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1 https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/racismo-cientifico-o-legado-das-teorias-
bioantropologicas-na-estigmatizacao-do-negro-como-delinqueente/
2 Leung, C. (n.d.). Kellogg, John Harvey. Disponível em:
http://eugenicsarchive.ca/discover/connections/512fa0d334c5399e2c000005
por doenças infecciosas e por desnutrição e, nas faixas etárias mais jovens, os negros têm um
índice de mortalidade superior ao dos brancos". 3 Não seriam essas algumas evidências da
superioridade de algumas raças em detrimento de outras?
A resposta é não. Com exceção de raras doenças resultantes de anomalias genéticas, como a
anemia falciforme enfrentada exclusivamente pela população negra, a maior parte das
enfermidades surgem fatores econômicos e ambientais, como a falta de acesso à saúde
preventiva e exposição a condições de vida insalubres. Assim, a condição social da
esmagadora maioria da população negra acaba sendo a causa de alguns de seus mais graves
problemas4. Os registros de 2014 da hanseníase no Brasil confirmam a intima relação entre
raça, qualidade de vida e saúde. Essa doença, adquirida em locais com condições precárias de
higiene, fez entre os negros dois terços dos 31.064 casos registrados5. A vulnerabilidade
social, de fato, parece ser uma característica que acompanha a cor da pele.
Nos Estados Unidos da América a situação é semelhante. De acordo com Camara Phyllis, ex-
presidente da Associação Americana de Saúde Pública (APHA), o “racismo é um sistema de
estruturação de oportunidades e atribuição de valor com base na interpretação social de
como se parece. Isso prejudica injustamente alguns indivíduos e comunidades, beneficia
injustamente outros indivíduos e comunidades e esgota a força de toda a sociedade através
do desperdício de recursos humanos” 6, explica.
Ou seja, diferente do que é sugerido pelos eugenistas, as diferenças entre brancos e negros,
bem como as demais etnias, não podem ser explicadas através de conclusões científicas
evolucionistas temerárias. Para isso, entender as dinâmicas sociais que influenciaram a
formação da nossa sociedade é algo determinante.
As raízes dos conflitos étnicos, arraigadas na humanidade desde os primórdios, podem trazer
respostas. Para o economista norte-americano Thomas Sowell, a disposição para a hostilidade
é amplificada quando entram em cena as diferenças. No livro “Discriminação e disparidades”
(Record, 2019), Sowell observa que “muitas evidências empíricas sugerem que os seres
humanos não interagem aleatoriamente – nem tão frequentemente ou intensamente – com
todos os outros seres humanos, mas sim como subconjuntos selecionados de pessoas
parecidas com ele mesmos”7. Desigualdades arraigadas em uma sociedade podem ser
resultado de acirramentos anteriores.
3 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pop_negra/pdf/folder_politica.pdf
4 http://blog.saude.mg.gov.br/2017/03/21/sus-voce-conhece-a-politica-nacional-de-saude-integral-da-
populacao-negra/
5 http://atarde.uol.com.br/saude/noticias/1936948-negros-sao-mais-suscetiveis-a-evitaveis-no-brasil
6 https://www.revistavidaesaude.com.br/racismo-e-uma-questao-de-saude-publica/
7 SOWELL, Thomas. Discriminação e Disparidades, p. 65. Editora Record, 2019.
Considerando o passado da escravidão, comum a todas as grandes civilizações da história,
muitas pessoas se inquietam quando ao destaque dado aos negros nesse assunto. Eles
argumentam que os negros não foram os únicos submetidos ao cativeiro. Por isso, põem em
dúvida a autenticidade dos efeitos deletérios e duradouros da escravidão na trajetória deles.
