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INDIVIDUAÇÃO E RELACIONAMENTO SOCIAL NA PSICOLOGIA JUNGUIANA


(Marie-Louise Von Franz)

Nós estamos vivendo em uma época em que o problema dos relacionamentos


humanos se tornou mais urgente do que nunca antes. As razões para isso são bem
conhecidas: o desenvolvimento da tecnologia trouxe consigo o racionalismo e a
industrialização de nossa sociedade. Pequenas comunidades rurais com suas redes
fortemente entrelaçadas de relacionamentos pessoais foram dissolvidas ou estão se
dissolvendo. Os habitantes das grandes cidades industriais vivem lado a lado como
estranhos. Todos são oprimidos pelo pensamento de sua própria insignificância em face da
massa cinza e sem sentido das pessoas desconhecidas que os cercam. Com a exceção de
pequenos grupos que se mantêm juntos por convicções religiosas comuns ou costumes
partilhados, há apenas comunidades de interesse, que são ligadas por interesses comerciais,
relacionados aos esportes ou políticos e, em geral, qualquer tipo de laço pessoal mais
profundo não está presente.
Essa situação crítica, que afeta a humanidade como um todo, levou a um crescente
interesse na sociologia e, por extensão, na psicologia também; mas esse interesse está
confinado a problemas de comportamento social. Os Estados Unidos lideram em pesquisa
comportamental. Lá os mais variados tipos de experimentos de grupo foram realizados, e,
nesse meio tempo, o mesmo ocorreu na Europa, mas esses foram primariamente aplicáveis
no campo da psiquiatria. De um certo modo, esse desenvolvimento levou a um tardio
reconhecimento dos dados em parte já trazidos à luz por Alfred Adler. De qualquer modo,
agora a agressão e a sua contenção, a estrutura de poder e o papel social que nós
desempenhamos (que Jung chamava de persona) estão no primeiro plano das discussões.
Do ponto de vista junguiano, no entanto, tudo isso permanece na superfície do
problema. Nós devemos penetrar mais fundo no nível instintivo do inconsciente humano
para encontrar o que é que condiciona o nosso comportamento social e a nossa capacidade
para o relacionamento pessoal.
Até onde nós sabemos, o homem viveu desde os primeiros tempos como um zoon
politikon, um “animal social”, como Aristóteles o chamava, e, de fato, em pequenos grupos
de 15 a 50 indivíduos. Portanto, nós podemos muito bem assumir que há alguma base
instintiva para esse nosso comportamento social. Agora nós podemos olhar as pessoas de
fora e representar estatisticamente as ações e reações médias delas, como o behaviourismo
faz. Desse modo, nós descobrimos padrões de comportamento dos seres humanos que não
diferem fundamentalmente daqueles dos animais. Mas nós devemos também olhar para os
processos psíquicos internos que ocorrem ao mesmo tempo. Quando nós investigamos
esses processos, torna-se claro que, no curso das ações instintivas delas, as pessoas também
têm experiências internas que assumem a forma de imagens fantásticas, de emoções, e de
pensamentos. Como nós sabemos, esse é o aspecto da estrutura do inconsciente que Jung
chamou de arquétipo. Os arquétipos são disposições herdadas, que fazem com que nós
reajamos de um modo típico aos problemas humanos básicos, internos ou externos.
Presumivelmente, todo instinto tem o seu correspondente aspecto arquetípico interno. Jung
chamou a totalidade dessas estruturas herdadas de inconsciente coletivo. Nós podemos
tomar como um exemplo o instinto de agressão, que pode aparecer internamente em sonhos
como o deus da guerra, Marte, como Wotan, ou como Shiva, o Destruidor. Como uma
contraparte disso, o instinto materno aparece nas figuras maternas de mitos e religiões; e o
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ímpeto instintivo na direção de uma renovação e mudança se manifesta no símbolo da


criança divina, que nós encontramos em todas as religiões e mitologias.
Tais imagens arquetípicas surgem espontaneamente na superfície do inconsciente
dos indivíduos ocasionalmente na vida deles quando um problema humano básico e
profundo é constelado. Em tais horas, é como se nós tivéssemos que penetrar na sabedoria
de nossa herança instintiva para encontrar a solução para nossos problemas no meio do caos
das circunstâncias externas e internas.
