos talentos individuais.
um acordo hipotético (posição original) no (CLEMENTE, 2016)
qual agentes estritamente racionais - meto-
dicamente privados de informações sobre a Teoria da ação comunicativa:
sociedade e sobre as suas próprias habilidades, aperfeiçoamento e justiça
talentos e motivações fundamentais (véu de nas decisões públicas
ignorância) – não poderiam deixar de concor-
dar. Para definir uma concepção sobre o que é Jürgen Habermas é autor de uma concep-
justo, Rawls (Ibid.) parte de uma concepção ção de democracia deliberativa que fez escola.
hipotética em que os sujeitos ocupam uma Sua concepção de democracia deliberativa
posição igualitária em que todos não teriam (HABERMAS, 1995, 1997) é uma tentativa
conhecimento sobre as situações que lhe pode- de se pensar a cidadania a partir de uma noção
riam trazer vantagens ou desvantagens na vida de democracia fundada nos modelos liberal
social (como classe social, nível educacional, e republicano.. Assim, o autor lança mão da
gênero etc.). O autor (Ibid.) parte também da concepção de autonomia pública advinda da
premissa de que os cidadãos são autônomos, teoria política republicana, que enfatiza a ques-
com atitudes responsáveis e com a capacidade tão da soberania popular, e da concepção de
de se colocarem no lugar do outro por meio autonomia privada da teoria política liberal,
de um critério de razoabilidade. que prioriza os interesses particulares e as
Assim, a cidadania pode ser entendida liberdades individuais, propondo um modelo
a partir do liberalismo igualitário de Rawls alternativo.

7 Constant (1985) define como liberdade dos antigos aquela em que se tem o exercício de forma coletiva e de modo
direto da deliberação na praça pública sobre diversos aspectos da sociedade, levando assim à submissão completa do
indivíduo à autoridade do todo. Já a liberdade dos modernos revela a independência no âmbito privado, levando
à busca de interesses individuais e ao direito de afastamento na participação do poder político.

208
Para Habermas (1997), a cidadania deve e naturalizado (Idem, 1990; MARQUES,
ser pensada a partir do aperfeiçoamento das 2011). Em outras palavras, a esfera pública é
decisões públicas, na construção de um agir uma espécie de intermediação entre Estado,
comunicativo na esfera pública. Dado o con- sistema político (instituições), sistemas es-
texto das sociedades complexas e pluralistas, pecializados, sociedade civil, cidadãos não
é preciso pensar de que modo o Estado deve organizados e mundo da vida.
tomar suas decisões, sem deixar de lado o A junção de características das teorias
respeito às diferenças nos modos de viver e liberal e republicana nos permite pensar
pensar. Desse modo, o autor propõe uma acerca da relação entre Estado e sociedade
teoria fundada fortemente no discurso e na civil. Habermas (1995) estabelece uma re-
razão comunicativa para avanço nas regras lação estreita entre o Estado e a vida social,
democráticas em termos de fundamentação à medida que aposta na troca argumenta-
e legitimação (FARIA, 2000). Assim, aposta tiva dos sujeitos em esferas argumentativas
numa ação recíproca que ganha proeminência formais e informais como modo de legiti-
entre as esferas informais do mundo da vida e mar decisões governamentais e, ao mesmo
as esferas formais dos processos institucionali- tempo, de resguardar os interesses indivi-
zados de tomadas de decisão. (HABERMAS, duais, já que estes devem ser respeitados e
1997; LUBENOW, 2010).
considerados nas trocas argumentativas e
Estruturas de comunicação possibilitam a
nas tomadas de decisão.
construção dessa razão argumentativa, como
também da troca de argumentos entre os in-
Teoria do reconhecimento: o
divíduos. A esfera pública adquire destaque em
reconhecimento das diferenças
sua teoria, uma vez que significa a construção
de um espaço que possibilita aos indivíduos o
Axel Honneth é referência nos debates
desenvolvimento de argumentos para construir
contemporâneos sobre reconhecimento. O
processos deliberativos. Ela não é tida como
autor parte da noção de conflito para refletir
algo material, formado por uma organiza-
ção ou por uma estrutura administrativa. A sobre a cidadania como possibilidade de re-
construção da esfera pública se dá por meio da conhecimento das diferenças. Para Honneth
emergência de uma controvérsia, como “uma (2003), é a partir do reconhecimento que se
rede adequada para a comunicação de conteú- tem o processo de construção da identidade e,
dos, tomados de posição e opiniões; [em que] consequentemente, da autorrealização do su-
[…] os fluxos comunicacionais são filtrados jeito, tanto em esferas íntimas como públicas.
e sintetizados, a ponto de se condensarem Assim, o principal mecanismo da cidadania
em opiniões públicas enfeixadas em temas advém da luta em espaços formais e infor-
específicos”. (HABERMAS, 1997, p. 92). mais pelo reconhecimento, o qual perpassa
Assim, a esfera pública pode ser conside- três níveis interligados e recíprocos: o amor
rada um centro com potencial de comunica- (afeto), que por meio das relações emotivas e
ção pública que nos mostra um raciocínio de fortes possibilita um misto de dependência e
formação da opinião e da vontade política, autoconfiança; o Estado (direito), que possi-
na sociedade civil e no mundo da vida – lugar bilita o autorrespeito e uma universalização da
onde se dá a construção de conceitos, ideias dignidade; e a sociedade (estima social), que
e noções, com base em repertórios cultu- garante a autoestima (HONNETH, 2003;
rais, espécie de pano de fundo pré-reflexivo MENDONÇA, 2009).