A origem da expressão escravos, que deriva da palavra eslavos, fortalece essa opinião. Os
eslavos eram habitantes do Leste Europeu e sul da Rússia que com sua pele branca, cabelos
loiros e olhos azuis fogem aos nossos padrões históricos de pessoas submetidas a trabalhos
forçados, tráfico e tortura, mas foram cativos eles foram feitos cativos por muçulmanos e
enviados para o Oriente Médio e Mediterrâneo durante o século XVIII.
Uma resposta a essa corrente de pensamento pode ser encontrada na pesquisa mais recente
do jornalista Laurentino Gomes, especializado em história do Brasil. Em seu mais novo livro,
“Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares"
(Globo Livros, 2019), Gomes se propõe a promover a trazer dados que possam trazer luz ao
período da escravidão no Brasil. Baseado em fontes primárias, a obra foge ao acirramento e
paixões ideológicas tão comuns ao tema.
Gomes entende que há razões suficientes para considerar a escravidão nas Américas,
patrocinada pelos europeus contra africanos, a modalidades mais grave quando comparada
às demais formas de servidão registradas. “Nada foi tão volumoso, organizado, sistemático e
prolongado quanto o tráfico negreiro para o Novo Mundo: durou três séculos e meio,
promoveu a imigração forçada de milhões de seres humanos, envolveu dois oceanos
(Atlântico e Índico), quatro continentes (Europa, África, América e Ásia) e quase odos os
países da Europa e reinos africano, além de árabes e indianos que dele participavam
indiretamente. Além disso, redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes
originais, os indígenas, foram dizimados e substituídos por negros escravizados”8.
HOSTILIDADE RACIAL
Dois outros critérios servem confirmar avaliação do jornalista acerca da gravidade da
escravidão em nossa história: o número de pessoas feitas cativas e o tempo e que essa
atividade foi realizada. “O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental
por quase três séculos e meio. Recebeu, sozinho, quase 5 milhões de africanos cativos, 40%
do total de 12,5 milhões embarcados para a América. Como resultado, é atualmente o
segundo país de maior proporção negra ou de origem africana do mundo” 9, explica Gomes.
Cabe ainda destacar que o Brasil foi a nação que por mais tempo beneficiou-se do tráfico
negreiro e foi o último país a abolir oficialmente, em 1888, a escravidão no continente.
Ainda segundo Gomes, uma característica que diferencia a escravidão na América “de todas
as demais formas anteriores de cativeiro é o nascimento de uma ideologia racista, que passou
a associar a cor da pele à condição de escravo. Segundo esse sistema de ideias, usado como
8 GOMES, Laurentino. Escravidão: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos
Palmares, p. 26. Globo Livros, 2019.
9 Ibidem, p. 24
justificativa para o comércio e a exploração do trabalho cativo africano, o negro seria
naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal,
promíscuo”, tendo vocação natural para “o cativeiro, onde viveria sob a tutela de brancos” 10,
comenta o jornalista.
CRISTIANISMO E ESCRAVIDÃO
As ideias de supremacia racial se manifestaram de diversas maneiras na história, deixamos
marcas que se manifestaram pelas mais diversas áreas da sociedade, como a política e ciência.
O que surpreende é que a religião não ficou de fora. A participação do cristianismo foi
decisiva, tanto para a manutenção do sistema escravocrata quanto para a sua derrocada.