Quando nós desistimos da busca de soluções externas e racionais para as nossas
dificuldades e começamos a olhar para dentro de nós para ver o que está errado conosco lá,
inicialmente, como Jung mostrou, nós descobrimos todos os tipos de tendências e
pensamentos psíquicos esquecidos, aberrantes e suprimidos, que, em sua maior parte são
incompatíveis com nossa visão consciente acerca de nós. Em nossos sonhos, essas
tendências geralmente assumem a forma de nossos “melhores inimigos”, pois eles são de
fato um tipo de inimigo dentro de nós – embora algumas vezes não tanto um inimigo como
alguém que nós odiamos completamente. A esse aspecto de nós Jung chamou de sombra.
Se nós não vemos a nossa própria sombra, nós a projetamos em outras pessoas, que, então,
exercem um efeito fascinante em nós. Nós somos compelidos a pensar neles o tempo todo;
nós ficamos desproporcionalmente incitados por eles e podemos até mesmo começar a
persegui-los. Isso não significa que certas pessoas que nós odiamos não sejam de verdade
intoleráveis; mas, mesmo em tais casos, nós poderíamos lidar com eles de uma maneira
razoável ou evitá-los, se eles não fossem a projeção de nossa sombra, que nunca falha em
levar-nos à toda fascinação e exagero possíveis. Jung chamou ao processo de
desenvolvimento consciente que nós executamos com a ajuda do material inconsciente
objetivo de processo de individuação. Esse processo inevitavelmente nos força, como
primeira ordem do negócio, a perceber conscientemente a nossa sombra. Como resultado
disso, nossos relacionamentos pessoais passam por uma mudança considerável. Sobretudo,
nós somos curados de uma vez por toda de todas as nossas grandes desilusões idealizadas
sobre reformar a sociedade e nossos companheiros seres humanos. Nós nos tornamos mais
modestos e, ao mesmo tempo, menos ingênuos em relação aos ataques maliciosos que vêm
de fora. O cocho não pode mais falar do aleijado, o que é benéfico para ambos. A maior
parte das nossas assim chamadas “más” qualidades não são inteiramente inúteis em nossas
vidas, já que se justifica que uma pessoa mostre as suas garras quando ela é injustamente
atacada; ela tem o direito de fazer uso da astúcia dela para afastar uma intriga ou de ser
brutal para suprimir tendências perigosas dentro dela mesma. É tudo uma questão de
conhecimento consciente da sombra e da razoável e mensurada integração da sombra em
nossas vidas. A sombra, pelo menos na nossa parte do mundo, é geralmente a personalidade
primitiva, animalesca dentro de nós, que não é má ou ruim em si, enquanto a consciência
mantiver um olho nela, mas que pode se tornar realmente má e perversa se nós a
suprimirmos.
Não tem que ser provado que essa fase da individuação – se tornar consciente da
própria sombra e recolher as suas projeções – tem um efeito social benéfico. Isso é óbvio. A
análise junguiana, que pode ser vista do lado de fora como uma preocupação individualista,
auto-absorvente, consigo mesmo, é geralmente acusada de ser inútil socialmente. Mas não
leva muito tempo para se tornar óbvio que não é esse o caso. Por exemplo, quando uma
professora integra a sombra de seu poder e adota uma abordagem mais madura, de uma
personalidade consciente, inúmeras crianças auferem o benefício. As pessoas neuróticas,
inconscientes, são o próprio inferno para aqueles ao redor delas; assim, cada progresso em
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tais pessoas ajuda muito as outras. Inúmeras discussões fúteis e consumidoras de energia
surgem porque nós não estamos conscientes das nossas sombras e assim as projetamos nos
outros. Toda disputa política também é baseada nesse estado de coisas.
