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O CRISTIANISMO APESAR DE CRISTO: IDENTIFICAÇÃO DE UM


CONTRASTE ENTRE A ÉTICA DE JESUS E A PRÁXIS CRISTÃ1

José Aristides da Silva Gamito2

Resumo

Este artigo explora o tema da ética de Jesus a partir do Evangelho de Mateus e da


tradição dos dois caminhos da Didaquê e a compara com os valores e os
comportamentos da sociedade cristã brasileira, revelando os contrastes e a distância
entre os ensinamentos morais de Jesus e a práxis cristã.

Palavras-chave: Cristianismo. Ética de Jesus. Sociedade brasileira.

Abstract

This paper analyzes the Ethics of Jesus in Gospel of Matthew and inthe Two Ways
tradition from Didache and compares it to the values and to the behavior of christian
brazilian society, revealing the contrast between the teaching of Jesus and christian
praxis.

Key-words:Christendom. Ethics of Jesus. Braziliansociety.

1. Introdução

Quando falamos em cristianismo, devemos nos lembrar de que existem, na


verdade, cristianismos. Nesta reflexão, não vamos evidenciar o cristianismo
institucional (isto é, em igrejas). Abordaremos um tipo de cristianismo comportamental
que já ocorria entre os cristãos desde muito tempo, mas tem ganhado atualmente muitos
adeptos. Talvez não se trate de um aumento de adeptos, mas de uma maior visibilidade
promovida pelas mídias sociais. Já que eles têm mais meios para se expressarem e
tornarem suas ideias conhecidas. Falaremos a respeito das opiniões e dos hábitos de
uma sociedade que se declara cristã.
A este tipo de cristianismo comportamental, eu diria até mesmo cultural,
chamaremos no decorrer deste texto de “cristianismo apesar de Cristo”. “apesar de” é

1
Palestra a ser proferida na Noite Teológica de 11 de julho de 2019 na Paróquia São Simão, em
Simonésia, MG.
2
Bacharel e licenciado em Filosofia, especialista em Docência do Ensino Básico, em Docênciado Ensino
Superior e mestre em Ciências das Religiões. Professor de Teoria do Conhecimento no Seminário
Diocesano Nossa Senhora do Rosário, Caratinga, MG. E-mail: joaristides@gmail.com.

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uma locução prepositiva. Ela encerra uma ideia de contraste, de oposição. Com isso
queremos falar de um tipo de fé que pode ser expressa nestes termos “apesar de Cristo
ensinar isso, eu faço aquilo”. Além de ser um modo de viver a fé cristã em nível
comportamental, muitas vezes alguns crentes procuram até fazer alguns ajustes
interpretativos para conformar Cristo às suas ideias. Há em vigor um cristianismo
adaptativo.
Embora, a proposta deste artigo pareça um pouco acusativa ou moralizante, mas
o nosso objetivo é confrontar criticamente o panorama dos valores da sociedade cristã
no Brasil e a ética de Jesus que pode depreendida dos Evangelhos. Partindo da
identificação de uma sociedade cristã no país, queremos verificar se ela corresponde aos
valores defendidos por Jesus nos evangelhos.

2. A existência de uma sociedade cristã

De acordo com o último censo do IBGE, 87,4% da população brasileira se


declaram cristãos.3 Se formos considerar numericamente temos uma sociedade cristã e
esperamos dela valores e comportamentos cristãos. Porém, se compararmos alguns
princípios fundamentais da ética cristã, nós não encontraremos exata correspondência
nas crenças desta sociedade que se intitula cristã. A partir do referencial somativista e
de dados de pesquisas do IBGE e do Datafolha, iremos traçar um perfil do cristão
brasileiro. Será que ele acredita e defende os valores que estão nos evangelhos?
Comecemos por algumas considerações teóricas. Analisar opiniões ou
comportamento de grupos não é uma tarefa fácil. Para as conclusões que vamos utilizar
neste artigo, iremos considerar o axioma da Teoria Somativa de Crenças. Ela é uma
ferramenta interpretativa da Epistemologia Social. Esta abordagem de crenças coletivas
considera que: “Um grupo G crê que P, se e somente se, a maioria dos membros de G
creem que P, sob as condições de compartilhamento da crença.”4 Neste caso, o grupo a
ser estudado é a sociedade cristã brasileira e suas crenças são os valores ético que
defendem. Consideraremos como maioria quando o número de pessoas que aprovam ou
desaprovam algum valor ou comportamento ultrapassa 50% de cristãos. O grupo
“sociedade cristã brasileira” não é um grupo com fronteiras definidas e homogêneo.