No Brasil, o catolicismo serviu de verniz para manter os interesses de traficantes e donos de
escravos. A Igreja Católica, aliás, não só sustentou a escravatura dela se serviu: “Quase todos
os bispos, padres, Ordens religiosas e conventos católicos no Brasil, em Angola e outra regiões
da África e da América possuíam escravos, inclusive os franciscanos, que faziam votos de
pobreza absoluta e, por isso, eram também chamados de frades mendicantes. No começo do
século XIX, Ordem dos Beneditinos tinha mais de mil cativos trabalhando em suas fazendas
no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Maranhão, os frades do Cargo e os da Mercês possuíam
escravos até março de 1887, ou seja, catorze meses antes da assinatura da Lei Áurea. Nos
conventos das Ordens femininas – caso das Clarissas, Ursulinas, Confeccionistas e Carmelitas
Descalças -, todos os serviços eram prestados por cativos. O bispo do Congo e Angola recebia
um ordenado de 600 mil réis por ano da Coroa portuguesa, que era pago com direitos de
exportação de escravos. O colégio jesuíta de Luanda enviava regularmente cargas de
africanos para os colégios de Salvador e Olinda, que, por sua vez, os revendia para os senhores
de engenho do Recôncavo Baiano e da Zona da Mata pernambucana. De Cabo Verde, no
começo do século XVII, os jesuítas também vendiam escravos para Cartagena das Índias -
onde, ironicamente, os cativos, ao chegar, eram socorridos e tratados pelo também jesuíta
Pedro Claver. Era um negócio particularmente lucrativo porque a Igreja estava isenta pela
Coroa Portuguesa de pagar impostos e taxas alfandegárias no tráfico negreiro”11.
A fé cristã, entretanto, não é apenas vilã. Pelo contrário, foram movimentos inspirados nela
que arquitetaram a abolição da escravatura, começando pelos originados na Inglaterra. Lá,
metodistas e quakers foram responsáveis por ações organizadas que, aos poucos, erodiram a
escravidão no país. Os abolicionistas ingleses agiam principalmente através de influência
política no legislativo e produção de obras para influenciar a opinião pública. 12
Dentre os nomes que tiveram destaque está John Wesley (1703-1791). Médico por formação,
Wesley acabou devotando a vida à religião. Tendo sido missionário, conheceu de perto os
efeitos deletérios da escravidão nos Estados Unidos da América (EUA) e pregou a cativos em
suas viagens. No seu pensamento, sua pregação deveria não somente apresentar a libertação
10 Ibidem, p. 73
11 Ibidem, p. 337.
12 RENDERS, Helmut. John Wesley e a luta abolicionista, p. 39. ASTE, 2019.
do pecado, mas também dos efeitos dele no mundo, como a escravidão. Com visão de mundo
calibrada por teologia, Wesley integrou fé e cidadania. Comentando o Novo Testamento,
disse: “O pior de todos os ladrões, em comparação com quais os assaltantes nas rodovias ou
ladrões que invadem as casas devem ser considerados inocente! O que, então, são a maioria
dos comerciantes de negros, os procuradores de servos para a América”13.
Em oposição a contemporâneos como George Whitefield (1714-1770), que entendiam os
interesses econômicos como superiores a liberdade dos negros dizendo que “países quentes
não poderiam ser cultivados sem negros” 14 Wesley aliado ao político William Wilberforce
(1759-1833) e o ex-traficante de escravos John Newton (1725-1807) apresentaram
argumentos que tornavam inegociável a liberdade e dignidade humana. Justiça e misericórdia
eram ênfases em seus escritos.
Na obra "Pensamentos sobre a escravidão” (1774), Wesley desabafa: "A cada angolano são
concedidos os mesmos direitos naturais de um inglês, mas sobre qual direito o inglês se dá
um valor superior? Oh, onde está a justiça quando se tira a vida de pessoas inocentes e
inofensivas? Milhares são assassinados em suas terras pelas mãos dos próprios conterrâneos.
Muitos milhares, ano após ano, a bordo de navios, são jogados como estrume ao mar! E
centenas de milhares postos nessa atroz escravidão à qual eles são injustamente
reduzidos!”15.
No mesmo livro, amplamente distribuído há época, disse: “Dê liberdade a quem deves
liberdade, isso é, a todas as pessoas humanas, a todo aquele que toma parte na natureza
humana. Não permitas que ninguém te sirva a não ser como seu próprio trabalho, por sua
própria escolha voluntária. Lança fora os chicotes, todas as correntes, toda compulsão! Sê
gentil. Assegura que tu faças para todos aquilo que queres que façam a ti mesmo” 16, apelou
Wesley.