Mas esse conhecimento é somente o primeiro passo da individuação. Quando uma
pessoa integrou mais ou menos a sombra dela, o inconsciente dela assume uma outra
forma: ele se manifesta como a imagem do parceiro do sexo oposto – para um homem, em
uma figura feminina chamada por Jung de anima; e, para a mulher, em uma figura de
homem chamada de animus. Esses componentes inconscientes da personalidade não são
sempre projetados no parceiro do sexo oposto. Em tempos passados, eles eram
freqüentemente experimentados como divindades pertencentes à religião predominante,
como, por exemplo, a imagem de uma deusa, da Virgem Maria medieval, ou de Dioniso ou
Cristo. Isso é consubstanciado por muitos sonhos e visões. A projeção da anima e do
animus em figuras religiosas era, de muitos modos, muito útil, porque ela protegia as
pessoas de sobrevalorizar e endeusar o sexo oposto, o que resultava em que havia mais
espaço para relacionamentos realistas, diretos. No entanto, há um lado negativo nisso, que
era que as pessoas eram somente capazes de conscientemente perceber o aspecto geral,
coletivo, desse fator interno e falhavam em ver ou experienciar os seus aspectos
individuais. Na galanteria da Idade Média, o amor cortês era uma primeira tentativa de
avançar nesse problema. O cavaleiro escolhia a dama de seu coração e a servia como a uma
deusa, mas ela era uma mulher com características individuais, uma encarnação da anima
dele, não a anima. Desse modo, ele obtinha a oportunidade de travar contato com as
características específicas da própria natureza feminina interna dele. No entanto, essa
primeira tentativa de individualização da anima foi rapidamente suprimida pela Igreja.
Hoje, os símbolos religiosos que poderiam servir como um veículo para as
projeções da anima e do animus perderam o significado para muitas pessoas. Anima e
animus retornaram ao inconsciente dos homens e mulheres, onde, como Jung mostrou, eles
criam complicações nos relacionamentos das pessoas. A isso nós podemos atribuir o
enorme número de casamentos destruídos que nós vemos ao nosso redor hoje em dia.
Quando a anima mostra os aspectos negativos dela – e isso ela faz especialmente
quando o homem não está consciente dela – ela se manifesta como estados irracionais,
humores frígidos ou sentimentais, ataques histéricos, fantasias sexuais distantes da
realidade; e ainda pior, ela leva o homem a escolher a parceira errada. Ela pode até levá-lo
a um estado de possessão. Hitler, com os ataques histéricos, irracionais dele, que levaram a
mente dele a um modo feminino, é um bem conhecido exemplo disso. Em outros casos, a
anima torna os homens reclamões e depressivos, infantilmente ciumentos como uma
mulher com sentimentos de inferioridade, ou vaidosos. Tudo isso afeta os outros,
particularmente, as mulheres, de um modo extremamente irritante.
Um animus inconsciente torna as mulheres briguentas, estúpidas e algumas vezes
brutais; ou ainda ele as faz falar constantemente tangenciando o assunto em questão – todas
as coisas que os homens não gostam nas mulheres. Por meio da influência da anima e do
animus, ambos se envolvem em mentiras.
No atual movimento de liberação das mulheres, o animus desempenha um papel
muito proeminente. Com freqüência, o chefe tirânico contra o qual as mulheres lutam não é
tanto um homem externo, mas o animus tirânico dentro delas mesmas, que elas projetaram
nele. Tais mulheres até parecem atrair os tiranos nos ambientes delas ou a escolhê-los como
parceiros. Elas falham em ver que isso está ligado à veneração interna do próprio animus
delas, que está suprimindo a feminilidade delas. A mesma coisa também algumas vezes é
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verdadeira para os homens. Eles se tornam homossexuais que debocham das mulheres e
nunca vêem que o comportamento frio, sem consideração e tirânico que eles criticam nas
mulheres está assentado dentro deles mesmos.
Quando homens e mulheres conseguem conhecer mais a respeito da própria anima e
animus deles, eles se entendem melhor com o sexo oposto e também redimem essas figuras
de dentro deles. Isso significa que um homem pode desenvolver qualidades femininas
positivas como uma maior sensibilidade e capacidade para relacionamento pessoal, assim
como habilidades artísticas e criativas – uma vez que a anima também é a mediadora entre
a consciência racional dele e os níveis mais profundos do inconsciente. Como Beatriz na
vida de Dante, a anima se torna o guia para as profundezas e a altura espirituais da alma. De
um modo similar, o animus da mulher pode dar a ela coragem, prontidão, força e inspiração
intelectual e criatividade.
