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Caderno de Direito Constitucional – 2006

Rogério Gesta Leal

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Direção
Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon

Conselho
Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira

Assessoria
Isabel Cristina Lima Selau

___________________________________________
CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Organização
Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling

Revisão
Leonardo Schneider
Maria Aparecida Corrêa de Barros Berthold
Maria de Fátima de Goes Lanziotti

Capa e Editoração
Alberto Pietro Bigatti
Marcos André Rossi Victorazzi
Rodrigo Meine

Apoio
Seção de Reprografia e Encadernação

Contato:
E-mail: emagis@trf4.gov.br
Fone: (51) 3213-3041, 3213-3043 e 3213-3042
www.trf4.gov.br/emagis

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Apresentação

O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do


Tribunal Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em
encontros mensais, voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes federais
substitutos da 4ª Região, que atende ao disposto na Emenda Constitucional nº
45/2004. Tem por objetivo, entre outros, propiciar aos magistrados, além de uma
atualização nas matérias enfocadas, melhor instrumentalidade para condução e
solução das questões referentes aos casos concretos de sua jurisdição.

O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto desta


Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender às
necessidades dos participantes.

O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como artigos,


jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores brasileiros e
estrangeiros compilados pela EMAGIS e destina-se aos magistrados da 4ª Região,
bem como a pesquisadores e público interessado em geral.

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Rogério Gesta Leal

Índice:

Metodologia Sistêmico-Constitucional de Solução de Casos


Ministrante: Rogério Gesta Leal

Ficha Técnica.............................................................................................................. 02
Apresentação.............................................................................................................. 03

Texto: “Hermenêutica e Interpretação Jurídica: por uma nova metodologia de


solução de casos concretos. O Método Sistêmico-Constitucional para
Estudo de Casos”
Autor: Rogério Gesta Leal

I. Notas Introdutórias................................................................................................ 05
II. Os Modelos Romano-Germânico e Comunitário de Decisão Jurisdicional e suas
Insuficiências............................................................................................................... 06
III. O Método Sistêmico-Constitucional de Solução do Caso Concreto...................... 18
III.1 Os Passos Metódicos e Abertos à Análise do Caso Concreto...................... 21
III.1.1 A Importância da Coleta das Informações Originais Identificadoras dos
Sujeitos em Litígio....................................................................................................... 24
III.1.2 Dos Fundamentos e das Razões Fáticas dos Sujeitos em Litígio.............. 29
III.1.3 Da Delimitação Fática do Objeto a ser Enfrentado na Lide........................ 32
III.1.4 Do Enquadramento Sistêmico-Constitucional Estruturante do Caso
Concreto...................................................................................................................... 37
III.1.5 Do Fomento à Criação de Espaços Consensuais à Solução do Caso
Concreto...................................................................................................................... 40
III.1.6 Do Enquadramento Sistêmico-Constitucional Decisional do Caso
Concreto...................................................................................................................... 44
IV. Considerações Conclusivas................................................................................... 47
V. Bibliografia Referencial........................................................................................... 50

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HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: por uma nova metodologia


de solução de casos concretos

O MÉTODO SISTÊMICO-CONSTITUCIONAL PARA ESTUDO DE CASOS.


(CAPÍTULO QUARTO)

I. Notas Introdutórias:

As presentes reflexões que pretendemos desenvolver estão assentadas


na preocupação de elaborar uma proposta diferenciada dos modelos clássicos de
constituição, interpretação e aplicação do conhecimento jurídico, tendo presente, em
primeiro lugar, a forma organizacional deste conhecimento no âmbito do direito
positivado e seus fundamentos matriciais.
Partiremos do pressuposto de que o conhecimento jurídico ocidental e
brasileiro está alicerçado na idéia de sistema concatenado de ordenamentos e
dispositivos normativos auto-referentes – como vimos no capítulo anterior - , e que a
operacionalização deste sistema demanda não só um conhecimento dogmático de
suas estruturas e mobilidades, mas fundamentalmente uma compreensão ampliada
de sua natureza política e social, haja vista que, em última instância, é a decisão
jurisdicional que vai sintetizar todos estes cenários.
Assim, queremos demonstrar, em caráter exemplificativo tão-somente,
que elementos e variáveis sociais, políticas e jurídicas se impõe à problematização
metodológica dos cânones tradicionais de constituição e operacionalização do
conhecimento jurídico no âmbito da jurisdição, para os fins de aferir as condições e
possibilidades eficaciais dos argumentos de justificação e fundamentação das
decisões judiciais, e seus vínculos obrigatórios com a intencionalidade normativo-
axiológica do Estado Democrático de Direito.
Tal problematização pretendemos formular a partir de uma metodologia
nominada de sistêmico-constitucional de resolução de casos concretos, cujas
matrizes constitutivas se conformam em duas dimensões: (a) a fenomenológica,

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enquanto delimitação social e axiológica dos atores e variáveis que constituem a


decisão judicial; (b) a normativo-programática e pragmática que definem a lógica
formal e material informativas da apreensão do conflito social a ser solvido
jurisdicionalmente, bem como sua operacionalização discursiva.
Entretanto e antes disto, mister é que demarquemos as formas
tradicionais de solução de casos concretos nas suas variáveis tanto comunitárias
como romano-germânicas, identificando os limites e insuficiências de suas tradições
em face exatamente da complexidade que informam as relações sociais
contemporâneas.

II. Os Modelos Romano-Germânico e Comunitário de Decisão


Jurisdicional e suas Insuficiências.

Como a intenção neste espaço não é tanto histórica, mas


fundamentalmente de contextualização do tema em suas linhas gerais, podemos
dizer, com René David 1 , que o vigor mantido pelo Direito Romano ao longo do
tempo se deve, em grande parte, a resposta metódica e racional que deu à forma
desordenada de gestão jurisdicional vigente em especial na Europa Central, haja
vista suas particularidades de codificação e regulação dos comportamentos sociais 2 ,
inexistentes em termos de direito nacional destes países.
Ainda em termos históricos, cumpre ressaltar que a partir do século XII já
vamos encontrar na Europa Continental – após o IV Concílio de Latrão 3 – um
processo e uma jurisdição dominada tão somente por profissionais letrados pelas
universidades que adotavam, em sua grande parte, as lições da dogmática do
Direito Romano. Estas lições vão desde a formatação de uma concepção neo-
nominalista de conhecimento jurídico (direito substantivo) e sua operacionalização

1 DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
2 Por tais razões, o Direito Romano, junto com o Canônico, formou a base formativa do

ensino jurídico em boa parte da Europa Moderna. Na verdade, já no século XIII, com o
trabalho dos Glosadores, este Direito Romano ganha força, chegando ao século XX intacto
como o grande parâmetro de organização dos sistemas jurídicos. Ver o texto de LAWSON,
Frederic H. A common lawyer at the civil law. Michigan: Maxwell, 1990, pg.32 e ss.
3 Movimento dos governos monárquicos – 1215 - que proíbe os clérigos de participarem de

processos nos quais se recorresse aos juízos de Deus, afastando-se dos fundamentos
sobrenaturais para a regulação das relações sociais e obrigacionais.

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(direito adjetivo), constituído que é de uma linguagem científica especial,


classificatória e particular (tema que já vimos no capítulo segundo deste trabalho),
de onde nascem institutos fundacionais do discurso e da prática jurídica (direito
público e privado, direitos reais e pessoais, tipicidades de obrigações e contratos),
ensejando a formatação de categorias semiológicas próprias destes discursos e
práticas (casamento, regimes de comunhão de bens, tutela, curatela, ocupação,
confusão, usucapião, tradição, compáscuo, anticrese, herança jacente, codicilos,
etc.), acessíveis somente aos iniciados nesta ciência.
Neste universo de linguagem e comunicação romano-germânicos, há no
mínimo dois tipos de controles institucionais: (a) o da validade dos argumentos e das
decisões tomadas em face destes argumentos; (b) o da lógica subsuntiva que
caracteriza a conformação do sistema jurídico (dedutivo-formal), a partir do qual tais
decisões se constituem.
No que tange à validade dos argumentos e das decisões, mister é que, os
primeiros, encontrem sustentação haurida do universo normativo que vige (leis,
jurisprudência, exposição de motivos legislativas, etc), extraído de processos
legislativos igualmente regrados institucionalmente; já para as decisões tomadas em
face daqueles argumentos, importa que elas ratifiquem os pressupostos matriciais
do mesmo universo normativo vigente, detalhados, de um lado, pelos códigos
lingüísticos anteriormente referidos, e de outro, garantam os objetivos para os quais
o sistema fora criado: ordem, paz social, segurança, previsibilidade e certeza dos
atos, fatos e negócios juridicamente entabulados.
No que se refere à lógica subsuntiva que caracteriza a conformação do
sistema jurídico (dedutivo-formal), a partir do qual tais decisões se constituem, há
uma preocupação tanto no aspecto do respeito às regras do processo 4 e do
procedimento (aqui compreendidas como temas substanciais ao sistema jurídico e à
tutela jurisdicional), sob pena de nulidade absoluta dos atos e negócios realizados 5 ,

4 Em nível de processo civil, o país tem evoluído bastante, eis que há previsão normativa
(art.154,CPC) dispondo que os atos e termos processuais não dependem de forma
determinada salvo quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que,
realizados de outro modo, venham a alcançar a finalidade essencial prevista. Esta posição
normativa tem estendido o princípio da aproveitabilidade dos atos processuais para várias
situações.
5 Como exemplo podemos citar as disposições do art.104, do novo Código Civil Brasileiro,

quando disciplina que a validade do negócio jurídico requer, dentre outras coisas, forma

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como também no aspecto de delimitar as demandas sociais aos termos semânticos


já desenhados pelo senso comum teórico dos juristas, veiculado, em regra, por suas
recorrentes decisões judiciais – jurisprudência hegemônica.
De uma certa forma, isto tem a ver com a própria forma de organização
social e história de cada país ao longo do tempo.
No caso dos Estados Unidos da América, por exemplo, quando falamos
de matrizes mais indutivas de constituição, abordagem e procedimento do sistema
jurídico, há que se levar em conta a forma como foi surgiu a própria idéia de Nação e
Estado neste país, com feições notadamente diferenciadas dos impérios e
monarquias que foram grande parte da tradição dos países da família romano-
germânica.
Num recente trabalho de Lawrence Friedman, resta muito claro este
histórico e como ele influenciou na formatação do sistema jurídico norte-americano,
quando assevera que:
After the war, the former colonists set about to create
an independent republic. There was to be no King. There were
to be no nobles, no aristocracy. Allegiance would go, not to a
man with a crown, but to the law, or to the idea of law. 6

Nesta perspectiva do Direito Comunitário, particularizando mais com a


experiência do Direito Norte-Americano, a intenção do método do estudo de casos é
bem particular, norteando toda a organização dos seus currículos acadêmicos desde
o início da formação. Veja-se, a título exemplificativo, uma mensagem para os
calouros em direito da universidade da Pensylvania:

In the majority of your law school courses, and


probably in all of your first-year courses, your only texts will be
casebooks -- collections of written judicial decisions in actual

prescrita ou não defesa em lei. Por óbvio que tal disposição não afasta a liberalidade das
formas que caracteriza as relações jurídicas no país, porém, permite sua regulação pelo
sistema normativo, o que pode, em tese, implicar um esvaziamento do princípio referido em
situações em que há extremada regulação, como sói acontece com o registro dominial
cartorário para fins de compre e venda de bens imóveis.
6 FRIEDMAN, Lawrence M. Law in America. New York: Modern Library Chronicles, 2003, pg.

32.

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court cases. The case method eschews explanation and


encourages exploration. In a course that relies entirely on the
casebook, you will never come across a printed list of "laws."
Indeed, you will learn that in many areas of law there is no such
thing as a static set of rules, but only a constantly evolving
system of principles. You are expected to understand the law --
in all of its ambiguity -- through a critical examination of a series
of cases that were decided according to such principles. You
will often feel utterly lost, groping for answers to unarticulated
questions. This is not merely normal, it is intended. 7

Em termos de sistemática operacional dos estudos de casos, os alunos


das escolas norte-americanas, a partir dos casos concretos de menor a maior
complexidade conteudística e temática, vão tirando suas próprias conclusões
através de seus case-briefs, na seguinte ordem:

Your casebook will contain neither instructions nor


explanations. Your assignments simply will be to read the cases
and be in a position to answer questions based on them. There
will be no written homework assignments, just cases, cases,
and more cases. You will write, for your own benefit, briefs of
these cases. Briefs are your attempts to summarize the issues
and laws around which a particular case revolves and to make
sense of the court's findings in terms of similar cases. Don't
worry, you'll learn how to write a brief in a first-year, first-
semester class called "Legal Methods" (or something similar).
Over the course of a semester, you will try to integrate the

7 POSNER, Richard A. The problems of jurisprudence. Cambridge: Harvard University Press,


1990, pg.37. Ainda esclarece o texto que: In practical terms, the case method works like this:
For every class meeting, you will be assigned a number of cases to read. The cases are the
written judicial opinions rendered in court cases that were decided at the appellate level. (The
reason for reading cases from courts of appeals or supreme courts is that such cases turn on
issues of law, not of fact. If you are charged, tried, and convicted of murder and wish to
appeal your case, you do not simply get a whole new trial at a higher level. You must argue
that your conviction was improper, not that it was inaccurate.), pg.40.