3
IBGE. Atlas do Censo Demográfico 2010. Disponível em:
https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203_Religi%C3%A3o_Evang_miss%C3%A3o_Evang_
pentecostal_Evang_nao%20determinada_Diversidade%20cultural.pdf. Acesso em 24 jun. 2019.
4
CICHOSKI; RUIVO, 2017, p. 508-539.

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Por meio dee dados de pesquisa, veremos


mos o quadro de valores dos cristãos
brasileiros a respeito de assuntos como solidariedade e não-violência.
não violência. Vamos ao
primeiro ponto: solidariedade. Pesquisas realizadas pelo CAF (Charities Aid
Foundation) e IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social) apontam
que até dois terços da população brasileira fazem doações para causas tradicionais.5Isso
significa que apenas 69,3 milhões de brasileiros fazem caridade regularmente. Há 139
milhões que não têm a prática. Por mais que exista um discurso a favor da
solidariedade, os cristãos não têm, em sua maioria, um hábito sistemático e eficaz de
praticar
ar a caridade e a solidariedade.
A existência da pobreza e das grandes desigualdades sociais reflete também este
contraste entre uma sociedade cristã e os valores do Evangelho. Em 2017, 5,2 milhões
de pessoas passaram fome no Brasil. Nesse mesmo ano, 15 milhões
lhões de pessoas estavam
na pobreza. São pessoas que vivem com R$ 210 por mês. Outro dado mostrava que
aqueles que vivem apenas R$ 400 por mês eram 55 milhões. Um relatório da Oxfam de
2018, no Brasil cinco bilionários tinham um patrimônio equivalente ao da
d metade dos
mais pobres.6A aceitação da desigualdade econômica é vista como algo natural.

5
HARTNELL, Caroline; MILNER, Andrew.Andrew Filantropia no Brasil: Síntese do Relatório Filantropia para
a Justiça Social e Paz, 2018, p.. 7.
6
OXFAM. Nós e as Desigualdades.
Desigualdades Brasil: Oxfam Brasil, 2019, p. 12.

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O segundo valor que vamos verificar é a não-violência. Uma pesquisa do


Datafolha de 2018 mostra que 57% desta sociedade
sociedade cristã apoiam a pena de morte e
42% são favoráveis à legalização da posse de arma de fogo.
fogo Quando
uando o assunto é relativo
à sexualidade os números mudam. 57% da população se declaram contra o aborto e
acham que as mulheres que praticam o aborto deveriam
deveria ser presas.
Quando o tema é violência,
violência a maioria desta sociedade cristã aposta em meios
violentos para conter a violência. Além de existir uma cultura sistemática de violência
no meio desta sociedade. O direito à vida é defendido para o nascituro, mas não é
defendido para o criminoso.
criminoso. Há uma incompatibilidade entre o discurso pacifista do
cristianismo e a opinião da maioria dos cristãos brasileiros.
brasileiros

Há muitos outros princípios que poderiam ser avaliados, mas utilizaremos a


relação que o cristão brasileiro tem com a solidariedade, a paz e a justiça para comparar,
se na prática, temos uma sociedade cristã ou um “cristianismo
cristianismo apesar de Cristo”
Cristo em
vigor. Os dados que apresentamos mostram um conjunto de valores sustentados pela
sociedade cristã que podem ser chamados de contravalores
c sob o ponto de vista dos
evangelhos. São posturas inegáveis porque são assumidas publicamente
ublicamente por muitos
cristãos em redes sociais e aparecem nas conversas informais, nas atitudes e são
quantificados pela estatística. A seguir, examinaremos a ética de Jesus
Jesu a partir do
Evangelho de Mateus e da tradição dos dois caminhos da Didaquê.

3. Os princípios gerais da ética de Jesus

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A nossa proposta é identificar a ética de Jesus a partir do Evangelho de Mateus.