209
Nesse sentido, a cidadania não ocorre de existentes. Esses autores também não teriam
forma isolada. Ela se forma a partir de redes conseguido perceber o caráter paradoxal da
de socialização, nas quais os sujeitos somente democracia moderna, as tensões existentes
existem em relações. Desse modo, Honneth entre a lógica do liberalismo e da democracia,
deseja demonstrar que o reconhecimento do e, ainda, que tais tensões não precisam ser
sujeito passa pelo reconhecimento próprio, desconsideradas, mas repensadas e negociadas
pelo reconhecimento da própria sociedade e de diferentes maneiras (Ibid.).
pelo reconhecimento jurídico. Vale destacar Ainda que Mouffe (Ibid.) apresente di-
que sua noção de estima social se constitui vergências em alguns aspectos defendidos por
como um sistema referencial valorativo, ca- Rawls e por Habermas, a autora afirma que
racterizando os sujeitos em suas dimensões possui, como estes autores, preocupação com
pessoais e sociais (HONNETH, 2003). o estado das instituições democráticas. Porém,
Desse modo, o projeto de Honneth diverge quanto ao modo como estas podem ser
(Ibid.) traz consigo o reconhecimento como pensadas e modificadas. Para Mouffe (Ibid.),
possibilidade de autorrealização dos sujeitos o foco dado por tais autores à racionalidade
e acredita que, por meio de um processo de faz com que desconsiderem as paixões e afe-
luta, há avanços na sociedade que podem pro- tos enquanto aspectos essenciais para pensar
piciar inclusão. Logo, a relação entre as esferas a fidelidade a valores democráticos. O que
formais e informais (o Estado e a vida social) realmente está em jogo para a autora é a fide-
está pautada na busca pelo reconhecimento, lidade às instituições democráticas – fato que
visando tanto a conquista tida como essencial se relaciona às questões subjetivas e individuais
para a condição de cidadão, quanto uma evolu- dos sujeitos, influenciando também na criação
ção moral da sociedade, uma vez que a reflexão de cidadãos democráticos.
sobre a indignação moral possibilita efetivas Para construir sua concepção agonística de
transformações sociais e o reconhecimento democracia, Mouffe (Ibid.) parte da premissa
das diferenças através, por exemplo, da criação de que a sociedade se constrói a partir de dis-
de políticas públicas (Ibid.; MENDONÇA, cursos que buscam sempre ocupar um lugar
2009; RESENDE; MAFRA, 2016). hegemônico a partir da tentativa de abranger
as mais diversas perspectivas possíveis presen-
Teoria pós-estruturalista: tes na sociedade. Essa disputa de discursos se
a luta pelo poder dá em busca do poder e da sua manutenção
a partir do que a autora chama de hegemo-
Chantal Mouffe busca debater o que au- nia: o estabelecimento de uma ordem que se
tores deliberacionistas, influenciados por John torna dominante temporariamente. Portanto,
Rawls e Jürgen Habermas, tentam estabelecer a busca desse lugar de dominação discursiva
para as democracias contemporâneas, sobretu- decorre da coexistência de um discurso he-
do a partir da crença de tais autores em uma gemônico, de diversos discursos contra-he-
racionalidade imparcial. Para Mouffe (2005), gemônicos e da manutenção dos discursos
o consenso sugerido por tais autores, acaba para que a hegemonia se mantenha ou uma
por levar a exclusões e a desconsiderar a plu- nova hegemonia se estabeleça. Tal processo,
ralidade e a diversidade dos diversos discursos ainda que contingente, é temporário e, por