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content of your case-briefs and your notes from in-class


lectures, discussions, or dialogues into some kind of cohesive
whole. 8

Tais características são acompanhadas de uma estrutura normativa


significativamente enxuta – principalmente no plano constitucional, existindo poucas
regras diretivas de comportamentos jurídicos rígidos. Tanto é verdade isto que
comumente os autores norte-americanos costumam a dizer que sua constituição set
out the basic frame of government – president, Congress, Supreme Court, a federal
system – and laid dow a few fundamental rules. 9
É bem verdade que nos dias atuais percebe-se o surgimento de
preocupação, notadamente nos EUA e Inglaterra, com a codificação de
determinadas matérias, basicamente de cunho econômico, envolvendo temas como
falência, direito tributário, propriedade intelectual, regras antitruste, regulação
bancária, exatamente para controlar melhor as possibilidades de mudanças
jurisprudenciais provocadas pelos implied powers do judge-made law. 10
Muito se tem dito – e algumas considerações proferimos ao longo deste
estudo - sobre métodos de produção e compreensão do conhecimento e do
conhecimento jurídico mais especialmente, nos mais diversos segmentos da ciência
contemporânea. A despeito disto, os juristas temos nos mantido um tanto afastado
deste debate, desde os bancos escolares até a prática profissional – contenciosa ou
administrativa -, em regra adotando metodologias mais dedutivas de ensino e
interpretação 11 , com procedimentos monológicos de aulas expositivas. Tal fato,
implica uma abordagem não raro fragmentada/compartimentalizada dos fatos,
fenômenos e teorias que envolvem os nominados problemas jurídicos, perdendo-se
a noção do todo.

8 Op. Cit., pg. 41.


9 FIREDMAN, Lawrence. The Legal System: a social science perspective. Stanford: Stanford
University Press, 2000, p.39. O autor chega a referir que perhaps the Constitution has lasted
so long, and served the country so well, because it is brief and general – helped by the fact
that it acquired, very soon, a kind of aura of the sacred.
10 Ver o trabalho de STONE, Julius. Social Dimensions of Law and Justice. Stanford:

Stanford University Press, 2000, pg.82.


11 Conforme aduz o texto de Cláudia Lima Marques na apresentação do texto de ZITSCHER,

Harriet Christiane. Metodologia do Ensino Jurídico com casos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999,
p.14.

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Ao lado desta frágil experiência em problematizar como se pensa e se


trabalha com o Direito, que caracteriza a história da formação jurídica no país, temos
à disposição recursos cognitivos capazes de servirem à proposição de novas
perspectivas de trabalho com o conhecimento jurídico. Estamos falando, por
exemplo, da utilização de uma metodologia de construção e aplicação do Direito
mais adequada à complexidade das relações sociais, eis que leva em conta, no seu
evolver, o maior número de fatores e variáveis endógenos e exógenos pertinentes
às demandas que são enfrentadas pelos juristas.
Esta metodologia pretende transitar tanto pelo dedutivismo como pelo
indutivismo, perfazendo uma mixagem de métodos clássicos do conhecimento no
Ocidente – avaliados anteriormente - , não se resumindo tão-somente à experiência
norte-americana com os estudos de casos a partir daquilo que já foi consolidado
pela jurisprudência dos tribunais 12 .
Importa destacar que na história de formação do modelo do direito
ocidental da família romano-germânica, o direito estava e está estruturado a partir
dos estatutos normativos positivados (statute law), sendo buscados os princípios do
direito nesta estrutura consolidada de regras cogentes. Aqui, a jurisprudência tem
um papel meramente periférico, eis que sua função nuclear, ao menos
tradicionalmente, é a de confortar o sistema de normas vigentes e dar a ele um
pouco de flexibilidade controlada pelos tribunais. 13
Se quisermos enquadrar o modelo romano-germânico em termos de
metodologia do estudo do direito, podemos talvez aproximá-lo do dedutivo, que
utiliza um raciocínio caracterizado pelo movimento do pensamento que parte de uma
hipótese/verdade universal (norma jurídica positivada), para uma hipótese/verdade
mais particular (ato, fato ou negócio jurídico sob comento). O núcleo central de
apreensão do conhecimento neste método localiza-se numa operação silogística,
isto é, o juiz romano-germânico formula a regra a ser aplicada ao caso sub judice,

12 Nesta experiência anglo-americana temos a dicção institucional do Estado-Juiz como


preponderante na resolução dos casos concretos (sumularização de procedimentos e de
juízos valorativos), reduzindo a importância da criação doutrinária da comunidade jurídica.
Neste sentido ver o texto de FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A função social da dogmática
jurídica. Rio de Janeiro: Max Limonad, 1998.
13 Neste sentido DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Op.cit., p.340,

sustenta que as decisões de jurisprudência podem efetivamente ser dotadas de uma certa
autoridade; mas, de modo algum são consideradas, salvo em casos excepcionais, como
criadoras de regras de direito.

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resultado da dedução feita em torno da norma geral e abstrata da Lei ou do


Código. 14
Nesta perspectiva, o operador do direito vai procurar a norma certa no
sistema jurídico codificado e perquirir seu conteúdo, verificando se é possível a
subsunção do fato à norma, resultando na solução do caso concreto.
Mesmo no campo do ensino do direito, nos bancos universitários das
escolas romano-germânicas temos uma tendência em utilizar este método, em que
os docentes partem da apresentação da doutrina existente sobre os temas jurídicos
a serem ministrados, para só depois explorarem, ainda de forma insuficiente, a
resolução de casos concretos – pela via igualmente consolidada das respostas
jurisprudenciais dos Tribunais. 15
As referências de Zitscher sobre o tema são bastante esclarecedoras,
pois lembra que no método dedutivo, em regra, temos os seguintes passos: (a) a
apresentação de um problema social, apresentado sob a estrutura de um tema
jurídico, hipotético (locações); (b) em seguida busca-se a identificação da norma ou
normas principais aplicadas à espécie (lei de locações); (c) num terceiro momento,
delimita-se o que tem apresentado a doutrina básica sobre o assunto, dentro do
sistema jurídico vigente; (d) numa abordagem mais arrojada, pode-se contar com
uma variação do problema ou da hipótese sobre ele (não se trata de locação, mas
de comodato); (e) pode-se ainda agregar ao problema principal, algumas variáveis
hipotéticas (como a existência de uma condição à locação, ou como a existência de
mora); (f) alguns passam a indagar sobre as vaguezas da norma utilizada e seus
significados múltiplos, utilizando-se da jurisprudência como fonte demarcatória
destes significados; (g) a partir daí se elaboram algumas possibilidades de
decisão. 16
Enquanto isto, nos sistemas do common law, notadamente na matriz
inglesa e estadunidense, a forma de concretude do direito se dá mais pela via

14 ZITSCHER, Harriet Christiane. Metodologia do Ensino Jurídico com casos. op.cit., p.27.
15 Ver neste sentido o texto organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho
Federal, intitulado OAB – Ensino Jurídico. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996, em que
é possível encontrar uma avaliação mais geral sobre a forma de funcionamento dos cursos
no país.
16 ZITSCHER, Harriet Christiane. Metodologia do Ensino Jurídico com casos. op.cit., p.36.

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jurisprudencial do que propriamente pela doutrinária ou normativa positivada 17 , o


que significa estar mais centrado numa metodologia indutiva de abordagem do
jurídico, partindo o operador (inclusive o judicial) do direito do caso concreto e das
decisões anteriores similares ao tema objeto da lide, para então estabelecer
conexões teóricas com a produção especializada dos estudiosos 18 ,
generalizada/universalizada para a comunidade jurídica como um todo.
Tal metodologia parte do pressuposto da capacidade do operador jurídico
em levar em conta, na sua apreciação do caso concreto, as decisões anteriores
sobre a matéria abordada, aferindo os fatos que serviram como base daquelas
decisões, com grau de profundidade que permita demarcar as similitudes e
diferenças particulares dos paradigmas adotados em face das novas situações
apresentadas. A partir daí, o operador tem condições de propor a adoção de uma
regra concreta para o caso concreto (ratio decidendi) 19 .
Em termos de estruturação dos procedimentos de tomada de decisão
judicial mais gerais neste modelo, temos as seguintes possibilidades: (a) parte-se da
escolha de um caso concreto já enfrentado pela jurisprudência consolidada,
especialmente no âmbito dos tribunais, eis que a possibilidade de uniformização do
entendimento cresce; (b) identifica-se neste caso qual ou quais as normas que
incidiram e estão presentes na jurisprudência colacionada; (c) em seguida,
descreve-se, a partir dos elementos já identificados, qual a decisão tomada pelo
tribunal, discutindo ela pormenorizadamente; (d) a seguir, identifica-se outras
posições jurisprudenciais sobre o caso em tela; (e) busca-se caracterizar qual a
doutrina ou quais as doutrinas que estão presentes nesta decisão, apontando suas
especificidades normativas. 20
Esclarece Zitscher que este método desenvolveu-se nos tempos em que
as decisões dos tribunais compunham o corpo do Direito Inglês como fios de um
tecido, interligadas umas com as outras, considerando-se que havia poucas leis

17 Neste sentido os textos de DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo.


Op.cit., e de SOARES, Guido Fernando. Common Law. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. A função da jurisprudência aqui não é só a de aplicar as regras jurídicas, mas
fundamentalmente a de destacar aquelas que devem ser aplicadas a determinados casos.
18 HAY, Peter. An Introduction to United States Law. New York: North-Holland, 1996, p.87.
19 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Op.cit., p.343. Esclarece o

autor que o jurista inglês deve ponderar suas razões de decidir na análise do precedente
utilizado, identificando bem qual o suporte efetivo da decisão ao caso concreto.
20 ZITSCHER, Harriet Christiane. Metodologia do Ensino Jurídico com casos. op.cit., p.50.

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neste modelo 21 . Foi somente no século XIX, todavia, que se instalou inclusive nos
países do common law, em face do movimento codificador e legalista que imperou
na Europa Central neste período, que levou a Inglaterra a uma submissão mais dura
aos precedentes jurisprudenciais (rule of precedent). 22
Esta regra do precedente possui, na matriz inglesa, uma certa rigidez de
competência, eis que vincula os diversos graus de jurisdição às decisões das
instâncias superiores. Por exemplo, as decisões da Câmara dos Lordes constituem
precedentes obrigatórios para todos os demais tribunais, formando doutrina
vinculante. Assim ocorre com a Corte de Apelação em face das demais cortes de
jurisdição inferior; o mesmo acontece com as decisões tomadas pelo High Court of
Justice às jurisdições inferiores. 23
Neste cenário, a lei escrita como fonte do direito tem papel efetivamente
secundário, já que ela não traz os princípios reitores de organização das relações
sociais, mas estes estão dispersos em vários instrumentos normativos,
jurisprudenciais e mesmo de hábitos e costumes que tangenciam e indicam as
possibilidades de interpretação da própria norma escrita 24 .
Já na jurisdição estadunidense, a lei, a despeito de possuir caráter
regulativo, este não é gramaticalmente fixado, mas só tem dimensão eficacial
mediante a interpretação que for feita pelos tribunais. Esta interpretação, por sua
vez, não está totalmente dispersa nos Estados, gerando conflitos intransponíveis, eis
que compete à jurisdição de cada Estado a responsabilidade de, via interpretação,

21 Idem, p.24.
22 Também o estabelecimento dos nominados judicature acts, representando uma certa
hierarquia judiciária mais sistemática e a ordenação das compilações jurisprudenciais
contribuíram para produzir o mesmo resultado. Ver o trabalho de ALLEN, Carleton. Law in
the making. Clarendon: Oxford, 1995.
23 Ver o texto de KINDER-GEST, Patrícia. Manuel de Droit Anglais. Paris: Librairie Générale

de Droit et Jurisprudence, 1994, p.63. Pelo que consta, somente os precedentes emanados
da Supreme Court of Judicature e da Câmara dos Lordes é que tem força vinculante, os
demais, funcionam mais como argumentos de persuasão – mas na prática dos tribunais os
efeitos têm sido os mesmos.
24 É importante destacar, com René David (op.cit.,p.351), que o direito inglês e mesmo o

estadunidense não são direitos consuetudinário, mas jurisprudencial, porque os costumes


aqui referidos dizem respeito às formas de compreensão do jurídico pautadas pelas decisões
pretorianas qualificadas à formação dos precedentes obrigatórios.

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estabelecer uma unificação exegética, aproximando os institutos e interpretações


existentes, por critérios de integração e não de exclusão normativa. 25
Em termos de metodologia de apreensão do jurídico no âmbito dos
conflitos sociais que se apresentam à solução jurisdicional, ou análise de estudos
jurídicos, salvo melhor juízo, tanto o dedutivo puro como o indutivo puro,
anteriormente demarcados, não mais servem, satisfatoriamente, para atender a
natureza complexa das relações societais que estão na base dos problemas
carentes de resolução.
O método dedutivo puro, tradicionalmente utilizado (com algumas
variações) pela cultura jurídica romano-germânica, tomando como pressuposto
fundamental a leitura dos conflitos a partir de uma relação de subsunção primária
deles às normas do sistema jurídico vigente, traz um condicionante restritivo da
compreensão do conflito dado pela norma, tendo-o como fato jurídico exaurido em
uma situação temporal e espacial dada. Tal perspectiva desconsidera a natureza
fenomênica do conflito enquanto relação intersubjetiva tensional de interesses
distintos, marcados por contextos (e não meramente textos) historicizados política,
econômica e culturalmente.
Afora estes aspectos, ainda temos que as formas de interpretação da
norma classicamente utilizadas pelos sistemas romano-germânicos são
demasiadamente presos à intelecção da regra jurídico do que do intérprete e sua
conjuntura hermenêutica – utilizando muito mais métodos gramaticais e da mens
legislatoris, do que buscando formas de emancipação e adequação da norma aos
fatos contemporâneos.
O método indutivo mais puro também apresenta insuficiências de
apreensão dos conflitos apresentados à solução do direito, a despeito de partir
exatamente deles para encontrar possíveis respostas normativas. Ocorre que,
também salvo melhor juízo, não há uma preocupação aqui de se problematizar a
própria abordagem e compreensão do caso concreto como fenômeno social ,
eminentemente complexo em sua constituição e desenvolvimento.
A idéia de fenômeno complexo aqui parte de um novo conceito de
conhecimento, a saber, conhecer qualquer ação social como um fenômeno em que
25 Neste sentido, ver o trabalho de FARNSWORTH, Allan. An introduction to the legal system

of the United States. New York: Oceana Publications, 1983, p.74 e seguintes.