A partir desta motivação do dever do discípulo, vamos trabalhar em cima de dois termos
de Mateus éleos (misericórdia) e dikaiosyne (justiça). Quando Jesus se aproximou de
João para ser batizado, e este resiste a batizá-lo, a sua resposta é “convém cumprir toda
a justiça” (Mt 3, 15). Todo o seu ministério é entendido no Evangelho de Mateus como
um cumprimento da justiça. A justiça de Jesus contém um paradoxo. A sua medida é a
misericórdia.
A palavra éleos define bem a ética de Jesus. Ela aparece em Mateus 9,13; na
expressão “misericórdia que eu quero, e não sacrifício”. Em 12, 7, ele repete esta
expressão, aplicando-a à polêmica sobre práticas ilícitas em dia de sábado. Jesus
defende que a misericórdia é mais importante do que o ritual religioso. Quem inverte
esta ordem não está aderindo aos seus valores. Os misericordiosos ganham uma bem-
aventurança em Mt 5, 7. As práticas rituais têm de estar coerente com os valores da
justiça, da misericórdia e da fidelidade (Mt 23, 23). Diferentemente, da prática religiosa
dos grupos de seu tempo, Jesus considera os sentimentos, a intenção, mais importante
do que o apego ao culto exterior. E acima de tudo, a finalidade das nossas ações tem de
estar claras. Não devemos cumprir uma norma simplesmente para afirmar que somos
religiosos.
A segunda palavra-chave no Evangelho de Mateus é dikaiosyne (justiça). Jesus
espera um comportamento dos seus discípulos. Seu convite é para que exerçam a
justiça. Ela acontece nas relações interpessoais. Mateus distingue uma justiça de Deus e
uma justiça do povo. A justiça de Deus é o estado das coisas quando Deus reina (Mt
6,33). A justiça dos discípulos é compreendida como a fidelidade no ensino e na prática
dos mandamentos (Mt 5,19). De modo geral, encerra o sentido de uma conduta
esperada.7
O discurso da montanha (Mt 5, 1-12) identifica o discípulo ideal. Duas bem-
aventuranças são bem significativas para exemplificar a preocupação que Mateus tem
com a justiça e a misericórdia. A primeira é “Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça, pois serão satisfeitos (Mt 5,6) e a segunda é “Bem-aventurados os
misericordiosos, pois obterão misericórdia” (Mt 5,7). A busca pela justiça e pela
misericórdia está no coração das bem-aventuranças.

7
POWELL, Mark Allan. God with us: a Pastoral Theology of Matthew’s Gospel. Minneapolis:
Fortress,1995, p. 116.

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A gratuidade é um princípio distintivo da ética de Jesus. Esta gratuidade aparece


com um forte acento na releitura que Jesus faz da Lei em Mateus 5. A interpretação dos
mandamentos está vinculada ao sentido de cumprimento da justiça. Jesus pede que seus
discípulos superem a “justiça dos fariseus”. Os fariseus cumpriam seus deveres
religiosos com interesse de recompensa do público e agiam de modo hipócrita. Jesus
enfatiza a necessidade de melhorar as relações interpessoais.
A releitura que Jesus faz da Lei em Mateus 5 estabelece um contraste entre o que
os antigos diziam e aquilo que ele diz. Todos os textos iniciam com a expressão
“Ouvistes (ekoúsate) dos antigos... porém, eu vos digo”. O primeiro ekoúsate (ouvistes)
proíbe o assassinato a partir de suas raízes (Mt 5, 21). A ética de Jesus não visa apenas
as consequências dos fatos, mas, antes se direciona para a causa dos males. A ira é
causa do assassinato, portanto, devemos evitar irritar os outros e também nos irritar.
Assim raciocina o didaquista: “Não seja colérico porque a ira conduz à morte. Não seja
ciumento também, nem briguento ou violento, pois o homicídio nasce de todas essas
coisas”. O último ekoúsate radicaliza exigindo o amor aos inimigos. Lemos em Mateus
5, 44: “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem”. A Didaquê
completa este sentido dizendo “ame aqueles que o odeiam e assim você não terá
nenhum inimigo.” O dever do cristão é optar pelo pacifismo e pela reconciliação. A
Didaquê prescreve: “Não odeie a ninguém, mas corrija alguns, reze por outros e ame
ainda aos outros, mais até do que a si mesmo”.
No capítulo 6, Jesus enumera algumas obras de justiça que são a esmola, o jejum
e a oração. A crítica de Jesus quanto essas práticas é a questão da gratuidade. As
práticas rituais não podem realizadas tendo como fim o elogio do público. O sentido de
sinceridade deve ser mantido. As coisas têm de ser realizadas pelo sentido primário,
original da ação e não motivado por outras recompensas. A gratuidade é uma das
características da ética de Jesus. Ela aparece tanto na releitura dos mandamentos (Mt 5)
quanto nas obras de justiça (Mt 6).
O princípio geral é não agir esperando sempre recompensa ou uma compensação
da parte dos outros. Deus age com gratuidade mandando a chuva sobre os bons e os
maus (Mt 5,45). O controle de todo o mal está em suas raízes. Se alguém for capaz de
controlar suas emoções evitará muitos males. É este controle que evita o homicídio, que
evita o adultério e a mentira. Portanto, cumprir a justiça nas relações interpessoais é agir
tendo o controle das emoções e agir de modo livre sem expectativa de premiação.