210
isso, precário (LACLAU; MOUFFE, 2015; pluralista e, por isso, dinâmica. (LACLAU;
MOUFFE, 2005)8. MOUFFE, 2015).
Assim, a cidadania é pensada por meio do Neste sentido, a construção da cidadania
caráter dinâmico que o discurso adquire, bem é pensada a partir de relações estruturantes
como define posições e lugares dos sujeitos entre Estado e vida social, uma vez que os
na sociedade. Desse modo, a cidadania deve sujeitos são vistos como formadores dos dis-
ser pensada a partir da existência de vários cursos e afetados por eles. São tais discursos
discursos, instituições e formas de vida que que possibilitam a construção da realidade
incentivem e promovam uma identificação social e que constroem lugares e possibilidades
com os valores democráticos e demarquem as aos indivíduos. E é por meio destes lugares
possibilidades que são dadas aos indivíduos de e destas possibilidades que a construção da
participarem dos variados processos existentes cidadania, nas sociedades democráticas, será
na sociedade (Mouffe, 2005). alcançada pelos sujeitos.
A cidadania se daria então a partir de uma
proposta agonística de democracia, em meio à Concepções de cidadania e
qual a transformação das relações em sociedade modelos de democracia
se apresenta através da substituição de práti-
cas discursivas construídas a partir da relação O Quadro 1 se refere à síntese realizada
entre inimigos (antagonista) pelas práticas a partir dos modelos de democracia com os
discursivas entre adversários (agonísticas). Ou seguintes parâmetros elencados: as motivações
seja, a luta pela manutenção e hegemonia do da cidadania, como ela pode ser operaciona-
poder deve se dar em um espaço onde todos lizada (a partir de mecanismos e de âmbitos
os discursos, por mais diversos que sejam, de exercício) e quais os resultados alcançados
possam coexistir simultaneamente, ainda por meio de sua efetivação. Assim, a partir
que um adquira maior destaque que outros. dos seis modelos sociodemocráticos apresen-
(FERREIRA, 2011; LACLAU; MOUFFE, tados, buscou-se resumir em palavras-chave
2015; MENDONÇA, 2003; MOUFFE, as principais noções colocadas por cada um
2005). dos autores escolhidos.
A luta pela permanência dos discursos A teoria republicana, a partir de uma visão
se dá tanto em espaços do Estado, quanto da de Arendt ([1958] 2007), possui como prin-
vida social. O status que cada discurso ad- cipal motivação da cidadania a soberania do
quire não depende só do momento histórico povo, a pluralidade e a diversidade com vistas
e da situação em que se encontra: seu caráter a alcançar a criação de um mundo comum,
transitório se dá também, sobretudo, por con- direitos sociais, liberdades civis e igualdade.
sequências as quais perpassam a sociedade, os Isso ocorre a partir de mecanismos de opera-
sujeitos e as instituições. Assim, os discursos cionalização como estruturas de comunicação
são construídos, modificados e aperfeiçoados política e a participação política direta dos
a todo instante em uma sociedade complexa, sujeitos no espaço público e nos espaços for-
mais e informais.

8 Importante destacar que Chantal Mouffe não possui uma visão estabelecida da noção de cidadania. Porém optou-
se por realizar tal esforço a fim de destacar a relevância de sua teoria para pensar a democracia contemporânea,
ainda que não busque, de forma alguma, afirmar que é possível esgotar essa discussão em termos de sua teoria.

211
Na teoria liberal igualitária, de acordo contrato hipotético e do véu da ignorância.
com Rawls ([1993] 2011, [1971] 2008), a Como mecanismo principal, há uma base
principal motivação da cidadania é a ins- de normas fundamentais da sociedade que
tituição de uma concepção de justiça tida guiarão o estabelecimento de instituições e
como indispensável para a construção e políticas públicas, levando ao objetivo de
manutenção da sociedade e da vida dos su- construir respostas às desigualdades inevi-
jeitos. Sua operacionalização transcorre de táveis e permitindo aos sujeitos usufruírem
uma noção razoável construída pelos sujeitos de seus direitos e capacidades, sobretudo a
do que é e do que não é justo, a partir do partir do mercado.