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sempre é possível e necessário rejuntá-la a seu contexto e ao conjunto ao qual


pertence. Isto porque o conhecimento torna-se cada vez mais pertinente quando é
possível encaixá-lo num contexto mais global. Em contrapartida, como sustenta
Morin, se temos um conhecimento muito sofisticado, mas que é isolado, somos
conduzidos ao erro e à ilusão. 26
Morin utiliza algumas categorias próprias para tratar deste fenômeno, que
denomina de operadores : (1) ao contrário da idéia linear de que toda causa tem um
efeito, ele sugere uma causalidade circular, em que o próprio efeito volta à causa.
(2) outro operador é o chamado hologramático, em que cada particularidade e
singularidade humana contém o todo, é constituída a partir do universo de
interações e significados existentes no social, no político, no econômico, etc. . 27
Tal perspectiva é que tem de informar uma metodologia de resolução de
casos jurídicos concretos, fundada exatamente no reconhecimento de que cada ser
humano é, ao mesmo tempo, múltiplo em sua unidade, que ele não é o mesmo
quando está apaixonado ou enraivecido, que ele mesmo pode viver situações que o
fazem pegar outro caminho, em vez daquele determinado pelos costumes, tradições
e mesmo normas jurídicas cogentes; fundada na compreensão de que há uma
circularidade numa briga e num conflito, e que, na maioria das vezes, não é um que
está certo ou errado, mas é a circularidade na incompreensão que os leva ao conflito
e à incompreensão.
Uma metodologia alicerçada num novo pensamento, que nominamos de
complexo, seguindo as reflexões de Morin 28 , nos lembra que a partir do momento
em que lançamos uma ação no mundo (contrato, obrigação, ilícito, etc.), essa vai
deixar de obedecer às nossas intenções exclusivamente, vai entrar no jogo de ações

26MORIN, Edgar. Ensaios de Complexidade. Natal: Edufrgn, 2000, p.16.


27Op.cit., p.18.
28 Notadamente nos textos: MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 1996; ---O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Publicações


Europa, 1996; ----Introducción al pesamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 1998; ---Terra
Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995. Nos lembra o autor que a questão aqui é de estrutura de
pensamento, e, quando esta estrutura é fixada muito cedo na escola, ela se endurece e se
torna difícil de mudar. Trata-se de um princípio que chamamos de paradigma. Os
paradigmas são estruturas de pensamento que de modo inconsciente comandam nosso
discurso. Aliás, a categoria complexidade não foi inventada pelo filósofo Morin, mas adveio
de BACHELARD, Gaston.O Novo Espírito Científico. São Paulo: Brasiliense, 1980, e a
Shannon e Warren Weawer, nas áreas da teoria da informação e da cibernética, que a partir
dos anos 1950 vão fornecer uma nova perspectiva teórica, aplicável simultaneamente às
máquinas artificiais, aos organismos biológicos, aos fenômenos psicológicos e sociológicos.

16
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

e interações do meio social no qual acontece, e seguir direções muitas vezes


contrárias daquelas que eram nossa intenção 29 . Assim, nunca estamos certos de
que nossas ações matriciais vão gerar boas ações, e é preciso termos consciência
de que jamais teremos esta certeza, pelo simples fato de que ela não depende só de
nós, mas do mundo em que ela ocorre e que ela constitui com sua ação.
Com tal metodologia, temos chance de alcançar metapatamares de
compreensão da realidade que nos cerca, nos deslocando corajosamente de nosso
mundo confortável para nos abrir às múltiplas armadilhas da narrativa científica dos
incontáveis modelos de positivismo jurídico, contestando-os, que, de resto, comporta
nossas próprias armadilhas e nossa própria contestação. Mais do que isto, este
método, enquanto procedimento investigativo, trabalha com a noção de
desconfiança de fórmulas e equações prontas para enfrentar problemas sociais, e a
certeza de que o modelo cartesiano de pensar esgotou as estratégias que moldaram
um homem dolorosamente fraturado em sua condição de ser no mundo. 30
Na base desta nova metodologia, encontramos uma também nova
estratégia do conhecimento chamada, como quer Almeida, de bricoleur, não
prisioneira das experiências já solidificadas, assemelhando-se aos desvios operados
pelo pensamento na contramão das obsessões cognitivas, impressas na rigidez
paradigmática. Uma estratégia que pretende diferenciar entre universalismo e
generalismo; abdicar do papel de árbitro da verdade; criar espaços para a dialogia
entre saberes múltiplos, deslocando o debate sobre a ciência para a reflexão sobre o
conhecimento; demolir os muros das idéias-pátrias; conviver com a incerteza própria
aos momentos de criação; trabalhar para o afrouxamento das infra-estruturas tácitas
dos conceitos unívocos, fixando horizontes mais ampliados em busca da
complexidade. 31
Por fim, utilizando uma proposição de ética da complexidade levada a
efeito por Morin, queremos sustentar que uma metodologia de resolução de estudo

29 Exemplo vivo disto é o princípio da rec sic standibus e todas as suas causas geradoras, no
âmbito das relações contratuais contemporâneas.
30 Sob este aspecto, revela-se de neural importância o trabalho de STRECK, Lenio Luis.

Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.


31 ALMEIDA, Maria da Conceição. Complexidade: do casulo à borboleta. In Ética da

Complexidade. Edgar Morin. Natal: Edufrgn, 2000, p.27.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

de casos jurídicos concretos deve contar, dentre outras perspectivas que já


enumeramos e ainda vamos explicitar, com as seguintes idéias-guias:
(1) a idéia da religação, que engloba tudo aquilo que
faz comunicar, associar, solidarizar, fraternizar, se opondo a
tudo que fragmenta, desloca, disjunta, reduz, etc.; (2) a idéia do
debate, que exige a primazia da argumentação e a rejeição da
anatematização, aceita a polêmica ao mesmo tempo em que
rejeita todo e qualquer julgamento de autoridade, rejeitando o
desprezo e insultos sobre as pessoas; (3) a idéia de
compreensão, que pretende conceber o sujeito como sujeito,
reumanizando o conhecimento; (4) a idéia de magnanimidade,
que diz respeito à idéia de clemência, tolerância, afastando
qualquer sentimento de ódio, vingança, fazendo valer a
generosidade, a nobreza; (5) a idéia de incitação às boas
vontades, visando estimular uma associação de esforços
voltados a explorar os sentimentos mais nobres e humanistas;
(6) a idéia da resistência, para opor às barbáries
institucionalizadas em nosso cotidiano uma certa postura
alternativa de vida e sentimentos. 32

Esta postura é mais compatível para com a natureza multidisciplinar que


envolve qualquer problema ou relação humana, mesmo que sob o pálio do sistema
jurídico – que tenta sempre reduzir a sua complexidade.
A seguir, pretendo esboçar uma arquitetura nova de enfrentamento dos
casos judiciais que leve em conta as questões até aqui ventiladas.

III. O Método Sistêmico-Constitucional de Solução do Caso Concreto.

De pronto se impõe uma elucidação do que entendo por método


sistêmico-constitucional de solução do caso judicial concreto, até para que não se
confunda a abordagem que se pretende aqui com a filiação a alguma escola

32 MORIN, Edgar. Ensaios de Complexidade. op.cit., p.34.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

filosófica ou sociológica sistêmica. Na verdade, não acreditamos que o sistema


jurídico é tão somente um dos sistemas funcionais do sistema global, com a tarefa
de reduzir a complexidade do ambiente, absorvendo a contingência do
comportamento social, ao garantir certa congruência entre as expectativas de como
os indivíduos vão se comportar, e a generalização dessas expectativas, pela
imunização do perigo de decepcionarem-se 33 , mas este não é o tema central do
presente estudo, eis que utilizo a categoria sistema aqui como conjunto ordenado de
relações normativas pautadas por critérios de racionalidade públicos a controláveis
por regras e procedimentos dados pela Constituição – enquanto norma fundamental.
Assim, a proposição de uma metodologia sistêmico-constitucional de
solução do caso concreto vai se fundar numa abordagem dos casos judiciais a partir
de sua natureza meta-normativa (eis que a norma fundamental de que falamos
possui uma inexorável natureza política e axiológica), bem como num procedimento
integrado de compreensão e aplicação dos ordenamentos, normas (regras e
princípios) a estes casos judiciais, partindo daquela abordagem e chegando até a
solução satisfativa do conflito.
Com tal perspectiva, a primeira questão que o método que estou
propondo coloca é a forma de abordagem do problema jurídico, asseverando que
seja ela concebida em três momentos distintos mas complementares, a saber:
(1) Avaliação do problema inter-pessoal ou coletivo que se apresenta à
apreciação jurisdicional, notadamente a partir de seu enfoque e contextualização
social, verificando, primeiro, do que se trata, em termos materiais (natureza social do
conflito), identificando quem são os sujeitos conflitantes, a história detalhada e
matricial do conflito de interesses; num segundo momento desta avaliação, importa
demarcar que variáveis estão presentes no conflito, em termos econômicos,
políticos, culturais, religiosos, afetivos, sexuais, etc., e em que medida tais variáveis
atingem os sujeitos conflitantes ou mesmo podem conformar o conflito em si. Os

33Conforme LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2000, p.82. O Direito, na teoria sociológica luhmanniana, é definido como generalização
congruente de expectativas comportamentais, generalização essa que fornece uma
imunização simbólica de expectativas contra outras possibilidades. Assim é que, para
Luhmann, o sistema jurídico integra o sistema imunológico das sociedades, imunizando-as
de conflitos entre seus membros, surgidos já em outros sistemas sociais (político,
econômico, familiar, etc). Isto ocorre, todavia, não negando os conflitos, mas os
reconhecendo, assim como os sistemas vivos se imunizam das doenças com seus germes.

19
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

juízos aqui não são detidamente valorativos, mas analíticos e históricos, com o
intento de compreensão conjuntural e fundacional do problema.
Neste sentido, o problema jurídico sob comento é sempre um problema
prático-normativo 34 , porque (a) o seu caráter problemático-metodológico específico é
regulativo, com um fundamento axiológico e de realização concreta; e porque (b)
estes problemas são de imediata aplicação, no sentido de realização de uma
intencionalidade prática, propostos à constituição e válida orientação de uma práxis.
(2)Abordagem dos elementos dogmático-positivos dos temas/problemas
propostos, numa perspectiva sistêmica, reflexiva e crítica 35 , compreendendo o
funcionamento de todo o sistema jurídico (composto de ordenamentos diversos,
cada um estruturado em princípios e regras jurídicas, em absoluta e necessária
conexão), identificando as posições hegemônicas vigentes nos quadrantes
doutrinários e, após, jurisprudenciais.
(3) Abordagem dos casos específicos e temáticos com avaliação crítica e
aprofundada, a partir dos elementos coligidos na fase anterior, delimitando, de forma
exploratória e experimental, as insuficiências da abordagem antecedente, levando
em conta a integração necessária de todas as fases desta metodologia. A vantagem
mais marcante desta estratégia repousa na possibilidade de aprofundamento que
oferece, pois os recursos se vêem concentrados no caso visado, não estando
submetido às restrições ligada à comparação da espécie com outros casos. 36
Passemos a análise de cada uma destas fases da metodologia proposta,
bem como seus procedimentos operacionais.