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O texto de Mateus 25, 31-46 apresenta um critério de salvação e ele todo está
condicionado às relações interpessoais. Há algumas categorias de pessoas que estão no
foco da atenção de Jesus e são eles: a) os famintos e os sedentos; b) o forasteiro; c) o nu;
d) o doente; e) o preso (Mt 25, 35-36). Só terão direito à herança do Reino aqueles que
acolheram estas pessoas. Jesus se dá como a garantia de acolhida dos mais necessitados:
“todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o
deixastes de fazer” (Mt 25,45).
Jesus está preocupado com o cumprimento da justiça. Ela acontece em duas
direções: a) o cumprimento das práticas rituais; b) o cumprimento da caridade com os
mais pequeninos (nepíoi). Porém, em ambos os casos Jesus quer que seus discípulos
superem a “justiça dos fariseus”. É um tipo de justiça que não se prende à mera
obrigação, ela é sustentada pela vontade, pelo envolvimento do interior humano. A ética
de Jesus envolve o sentido pleno do ato. A nossa prática não pode visar outro interesse
senão aquele que é atingir o bem nas nossas ações. Se não envolvemos a nossa
interioridade no ato, estamos alienando a ação ética.

4. Uma sistematização da ética de Jesus

A ética de Jesus é bastante paradoxal. A sua aplicação dentro de uma sociedade


capitalista focada no retorno imediato é um desafio. Esta estranheza ocorreu com a
sociedade de sua época. A ética da religião judaica era deontológica. A interpretação da
Lei a tomava como um dever acima dos sentimentos e das necessidades dos outros. Em
diversas ocasiões, Jesus aponta que a vida das pessoas está acima das normas.8 Ele
mostra isso na polêmica da cura em dia de sábado, na sua acolhida à samaritana, à
mulher adúltera.
A ética de Jesus envolve também normas, mas não se prende à literalidade das
prescrições religiosas. Este é o tipo de ética que é chamada de axiológica. Às vezes,
Jesus emprega também uma ética teleológica. É aquela trata a norma da ação a partir da
finalidade. Couto chama a ética de Jesus de ética dialógica.9 Tenho nomeada a sua ética
de ética da gratuidade. É um tipo de compreensão das ações como tendo um fim em si
mesmo. A motivação de um ato é intrínseca ao valor de bondade do ato e esta

8
COUTO, Vinicius M. B. N. A Ética de Jesus: uma ética dialógica. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun.
2016, p. 5-13.
9
COUTO, 2016, p. 5-13.

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motivação vem da interioridade. Não se deve agir com uma motivação secundária, com
o intuito de uma compensação como o elogio, a recompensa ou a reciprocidade.
A ética da gratuidade exclui o dever da reciprocidade. Jesus a resume do
seguinte modo: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o
vós a eles” (Mt 7, 12). Esta máxima vem a significar que não agimos segundo aquilo
que as pessoas nos fazem, mas segundo tudo aquilo que a gente gostaria que elas nos
fizessem. Mas somos nós que fazemos primeiro sem nenhuma garantia de que o outro
fará. Não esperamos ser cumprimentados para cumprimentar os outros, não esperamos
que os outros nos amem para amá-los (Mt 5, 46-47). Amar o inimigo é a exemplificação
máxima deste princípio ético.
A ética da gratuidade exclui a expectativa da recompensa. Se alguém
nos tomam a túnica, nós damos também o manto. Se nos obrigam a caminhar com eles
uma milha, caminhamos duas (Mt 5, 40-41). Não buscamos recompensa nos
empréstimos e o que faz a nossa mão direita não precisa a esquerda saber (Mt 6, 3).
Evidentemente, que Jesus fala da recompensa de Deus. Não é uma recompensa
imediata, terrena.
A ética da gratuidade exclui o mal pela causa. A interioridade humana é um
centro de decisões. E boas decisões somente ocorrem se houver domínio das emoções.
A partir das emoções que causam os homicídios, adultérios e falsos testemunhos. A ira
causa o assassinato, o desejo libidinoso gera o adultério. É emblemática a frase de
Jesus: “não resistais ao mau” (Mt 5, 38). O mal se vence atacando em suas raízes, não
deixando que ele multiplique e nos ganhe. Assim o controle das emoções é o princípio
das boas escolhas.
A ética de Jesus prevê uma profunda mudança nas relações interpessoais. O
próximo é o alvo da ação moral. Esta relação é motivada pelo amor gratuito. É um amor
que inclui o inimigo. O amor ao próximo contém também algumas obrigações. As
principais são aquelas elencadas em Mateus 25. As obras de justiça de Mt 6 têm um
objetivo ritual. São elas a esmola, o jejum e a oração. São obrigações que o discípulo
possui para com Deus, com o próximo e consigo. As obras de misericórdia envolvem
exclusivamente o dever com o próximo (a) os famintos e os sedentos; b) o forasteiro; c)
o nu; d) o doente; e) o preso (Mt 25, 35-36).
Poderíamos distinguir estas duas dimensões da ética de Jesus dentro da aplicação
do conceito de justiça. As obras de justiça de Mt 6 são a dimensão da justiça divina e as
obras de misericórdia de Mt 25 são a dimensão da justiça humana, portanto, justiça