Quadro 1
A cidadania a partir de modelos sociodemocráticos
Parâmetros Operacionalização Resultado a ser
Modelos Motivação
Mecanismo Âmbito de exercício alcançado
de democracia
Estruturas de Criação de um
comunicação pública; mundo comum;
Pluralidade e Espaço público;
Republicanismo participação política conquista de direitos
diversidade; espaços formais e
(Hannah Arendt) direta; sociais;
soberania do povo. informais.
participação ativa dos liberdades civis e
sujeitos. igualdade.
Liberalismo Construção de uma Sociedade justa,
Justiça como Políticas públicas,
igualitário (John concepção de justiça cidadãos livres e
equidade instituições e mercado
Rawls) razoável iguais
Construção
Estruturas de
Aperfeiçoamento e de uma razão
comunicação (esfera
Teoria da ação justiça nas decisões comunicativa por
pública) ancoradas Legitimidade e
comunicativa públicas em meio da participação
no mundo da vida justiça das decisões.
(Jürgen Habermas) contextos complexos dos indivíduos
em conexão com
e pluralistas. em processos
instituições formais.
argumentativos.
Criação de
Luta recíproca
Reconhecimento Reconhecimento Esferas formais e políticas públicas;
por estima,
(Axel Honneth) das diferenças. informais. evolução moral da
respeito e confiança.
sociedade.
Transformação
do antagonismo
Construção e
Pós-estruturalista Luta pelo poder Vida pública; (inimigo) em
manutenção de
(Chantal Mouffe) (hegemonia) Estado. agonismo
discursos.
(adversário) na luta
pela hegemonia.

Assim, na teoria deliberativa de Habermas mecanismo central de operacionalização da


(1990, 1995, 1997) a principal motivação da cidadania, a construção de uma razão comu-
cidadania é o aperfeiçoamento nas decisões nicativa por meio da participação dos sujeitos
públicas, com o objetivo de alcançar legitimi- em estruturas de comunicação.
dade e justiça das decisões, indicando, como

212
A teoria do reconhecimento de Honneth diferentes e emergentes na vida pública e no
(2003) vê como principal motivação da ci- âmbito do Estado.
dadania o reconhecimento das diferenças,
com vistas à criação de políticas públicas e Considerações finais
à evolução moral da sociedade. Isso se dará
a partir de mecanismos de operacionalização Como pôde ser visto, a noção de cidadania
identificados como sendo a luta recíproca por é polissêmica e ampla e, ao longo dos anos,
diversos autores se dedicaram a construir uma
estima, respeito e confiança, nas esferas formais
concepção sobre ela. Com o objetivo de mapear
e informais.
as discussões realizadas por alguns estudiosos
Por fim, na teoria pós-estruturalista de
em torno da noção de cidadania, este artigo
Chantal Mouffe ([1985] 2005, 2015), a prin- delineou as principais ideias de Hannah Arendt,
cipal motivação da cidadania é a luta pelo John Rawls, Jürgen Habermas, Axel Honneth
poder, identificada por meio da definição de e Chantal Mouffe. Assim, espera-se que esse
hegemonia, com vistas a transformar relações artigo possibilite uma reflexão sobre os termos
antagonísticas em relações agonísticas, a par- da disputa contemporânea em torno do con-
tir de mecanismos de operacionalização tais ceito de cidadania e sobre a complexidade que
como a construção e a manutenção de discursos envolve essa noção.

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Resumo

Abordagens teóricas em torno de sentidos de cidadania


Este artigo busca identificar quais os sentidos de cidadania existentes em algumas abordagens teóricas, a saber: teoria
republicana, teoria liberal igualitária, teoria deliberativa, teoria do reconhecimento, teoria pós-estruturalista. Trazendo,
respectivamente, o debate construído em torno das teorias de Hannah Arendt, John Rawls, Jurgen Habermas, Axel
Honneth e Chantal Mouffe, busca-se contribuir para uma ampliação da discussão em torno desta importante categoria
analítica no campo da ciência política.
Palavras-chave: Cidadania; Teoria Política; Democracia.

Abstract

Theoretical approaches on the senses of citizenship


This article seeks to identify which meanings of citizenship exist in a few theoretical approaches, namely: republican
theory, liberal egalitarian theory, deliberative theory, recognition theory and post-structuralist theory. With,
respectively, the debate built around the theories of Hannah Arendt, John Rawls, Jurgen Habermas, Axel Honneth
and Chantal Mouffe, we sought to contribute to a broader discussion around this important analytical category in the
field of Political Science.
Keywords: Citizenship; Political Theory; Democracy.

Résumé

Approches théoriques autour des sens de citoyenneté


Cet article cherche à identifier les significations de la citoyenneté qui existent dans certaines approches théoriques, à
savoir: la théorie républicaine, la théorie libérale égalitaire, la théorie délibérative, la théorie de la reconnaissance et la
théorie post-structuraliste. Avec, respectivement, le débat autour des théories de Hannah Arendt, John Rawls, Jurgen
Habermas, Axel Honneth et Chantal Mouffe, cette étude vise à contribuer à expansion de la discussion autour de cette
importante catégorie analytique dans le domaine de la science politique.
Mots clés: Citoyenneté; Théorie Politique; démocratie.

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