Nos EUA, outras vozes ecoavam em favor da causa da abolição, também associadas ao
cristianismo. No início do século XIX, o millerismo despontava como um dos maiores
movimentos religiosos da América. Eles se destacavam pela pregação da iminente volta de
Jesus, mas para muitos, o millerismo era ouvido como sinônimo de antiescravagismo.
George R. Knight, historiador adventista, relata que emissários desse grupo eram mal
recebido no sul dos USA: “Talvez a principal razão pela qual o milerismo tenha alcançado
poucos adeptos no sul seja sua liderança fortemente abolicionista"17. No mesmo sentido, o
também historiador Richard W. Schwarz afirma que "as convicções abolicionistas da maioria
da maioria dos conferencistas mileritas os tornavam personae non grata [pessoas não bem-
vindas ou aceitáveis] no sul”18.
13 John Wesley, citado em John Wesley e a luta abolicionista, p. 39. ASTE, 2019.
14 George Whiterfield citado em BANZOLI, Lucas. A Bíblia e a Escravidão, p. 158. Clube dos Autores, 2015.
15 John Wesley, citado em John Wesley e a luta abolicionista, p. 127. ASTE, 2019.
16 Ibidem, p. 155.
17 Ibidem, p. 123.
18 Portadores de Luz, p. 52. Unaspress, 2016.
Joshua V. Himes foi um dos líderes do movimento. George R. Knight, historiador do
movimento adventista, relata no livro “Adventismo” (Casa Publicadora Brasileira, 2015) que
“Himes não somente participou na fundação da Sociedade Antiescravista de Massachusetts,
como também teve importância para a Sociedade Antiescravista da Nova Inglaterra, segundo
Garrison. Além. disso, sua esposa era membro da Sociedade Feminina Antiescravista de
Boston, sendo uma de suas diretoras). Como ativista incessante, Himes não ficou à margem
das lutas de seu tempo”19. Assim como Wesley, Himes negou a donos de escravos a
possibilidade de integrarem sua igreja e instituições interdenominacionais justificando a
postura "com base no argumento de que eles corromperiam a organização” 20.
Nesse contexto de hostilidade, Joseph Bates (1792-1872), que viria a ser o primeiro
presidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia, enfrentou problemas. Em uma ocasião foi
interrogado por um juiz sob a acusação de ele "tinha vindo para levar nossos escravos"21.
Ellen G. White, figura proeminente no movimento adventista, também era comprometida
com a causa da liberdade dos negros, mas adotou uma postura menos militante. Em um
primeiro momento, ela entendia que o envolvimento com a causa poderia prejudicar avanço
da pregação22. Entretanto, não deixou de dar declarações contundentes, como no registro de
1991 a seguir: "Sei que o que vou falar agora me trará conflitos. Quisera não tê-los, pois já
bastam os conflitos que parecem perdurar nos últimos anos; mas não é minha intenção viver
como uma covarde nem morrer como uma covarde, deixando minha obra por fazer. É meu
dever seguir os passos do Mestre. [...] O Deus do branco é o Deus do negro, e o Senhor afirma
que Seu amor para com os mais pequeninos de Seus filhos supera o amor de uma mãe pelo
seu filho querido. [...] Ele ama a todos, e não faz diferença alguma entre brancos e negros, a
não ser no que diz respeito à piedade terna e especial que tem por aqueles que sã chamados
a suportar um fardo mais pesado que outros. [...] O nome do negro está escrito no livro da
vida ao lado do nome do branco. Todos são um em Cristo. Nem nascimento, nem posição,
nacionalidade nem cor podem elevar ou degradar as pessoas”23.
24 Martin Luther King Jr. Citado por John Piper em O Racismo, a Cruz e o Cristão, p. 27. Publicações Vida Nova,
2012.
25 GOMES, Laurentino. Escravidão: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos