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Aporte para
uma Hermenêutica em
Psicologia Escolar
Contribution for hermeneutic
in the school psychology

Elbio Nelson
Cardoso Guardia

Universidade da
República Oriental do
Uruguai
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (2), 304-319


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PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (2), 304-319

Resumo: Este artigo busca colocar em pauta para debate o valor metodológico
que pode ter a hermenêutica, enquanto instrumento epistemológico, quando
aplicada à área de Psicologia escolar e a utilidade da técnica de observação
participante no contexto de uma metodologia qualitativa de pesquisa, realizada
na escola pública. Para a análise das informações contidas no diário de campo
e nas entrevistas, utilizamos a análise de conteúdo para lograr uma leitura
que venha a realçar o aspecto multidimensional das dificuldades de
aprendizagem, as características da comunicação e dos comportamentos dos
alunos, professoras, psicólogas e do próprio pesquisador. Na fase de
interpretação das categorias, procura-se captar o sentido da experiência do
encontro com o outro e a atuação do psicólogo no campo da saúde coletiva,
utilizando como base a compreensão existencial.
Palavras-chave: Psicologia escolar, acompanhamento in situ, empatia.

Abstract: This article tries to bring out for debate the methodological value
that hermeneutic can have as an epistemological instrument when applied in
the area of school Psychology and the usefulness of the participant observation
technique in the context of a qualitative methodology of research accomplished
in the public school. For the analysis of the information contained in the daily
report book and in the interviews, it was used the content analysis to achieve
a sight that comes to enhance the multidimensional aspect of the learning
difficulties, the characteristics of the communication and of the students,
teachers, psychologists and the own researchers behavior. In the stage of the
categories interpretation, it tries to bring up the sense of experience from the
contact with others and the psychologist’s performance in the collective health
field, using the existential understanding as base.
Key words: school Psychology, participant observation, hermeneutic.

De modo geral, no Brasil, o psicólogo, quando escolas especiais e às professoras de Educação


trabalha na escola oficial, defronta-se com os Especial, encarregadas das salas de integração
problemas acarretados pelo fracasso escolar e recursos (SIR), destinadas a facilitar a
e o mal-estar deles decorrentes, que atingem integração, nas escolas regulares, dos alunos
as famílias e os professores em sala de aula. com necessidades educativas especiais e com
Diante de tal situação, sem muitas opções, dificuldades de aprendizagem.
esse profissional é levado, pela tradição, a
adotar um enfoque institucional no manejo e Qual a eficácia dessas
na compreensão das dificuldades de abordagens?
aprendizagem, limitando-se a assessorar os
professores com uma escuta psicanalítica, Sabe-se que, em se tratando de alunos de
encaminhando os alunos “atípicos” para periferia, nenhuma dessas medidas têm
psicoterapia com psicólogos credenciados ou eficácia comprovada.
atuantes em postos de saúde, ou para
atendimento psicopedagógico clínico. Nas Problema de pesquisa
escolas municipais de Porto Alegre, em
particular, o trabalho do psicólogo está É possível falar em atendimento psicológico
praticamente circunscrito à supervisão de adequado para alunos que, por um motivo ou
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outro, sofrem o fracasso escolar crônico na que têm provocado o surgimento espontâneo
escola pública que adota uma abordagem ou calculado de práticas sociais e de construtos
institucional, conforme evidenciado na Rede ideológicos, revestidos de “jogos de verdade”,
Municipal de Educação em Porto Alegre? de desvelos fraternais ou de franca hipocrisia
em áreas da educação e da saúde individual e
Em contraponto a essa problemática, primeiro coletiva. Na verdade, no cerne dessas
buscamos, pela hermenêutica, contextualizar o questões, há uma compreensão ufana, que
problema de pesquisa e, numa segunda instância, instrumenta ações, remédios preventivos e
descobrirmos possibilidades heurísticas a partir curativos para os problemas das crianças
da experimentação de campo, embasada no pobres em fase de escolarização. Essa soberba
marco conceitual da saúde coletiva. Com efeito, ocorre, sempre, no campo da ciência das
esta investigação advém da possibilidade que sociedades modernas por estarem estas
brinda a hermenêutica, na sua acepção ligadas, direta ou indiretamente, ao poder
moderna, entendida como um processo dialético disciplinar (Foucault, 1981; 1999).
entre a compreensão e a interpretação, e do
qual emerge um sentido, necessariamente, Nesse contexto epistemológico, os problemas
inserido em um contexto histórico social, e de que interrogamos, em relação aos alunos de
saúde coletiva, por permitir manejar o conceito periferia que freqüentam a escola pública em
de campo e de valor social e existencial quando nosso país, originam-se no Brasil Colônia. A
nos referimos à categoria doença e saúde. Ambas diferença de posição social entre o branco
permitiram-nos conduzir uma forma de produção colonizador europeu e a população nativa,
de conhecimento desvinculada da praxe usual, negra e mestiça, assim como a economia,
ligada à escuta e ao enquadramento, baseada na grande propriedade e na mão-de-
recomendado pela intervenção em Psicologia obra escrava, sob o domínio do poder da
clínica, em Psicopedagogia, em Pedagogia e em família patriarcal, criavam, mediante a obra dos
Psicologia escolar, na sua vertente tecnicista ou jesuítas, condições favoráveis para a
institucional. importação das idéias dominantes da cultura
medieval européia e de um modelo de ensino
Contextualização do problema escolástico, acadêmico e aristocrático,
de pesquisa destinado às classes sociais dominantes
(Romanelli, 2001), e sobre a qual se formaria
O campo epistemológico que investigamos o sistema educativo brasileiro.
está vinculado à história da formação de
determinadas práticas sociais e construtos O processo de exclusão de certas camadas da
teóricos, que têm influenciado, direta ou sociedade vai complementar-se, no final do
indiretamente, a configuração de uma século XVIII e início do século XIX, com um
formação universitária incompleta em fenômeno chamado por Foucault (1999) de
Psicologia escolar e no magistério e, “ortopedia social” em razão da utilização
conseqüentemente, a atuação do psicólogo discriminada de métodos corretivos
e do professor em nosso meio, distante da disciplinares, de vigilância e controle, e por
realidade dos alunos de periferia considerados ser uma época em que o controle social dos
“diferentes”. Trata-se de estratégias míticas ou indivíduos se aperfeiçoa por meio de uma série
concretas, postas em prática pela Tradição, de instituições pedagógicas, médicas,
pela Política, pela Medicina, pela Educação e psicológicas, psiquiátricas e policiais, tendo
pela Psicologia para alcançar, em cada época, como objeto de atenção, principalmente, as
perfis de homem, assim como do itinerário crianças durante a primeira infância (Enguita,
de determinadas contingências sociohistóricas 1989), mas que se estenderá, também, aos

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loucos, aos pobres e às prostitutas. No campo econômicas porque ineptos para acomodar-
da Educação, deslocou-se o interesse religioso se à demanda da nova ordem capitalista e
para a disciplina material e para a organização competir com a mão-de-obra dos imigrantes
meticulosa da experiência escolar. Aspectos europeus, trazidos, especialmente, pelos
da disciplina monástica passaram a ser portugueses para explorar a agricultura e
aplicados, no decorrer do século XVIII, nas trabalhar na incipiente indústria de manufatura.
escolas, fábricas e quartéis, configurando uma Passaram a ser considerados “gentalha”, “ralé”
nova “microfísica do poder” mediante um que ameaçava os centros urbanos. O Hospício
investimento político, cada vez maior, na São Pedro, em Porto Alegre, desde 1984, tem
importância dos arranjos disciplinares, desde cumprido seu papel sob o olhar da Medicina
os mais sutis até dispositivos de inspeção, que Social, e foi de seu feitio absorver os
centram sua atenção em minúcias e detalhes “excluídos” da nova ordem capitalista; esse
manicômio conheceu todos os tratamentos
aparentemente inofensivos, mas que resultarão
possíveis para a loucura: exclusão do convívio
no quadro específico da escola elementar, pela
social, tratamento moral, colônia agrícola,
ordenação dos alunos por fileiras, em sala de
sangria, insulinoterapia, eletrochoque,
aula, nos corredores, nos pátios, nas avaliações
farmacologia, castigos.
dos alunos em relação a cada tarefa, sucessão
de assuntos ensinados, exercícios em ordem
A Medicina escolar (Lima, 1985) brasileira teve,
de dificuldade crescente, entre outros. É nesse
também, participação nesse processo de Um outro aspecto
contexto disciplinar que a criança, o louco, o
normalização e, junto com a Educação, que tem influído na
condenado e o doente serão, a partir do século falta de
construíram estereótipos (Jeca Tatu), traços
XVIII, objeto de descrições individuais e de elucidação do
distintivos característicos de doenças para
relatos biográficos ; cada um receberá a fracasso escolar
identificar a condição de ser brasileiro. Nessa dos alunos de
caracterização de sua própria individualidade, perspectiva, o caboclo, o sertanejo, os grupos periferia e
ligada aos traços, às medidas, aos desvios, às marginalizados da sociedade e o “espírito” do complicado as
notas. intervenções
homem brasileiro, em geral, passaram a ser propostas pela
sinônimos de abandono e doença. área da Psicologia
No Brasil, o nascimento da psiquiatria, durante escolar é a
o século XIX, realiza-se no seio da Medicina ambigüidade com
Um outro aspecto que tem influído na falta
que se maneja o
social, que incorpora a sociedade como objeto de elucidação do fracasso escolar dos alunos termo
de estudo, desenvolvendo instâncias de de periferia e complicado as intervenções “dificuldades de
controle social dos indivíduos e das aprendizagem”.
propostas pela área da Psicologia escolar é a
populações. A psiquiatria terá, como primeiro ambigüidade com que se maneja o termo
alvo de investigação, o louco pobre (os ricos “dificuldades de aprendizagem”. No Brasil,
eram isolados, alimentados e tratados, em primeiramente, foi utilizada a expressão
quartos fechados, em suas próprias casas), distúrbios de aprendizagem para sugerir que
considerado potencialmente perigoso para a havia a existência de uma doença sofrida pelo
moral pública e a segurança, sendo, por esse aluno. Logo, essa expressão passou a ser
motivo, retirado das ruas e levado para o utilizada pelos professores para referir-se ao
Hospital da Santa Casa de Misericórdia, lugar fracasso escolar, no sentido médico, mesmo
para onde iam os “alienados” antes da sem saber os critérios ou o significado
construção do Hospício, por D. Pedro II, em etimológico. Do mesmo modo, utiliza-se, até
1841, no Rio de Janeiro (Machado, 1978). No hoje, o termo hiperativo, dislexia, hipercinético
Rio Grande do Sul, os excluídos foram os para designar problemas de escolarização. Essas
“gaúchos”, mestiços que viviam de “prear” interpretações acabam dando uma origem
gado para as charqueadas. Eles se sentiram, biológica a um problema mal conhecido ou,
de repente, fora das trocas sociais e fundamentalmente, social.
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Posteriormente, os distúrbios de aprendizagem compreender o mal-estar que acomete o


passam a ser chamados de dificuldades de homem inserido na Cultura, por parte do
aprendizagem, mas, para Moysés e Collares psicólogo escolar, transparece na visão
(1992) e Moysés e Lima (1982), continua tecnicista que ele tem do fracasso escolar, na
sendo uma construção do pensamento sua prática compartimentada em relação aos
médico. Ambas as denominações surgiram profissionais da saúde e da educação e na
como entidades nosológicas e persistem, opinião de que as dificuldades de
aprendizagem pertencem ao campo da
assim, como “doenças” neurológicas em razão
Educação Especial e da Psicopedagogia.
do costume de dar novas máscaras a velhas
idéias, por culpa do “raciocínio clínico
Somam-se aos problemas antes mencionados
tradicional” assim como pela facilidade com
muitas contradições e ambigüidades evidentes
que a sociedade brasileira aceita as formas de
nos projetos de intervenção e, mais ainda, os
Essa forma de controle, a medicalização e a patologização desafios para alcançar uma identidade
compreender o das condutas desviantes. profissional por causa de sua incipiente
mal-estar que
acomete o
regulamentação institucional, por ser uma
homem inserido na Esses termos, quando vinculados ao fracasso ciência jovem que pugna por ser sui generis,
Cultura, por parte escolar, permitem que se dêem explicações em nosso meio, praticamente sem nenhuma
do psicólogo as mais variadas, desde fenômenos tradição de pesquisa e fundamentação
escolar,
transparece na macropolíticos até conjeturas, baseadas em epistemológica, e pelo hiato mantido por esse
visão tecnicista critérios “científicos” que responsabilizam o profissional com a realidade social da escola
que ele tem do sujeito que não aprende e na sua condição pública brasileira.
fracasso escolar,
na sua prática de vida precária. Sendo assim, cria-se um
compartimentada universo para o qual conflui uma variedade A pesquisa educacional das dificuldades de
em relação aos desorganizada de teorias e tratamentos, aprendizagem, sob a influência de modelos
profissionais da estrangeiros nos temas de pesquisa, também
saúde e da tornando-se difícil distinguir o que é normal
ou defeito. O mais grave de tudo é que o se imbuiu do olhar tecnocrático que entende
educação e na
opinião de que as o fracasso escolar como um problema pessoal
aluno, facilmente, passa de um estado normal
dificuldades de do aluno e de sua família. As conjeturas de
aprendizagem para o patológico...
alguns pesquisadores (Poppovic, 1968;
pertencem ao
campo da
Bonamigo e Bristoti, 1978; Ramozzi-
O impasse epistemológico, apresentado pelas
Educação Chiarottino, 1982; Montoya,1983) formaram
múltiplas conotações que pode ter a expressão
Especial e da uma representação sobre os problemas
Psicopedagogia. “dificuldades de aprendizagem”, reflete-se,
escolares dos alunos da escola pública que se
também, no âmbito da Psicologia escolar, em refletiram na oscilação dos posicionamentos
particular, na falta de discernimento no campo que se estabelecidos, em distintas épocas,
da saúde coletiva com que o psicólogo tem entre teoria, pesquisa e política educacional,
orientado sua prática profissional em relação no Brasil, e que tiveram influência na criação
à complexidade do tema. Por um lado, o de creches, instituições de ensino pré-primário
profissional da área vê-se impelido a mover- e no modo como o fracasso escolar, nas
se num campo ambíguo, entre uma primeiras séries do ensino fundamental,
defectologia e a normalidade, contando com principalmente das camadas pobres da
poucos recursos porque adquiriu, desde cedo, sociedade, passou a ser visto e tratado de
com a Medicina, a psiquiatria e a psicanálise, maneira espúria por especialistas e professores.
um viés de enquadramento clínico,
esquecendo-se de que a realidade da vida de Experimentação de campo
um sujeito é atravessada não somente pelas
fantasias inconscientes mas também por Foi necessário sentirmo-nos menos ingênuos
fatores sociohistóricos. Essa forma de para praticar o “amor facti” de que fala Nietzche:

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o acolhimento do inesperado, escutando outras possível, por serem esses elementos


vozes apenas ouvidas e permanecendo abertos constitutivos do universo imediato do aluno.
para o outro, que vem ao nosso encontro e
nos desaloja da indiferença, com a consciência Campo de ação
inquieta pela urgência de trabalhar para que
surjam novas perspectivas à opinião arraigada O trabalho de campo foi realizado em uma
de que as dificuldades dos alunos são, escola localizada num bairro de periferia, do
irremediavelmente, formações inconscientes ou Município de Porto Alegre, no período de
de funcionamento deficitário, relacionados à março a dezembro de 1999. É uma escola de
pobreza econômica e cultural ou à ideologia ensino fundamental que, à época da realização
do sistema capitalista. Implicou, vamos dizer, da pesquisa, adotava a seriação como modelo
contestar a prática comum de que esse aluno curricular. Posteriormente, passou a adotar o
deve ser encaminhado e tratado no consultório modelo de ciclos e de salas de progressão,
ou em escolas especiais, porque vamos proposto pelo projeto Escola Cidadã .
progredir muito pouco como psicólogos
enquanto o nosso labor permanecer À época do trabalho de campo, a escola se
compartimentado. encontrava em fase de preparação para a
implantação desse modelo escolar. Dentro
Para descobrir o sentido do mundo da escola e dessa escola, o pesquisador efetuou o trabalho
de seus alunos com dificuldades de de campo em diversos ambientes: sala de aula,
aprendizagem no seu todo, buscamos pátio, biblioteca e Sala de Integração e
apreender a condição fática dos participantes Recursos (SIR).
da pesquisa sem separarmo-nos da trama de
conceitos e das relações de poder que Participantes da pesquisa
conformam o contexto histórico-social e, para
isso, realizamos uma experimentação de campo Os alunos tinham idades entre dez (10) e
que segue o paradigma de pesquisa naturalística quatorze (14) anos, e tinham sido colocados
ou construtivista. Tal paradigma define uma na mesma sala, junto a outros alunos,
lógica a ser acionada pelo pesquisador que formando uma classe com vinte e cinco (25)
permite a utilização de uma metodologia estudantes de segunda série do ensino
qualitativa de pesquisa de natureza etnográfica, fundamental. Os cinco (5) alunos pesquisados
visando à descrição, compreensão e (uma aluna constituía exceção, pois recaia
interpretação do significado das dificuldades sobre ela suspeita de síndrome de Down),
primárias de aprendizagem para o aprendizado eram multirrepetentes, e esse fracasso escolar
escolar no contexto da escola pública. Busca- foi vinculado às dificuldades primárias de
se o conhecimento mediante a participação do aprendizagem, isto é, às dificuldades de
pesquisador num movimento dialético de aprendizagem não relacionadas a distúrbios
engajamento sensível e intuitivo com o mundo neurológicos ou a deficiências sensoriais
vivido pelos sujeitos da pesquisa. Nesse sentido, evidentes. Esses alunos, mesmo tendo
fomos, além da relação com os alunos, trabalhar dificuldades de leitura, de escuta, disortografia
com a professora de sala de aula e a da Sala de ou discalculia, não poderiam ser incluídos nos
Integração e Recursos (SIR) na escola quadros que compõem os “distúrbios de
pesquisada e com a família dos alunos, quando aprendizagem secundários” (Fonseca, 1995),
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como deficiências sensoriais, motoras ou de modo de apreender, em profundidade, as


comunicação. experiências e vivências dos agentes sociais
que constroem o cotidiano escolar.
Coleta de informações e instrumentos
É necessário dizer, também, que a
As informações coletadas foram de diversas hermenêutica adquire, para nós, um valor
fontes: consulta de fichas escolares; relatos metodológico-fenomenológico em relação aos
verbais; diário de campo e entrevistas gravadas, objetivos seguintes: 1.Descrever, no ambiente
elaboradas, seguindo a técnica de perguntas da escola pública em Porto Alegre, momentos
orientadas, com a orientadora educacional e da dinâmica interativa do cotidiano escolar dos
as professoras de educação especial (SIR) e alunos com dificuldades primárias de
com as psicólogas que assessoram a escola aprendizagem; 2. Compreender a dinâmica de
pesquisada, lotadas na Secretaria Municipal de interação dos participantes da pesquisa e das
Educação, em Porto Alegre. professoras em situação sociopedagógica; 3.
Interpretar, com base na hermenêutica-
Tratamento do Material existencial, a situação dos alunos com
dificuldades primárias de aprendizagem.
Para o tratamento das informações, seguimos
as fases propostas pela análise de conteúdo Esse olhar multidimensional pela
para a análise temática (Bardin, 1977): usamos hermenêutica, como modo de investigação e
um processo de indução para dar significação reflexão, impôs-se-nos como uma necessidade
e categorizar os dados coletados por meio da para poder problematizar o labor do psicólogo
observação participante, registrados no diário na escola pública e vir a compreender sua
de campo e nas entrevistas gravadas com atuação no campo da saúde coletiva. O campo
professoras e psicólogas. Esse modo coletivo, atualmente, investiga o fenômeno
abrangente e multidimensional de focar o saúde-doença não somente apoiando-se em
tema, mediante trabalho participativo em uma epistemologia científica mas também, em
campo, é diferente da técnica conhecida como uma filosofia que sirva de substrato comum
“análise da interação”, aproximando-se mais para apreender o homem como ser existente,
da técnica utilizada pelo método etnográfico que se realiza na existência, seja na doença,
descrito por Malinowski (1984), que se imbui no sofrimento de uma perda ou no mal-estar
de uma visão “antropológica” e valoriza o causado por sua condição de exclusão social.
processo de inferência, decorrente do uso de Buscamos, enfim, compreender os
indicadores qualitativos, constituídos com base participantes da pesquisa como “seres-no-
na observação participante. Essa metodologia mundo”, como Dasein, e, a partir de um lugar
possibilitou, dessa maneira, descobrir a escola hermenêutico e por meio de instrumentos
e a sala de aula como um lugar socialmente teóricos e práticos, buscamos investigar e
estruturado mediante várias redes de aproximar-nos da escola e desse pequeno
significação. A forma de coletar os achados e mundo que constitui a sala de aula, onde o
de construir o conhecimento científico por aluno e o professor existem de determinada
meio da relação de proximidade com os maneira que se destaca como um espaço
participantes de pesquisa caracteriza-se como relacional diferente de qualquer outro
um estudo de caso dessa investigação, pelo enquadramento.
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Tabela 1 - Interpretação e discussão das categorias

Unidades de significação Categorias

Abordagem institucional das dificuldades de aprendizagem;


Visão tecnicista do fracasso escolar;

Ideogênica
Atuação dos profissionais de saúde e da educação vista de maneira
compartimentalizada;
As dificuldades de aprendizagem pertencem ao campo da Educação Especial
e da Psicopedagogia;

Inibição dos movimentos;


Baixa auto-estima dos alunos;
Simulação e silêncio por parte dos alunos inibidos;

Inibição
Ausência de demanda de ajuda;
Angústia;
Mecanismo de defesa fóbico por parte dos alunos;
Perturbação da comunicação entre as professoras e os alunos inibidos;

Compreensão mais apurada dos problemas dos alunos;


Demanda de ajuda por parte dos alunos pesquisados;
Disposição para ajudar por parte das professoras;
Atribuição de um sentido diferente às relações interpessoais
Empatia

e à aprendizagem escolar;
Desinibição dos alunos em sala de aula;
Comunicação;
Mudanças na expressão gráfica e plástica dos alunos na SIR.

Classificação e construção de intervir sobre as dificuldades de aprendizagem


categoria e dos problemas emocionais decorrentes que
afetam as crianças de periferia, famílias e
A categoria “ideogênese” diz respeito à professoras.
situação “marginal” dos alunos de periferia, à
escola pública e ao tema das dificuldades de Na verdade, o que pretendemos, ao
aprendizagem. O modo característico de acompanhar a criança na escola, é atuar
laborar dos psicólogos vinculados à escola modificando o instituído, buscando a dimensão
pública brasileira é objeto de crítica por parte coletiva em Psicologia escolar, que vai realizar-
de diversos estudiosos. Uma das coisas se na medida em que diminuímos a distância
assinaladas é o franco distanciamento desses com o aluno. Essa questão, também, foi
profissionais da realidade escolar por causa da dirigida ao psiquiatra quando este procurou um
maneira tecnocrática de compreender e modo alternativo de terapêutica a fim de lograr
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o estabelecimento de serviços comunitários comportamentos chamados desviantes,


de saúde mental. Ele teve que sair ao encontro bastaria reparar em certas pessoas que não
da comunidade e comprometer-se, entram em consonância com o mundo dos
ideologicamente, com a realidade social; foi- adequados, adaptados, produtivos; assim,
lhe preciso assimilar os conhecimentos de estabelece-se o conflito entre o mundo de uma
outras disciplinas das ciências humanas, como criatura meio dispersa, que não consegue inserir
a Antropologia Cultural, Sociologia, Psicologia, sua produção no contexto da produção
psicanálise, Filosofia da prática. Na medida dominante.
em que isso ocorria, o psiquiatra foi perdendo
os preconceitos de classe e de raça (Busnello, Se, no caso, o trabalho de quem presta ajuda
1975). aos alunos com “problemas escolares” partisse
da premissa do conflito entre mundos, a
O mesmo pode-se dizer da Psicologia em compreensão que ele vai ter sobre as
comunidade, pelo menos do ímpeto que dificuldades de aprendizagem ou da
animou o psicólogo desde meados da década enfermidade mental, por exemplo, vai ser
de 60, quando esse profissional passa a atuar diferente. Nessa perspectiva de análise, pode-
mais próximo às comunidades. se dizer que o psicólogo escolar seria um
Se, no caso, o
profissional de referência que cria vínculo
trabalho de quem
presta ajuda aos No campo da saúde coletiva, poder-se-ia terapêutico situacional (Campos, 1999). Assim
alunos com
considerar a atuação do psicólogo como agente sendo, a intervenção psicológica afunila-se
“problemas
escolares” partisse de saúde, promovendo a saúde, sobre um tipo de atuação vigente na
da premissa do
conflito entre
desvencilhado do modelo subjetivista- infraestrutura que tece o cotidiano da vida
mundos, a individualista e do modo de conceber a escolar, incidindo no mecanismo básico que
compreensão que
ele vai ter sobre as subjetividade à margem das condições opera, não deixando abandonadas à própria
dificuldades de concretas de vida. Baremblitt (1991), ao sorte as crianças com dificuldades.
aprendizagem ou
da enfermidade referir-se ao trabalho do acompanhante
mental, por terapêutico, diz que o essencial é o encontro Esse tipo de acompanhamento direciona o
exemplo, vai ser
diferente. com as pessoas; temos que abdicar da olhar para a situação atual da criança, modifica
necessidade de recorrer ao artifício de ocupar os vínculos desde o momento em que um
“o lugar do morto” (refere-se ao silêncio novo saber emerge como estratégia de
mantido pelo analista), recusando, sempre, a entendimento, como prática e como
demanda do outro para mostrar-lhe que a falta acontecimento intersubjetivo, o que tornaria
do ser existe. Devemos, enfim, deixar de o fazer do psicólogo diferenciado dos outros
pensar que nosso ego é feito apenas de profissionais que também estão envolvidos na
palavras e de imagem especular. promoção da saúde dentro da escola: a
compreensão e o esclarecimento da situação,
Esse autor referido propõe a compreensão do no momento mesmo em que ocorre o
sofrimento humano com base no conceito ser processo de “enfermar” e de excluir a criança
no mundo como significado de um sujeito que do ensino escolarizado. Esse é um fato que
produz mundos. Para entendermos porque se ocorrerá não porque os professores se sintam
geram marcas e estigmas que produzem os “vigiados”, mas, fundamentalmente, porque

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não se encontram mais sozinhos: o sentimento intervenções do pesquisador, que se realizam


altruísta de ajuda se incorpora, novamente, à de forma conjunta com as professoras no
prática de ensinar. contexto da escola pública.

Trabalhando não somente como assessor, que, Foi a nossa preocupação com a existência
sem dúvida, é uma parte importante do “abandonada” do aluno que comunicamos às
trabalho do psicólogo escolar, mas interagindo professoras, no início da pesquisa, como
com as crianças e o professor, comunicando- intenção deste estudo; por isso, o diálogo com
se, diretamente, com a família e outros as professoras revestiu-se de nuances
técnicos, introduz-se uma nova dinâmica na particulares. Sabíamos, pela experiência, que
própria estrutura de base (escola) do sistema, a nossa atuação na escola somente viria ser
onde, na realidade, joga-se com as coisas plenamente aceita no momento em que
imaginadas e idealizadas por quem planifica a pudéssemos convencê-las de que não teríamos
educação. Atuando indiretamente sobre a como objetivo interferir no seu trabalho, avaliar
epistemologia estancada na especialidade o método pedagógico ou o conteúdo das
tecnocrática, determinante de funções e matérias, mas, sim, buscar formas de poder
normas que prescrevem os limites do que ajudar aos alunos que supuséssemos ter uma
deve ser feito individualmente, de acordo com defasagem entre o rendimento atual e o
certo ordenamento e estatuto atribuído ao potencial de aprendizagem, pois esse bloqueio
professor, reeducador, psicopedagogo, os faz sentirem-se fracassados na
psicólogo, orientador educacional e outros, aprendizagem e nas relações interpessoais,
surge a oportunidade de introduzir um afetando a intimidade e a representação social
operador de mudança mediante uma forma que eles têm de si mesmos.
de agir concreta e interativa que mobiliza,
radicalmente, a comunicação como veículo de A “inibição” (Categoria) fora abordada por
mudança de perspectiva em relação aos Freud (1968) em 1925, no texto “Inibição,
alunos. Sintoma e Angústia”; é descrita como uma
restrição funcional do ego, uma limitação,
O conceito de propedêutica, nesse contexto exclusivamente, em nível do ego, que podia
educativo, enfatiza a atuação em seu valor obedecer a distintas causas, mas não
como acompanhamento empático, adaptado significaria, necessariamente, algo patológico,
à realidade escolar. Essa atuação tem função salvo se a inibição fosse parte da formação de
de dispositivo facilitador da abordagem um sintoma. Nesse último caso, como os
pedagógica dos problemas escolares que sintomas são processos que não ocorrem no
afetam, no caso, estudantes das camadas ego, renunciar à aprendizagem escolar seria
pobres da população. Essa propedêutica um meio de evitar a angústia que provém de
caracteriza não só um trabalho sobre o um conflito de outra natureza (edípica,
“problema de aprendizagem”, mas também provavelmente). O mecanismo inconsciente
sobre os problemas emocionais que surgem de deslocamento faria com que as
durante o processo de aprendizado escolar. representações eróticas passassem a estar
O trabalho é conduzido por meio das ligadas às tarefas escolares, estabelecendo-se,
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dessa maneira, a “absurda” relação entre o por si mesmo, a experiência conforme


não aprender e a neurose. Para Freud, a experimentada. O aluno passa a não se
inibição aconteceria em três situações: quando interrogar mais sobre o futuro desejado nem
há uma erotização dos órgãos comprometidos sobre a sua situação atual no mundo, não
em determinada ação, por exemplo, a procura saber qual é a escatologia que funda
inabilidade manual associada à masturbação; seu ser, que se desqualifica como aprendiz.
quando o ego não se permite o êxito ou a
Do ponto de vista existencial, a inibição dos
compulsão ao fracasso, porque o êxito é
participantes da pesquisa pode ser
proibido por um superego tirânico, ou quando
compreendida com base na situação ontológica
o ego está inibido de maneira geral, por estar
do aluno, pois trata-se de existências atadas à
absorvido no labor psíquico do luto, da
angústia que o ato de aprender frustrado
depressão ou da melancolia.
desperta, que se arrasta esvaziando a alegria
do aluno, aula após aula, encontrando como
A extrapolação da questão pedagógica dos
saída para esse drama a impostura de ficar
“problemas de aprendizagem” para o campo
anônimo em classe por ter comprovado sua
clínico da Psicopedagogia está presente nos
eficácia como defesa ideal para continuar
estudos de Pain (1992), sob o tema da reação
pertencendo à escola, mesmo que excluído
neurótica ante a proibição da satisfação
dos olhares de quem (professores e psicólogos)
instintiva; nos trabalhos de Fernández (1991),
deveria estar próximo dele (aluno).
como problema de inibição cognitiva, e nos
escritos de Bleichmar (1994), no domínio da
Pode-se imaginar o que é passar dia após dia
inibição primária não relacionada a um sintoma.
dessa maneira?
Cordié (1996) acrescenta a noção de que a
inibição da aprendizagem pode estar
A forma como era experimentado o tempo e
relacionada à incorporação de um modelo
o espaço de sala de aula, e a distância, imposta
humano como ideal ou com a identificação nas relações interpessoais, lembra-nos “um
com um valor moral, religioso ou outro, que modo existencial anônimo”. No começo do
implicaria renúncia a todos os ideais propostos acompanhamento, os alunos adotavam a
pela sociedade em forma de sucesso e “impostura” como mecanismo de defesa para
felicidade. poder acomodar-se em sala de aula;
permaneciam num silêncio total, quase
Porém, podemos interpretar de outra maneira imóveis em classe, escrevendo e apagando,
a inibição observada nos participantes de reiteradamente, uma palavra ou uma frase
pesquisa. que, às vezes, nada tinha a ver com o tema
proposto pela professora, de modo que, se
Quem sofre o fracasso escolar prolongado se alguém os olhasse à distância, perceberia nada
inibe ao sentir alterada uma parte do campo mais que alunos bem comportados e
significativo da vida (vivência), em razão de empenhados na realização dos trabalhos
que se instala, no horizonte do mundo vivido, escolares. Tratava-se de uma atitude do aluno
o sentimento de impotência e menosprezo relacionada à experiência escolar que refletia
que vem cercear a possibilidade de revelar, como eles se sentiam como alunos,