34 NEVES, Castanheira. Digesta. 2º volume. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p.110.


35 No sentido de que o jurista não fique indiferente ou que ponha como que entre parênteses
a intenção e o sentido axiológico-normativos do direito para se constituir num mero e formal
conhecimento sobre ele.
36 Importante reforçar que a presente proposta não vai adotar o método utilizado pelo

sistema da common law, notadamente indutivo, caracterizado pelo movimento do


pensamento que vai de uma ou várias verdades singulares a uma verdade mais universal;
em outras palavras, em que o juiz considera, diante de um caso concreto para resolver, as
decisões anteriores na matéria, isto porque importa dar destaque aqui aos fatos que
formaram a base de cada uma daquelas decisões, chegando à regra concreta que
fundamentará a decisão tomada (ratio decidendi). Tampouco nos serve o método adotado
tradicionalmente pelo Brasil, centrado no dedutivismo, em que o pensamento vai de uma
verdade tida como universal a uma outra menos universal, com base numa dedução feita
em torno da norma geral e abstrata da Lei ou do Código. Ver o trabalho de ZITSCHER,
Harriet Christiane. Metodologia do ensino jurídico com casos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999,
p.22 a 27.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

III.1. Os Passos Metódicos e Abertos à Análise do Caso Concreto:

A experiência consolidada na prática científica em ciências sociais que


melhor retrata a perspectiva metodológica que pretendemos desenvolver aqui é o do
estudo de casos, centrada em alguns passos procedimentais específicos, os quais
enunciarei em seguida, após apreciar as razões de justificação da sua importância.
Na estrutura organizacional da jurisdição brasileira, a tutela do Estado-
Juiz é sempre provocada, isto porque nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional
senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais (art.2º,
CPC) 37 . Significa dizer que não podem os magistrados, ex oficio, promover ações
judiciais para que eles mesmo sentenciem, devendo haver a regular provocação
jurisdicional, observados requisitos legais postos pelo sistema normativo, através da
figura processual da parte ou o interessado, aqui entendidos como qualquer sujeito
de direito que tenha legítima pretensão na solução de determinada questão jurídica
(art.3º, CPC).
É a provocação jurisdicional, pois, que dá ensejo ao início da formatação
institucional da lide, pela via dos processos e procedimentos consectários aos
interesses apresentados à jurisdição. Através destes ritos e rotinas procedimentais,
as partes e interessados veiculam suas perquirições, as quais precisam ter
enquadramento adequado no sistema jurídico (possibilidade jurídica do pedido), sob
pena de serem inviáveis.
É preocupado com a questão da viabilidade institucional dos interesses
conflituosos a serem solucionados pela intermediação do Estado que o sistema
brasileiro estabelece com muita clareza alguns pressupostos de validade e mesmo
legitimidade à provocação jurisdicional, dentre os quais: (a) que ela exponha os fatos

37 Os tribunais têm reiteradamente asseverado que, por força do princípio da inércia


consagrado neste art.2º, CPC, não é permitido ao magistrado, em tese, pronunciar-se acerca
de matérias que não foram objeto de postulação das partes ou insurgência em apelação. STJ
– RESP 496348 – PR – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 20.10.2003 – p. 00199. Todavia,
não se pode perder de vista que há matérias que, por serem de ordem pública, devem ser
apreciadas ex officio pelo juiz em qualquer grau de jurisdição e a qualquer tempo, não
estando sujeitas à preclusão, pela força do que dispõe o art. 267, § 3º, do CPC. Nestes casos
não há que se falar em quebra do princípio da inércia, até porque justificada por outro
princípio processual que é o do impulso oficial, disposto no art.262, do mesmo diploma
normativo. Nesta direção o acórdão do TJMS – EDcl-AC 2002.002534-9/0001-00 – Campo
Grande – 3ª T.Cív. – Rel. Des. Hamilton Carli – J. 08.03.2004.

21
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

conforme a verdade; (b) que ela observa os princípios da lealdade e da boa-fé; (c)
que ela não se preste a veicular pretensões destituídas de fundamento; (d) que ela
não se funde em provas nem leve a efeito a prática de atos inúteis ou
desnecessários à declaração ou defesa de direito; (e) no âmbito de sua instrução,
que sejam cumpridas com exatidão os provimentos mandamentais da jurisdição,
sem embaraçar à sua efetivação; (f) que ela não deduza pretensão ou defesa contra
texto expresso de lei ou fato incontroverso; (g) que ela não se utilize do processo
para obter objetivo ilegal. 38
Quando a provocação jurisdicional se afastar destes pressupostos,
possivelmente estar-se-á diante de algum comportamento de má-fé irregular/ilícito
das partes, interessados e seus procuradores, nos termos do art.17, do CPC, diante
do que se impõe à jurisdição deveres corretivos e sancionatórios (art. 14, § único, e
art.18, ambos do CPC). Ademais, em face da natureza pública indisponível destes
pressupostos, o Estado-Juiz deve estar permanente atento a qualquer sinal de
desvio ou violação deles, desde o início até o final da lide.
Para tentar, de um lado, evitar ou diminuir as reincidências de
provocações temerárias à jurisdição, e de outro, potencializar ao máximo a função
social do processo judicial à pacificação satisfativa dos conflitos, alguns passos
metodológicos de abordagem e solução das lides podem ser adotados, dentre os
quais destaco os seguintes:
(1) coleta de informação original (na fonte empírica de produção) acerca
das situações fáticas e suas variáveis (econômicas, políticas, culturais, religiosas,
sexuais, etc.) envolvendo os atores e os interesses em litígio, providência
permanente no âmbito da relação processual e jurisdicional;
(2) coleta exauriente dos fundamentos e razões fáticas trazidas pelos
envolvidos no objeto submetido à apreciação judicial, bem como suas perspectivas
individuais de soluções;
(3) delimitação fática do objeto a ser enfrentado de modo dialogado na
relação entre os sujeitos envolvidos na lide, através de mecanismos processuais
abertos à manifestação de todos os legítimos interessados, oportunizando

38 Nos termos do Capítulo II, do Título II, do Livro I, do CPC.

22
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

efetivamente os princípios constitucionais processuais da ampla defesa e do devido


processo legal;
(4) enquadramento sistêmico-constitucional estruturante do caso concreto
formatado em face das análises anteriores levadas à cabo, isto é, como o sistema
jurídico constitucional e infra-constitucional tratam de uma hipótese como a
apresentada, levando em conta aqui as fases inerentes à espécie hipotética definida
e seus custos financeiros e temporais de operação, a fim de que as partes e mesmo
o Estado-Juiz possam dimensionar os custos-benefícios da demanda;
(5) enquadramento sistêmico-constitucional cognitivo e decisional do
hipotético problema jurídico formatado em face das análises anteriores levadas à
cabo, aqui operando os princípios e as regras constitucionais e infraconstitucionais
afetas à hipótese referida, a fim de ampliar ao máximo os níveis de consciência
sobre os impactos endógenos e exógenos da decisão judicial – ou seja, quais os
efeitos (multifacetados) que a decisão vai provocar às partes e ao seu entorno;
(6) fomento de espaços e ações judiciais conciliatórias à constituição de
soluções consensuais dos problemas enfrentados – judiciais e extra-judiciais,
produzindo, se for o caso, regras e formas conjunturais para resolver os problemas e
planejar as correspondentes ações, tendo em conta toda a complexidade que eles
envolvem;
(7) determinação das possíveis generalizações estabelecidas a partir da
solução do problema solvido, para fins de estabelecer alguns paradigmas e
39
precedentes meramente exemplificativos.

Analisemos cada uma destas etapas.

39 Neste sentido, pode-se buscar algum subsídio no trabalho de THIOLLENT, Michel.


Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2002, p.41. Lembra o autor que esta
metodologia busca fundamentalmente estreitar as relações que existem entre a organização
e sua base por meio dos procedimentos participativos, agregando o maior número possível
de seus membros na elucidação dos problemas e das propostas de ação. Assim, todas as
partes ou grupos interessados na situação ou nos problemas investigados devem ser
consultados.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

III.1.1. A Importância da Coleta das Informações Originais


Identificadoras dos Sujeitos em Litígio.

O grande problema que atinge o tema da abordagem jurisdicional


preliminar dos atos, fatos e negócios jurídicos que lhes são submetidos pela via das
ações intentadas é o da – em regra – parca e frágil delimitação empírica do objeto
do conflito e mesmo das partes envolvidas (sequer se fale das circunstâncias e
variáveis que os informam). Não raro, as pretensões deduzidas em juízo se
constituem a partir de uma perspectiva unilateral e mesmo reduzida do conflito, o
que em tese se afigura como justificável em face dos interesses (particulares ou
públicos) que dão causa a elas. Significa dizer que a jurisdição conta, na maior parte
das vezes, com postulações e resistências a elas marcadas por níveis mínimos de
abrangência da controvérsia, geralmente reduzida ao objeto mediato e imediato
perquirido.
Isto ocorre porque as próprias partes e seus procuradores têm se
contentado, historicamente, em transferir ao judiciário a responsabilidade para dizer
o direito a partir do estreito espectro situacional que indicam, deixando de suscitar
questões que podem não estar diretamente ligadas à lide, mas dela fazem parte por
razões indiretas. 40
Um exemplo claro disto pode ser retratado no âmbito dos Embargos
Infringentes nº 2002.04.01.000611-1/PR – PPI, da 2ª Seção do TRF da 4ª Região,
que negou provimento ao recurso interposto pela Associação Brasileira de Bebidas
(Abrabe), que queria restringir ao Estado do Paraná a decisão que obriga as
indústrias a fazer constar nos comerciais de televisão uma advertência de que o
consumo de bebidas alcoólicas acarreta riscos e potenciais danos à saúde.
Ocorre que em abril de 2003, a ação foi julgada pela 3ª Turma do
Tribunal, que decidiu, por unanimidade, que os comerciais veiculados no País
deveriam informar o real teor alcoólico dos produtos e alertar os telespectadores de

40 Esta transferência de responsabilidades ao Judiciário, tem causas múltiplas também, eis


que se relacionam com a cada vez mais frágil formação acadêmica e humanista das
faculdades de direito no país, bem como em face da precarização do mercado de trabalho,
estimulando o baixíssimo nível de atuação profissional. Já discutimos isto em nosso livro
LEAL, Rogério Gesta. Hermenêutica e Direito: considerações sobre a Teoria do Direito e os
Operadores Jurídicos. 3ª edição. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2002.

24
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

que "os produtos anunciados não podem ser ingeridos por gestantes ; que a venda é
proibida para menores de 18 anos; e que o consumo em excesso pode causar
dependência".
Dessa decisão, a Abrabe recorreu, em julho de 2003, requerendo que a
exigência ficasse restrita à jurisdição em que a ação foi proposta, ou seja, o Estado
do Paraná. Todavia, em março de 2004, a 3ª Turma decidiu, por maioria, que a
decisão deveria englobar todo o território nacional. Como houve um voto divergente,
os advogados da associação puderam requerer que o recurso fosse analisado
novamente, desta vez pela 2ª Seção, que é formada pela 3ª e 4ª Turmas do TRF,
especializadas em Direito Administrativo, Civil e Comercial.
O relator dos Embargos Infringentes foi o desembargador federal Edgard
Lippmann Júnior, que deixou claro no seu voto, utilizando exemplos casuísticos, de
que a jurisdição de um órgão do Poder Judiciário abrange todo o território nacional.
"Pessoa divorciada em São Paulo é divorciada no Rio de Janeiro, não se trata de
discutir se os limites territoriais do juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu
41
território", negando provimento ao recurso, sendo acompanhado pela maioria.
Ora, smj, é óbvio que a extensão da decisão judicial aqui, por razões de
ordem pública indisponível (saúde pública), precisam ser estendidas a todo o
território nacional, exatamente em face de sua eficácia social, mesmo inexistindo
pedido expresso nesse sentido.
A jurisdição neste feito levou em conta fatores e variáveis de ordens
múltiplas, pertencentes à natureza do conflito enfrentado: saúde pública (matéria de
interesse federativo), cultural (orientação social massiva sobre os danos e perigos
da ingestão de bebida alcoólica), política (desenvolvendo política pública preventiva
ao consumo exagerado e à dependência química), interesse coletivo (em face dos
sujeitos de direito atingidos pelo hábito ou vício da bebida). Todas estas variáveis e
temas estão conectados diretamente à lide, e precisam ser desvelados pela tutela
jurisdicional, sob pena de ser reduzido e desfocado os resultados da prestação
desta tutela.

41 Esta decisão ainda está sujeita a recursos Especial ou Extraordinário. Interessante


registrar que, em maio de 2003, também foi decidido pela 3ª Turma que os rótulos das
bebidas alcoólicas deveriam conter, em letras maiúsculas, a mensagem "O álcool pode
causar dependência e em excesso é prejudicial à saúde". A frase deverá substituir os dizeres
"beba com moderação".

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Por tais razões, entendo que se possa tensionar sempre ao máximo


possível a identificação de quem são os sujeitos que se apresentam como partes da
relação litigiosa, nas suas variáveis e aspectos os mais amplos possíveis, relegando
o enquadramento normativo e jurisprudencial para mais tarde, em outro momento,
inclusive para se evitar determinadas padronizações tradicionais que a
jurisprudência de plantão recorrentemente tem imposto à tradição jurídica ocidental.
Não se esqueça que alguns avanços da casuística que se conseguiu ao longo do
tempo foram exatamente pelo fato de se relevar os aspectos personalíssimos e
particulares dos casos concretos.
Neste sentido, podemos citar o exemplo do nominado Crime de Bagatela,
ora entendido como um desdobramento do princípio da insignificância da conduta
delituosa, para excluir a antijuridicidade em delitos envolvendo danos de pequena
monta, sob a justificativa de que não se deve usar o aparelhamento estatal
repressivo em face destes comportamentos. Aqui, são as circunstâncias fáticas e
pessoais que envolvem os sujeitos de direito delituosos que vão delimitar suas
possibilidades de configuração. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não
abonou a tese deste princípio em situação que envolveu militar preso em flagrante
quando fumava cigarro de maconha em área sujeita à administração militar 42 .
Esta verdadeira causa supralegal de exclusão da antijuridicidade da
conduta igualmente não foi utilizada para o caso de agentes que cometeram o delito
de descaminho, ao trazer mercadorias de outro país de forma absolutamente
irregular (os chamados sacoleiros), exatamente pelo fato destes sujeitos serem
pessoas muito bem situadas economicamente, com empresas estabelecidas na
cidade e residindo em áreas nobres da comuna 43 .

42 Nos autos de Hábeas Corpus nº 81734 – PR – 1ª T. – Rel. Min. Sydney Sanches – DJU
07.06.2002 – p. 00095. Esta posição do STF vai na mesma direção do Supremo Tribunal
Militar, que em situação envolvendo a subtração (tentativa) de gêneros alimentícios e
materiais de limpeza pertencentes ao aprovisionamento de quartel, por parte de um militar,
entendeu que, apesar do irrisório valor das mercadorias, a lesão ao patrimônio militar jamais
poderá ser tida como insignificante, seja pelos reflexos imediatos e concretos para a
administração militar, patrimoniais e morais, seja pelos efeitos mediatos do comportamento
"contra jus ", em detrimento dos valores basilares da caserna. Preliminar de não-conhecimento
do pedido correcional indeferida. No mérito, deferida a Correição Parcial. Decisão por maioria.
STM – Cparcfo 2002.01.001817-7 – DF – Rel. Min. Domingos Alfredo Silva – DJU
09.07.2002.
43 Assim refere o julgado: O princípio da insignificância foi pensado para adequarem-se as

condutas típicas (formalmente criminosas) à realidade sócio-econômica do país. Sendo, como

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua vez, analisando


elementos fáticos que alcançaram as circunstância de um crime, entendeu que
resquícios de maconha encontrados em artefato utilizado para consumo de droga,
na ordem de 0,034 grama de maconha não pode ser reconhecido como lesivo, para
os fins de enquadramento nas disposições do art.16, da Lei de Tóxicos, rejeitando a
denúncia ofertada pelo Ministério Público, com fundamento no princípio da bagatela.
O agente criminoso aqui era um senhor de 69 anos, pobre, desempregado e sem
teto 44 .
A importância da delimitação do perfil meta-jurídico dos sujeitos de
direitos envolvidos em lides jurisdicionais, e as circunstâncias materiais que os
cercam, é tão importante que, por vezes, a própria legislação é que impõe tal
aferição, inclusive para os fins de resolver o litígio, como ocorre no âmbito das
relações de consumo e laborais, quando se impõem considerar uma das partes
como hiposuficiente em face da outra. 45

é, princípio exclusivamente doutrinário e não legal, sua aplicação acaba por ganhar forte
conteúdo subjetivo, o que por vezes cria aparente quebra do princípio da isonomia. 2- Na
espécie, não se trata de réus que, diante da triste realidade sócio-econômica, praticam o
descaminho como forma única de sustento de suas famílias, os chamados "sacoleiros". São,
ou eram, empresários devidamente estabelecidos e residentes em áreas tidas como nobres
desta capital, com padrões financeiros compatíveis à classe média brasileira, fatos relevantes
para a não configuração do "princípio da insignificância" e a exclusão da teoria do "crime de
bagatela". TRF 1ª R. – RCCR 34000189018 – DF – 3ª T. – Rel. Juiz Luciano Tolentino
Amaral – DJU 26.04.2002 – p. 79.
44 TJRS – ACR 70004191797 – (00518825) – 3ª C.Crim. – Rel. Des. José Antônio Hirt Preiss

– J. 29.08.2002. Na mesma direção o julgado que entendeu ser o valor ínfimo da res furtiva,
sem qualquer repercussão no patrimônio da vítima, pois de R$ 14, 00 (quatorze reais),
autorizador da aplicação deste princípio: Não possui repercussão a ensejar a reprimenda
estatal, a míngua de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pelo art. 155 do CP. O princípio da
bagatela volta-se para o valor sócio-econômico do bem. Assim, mesmo que o furto tenha sido
consumado e a vítima tenha sofrido prejuízo em valor ínfimo, não está descaracterizada a
insignificância. Apelação improvida. TJRS – ACR 70004134805 – 8ª C.Crim. – Rel. Des.
Roque Miguel Fank – J. 15.05.2002.
45 Veja-se que, em termos de direito do consumidor, na perspectiva individual e não coletiva,

a Lei Federal nº8.078, de 11.09.90, trouxe uma série de mecanismos processuais que
outorgam a este sujeito de direito hiposuficiente algumas prerrogativas de proteção dos seus
interesses, a saber: (a) a possibilidade de determinação da competência pelo domicílio do
consumidor autor (artigo 101, I); (b) a vedação da denunciação da lide é um novo tipo de
chamamento ao processo, em determinadas hipóteses (artigos 88 e 101, II); (c) a previsão de
adequada e efetiva tutela jurisdicional por intermédio de todo e qualquer tipo de ação (artigo
83); (d) a nova configuração da tutela específica, nas ações que tenham por objeto o
cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (artigo 84); (e) a extensão subjetiva da coisa
julgada erga omnes, mas, em alguns casos, apenas para beneficiar as pretensões individuais
(artigo 103); (f) a inversão, ope judicis, do ônus da prova em favor do consumidor (artigo 6º,
inciso VIII); (g) a assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente (artigo 5º,
inciso I); (h) o próprio habeas data em favor do consumidor (artigo 43, § 4º).

27
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Outra situação absolutamente relevante em termos de condições


pessoais dos sujeitos de direito, a serem cotejadas num amplo espectro, é a dos
deficientes físicos no país – deveras desconsiderado pela legislação e pela cultura
de nosso povo, a despeito de algumas e parcas previsões normativas que vão ao
seu encontro. Neste particular, é paradigmática a decisão judicial tomada no âmbito
do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial nº REsp 567.873, da
relatoria do Ministro Luis Fux, quando avalia a possibilidade de se estender a
isenção de IPI à compra de veículo para que outra pessoa – que não deficiente
físico – o conduza 46 .
Neste sentido, sustentou o relator que a ratio legis do benefício fiscal
conferido aos deficientes físicos (nos termos da Lei Federal nº8.989/95 alterada pela
Lei nº 10.754/2003) indicia que indeferir requerimento formulado com o fim de
adquirir um veículo para que outrem o dirija, à míngua de condições de adaptá-lo,
afronta ao fim colimado pelo legislador ao aprovar a norma visando facilitar a
locomoção de pessoa portadora de deficiência física, possibilitando-lhe a aquisição
de veículo para seu uso, independentemente do pagamento do IPI.
De forma veemente, o Min. Luis Fux ponderou que se revela inaceitável
privar a Recorrente de um benefício legal que coadjuva às suas razões finais a
motivos humanitários, posto de sabença que os
deficientes físicos enfrentam inúmeras dificuldades,
tais como o preconceito, a discriminação, a comiseração
exagerada, acesso ao mercado de trabalho, os obstáculos
físicos, constatações que conduziam à consagração das
denominadas ações afirmativas, como esta que se pretende
empreender. 47

46 STJ – REsp 567.873 - MG -1ª T. – Rel. Min. Luis Fux – DJU 25.02.2004 – p.120. Neste
feito, o Recurso Especial foi provido para conceder à recorrente a isenção do IPI nos termos
do art. 1º, § 1º, da Lei nº 8.989/95, com a novel redação dada pela Lei nº 10.754, de
31.10.2003, na aquisição de automóvel a ser dirigido, em seu prol, por outrem.
47 Idem, p.120. Assevera o relator que consectário de um país que ostenta uma Carta

Constitucional cujo preâmbulo promete a disseminação das desigualdades e a proteção à


dignidade humana, promessas alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da
República, é o de que não se pode admitir sejam os direitos individuais e sociais das pessoas
portadoras de deficiência, relegados a um plano diverso daquele que o coloca na eminência
das mais belas garantias constitucionais.

28
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Reforçando a perspectiva que estou dando aqui, o voto sob comento


deixa claro que é a proteção da própria dignidade da pessoa humana, centro neural
de todo o sistema jurídica, que deve ser o centro de preocupação do Estado-Juiz.
Por tais razões, negar à pessoa portadora de deficiência física o que a própria
norma garante, significa legitimar violenta afronta aos princípios da isonomia e da
defesa da dignidade da pessoa humana.

III.1.2. Dos Fundamentos e das Razões Fáticas dos Sujeitos em


Litígio.

Se apresenta igualmente importante a percepção clara dos fundamentos


e das razões fáticas reais pelas quais os sujeitos de direito ingressam em um litígio,
tema este que é, não raro, multifacetado e marcado por variáveis múltiplas, haja
vista que em situação de tensão e confronto, em que os ânimos estão alterados e o
discernimento racional prejudicado em termos de integralidade, as partes
costumeiramente perdem o foco normativo de suas condutas e mesmo objetivos.
Veja-se que, para os sujeitos que estão em conflito, o sensato e
ponderado tratamento jurídico da matéria é deveras difícil, tanto para os que não são
iniciados no conhecimento e profissão jurídica, como para os que são, eis que
inclusive para estes há certa perda de perspectiva jurídica do objeto da lide em face
de figurarem como partes do feito.
Soma-se a isto o fato de que a razão dos sujeitos de direito em litígio dá
lugar à emoção e à paixão, seja de forma preliminar (anterior a propositura da
medida judicial), como intercorrentemente (ao longo do feito) e após ele, dificultando
sobremaneira as possibilidades de composição ou transação do quadro belicoso.
Aqui não se pode perder de vista que compete ao magistrado a direção do processo,
devendo assegurar às partes igualdade de tratamento, velar pela rápida solução do
litígio, prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, e tentar, a
qualquer tempo, conciliar as partes. 48
De outro lado, tratando de temas e partes com aguda diferenciação
social, cultural e econômica, como nas relações de trabalho, em que o trabalhador

48 Art.125, do Código de Processo Civil- CPC.

29
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

(em tese) coloca-se numa situação de desequilíbrio em termos de autonomia e


níveis de consciência sobre seus direitos, o magistrado deve ter sensibilidade
redobrada na aferição de dolo ou qualquer outro comportamento temerário à justiça,
isto porque estes sujeitos podem não ter discernimento integral sobre o que pode e
o que não pode ser feito neste nível de embate jurisdicional. 49
Não se pode desconhecer que a jurisdição muitas vezes é utilizada para
qualquer fim, menos o da busca da pacificação das partes envolvidas; ao contrário,
tem servido – em certas situações - à agudização das diferenças e contendas, isto
porque são os próprios litigantes que procuraram (de forma até inconsciente em
alguns caos) o Poder Judiciário para outros fins, tais como vindicta passional,
compensações afetivas e sexuais, retaliações econômicas e políticas, etc. 50 . Em tais
momentos, impõe-se que o Estado Juiz use dos recursos processuais e
procedimentais que têm para identificar qual afinal o verdadeiro objeto da lide e de
seus contendores 51 .
Uma das formas de se fazer isto é buscar aferir quais são as razões de
justificação e fundamentação empíricas das partes – e seus procuradores - para
irem a juízo reivindicar suas pretensões, o que implica descortinar as causas do
insucesso da conciliação prévia, o que se faz investigando o perfil das partes e de
suas intenções reais.
Neste ponto, Barbosa Moreira lembra que a litigância temerária não é só
aquela oriunda de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava o

49 Assim já decidiu o TRT DA 2ª Região, dizendo que o poder judiciário trabalhista é órgão

estatal para prestação jurisdicional nos moldes da Carta Maior de 1988, em seu artigo 114, e
nunca deve fazer vezes de organismo repressor do acesso à Justiça e do devido processo legal
(CF, artigo 5º, XXXV e LV). As questões dos artigos 14 a 18 do CPC (em especial com a
redação dada pela Lei nº 8.852/94) devem ser interpretadas com paciência e sensibilidade,
principalmente para não atingir a infelizmente inculta massa trabalhadora que acorre
diariamente às MM. Varas do Trabalho em postura reivindicadora de créditos com natureza
alimentar. (TRT 2ª R. – RO 20010447541 – (20020512877) – 10ª T. – Rel. Juiz Ricardo Verta
Luduvice – DOESP 20.08.2002).
50 Infelizmente, muitas partes utilizam-se da jurisdição como instrumento para o

cometimento de ilícitos das mais diversas matizes, configurando inafastável dolo processual,
o que a jurisprudência pátria vem repudiando desde há muito, asseverando que dolo ocorre
toda vez que a parte vencedora, faltando a seu dever de lealdade e boa-fé (artigo 14, inciso II,
do CPC), impeça ou dificulte a atuação processual do vencido, ou influencie na formação do
convencimento do juízo, afastando-o da verdade dos fatos. TST – ROAR 339933 – SBDI 2 –
Rel. Min. Conv. Aloysio Corrêa da Veiga – DJU 11.10.2002.
51 TARUFFO, Michele. L'abuso del processo: profili comparatistici. In: Revista de Processo, v.

24, n. 96. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.61-65.

30
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

postulante, como também aquela que tiver conscientemente alterado a verdade dos
fatos ou omitido fatos essenciais, e a que tiver feito no processo ou dos meios
processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo
ilegal ou de entorpecer a ação da justiça ou de impedir a descoberta da verdade 52 .
Outro aspecto interessante diz respeito àquelas situações em que as
partes, conjuntamente, objetivam alcançar objetivo ilegal, não se configurando neste
caso há litigância de má-fé, que é infração a dever processual, mas colusão (o que
enseja a prolação de sentença que obste ao objetivo delas, a teor do artigo 129, ou,
se for o caso, a propositura de ação rescisória, inclusive, pelo Ministério Público, de
acordo com os artigos 485, III, e 487, III, letra b, do Código de Processo Civil).
Na mesma linha de raciocínio pode-se deparar com a circunstância de
que autor e réu estejam conjugando seus esforços para obter, via relação
processual litigiosa, direito pertencente a terceiro (o que seria ilícito), e este oferecer
oposição. Aí sim, ambos se tipificariam como litigantes de má-fé, porque teriam se
utilizado do processo para conseguir objetivo ilegal. 53
Estes tipos de questões chamam a atenção para a necessidade de se
estabelecer uma diferenciação entre as partes litigantes e seus procuradores, eis
que a relação de representação judicial não confunde os sujeitos de direito
envolvidos, notadamente pelo fato de que tanto partes como procuradores
encontram-se vinculados pelas disposições da seção I, do Capítulo II, do Título II, do
Livro I, do CPC.
Vai neste sentido a jurisprudência pátria, ao sustentar que em face do
disposto nos arts. 14 e 17, do CPC, e art. 133, da Constituição Federal, o advogado
deve responder solidariamente, quando, abusando do poder do mandato, formula
pretensão destituída de fundamento ou altera a verdade dos fatos, haja vista que
aquelas disposições normativas elevam o advogado ao nível do juiz e do promotor
público, considerando-o indispensável à administração da justiça. Por tais

52 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Responsabilidade das Partes por Dano Processual.In

Revista de Processo, nº 10, abr-jun/1978, páginas 15 e seguintes.