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social. Não tem como refletir sobre a ética de Jesus como se fosse uma caridade
privada, facultativa. É uma ética que resulta na justiça social. Do ponto de vista da
justiça divina, Jesus tem um grande embate com os fariseus e com o Templo. Eram
legalistas, hipócritas e cumpriam a Lei somente pela exterioridade. Do ponto de vista
justiça humana, ele cria um embate com os ricos.
A classe do pobre e do pequenino tem a atenção de Jesus. Ele critica o acúmulo
de riquezas (Mt 6, 19-21). Ele aconselha ao jovem rico a vender seus bens e os
distribuir aos pobres (Mt 19, 21). Se a riqueza impede o homem de viver os valores do
Reino, é melhor desfazer-se dela. Por isso, Jesus diz que dificilmente um rico será salvo
(Mt 19, 23). Os valores proclamados por Jesus exigem um desapego de si e dos bens
materiais. Este desapego é empregado também no sentido de não se preocupar com o
amanhã (Mt 6, 25).
As obras de misericórdias de Mt 25 são o ponto culminante deste olhar de
responsabilidade sobre o pobre. Aquele que quiser entrar no Reino dos Céus deve
praticar a misericórdia e a justiça. As classes dos famintos e dos sedentos, do forasteiro;
do nu; do doente e do preso continuam a tradição de justiça social do Antigo
Testamento que exigia um cuidado especial com o órfão, a viúva e o estrangeiro. O
amor da ética de Jesus não teórico é prático. Não basta só não ser violentos fisicamente
com os outros. A fome, o desabrigo e a xenofobia são também formas de violência.

Considerações finais

Concluímos que há uma disparidade, um contraste, entre a ética de Jesus e os


valores defendidos por parte da sociedade cristã no nosso país. O resultado prático da
ação benéfica da tal sociedade cristã é pequeno. Embora, existam muitos indivíduos
cristãos e o bem aconteça. A ética de Jesus tem exigências que incomodam o
comportamento da sociedade. A exigência de amar o inimigo, não cometer violência,
desapegar-se das riquezas e ajudar os pobres para muitos pode soar apenas em sentido
figurativo.
Há em vigor um “cristianismo apesar de Cristo”. Ele instalado nos hábitos
culturais e as exigências mais radicais do evangelho são interpretadas em sentido
figurativo. Às vezes, alguns conclamam o rigor da Lei do Antigo Testamento para
minimizar a exigência ética de Jesus. É o império de um cristianismo moldado pelo
egoísmo e pela cultura da violência. A radicalização de alguns setores da sociedade

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diante das mudanças políticas e sociais do nosso tempo tende a evidenciar este
“cristianismo apesar de Cristo”.

Referências

BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

CICHOSKI, Luiz; RUIVO; Leonardo. Epistemologia Coletiva: crença, justificação e


conhecimento de grupo. Veritas, Porto Alegre, v. 62, n. 3, set.-dez. 2017, p. 508-539.

HARTNELL, Caroline; MILNER, Andrew. Filantropia no Brasil: Síntese do Relatório


Filantropia para a Justiça Social e Paz, 2018, p. 7.

IBGE. Atlas do Censo Demográfico 2010. Disponível em:


https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203_Religi%C3%A3o_Evang_miss%
C3%A3o_Evang_pentecostal_Evang_nao%20determinada_Diversidade%20cultural.pdf
. Acesso em 24 jun. 2019.

OXFAM. Nós e as Desigualdades. Brasil: Oxfam Brasil, 2019.

POWELL, Mark Allan. God with us: a Pastoral Theology of Matthew’s Gospel.
Minneapolis: Fortress, 1995.

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