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diferentemente, por certo, do que a professora postura dinâmica “com efeito” terapêutico,
e eu observávamos no modo como essas porque faz afluírem novos sentidos no cerne
mesmas crianças eram e se sentiam no recreio de uma formação social (escola), uma
ou fora da escola. Tínhamos visto esses alunos escuta e uma ação que se tornam
desfrutar da companhia de amigos, participar significativas quando se ajusta às vicissitudes
das brincadeiras, conversar animadamente... que cada criança apresenta e modifica o que
Dessa forma, não somente a defasagem entre foi imaginado pelo entorno sobre o aluno
o rendimento escolar e o potencial para o “diferente”.
aprendizado caracterizava os participantes de
pesquisa, mas, principalmente, o “intervalo” Por meio dessa estratégia, acreditamos na
Eu–Tu (Buber, 1977) era o que estava transformação que pode ser operada na
comprometido, relacionado à situação dinâmica do dia a dia da escola. Podemos
ontológica da falta de sentido de o sujeito estar definir o efeito que produz no aluno o
na escola. Na inibição predomina a apatia, a encontro com o psicólogo, seguindo a
“insegurança” e o “distanciamento”, bem reflexão de Bollnow (1971), como uma
diferente da dinâmica imposta pelos alunos descoberta que permite ao sujeito vir a ser
com traços psicóticos de personalidade; nestes “ele-mesmo”. Eis que o interagir do
últimos, predomina a euforia e a oposição pesquisador na escola defronta o aluno, de
acirrada à demanda do professor e à do maneira imprevista, com algo diverso daquilo
psicólogo, pois quem detém o “saber” é o que ele (aluno) podia prever e se orientar,
aluno, que organiza a realidade de maneira de acordo com seus mecanismos de defesa,
onipotente a partir de referenciais subjetivos. criados durante sua longa experiência de
Os problemas metapsicológicos não eram fracasso escolar. Assim sendo, o encontro é
simples de entender, porque tudo parecia um acontecimento destacado, que vem
estar aí: a deficiência mental, os distúrbios “sacudir” o aluno e exigir-lhe-á orientar-se
neurológicos, os problemas de aprendizagem, fora da linha de comportamento seguida até
mas estávamos cientes de que não era o então, mas que não lhe diz em que direção
diagnóstico psicológico de uma doença o que ele deve mudar sua atitude na escola.
importava, nem a diferenciação de sintomas
primários ou secundários para elaborar uma
O termo encontro significa, também,
estratégia de intervenção na escola.
compreender e valorizar o aluno. É nesse
aspecto que se deve compreender o
A categoria “empatia” interroga: Como foi a
acompanhamento dos alunos no contexto da
postura do pesquisador, no seu trabalho,
escola. Não se pretende “curar” ou levar,
dentro da escola pública?
efetivamente, o aluno a superar o fracasso

Pelo manejo do instrumento acompanhamento escolar, mas produzir um efeito de


e compreensão empática, visando à verdade encadeamentos e desencadeamentos de
relacional e à emergência da vivência, sentido sobre a vivência da situação atual na
apresenta-se a postura do pesquisador. Tratar- escola, desinibindo, ordenando e
se-ia de uma atuação que não tem espaço ou reconciliando a história do aluno com a
momento único como setting, mas uma história do sujeito-criança.
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Aporte para uma Hermenêutica em Psicologia Escolar

Esses conceitos fenomenológico-existenciais Mais do que tudo, esse procedimento de


influíram para que optássemos pela utilização observação participante consistiu em uma
da técnica de observação participante porque estratégia que trazia implícita a concepção que
ela oportuniza a criação do princípio ético de temos sobre a importância da comunicação
respeito mútuo, que permite, por um lado, a humana para a existência, em sua face de
colaboração dos atores sociais e, por outro, a saúde ou de doença. Fundamentalmente,
possibilidade do o pesquisador devolver a esses investigamos as novas representações que se
atores o que foi percebendo no transcurso do projetaram sobre a existência dos alunos com
processo de investigação. dificuldades primárias de aprendizagem
quando o labor do pesquisador valorizava o

Essa técnica, com o tempo, tomou a forma encontro humano, no próprio contexto da

de um acompanhamento no qual a escola pública, onde se desenvolveu um


Fundamentalmente, trabalho junto às professoras buscando
investigamos as compreensão empática constitui a essência
novas promover a saúde coletiva.
instrumental de uma postura profissional que
representações
que se projetaram pretendia servir como mediador humano
sobre a existência Nessa investigação, buscamos redimensionar
quando a inibição intelectual e o fracasso
dos alunos com os instrumentos de acordo com o contexto
dificuldades escolar caracterizam uma situação do aluno
primárias de em que trabalhamos. A transferência, por
na escola, construída ao longo do tempo. A
aprendizagem exemplo: podemos pensá-la não somente
quando o labor do estratégia de acompanhar o aluno na escola
pesquisador como transferência imaginária, necessária para
valorizava o
exigiu a iniciativa de criar um espaço singular
a dissolução do “enigma” inconsciente de um
encontro humano, de diálogo, que surgiu da paciência em esperar
no próprio passado mítico, que causa a perturbação
contexto da um sinal que veio do aluno ou, por parte da
neurótica, mas podemos limitar-nos a manejar
escola pública, professora e do pesquisador, de tornar
onde se a transferência tal qual ela é entendida por
desenvolveu um determinadas atitudes ou iniciar temas de
Dolto (1989), como uma forma de conduzir o
trabalho junto às conversação. Essas oportunidades são, às
professoras vínculo com o aluno não para provocar a
buscando vezes, muito sutis, e foram surgindo num
rememoração de um passado distante, mas
promover a saúde
momento qualquer do quotidiano escolar, mas
coletiva. para mostrar-lhe o seu modo de
tiveram o peso de realidade psicológica. Esse funcionamento mental e emocional, a maneira
é o fato que inaugura um momento concreto, como ele age em relação à aprendizagem
um momento interpessoal vivido que serviu escolar, a reação que seu comportamento
como ponto de partida para falar ao aluno provoca no professor e nos colegas e as
sobre seu modo de ser, no aqui e agora da conseqüências desses fatos na sua vida escolar.
escola. Nesse aspecto, a sensibilidade Nesse contexto, o que interessa, realmente,
funcionou como um catalisador que vinculou ao pesquisador, é o que se depreende da
as coisas que o aluno disse, criou e manifestou comunicação com a criança, com os
à abertura perceptiva propiciada. Trata-se da professores, no aqui e agora da escola, que se
emergência de percepções que não têm metaboliza como encontro humano,
forma, nem nome, mas que serviram de momento único e não repetível. Eram esses
orientador perceptivo de interpretações instantes de efeito perceptivo e afetivo o que
posteriores. eu comunicava ao aluno, ao professor e aos

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pais dos alunos quando pude conversar com Quando o pesquisador acompanha a criança
eles, e isso veio produzir uma série de na escola, surge a possibilidade in situ de
remanejamentos representacionais que, promover instâncias que levem o aluno a se
talvez, tenham mudado a maneira de pensar perguntar sobre esse outro que se interessa
e as atitudes das pessoas envolvidas com os por ele, dando lugar, dessa maneira, ao
problemas de aprendizagem escolar. deslocamento do sentido dado pelo eu
mediante um mecanismo de inibição; propicia-
O mesmo processo de ajuste ao contexto deve se o surgimento da demanda como pedido
ser feito com o termo interpretação, de ajuda que a criança poderia fazer, no aqui

comumente manejado pelo psicólogo para e no agora da escola.

produzir um efeito significativo sobre a trama


Encontrar uma maneira empática de
das representações do cliente. Dolto (1996),
comunicação foi o nosso objetivo, nascido do
de maneira diferente, concebe a interpretação
encontro humano. Portanto, nessa estratégia
como um ato analítico comum, não como uma
adotada, não se tratou de entender as palavras
intervenção que pontua um momento crucial
ou os sintomas numa relação linear de
nem como uma operação que evidencie uma
significação, porque, no contexto de sala de
construção do paciente depois de uma longa
aula e na escola, em geral, a questão que
elaboração. Essa autora fala de interpretação decide determinadas atitudes é, às vezes,
espontânea para referir-se a uma espécie de alguma coisa que vem da criança: um olhar,
ficção que se estabelece a partir da sensação um gesto, mas que não é, em si, um traço
que o comportamento da criança provoca no visível, porém, desperta em nós um olhar
analista. interno e nos faz sentir o que o outro tem de
mais próprio.
As pontuações que, junto com a professora,
fazíamos ao aluno, por exemplo, não eram Fica claro, para nós, que a práxis de
interpretações que buscavam alcançar o acompanhamento na escola foi centrada no
mecanismo inconsciente que inibe os presente fáctico, na relação atual com a
esquemas de ação e a inteligência do aluno, criança, de modo que o que valeu, realmente,
ou relacionado ao desvelamento do lugar que foi o vínculo dinâmico presente com o
pesquisador, com as professoras e com os
ocupa a ignorância no núcleo familiar, às vezes
colegas. Esse modo de trabalhar na escola
responsável pelas dificuldades de
permitiu atuar no momento mesmo em que
aprendizagem. A “ficção”, se assim se pode
ocorreram as dificuldades escolares, sem
dizer, criada pela entrada e a participação do
ficarmos preso à norma do encaminhamento,
pesquisador junto aos outros atores sociais no
que estipula a necessidade de recapitular,
cotidiano escolar, tem a ver com a inauguração
sempre, de re-atualizar ou mediatizar a
de um campo perceptivo necessário para
experiência vivida pela criança, em outro
acolher o sentido das “diferenças individuais”, setting e em outro momento, a posteriori.
“os modos de ser” dos alunos.
Enfim, no que se refere à ocorrência de
É possível dizer que a atuação deste modificações de alguns dos comportamentos
pesquisador transformou o status quo vigente? dos alunos participantes desta pesquisa, seria
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Aporte para uma Hermenêutica em Psicologia Escolar

presunçoso dizer que a produção intelectual O sentido de experiência vivida fundamenta


tenha melhorado, notavelmente, mas seria um estilo de trabalho possível, uma atuação
injusto omitir que a produção gráfica e plástica propedêutica à intervenção pedagógica; nesse
no atendimento na Sala de Integração e sentido, foi essencial o diálogo e o trabalho
Recursos melhorou, assim como a conjunto entre a professora de sala de aula,
comunicação com as professoras de educação as professoras das Salas de Integração e
especial e com a professora de sala de aula e Recursos (SIR) e o pesquisador, conformando,
os colegas foi transformada. dessa maneira, dentro da escola, um campo
de atuação interdisciplinar;
Considerações não conclusivas
Na prática, a compreensão empática é o
É necessário ao psicólogo escolar apropriar-se instrumento que possibilita operacionalizar a
de uma forma de trabalho sem a priori técnico, relação intersubjetiva a partir de uma atitude
porque não é somente o caráter técnico nem sensível e intuitiva, diferente da perspectiva
o embasamento teórico o álibi que, às vezes, causal e concreta de compreender o problema
produz mudanças no comportamento das do aluno.
pessoas, mas o encontro humano com o
O acompanhamento dos alunos mostrou ser
mundo vivido do outro, com a existência;
este um agir diferente e, ao mesmo tempo,
complementar à abordagem institucional
A compreensão do fracasso escolar e das
atualmente desenvolvida pelo psicólogo
dificuldades de aprendizagem exigem ir além
vinculado à escola pública.
da “escuta” e do diagnóstico de uma patologia;

Elbio Nelson Cardoso Guardia


Psicólogo pela Universidade da República Oriental do
Uruguai
Mestre em Saúde Coletiva
Professor de Graduação e Pós-Graduação na Faculdade da
Serra Gaúcha - FSG
Rua Riachuelo, 1521 / 302 . Porto Alegre- RS.
CEP: 90010271- Centro
Fone: (051) 3225-70-65
E-mail: nelsongu@terra.com.br

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Recebido 10/12/02 Reformulado 02/02/04 Aprovado 15/07/05

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