53 Vide o disposto como condenação solidária daqueles "que se coligarem para lesar a parte

contrária", constante da parte final do § 1º, do artigo 18, do Código de Processo Civil.

31
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

fundamentos, o advogado que age contra esse princípio, age contra a própria justiça
e deve receber a mesma pena a que levou sofrer o seu cliente 54 .
É de se ter claro que tais situações tanto podem configurar-se na fase
postulatória (a qual abrange os atos relativos à propositura da demanda e à
apresentação da defesa), como na instrutória ou na recursal. De outro lado, cumpre
o registro de que elas tampouco se confinam no processo de conhecimento: podem
operar igualmente nos processos executório, cautelares e especiais.

III.1.3. Da Delimitação Fática do Objeto a ser Enfrentado na Lide.

Após evidenciados os fatores acima mencionados, impõe-se perquirir


sobre a delimitação fática do objeto a ser abordado no caso concreto.
Usualmente, a dogmática tem demandado para fins de pedidos judiciais
que têm o condão de provocar o Estado-Juiz para uma resposta aos interesses que
lhe são submetidos à análise, que eles sejam o certos e determinados, eis que
certeza e a determinação são verdadeiras qualidades que não se excluem, mas se
somam na lógica do sistema jurídico 55 .
Está se dizendo que, ao exigir a certeza, a lei pressupõe que o pedido
seja claro, expresso, que não deixe dúvidas sobre aquilo que é pretendido pelo
demandante, em contraposição à idéia de implícito ou vago, consoante os termos do
art.286, do CPC, ou do art.852-B, inciso I, da CLT, por exemplo.
À certeza soma-se a determinação (o limite), a qual importa em extremar
um objeto de outro, quer dizer, o pedido deve visar um bem jurídico perfeitamente
caracterizado, tanto na qualidade, como na quantidade 56 .
A despeito destas considerações mais dogmáticas, importa ter presente
sempre que, independentemente das pretensões deduzidas em juízo, o que se deve
relevar é a finalidade dos direitos, sua função própria a cumprir e,

54 TRT 2ª R. – RO 20020043419 – (20020472174) – 09ª T. – Rel. Juiz Luiz Edgar Ferraz de


Oliveira – DOESP 09.08.2002, p.117.
55 Conforme PASSOS, Calmon de. Comentários ao CPC. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,

2002, p. 214.
56 MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. Rio de Janeiro:

Forense, 2002, p.39. Veja-se que, quanto ao objeto mediato do pedido (bem da vida que
pretende a parte), a determinação deve ser enquadrada a partir das seguintes
considerações: a) quantidade desde logo determinada; b) quantidade determinável,
admitindo-se o pedido genérico.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

conseqüentemente, cada um deles deve realizar-se conforme os objetivos e


finalidades dadas pelo sistema jurídico (constitucional e infraconstitucional). Significa
dizer que os pretensos direitos subjetivos são direitos-funções, os quais devem
permanecer no plano da função que devem desempenhar, senão seu titular comete
um desvio, um abuso de direito; o ato abusivo é o ato contrário ao fim da instituição,
à sua finalidade 57 .
O ato será normal ou abusivo se guiado ou não por um motivo legítimo,
verdadeira pedra angular de toda a teoria do abuso do direito 58 . Ademais, o ato que
rompe este equilíbrio é um ato anti-social e, portanto, abusivo, ainda que praticado
sem intenção de lesar o direito de outrem. Por isto insisto com o fato de que não se
descobre a medida justa e verdadeira de cada direito senão perscrutando seu fim
econômico e social, bem como comparando sua importância à dos interesses
opostos; o juiz deve, portanto, pôr em jogo as considerações de ordem moral, social
ou econômica que se encontram envolvidas no conflito dos interesses em choque.
Desde que o titular de um direito, exercendo-o em condições
objetivamente irrepreensíveis, assim procede para atingir fins contrários aos
protegidos pela lei e sem nenhum interesse legítimo, moral ou material, o ato é
abusivo, sendo absolutamente reprimido pelo sistema jurídico.
Assim, pode-se dizer que o interesse legítimo diz respeito a que as
faculdades objetivas são conferidas aos homens pelo poder público, tendo em vista
a satisfação de seus interesses, não de quaisquer interesses, mas de interesses
legítimos; se o titular de um direito o exerce fora de todo o interesse, ou para a
consecução de um interesse ilegítimo, ele abusa de seu direito, não merecendo a
proteção da lei, mas ao contrário, é reprimido por ela 59 .

57 Conforme tradicional doutrina civilística nacional, com RODRIGUES, Silvio. Direito Civil -
Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 315.
58 Conforme MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo II. Rio de Janeiro:

Borsoi, 1970, p. 291.


59 Desde o primeiro grau de jurisdição, até o segundo, temos sérios problemas com isto.

Neste sentido, veja-se a posição consabida do STF em relação ao uso indevido e de recursos:
Agravo. Regimental. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa.
Aplicação do art. 557, § 2º, CC. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a
interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal
condenar o agravante a pagar multa ao agravado. STF – AI-AgR 496387 – SP – 1ª T. – Rel.
Min. Cezar Peluso – DJU 25.06.2004 – p. 00015) JCCB.557 JCCB.557.2 JCPC.14
JCPC.14.II JCPC.14.III JCPC.17 JCPC.17.VII.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

O Tribunal Superior do Trabalho, nesta direção, teve oportunidade de


assentar que se afigura reprovável e inaceitável a conduta da parte que, infringindo
os deveres de lealdade e de boa-fé (CPC, art. 14, inc. II), desvirtua a nobre
finalidade de um remédio processual como o recurso, dele se louvando para
inequivocamente postergar a solução da lide.
Reputa-se litigante de má-fé a parte que, no
processo trabalhista, denegado seguimento a recurso de
revista manifestamente incabível, insiste no destrancamento,
mediante agravo de instrumento. 5. Em tal circunstância, salta
à vista o escopo protelatório ou, quando menos, o incidente
processual flagrantemente infundado provocado pela parte, de
modo a autorizar a incidência, de ofício, dos incisos VI e VII do
art. 17 do CPC, aplicados subsidiariamente (CLT, art. 769). 6.
Recurso manifestamente procrastinatório sujeita a parte à
condenação, de ofício, por litigância de má-fé, a pagar
indenização em favor do antagonista, desde logo arbitrada em
20%, e multa de 1%, calculadas sobre o valor atualizado da
causa (CPC, art. 18, caput e § 2º). 7. Agravo de instrumento a
que se nega provimento. Indenização e multa por litigância de
má-fé infligidas à Agravante. 60

Mas não é somente na esfera recursal que a delimitação fática do objeto


da lide impõe-se ao percuciente controle do magistrado, isto se revela de maior
importância fundamentalmente no âmbito do primeiro grau, em que a flagrância dos
fatos, sentimentos, intenções, estão mais expostos de forma epidérmica,
oportunizando uma aferição profunda, exatamente para se identificar o que
efetivamente pretendem as partes com a lide: se a solução pacificante do conflito ou
sua procrastinação para fins ilícitos e ilegítimos.
Neste sentido, vale a pena trazer à colação o caso da publicação e
comercialização de livros fomentadores de idéias discriminatórias e preconceituosas
contra a comunidade judaica, violando os termos da Lei nº 7716/89, artigo 20, na

60 TST – AIRR 108 – 1ª T. – Rel. Min. João Oreste Dalazen – DJU 13.08.2004.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

redação dada pela Lei nº 8081/90, envolvendo iniciativa editorial no Rio Grande do
Sul.
Na espécie, entendeu o juízo de primeiro grau por inocentar o
denunciado pelo Ministério Público pela prática de crime de racismo 61 . No Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o recurso interposto pelo Ministério
Público foi provido, entendendo o segundo grau que a pretensão veiculada pelo
denunciado em textos publicados constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de
inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII) 62 .
Em Hábeas-Corpus apresentado ao Superior Tribunal de Justiça, a
decisão do TJRS foi confirmada, por maioria, vencido o Ministro Edson Vidigal 63 .
Interposto novo Hábeas-Corpus ao Supremo Tribunal Federal, este foi denegado,
por maioria, confirmando a decisão do TJRS. 64
Ao longo desta discussão, um universo de questões teve de ser tratado
para fins de identificar o comportamento do denunciado como efetivamente ilícito,
dentre os quais: (a) se os judeus são ou não uma raça, eis que, em face disto,
segue-se que contra eles poder ou não haver discriminação capaz de ensejar a
exceção constitucional de imprescritibilidade; (b) uma discussão sobre ser possível
ou não a subdivisão da raça humana, envolvendo inclusive questões atinentes à
definição e o mapeamento do genoma humano (haja vista que, sob a perspectiva
científica, não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele,
formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto
que todos se qualificam como espécie humana); (c) se há ou não diferenças
biológicas entre os seres humanos; (d) se a divisão dos seres humanos em raças
resulta de um processo de conteúdo político-social, originando-se daí o racismo que,
por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista; (e) se estaria
presente ou não, nas publicações do denunciado, fundamentos do núcleo do
pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças

61 Autos do Processo Crime Comum nº01391013255/5947, da 8ª Vara Criminal de Porto


Alegre, RS, julgado em 14/06/1995.
62 Autos da Apelação-Crime nº695130484, da 3ª Câmara Criminal, de Porto Alegre, RS,

julgado em 31/10/1996.
63 Autos nº15.155 (2000/0131351-7), da 5ª Turma Criminal do STJ, relator Ministro Gilson

Dipp, julgado em 18/12/2001.


64 Autos nº82.424-2, Tribunal Pleno, com relatoria do Ministro Maurício Corrêa, julgado em

17/09/2003.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

distintas, em que os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características


suficientes para justificar a segregação e o extermínio; (f) se estas questões todas
seriam ou não inconciliáveis com os padrões éticos e morais definidos na Carta
Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza
o Estado Democrático de Direito.
Neste caso, os Tribunais brasileiros tiveram que lançar mão de uma
interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e
circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação,
a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma que veda o racismo e que foi
aplicada ao denunciado, julgando no sentido de que a edição e publicação de obras
escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à
concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos
históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa
inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen
com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos
atos em que se baseiam.
De outro lado, consignaram tais decisões que a liberdade de expressão
enquanto garantia constitucional, não pode se ter como absoluta, em face dos
limites morais e jurídicos impostos pelo próprio sistema jurídico, eis que o direito à
livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo
imoral que implicam ilicitude penal. Na verdade, as liberdades públicas não são
incondicionais, razão pela qual devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º,
primeira parte).
Acentuou ainda o Supremo Tribunal Federal que o preceito fundamental
de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que
um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas,
como sucede com os delitos contra a honra, devendo prevalecer aqui os princípios
da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica 65 .
Ora, é somente com uma percepção ampliada deste debate, levando em
conta não apenas a aparente pretensão de um fato, ato ou negócio jurídico, que os

65 Idem, p.117.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Tribunais que avaliaram o caso sob comento puderam alcançar o bem da vida
atingido visceralmente na espécie, o que envolveu considerações de variáveis
múltiplas como as que acabamos de citar.

III.1.4. Do Enquadramento Sistêmico-Constitucional Estruturante do


Caso Concreto.

Após delineado o cenário fático que se apresenta ao Estado-Juiz, com o


máximo de abrangência possível de seus elementos constitutivos, impõe-se o
enquadramento normativo do caso concreto, a ser feito levando em conta algumas
premissas já referidas anteriormente, e que vamos sucintamente repisar aqui.
Toda é qualquer interpretação do sistema jurídico é aplicação
reconstrutiva deste sistema, ou seja, o processo de interpretação do texto jurídico
requer do operador do direito conhecimento de todo sistema constitucional, sua
interpretação diante de uma dada realidade histórica, assim como um olhar do
dispositivo legal objeto de interpretação a partir da leitura sistemática do seu texto.
As formas de interpretação e aplicação de qualquer norma jurídica, pois,
deverão ter presente a criação de condições para que a norma interpretada e
aplicada ao caso concreto tenha eficácia sempre no sentido da realização dos
princípios e valores constitucionais comentados.
Este direcionamento pode fazer diminuir a enorme distância que muitas
vezes ocorre entre a interpretação realizada pela jurisprudência e pela doutrina, pois
de nada adianta a aplicação de uma norma que venha a ser absolutamente
inaplicável a uma realidade histórica que não mais comporta aquela interpretação,
ou que não leve em conta o universo de variáveis que estão presentes
empiricamente no caso. Entretanto, o oposto não pode ocorrer, que seria o
intérprete responsável pela aplicação da norma ao caso concreto deixar de dar o
seu correto direcionamento valorativo, oferecido pela Constituição, especialmente
por seus princípios fundamentais.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

De outro lado, a noção de sistema jurídico aqui precisa sempre ser


relevada, na dicção do que até agora venho sustentando para, com Savigny 66 ,
lembrar a necessária concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as
regras de Direito numa grande unidade ordenadora das relações sociais.
Tal unidade sistêmica tem, por sua vez, à luz do que dispõe Robert
67
Alexy , três níveis -, regras, princípios e procedimento -, fundada, pois, na idéia de
razão prática do direito, passível de controle e constituição dialógica pelos atores
atingidos ou envolvidos em qualquer relação intersubjetiva decisional sobre
interesses e pretensões, privadas e públicas.
Hay que excluir un legalismo estrictamente orientado
por las reglas. Por razones de racionalidad práctica, es
irrenunciable la presencia de principios y com ello - dicho com
outra terminología - de valores en el sistema jurídico. En un
Estado constitucional democrático, los principios tienen si no
exclusivamente sí en una buena parte su ubicación jurídico-
positiva en la Constitución. 68

No manejo deste sistema jurídico, importa ter presente alguns critérios de


aplicação das normas (regras e princípios), através de procedimentos racionais e
controláveis, dentre os quais quero destacar o da ponderação dos interesses
envolvidos (a partir de suas delimitações fáticas anteriormente referidas). Na dicção
de Suzana Toledo :
A questão da ponderação radica na necessidade de
dar a esse procedimento um caráter racional e, portanto,
controlável. Quando o intérprete pondera bens em caso de
conflito entre direitos fundamentais, ele estabelece uma
precedência de um sobre o outro, isto é, atribui um peso maior
a um deles. Se se pode estabelecer uma fundamentação para

66 SAVIGNY, Fredrich Carl. Sistema del Diritto Romano Attuale. Turim: Daltricce, 1960,
p.118.
67 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Editorial Gedisa, 1997,

p.174.
68 Idem, p.176.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

esse resultado, elimina-se o irracionalismo subjetivo e passa-se


para o racionalismo objetivo. 69

É com base neste racionalismo objetivo que Canotilho assevera que as


idéias de ponderação (Abwägung) ou de balanceamento (Balancing) surgem em
todo o lado onde haja necessidade de encontrar o direito para resolver casos de
tensão (Ossenbühl) entre bens juridicamente protegidos. 70
Aqui é que o enquadramento sistêmico-constitucional ganha fôlego na
solução do caso concreto, mediado pela interpretação do operador do direito, para
dar relevo à idéia de que,
no momento de ponderação está em causa não
tanto atribuir um significado normativo ao texto da norma, mas
sim equilibrar e ordenar bens conflituantes (ou, pelo menos, em
relação de tensão) num determinado caso. ..... A actividade
interpretativa começa por uma reconstrução e qualificação dos
interesses ou bens conflituantes procurando, em seguida,
atribuir um sentido aos textos normativos. Por sua vez, a
ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face
dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para o
conflito de bens. 71

Significa dizer que a avaliação fática do caso ( na dimensão que dei a tal
tarefa), seguida da ponderação sistêmico-constitucional dos interesses envolvidos,
vai chamar todo o ordenamento jurídico à colação para solucionar o conflito, i.é.,
princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais.
Em face disto, as possibilidades processuais instrutórias da relação
litigiosa também vão se delineando, oportunidade em que a especificação do que
elas representam é da mais alta importância tendo em vista a sensibilização das

69 BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da proporcionalidade e o controle de


constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília jurídica,
2000, p. 172.
70 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria

Almedina, 2002, p. 1174.


71 Idem, p.1179.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

partes à pacificação do problema criado, criando-se uma segunda fase para este
momento cognitivo, mais coletiva e dialógica, eis que, de um lado, voltada ao
discernimento de todos os envolvidos do que vai implicar (econômica e
subjetivamente) uma discussão judicial até final decisão, em todos os graus
jurisdicionais (o que vimos até aqui); de outro lado, oportunizadora à constituição de
um espaço de conciliação e mediação de densidade substancial. Passo a avaliar
este segundo momento.

III.1.5. Do Fomento à Criação de Espaços Consensuais à Solução do


Caso Concreto.

Uma vez delimitado o universo caracterizador do conflito agora já jurídico,


eis que travestido de ação judicial, mister é que o Poder Judiciário, munido de todas
estas informações, desempenhe a função de pacificador da lide, exercendo a nobre
função de mediador dos interesses em combate. 72
Na verdade, a idéia de mediação aqui deve ser entendida como método
por meio do qual uma terceira pessoa (o magistrado), neutra e imparcial, ajuda as
partes envolvidas em um conflito a restabelecer a comunicação, para que possam
construir um acordo reciprocamente satisfatório, que ponha termo às divergências,
conferindo uma certa ordem no caos estabelecido. Isto só é possível a partir da
perspectiva que referi anteriormente, concebendo o espaço da jurisdição como
privilegiado para os fins de fomentar e viabilizar o entendimento pacificador entre as
partes 73 .
Na feliz síntese de Maurício Godinho 74 , são múltiplos os métodos de
solução de conflitos interindividuais e sociais conhecidos no Ocidente hoje, podendo

72 Neste sentido, ver os textos de FALCÃO, Joaquim. O advogado, a cultura e o acesso ao


sistema judiciário. Publicado em Recife, PIMES/UFP,1979; Os advogados no Brasil. in
Advogados: ensino jurídico e mercado de trabalho, Olinda, Fundação Joaquim Nabuco,
1984.
73 LIMA, Enio Galarça. O acesso à justiça do trabalho e outros estudos. São Paulo: LTr, 2001,

p.38.
74 DELGADO, Maurício Coutinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002, mais

especificamente o Capítulo XXXVIII.

40
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

ser agrupados em três grandes grupos: autotutela 75 , autocomposição 76 e


heterocomposição.
A diferenciação essencial para o autor entre estes grupos encontra-se nos
sujeitos envolvidos e na sistemática operacional do processo de solução do conflito.
Nas duas primeiras modalidades (autotutela e autocomposição), apenas os sujeitos
originais em confronto é que tendem a se relacionar na busca da extinção do
conflito, o que dá origem a uma sistemática de análise e solução da controvérsia
autogerida pelas próprias partes (lócus privilegiado da mediação e da arbitragem
enquanto instituições autônomas).
Na última modalidade (heterocomposição), ao invés, verifica-se a
intervenção de um agente exterior aos sujeitos originais na dinâmica de solução do
conflito, o que acaba por transferir, em maior ou menor grau, para este agente
exterior, a direção dessa própria dinâmica. Ou seja, a sistemática de análise e
solução da controvérsia não é mais exclusivamente gerida pelas partes, porém
transferida para a entidade interveniente – neste caso o Judiciário 77 . Aqui,
ultrapassando a perspectiva tradicional de Estado-Juiz coator, o magistrado assume
prioritariamente o papel de mediador de interesses e partes em conflito.
Importa, pois, ter presente a mediação como uma metodologia de imersão
sobre o conflito, desde suas motivações até sua completa extinção satisfativa.

75 Não se esqueça que a autotutela no Brasil é definida como crime, seja quando praticada
pelo particular (exercício arbitrário das próprias razões, art. 345, do Código Penal Brasileiro
– CP), seja pelo próprio Estado (exercício arbitrário ou abuso de poder, art. 350, CP).
Todavia, temos algumas exceções na legislação civil, por exemplo: com a legítima defesa (art.
160, I, Código Civil de 1916 - CCB), com o desforço imediato, no esbulho possessório (art.
502, CCB) e, por fim, com a apreensão pessoal do bem, no penhor legal (art. 779, CCB). Já
no Direito do Trabalho, a greve constitui um exemplo da utilização da autotutela na
dinâmica de solução de conflitos coletivos laborais.
76 Maurício Delgado (op.cit.,p.71), lembra que a autocomposição verifica-se seja pelo

despojamento unilateral em favor de outrem da vantagem por este almejada, seja pela
aceitação ou resignação de uma das partes ao interesse da outra, seja, finalmente, pela
concessão recíproca por elas efetuada. Na autocomposição não há, em tese, exercício de
coerção pelos sujeitos envolvidos, podendo figurar como exemplos a renúncia, a aceitação
(ou resignação ou, ainda, submissão) e a transação.
77 Não podemos deixar de mencionar aqui o instituto da arbitragem (Lei 9.307/96),

anteriormente previsto nos arts. 1.037 a 1.048, do Código Civil de 1916 (como
compromisso), e 1.072 a 1.102, do Código de Processo Civil (do juízo arbitral),
proporcionando um novel instrumento de heterocomposição aos contratantes, pela via dos
árbitros com conhecimento na matéria objeto da controvérsia, resguardando o sigilo, rapidez
e eficiência.

41
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

É um diálogo sobre o relacionamento dos


participantes, onde se tratam precisamente dos obstáculos que
impedem a harmonia, que perturbam o comércio ou a relação
trabalhista, societária ou familiar existente entre eles. A
experiência da mediação nos permite vislumbrar a
possibilidade de viver não numa ordem sustenida pela
repressão, mas sim numa harmonia, num convívio de liberdade
e respeito sem imposições nem tutelas. 78

Veja-se que, de um lado, considerando-se que as partes litigantes não


possuem – em tese – predisposição para a pacificação do conflito, até pelo fato de
estarem envolvidas emocionalmente nele de forma a não manter o discernimento
racional suficiente para tanto; e de outro lado, tendo em conta que os operadores
jurídicos estão não raro demasiadamente comprometidos com o interesse dos seus
clientes, além de terem sido formados numa cultura jurídica da guerra e do
enfrentamento, em que os conceitos de perdedor e ganhador alimentam a lógica do
sistema jurídico, é realmente sobre os ombros do Estado-Juiz que recai a
responsabilidade de sensibilizar a todos à paz e solução o máximo satisfativa da
contenda. 79
De uma certa forma é o próprio sistema jurídico brasileiro que ratifica esta
tendência pacificadora da jurisdição, na medida em que, nos termos do art. 584, III
(introduzido pela Lei nº 8.953/94), do CPC, confere eficácia de título executivo
judicial à sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que esta
não verse sobre questão posta em juízo. Pode tratar-se, portanto, de conciliação
extrajudicial (via pela qual se pode chegar à transação, à renúncia ou à submissão),
ou ainda, de transação judicial, mesmo se mais ampla do que o objeto do processo.
Ainda com relação à transação extrajudicial, o art. 585, II (reformulado
pela mesma lei), do mesmo diploma processual, atribui força de título extrajudicial ao

78 HIGHTON, Elena I., Álvarez, Gladys S. Mediación para resolver conflictos. Buenos Aires:
Ad-Hoc, 1998, p.118. Tradução nossa. Na mesma direção, ver o trabalho de BOLZAM DE
MORAIS, José Luis. Mediação e Arbitragem: Alternativas à Jurisdição. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 1999.
79 Ver neste sentido o trabalho de SERPA, Maria de Nazareth. Mediação e novas técnicas de

dirimir conflitos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.) Anais do I Congresso Brasileiro de
Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria


Pública ou pelos advogados dos transatores.
Não bastasse isto, cumpre destacar também que tem ganhado relevo a
conciliação judicial, haja vista a disposição do art. 331 CPC (introduzido pela Lei nº
8.952/1994), oportunidade em que se reservou momento próprio à tentativa de
conciliação, sempre que a causa verse sobre direitos disponíveis.
Aliás, tenho que tal medida de política jurisdicional se aplica inclusive
naqueles casos em que esteja configurada uma prescrição ou decadência do direito,
isto porque, como na homologação da transação o magistrado não profere um juízo
de legalidade estrita, mas sim de eqüidade, ao invés de reconhecer a decadência ou
prescrição, ou de julgar antecipadamente a lide, poderá o juiz marcar audiência de
conciliação para estimular a autocomposição das partes, de modo a evitar
controvérsias futuras (recursos, incidentes da execução, etc.). Tal posição se alinha
mais com o §2º, do art. 331, uma vez que, frustrada a tentativa de conciliação,
decidir-se-á as questões processuais pendentes.
Esta tendência da cultura conciliatória já chega inclusive à jurisdição
penal na cultura ocidental contemporânea 80 , inclusive no Brasil, notadamente a partir
da Lei nº 9.099/95, que, além de reestruturar os Juizados Especiais Cíveis, instituiu
no Brasil a Justiça penal consensual para as infrações de menor potencial ofensivo.
A despeito das críticas que se possa fazer a esta experiência 81 , a verdade
é que a Constituição de 1988 expressamente previu a transação penal (art. 98,
caput e inc. I), com o que, se pode dizer, tem-se formatado certo caráter de
disponibilidade da ação penal pública, por certo que submetida a estritos critérios
legais e ao controle jurisdicional.
Em face da edição daquela norma, criou-se no país novo modelo político-
criminal, fundado no consenso, que sinaliza para certa desburocratização da justiça,

80 Como bem esclarece ANDRADE, Manuel da Costa. Consenso e Oportunidade. In: Jornadas
de Direito Processual Penal - o novo CPP, Coimbra, Almedina, 1992, p. 317 e seguintes.
81 Neste ponto ver os trabalhos de: ANDRIGHI, Fátima Nancy et alli. Juizados Especiais

Cíveis e Criminais. Belo Horizonte: Del Rey, 1996; BATISTA, Weber Martins et alli. Juizados
Especiais Cíveis e Criminais e Suspensão Condicional do Processo Penal: a Lei nº 9.099/95 e
sua doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Forense, 2001; BENETI, Sidnei et alli. Juizados
Especiais Cíveis e Criminais. Belo Horizonte: Del Rey, 1996; BITENCOURT, Cezar Roberto.
Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001; BRANDÃO, Paulo de Tarso et alli. Juizados Especiais Cíveis e Criminais:
aspectos destacados. Florianópolis: Obra Jurídica, 2000.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

permitindo que a resposta estatal ao delito se dê de forma mais imediata e


educativa, perseguindo a pronta reparação dos danos à vítima, o fim das prescrições
e, conseqüentemente, da impunidade. Soma-se a isto os efeitos de ressocialização
do autor do fato e sua não reincidência, oportunizando à jurisdição penal focar mais
sua atenção e esforços nos crimes de maior gravidade 82 .
A jurisdição do trabalho igualmente tem contribuído muito para o
amadurecimento desta perspectiva de mediação. É de se gizar que desde a esfera
normativa a jurisdição laboralista se preocupa com o tema, haja vista a disposição
do art. 611, da CLT, que cuida das convenções coletivas de trabalho, verdadeiros
instrumentos de negociação e composição de interesses, resultado das negociações
das entidades representativas de trabalhadores e empresários.
O problema aqui é realmente de aculturação à composição de conflitos,
que por óbvio não depende tão somente do Estado-Juiz, mas de todos os envolvidos
numa relação jurisdicional.

III.1.6. Do Enquadramento Sistêmico-Constitucional Decisional do


Caso Concreto.

Frustrada a tentativa de conciliação, impõe-se à jurisdição dar solução ao


caso concreto, o que resta facilitado em face do conjunto de informações e dados de
que dispõe pelo exaurimento das fases anteriores.
A questão central nesta fase é saber como se constrói a decisão judicial
propriamente dita, já que resultado daquilo que constitucionalmente podemos
chamar de devido processo legal. Mas afinal, o que isto significa? Sem sobra de
dúvidas que o devido processo legal é concebido como um verdadeiro direito
fundamental e uma garantia indisponível a quem quer que se submeta a uma
decisão jurisdicional 83 .

82 Vale registrar que a preocupação com a vítima reflete-se em toda a lei, que se ocupa da
transação civil, possível antecedente da transação penal, e da reparação dos danos na
suspensão condicional do processo. No campo penal, a transação civil homologada pelo juiz
nas ações penais condicionadas à representação configura causa extintiva da punibilidade.
83 Neste sentido o texto de SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte:

Del Rey, 1997.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Em termos pragmáticos e operacionais do funcionamento da jurisdição, o


devido processo legal implica que: I) ninguém pode ser privado da sua vida, da
liberdade e da propriedade, senão em virtude de lei emanada do Parlamento que
representa a vontade do povo, II) ninguém será privado dos direitos à vida, à
liberdade e à propriedade, sem que lhe seja assegurado o direito à defesa; III)
ninguém poderá ter os seus direitos fundamentais restringidos, desarrazoadamente
e desproporcionalmente, além da medida necessária para a pacífica convivência
social 84 .
A dogmática mais tradicional da processualística brasileira tem
especificado ainda mais estas diretrizes, no sentido de asseverar que o devido
processo legal vem constituído por princípios nodais do sistema jurídico, a saber: (a)
Princípio da isonomia (artigo 5º, caput, Constituição Federal); (b) Princípio da
proteção judiciária, denominado de princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional; (c) Princípio do acesso facilitado ao Judiciário (direito a assistência
jurídica gratuita e direito a gratuidade processual); (d) Princípio do contraditório e da
ampla defesa; (e) Princípio do juiz e do promotor natural; (f) Princípio da proibição de
prova ilícita; (g) Princípio da publicidade dos atos e decisões; (h) Princípio da
fundamentação ou motivação dos atos e decisões. 85
A partir destes indicadores, fica claro que a maneira como o magistrado
chega até a sua convicção e decisão também está condicionada pela ordem
constitucional vigente, em face das garantias constitucionais processuais
asseguradas e referidas acima 86 .
A primeira garantia, aliás, advém de um requisito normativo de decisão
judicial, a saber, de que eles devem ser públicos e motivados, única forma de
resguardar a efetividade do devido processo legal, permitindo o seu controle por
meio da publicidade e transparência impostas, nos termos do inc. IX, do art. 93, da
CF/88. E isto se dá por uma razão muito simples, porque os pressupostos

84 Conforme os trabalhos mais clássicos de: DANTAS, F.C. San Tiago. Problemas de direito
positivo, estudos e pareceres, igualdade perante a lei e due process of law: contribuição ao
estudo da limitação constitucional do Poder Legislativo. Rio de Janeiro: Forense, 1953;
SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na
nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
85 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2001, p.39.


86 Ver também o texto de TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo legal e tutela

jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

valorativos da escolha efetivada, por meio do filtro da motivação, são fatores de


incondicionada fidúcia do cidadão no órgão jurisdicional. 87
É com base nestes indicadores normativos que se viabiliza o que chamo
de condição de validade e legitimidade da decisão judicial, a saber, que seja o
resultado do devido processo legal, garantindo àquele que provoca a jurisdição
todos os mecanismos lícitos de ação (observados os anteriores argumentos
envolvendo a legitimidade do interesse e os objetivos perseguidos), bem como
assegurando o direito de resistência lícita e legítima em igual proporção àquele que
é atingido pela pretensão provocativa sob comento, o que vem ratificado pelo
dispositivo constitucional da ampla defesa e do contraditório.
A ampla defesa, aqui, precisa ser entendida em sentido ampliativo, eis
que, consoante Pontes de Miranda, não existe um conceito para a ampla defesa,
mas existe algo mínimo, aquém do qual não existe a defesa 88 . Esse teor mínimo
irredutível do direito à defesa vem expressado na publicidade e na dilação
probatória, oportunidade das partes de serem informados sobre a existência e
conteúdo da imputação e do processo, bem como de se fazerem ouvir 89 .
É no bojo do processo/procedimento que a jurisdição deve criar um
efetivo espaço democrático e participativo de comunicação intersubjetiva, voltada ao
entendimento e à pacificação do conflito. Para tanto, todavia, deve estar munida e
municiar a todos os envolvidos com razões de justificação e fundamentação das
possibilidades decisionais do caso concreto, o que se só se obtém através da
meticulosa aferição dos elementos coligidos nas fases anteriores deste momento
metodológico, avaliando-os em face do plexo axiológico que informa o sistema
jurídico e a Sociedade Democrática de Direito que o constituiu.
Por tais razões que tenho sustentado que a prova judicial não é somente
para o magistrado decisor de primeiro grau, mas é para o processo como corpo
orgânico e autônomo, veiculador dos fatos, atos e negócios jurídicos contenciosos.
Tanto é verdade que, sistemicamente, os múltiplos graus de jurisdição no país

87 Consoante expressão de CONOGLIO, Luigi Paolo. La garanzia costituzionale dell'azione ed


il processo civile. Padova: Cedam, 2000, p. 33.
88 PONTES DE MIRANDA. Comentários a Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1968, pp. 220-221.


89 Ver o trabalho de TORRES PEREIRA JUNIOR, Jessé. O direto à defesa na Constituição de

1988 - o processo administrativo e os acusados em geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.


29.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

ratificam esta postura, haja vista que poderão se debruçar sobre todas as questões
suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por
inteiro 90 ; na mesma senda, ficam submetidas ao tribunal as questões anteriores à
sentença, ainda que não decididas 91 ; as questões de fato, não propostas no juízo
inferior, poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo
por motivo de força maior 92 .
Enfim, a importância político-constitucional da garantia do devido
processo legal, do direito ao contraditório e da ampla defesa reside, em essência, na
proteção conferida aos direitos fundamentais e no fato de ser uma das expressões
do Estado Democrático de Direito.

IV. Considerações Conclusivas:

Importa ter presente, ao fim e ao cabe desta proposição metodológica,


que o processo cada vez maior de institucionalização dos conflitos sociais pela via
da jurisdição no Brasil tem evidenciado, dentre outras coisas, certa incapacidade de
representação dos interesses coletivos pelos canais da democracia representativa e
as dificuldades de defesa e garantia dos direitos sociais 93 .
Tais fatos, inexoravelmente, têm colocado a magistratura diante de um
problema sem precedentes: a jurisdição tem se transformado politicamente em
instrumento de expansão da cidadania. Os tribunais deixam de ser a sede de
resolução das contendas entre indivíduos e passam a ser uma nova arena de
reconhecimento ou negação de reivindicações sociais. Ainda que os magistrados
não desejem tal situação - quer por padrões de formação profissional, quer pela
ruptura que a situação provoca no sistema de rotinas e procedimentos jurisdicionais
– há uma politização do jurídico e uma jurisdicionalização da política marcando de
alguma forma as relações de conflitos notadamente coletivas e sociais. 94

90 Nos termos do art.515, §1º, do CPC.


91 Art.516, CPC.
92 Art.517, CPC.
93 Como muito bem sinaliza CAMPILONGO, Celso Fernandes. Magistratura, sistema jurídico

e sistema político. In Direito e Justiça: a função social do Judiciário. FARIA, José Eduardo
(Org.). São Paulo: Ática, 1989, p. 118-119.
94 Idem, p.119.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

Por todas estas razões, tenho que resta realçada a necessidade de se


repensar a forma (metodologia) com que apreendemos os conflitos que acorrem ao
Estado-Juiz, bem como o iter percorrido à sua solução o mais satisfativa
(pacificadora) possível.
Daí se revela importante aquilo que estamos nominando de primeiro
momento do estudo de caso ser necessariamente exploratório, no sentido de
identificar, fundamentalmente, quem são os sujeitos do processo, suas
particularidades individuais, psicológicas, educacionais, econômicas, políticas,
culturais, religiosas, entre outras coisas, eis que tais elementos estão umbilicalmente
associados com o objeto da lide, muitas vezes camuflados ou dissimulados por este
objeto.
É possível, assim, percebermos que uma frágil avaliação/diagnóstico do
caso/problema estudado, implica inexoravalmente numa equivocada ou insuficiente
compreensão do tema avaliado, redundando numa correspondente tomada de
decisão insatisfatória para os fins almejados.
Os problemas decorrentes dos conflitos jurídicos se apresentam,
invariavelmente, como indício da perda da razão voltada para o entendimento e o
consenso, portanto, evidenciadores de níveis insuportáveis de tensões e
sentimentos belicosos. Com tal caracterização, mister é que, por debaixo do véu da
contenda, tentemos perceber que fatores ou fundamentos, e de que natureza, estão
presentes neste cenário.
A partir daqui, temos condições de formar aquilo que chamamos de juízo
hipotético preliminar do conflito. Este juízo desempenha um papel importante na
organização do estudo do caso, eis que, a partir de sua formulação (que deve ter
estrutura aberta e porosa aos movimentos seguintes do estudo, permanentemente
testadas/falseadas), o magistrado (bem como os demais operadores jurídico)
identifica as informações necessárias para o caso, evita altos graus de dispersão,
focaliza determinados segmentos do campo de observação já apreendido no caso,
seleciona dados e os cataloga em níveis de prioridades, etc. 95 .

95 É preciso termos claro, como bem adverte THIOLLENT (op.cit., p.56), que a própria
formulação de hipóteses depende de uma série de fatores: a problemática teórica na qual se
movem os pesquisadores, o quadro de referência cultural dos participantes, os insights

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

A formulação, pois, da(s) hipótese(s), forma verdadeira diretriz para o


esclarecimento do debate e estudo, devendo ser clara suficientemente para ensejar
a perfeita demarcação dos problemas a serem solucionados, oportunizando ampla
possibilidade de debate, reflexão e direito de contestação dos envolvidos no caso. A
essência de um estudo de caso é que ela tenta esclarecer uma decisão ou um
conjunto de decisões: os motivos pelos quais foram tomadas, como foram
implementadas e com quais os resultados. 96
Nesta direção, concordando com Roberto Yin 97 , a investigação do estudo
de caso enfrenta uma situação tecnicamente única em que haverá muito mais
variáveis de interesses do que pontos de dados, e, como resultado, baseia-se em
várias fontes de evidências, com os dados precisando convergir; como outro
resultado, beneficia-se do desenvolvimento prévio de proposições teóricas para
conduzir a coleta e análise de dados.
Em termos de perfil do operador do estudo de caso enquanto método, a
doutrina especializada tem insistido no fato de que ele deve possuir algumas
habilidades formativas, tais como: (a) deve ser capaz de fazer boas perguntas e
interpretar as respostas para o caso que esteja trabalhando; (b) deve ser um bom
ouvinte e não se deixar enganar por suas próprias ideologias e preconceitos; (c)
deve ser capaz de ser adaptável e flexível, de forma que as situações recentemente
encontradas possam ser vistas como oportunidades, não ameaças; (d) deve ter uma
noção clara das questões que estão sendo estudadas, mesmo que seja de um modo
exploratório; (e) deve ser imparcial em relação a noções preconcebidas, incluindo
aquelas que se originam de uma ou várias teorias, devendo estar atento e sensível a
provas contraditórias. 98
Estes são os desafios que ainda precisam ser internalizados pela
jurisdição brasileira.

imprevisíveis surgidos na prática ou na discussão coletiva, as analogias detectadas entre o


problema sob observação e outros problemas anteriormente encontrados.
96 SCHRAMM, Walter. Notes on case studies of instructional media projects. Waschington,

DC: Academy for Educational Development, 1981, p.136.


97 YIN, Robert K. Estudo de Caso. Porto Alegre: Bookman, 2001, p.33.
98 YIN, Robert K. Estudo de Caso. Op.cit., p.81.

49
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Rogério Gesta Leal

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