Assim enquanto a integração da sombra tem o efeito de nos tornar mais capazes de
nos relacionarmos melhor com membros do nosso próprio sexo, a integração do animus e
da anima preenche a lacuna na compreensão entre os dois sexos e evita muitas tragédias
infantis e desnecessárias. Todos os que trabalham em profissões sociais conhecem como as
gerações que cresceram em lares rompidos ou infelizes sofrem.
Por meio desses exemplos, eu tentei mostrar que o processo de individuação pode
eliminar muitos sérios distúrbios na nossa vida social. No entanto, eu devo admitir que é
tarefa extremamente difícil levar as pessoas ao ponto de elas verem a própria sombra delas,
e é ainda mais difícil torná-las conscientes do animus ou anima delas. As pessoas parecem
ter uma grande resistência em pensar honestamente acerca delas. Quando as coisas nas
vidas delas dão errado, eles tendem com uma probabilidade muito maior a culpar
circunstâncias externas.
Até esse ponto, o processo de individuação pareceu consistir primariamente na
retirada das projeções ilusórias de outras pessoas e em desistir dos nossos preconceitos
infantis sobre elas. Nós nos tornamos mais reflexivos e mais razoáveis, mas também menos
dependentes dos outros. No entanto, nós ainda temos que descobrir uma base instintiva para
as pessoas se relacionarem de forma ativa umas com as outras. Somente quando nós
avançarmos um passo além nas profundezas do inconsciente é que nós encontraremos o
fator arquetípico que une toda a humanidade e que constitui a base para os nossos instintos
sociais. Nós nos referimos à essência interna que Jung chamou de Self.
A partir do momento em que o homem ou a mulher tenta começar o trabalho com o
animus ou com a anima, ele ou ela é levado a encarar conflitos críticos e profundos, para os
quais parece não haver soluções. Quando o ego encara o seu sofrimento, em vez de fugir
dele, o mais profundo nível da psique, o seu, assim falado, núcleo atômico – um centro que
parece regular o sistema psíquico total do indivíduo – é ativado. Jung observou que, nos
sonhos e fantasias dos pacientes dele, em tempos de sérias crises, perda de orientação ou
um conflito maior, um símbolo freqüentemente aparecia e expressava a unidade e a
totalidade. Ele tinha uma forma retangular ou redonda, que nós denominávamos com o
termo sânscrito mandala. O aparecimento desse símbolo é acompanhado por um equilíbrio
e uma ordem internas. É uma imagem que representa a unidade do cosmos e do indivíduo,
assim como o significado de toda a vida. Como tal, ela desempenha um papel central nas
religiões orientais. O Indologista Giuseppe Tucci a chama de ordem psicocósmica. No
Ocidente nós encontramos o mesmo símbolo, mas aqui ele representa ou um deus ou uma
estrutura do mundo. No último caso, a estrutura do mundo é uma imagem do seu criador e,
no sentido mais profundo também corresponde à estrutura da psique humana. Esse símbolo
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de totalidade pode ser geralmente descrito nesses termos: “Deus (e o cosmos) é uma esfera
espiritual infinita (bola) cuja periferia não está em lugar algum e cujo centro está em todo
lugar”. Na filosofia alemã do período Romântico tardio, essa concepção também foi vista
como uma descrição do ego transcendente, criativo (não do ego geralmente cotidiano). Do
ponto de vista empírico, esse centro parece ser o núcleo que regula o equilíbrio do nosso
sistema psíquico; desse núcleo vem a função de cura e de ordenamento dos sonhos. Ele é
geralmente percebido como o fim último e o sentido da vida e dá origem à experiência
religiosa que se assemelha ao satori do Zen Budismo.
Esse núcleo mais central da psique, o Self, aparece em sonhos e fantasias, não
somente em uma forma matemática abstrata, mas também como uma pessoa. Na psique dos
homens, ele aparece como um homem divino ou semidivino – um velho sábio, um líder,
um professor. Na psique das mulheres ele se apresenta como um tipo de figura de mãe
cósmica, como uma sábia mãe terra, ou como Sophia. Em ambos os casos, o Self com
freqüência têm características hermafroditas, porque ele une todos os opostos, até mesmo o
masculino e o feminino.
Toda vez que o Self é constelado no inconsciente de uma pessoa, ele traz com ele
uma solução criativa única para o problema dele ou dela. Desse modo, ele é a causa de um
grande salto para a frente na direção da consciência e da liberdade. Por essa razão, Jung via
nele o fator central de todo o desenvolvimento humano. Entrar em contato com o Self é,
sem dúvida, o objetivo supremo do processo de individuação. O fato de o Self ser a fonte
de toda criatividade é de grande importância não só para o indivíduo, mas também para a
comunidade. A polarização da criatividade individual e do comportamento coletivo social
parece já ter existido no nível animal de desenvolvimento. O zoólogo Adolf Portmann
mostrou que todas as inovações nos padrões de comportamento coletivos dos animais
surgem do espírito empreendedor independente de indivíduos que tentaram algo novo
assumindo um risco próprio.
Assim, a criatividade individual parece ser muito mais antiga do que a consciência
do ego dos seres humanos. Por exemplo, um pássaro que pertence a uma espécie que
normalmente migra para a África do Sul passa um inverno na Europa. Se ele morre, nada
além ocorre. No entanto, se ele sobrevive, outros indivíduos começam a fazer a mesma
coisa, e ao final, isso pode levar a uma mudança no padrão habitual do grupo. Biólogos
japoneses estudando um grupo de macacos morando em uma ilha observaram uma única
jovem fêmea que induziu o grupo inteiro a lavar a comida deles na água do mar antes de
comer. Um assim chamado ser vivo anormal parece destinado à derrota, enquanto
indivíduos criativos estão destinados a enriquecer a comunidade deles. Nessa medida, o
problema do indivíduo versus a sociedade já existia entre nossos antepassados animais, e
indivíduos isolados sempre ou ameaçaram ou enriqueceram as suas tribos.
Quando indivíduos humanos isolados agem de um modo destrutivo contra a
comunidade, nós vemos por meio de um exame mais próximo do inconsciente deles que
eles são governados por um complexo autônomo – que é o que era conhecido em tempos
passados como uma possessão demoníaca. Essa condição de ser controlado por um
complexo, uma possessão, sempre provoca medo e ódio em outras pessoas e gera o
isolamento. O indivíduo criativo, em oposição, geralmente tem uma íntima conexão com o
Self. No seu trabalho sobre xamanismo, Mircea Eliade compilou um abundante material
que claramente documenta esse fato. Os xamãs do Norte são, como os médicos de outros
povos primitivos, em sua maior parte, indivíduos que foram “chamados” por deuses ou
espíritos das tribos deles. Em seguida a uma série crise psíquica, que os isolou da
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comunidade deles – algumas vezes eles também procuram o isolamento eles mesmos – eles
aprendem sob a condução de um médico mais velho como travar um diálogo apropriado
com esses poderes, que hoje em dia nós chamamos de conteúdos arquetípicos do
inconsciente. Eles não são possuídos por esses poderes, exceto durante um curto estado de
transe voluntário. Eles não perdem o status normal deles como seres humanos, mas
adquirem o conhecimento que diz respeito aos poderes do além (do inconsciente) e são,
assim, capazes de funcionar como profetas e curadores, e, em muitas regiões, também
como os artistas e poetas da tribo deles.
Nesse nível cultural primitivo, animais mágicos são com freqüência símbolos do
Self. No Norte, é geralmente o urso que é a encarnação do Self para o xamã, porque ele é
uma grande divindade natural. O xamã adquire a criatividade e o poder de cura dele do
urso. Na África, leões e elefantes representam o Self, e, algumas vezes, também outros
animais mágicos encarnam o poder divino supremo da psique e da natureza. A partir do
fato de o Self aparecer na forma animal nos sonhos e visões de homens curadores e nos
indivíduos criativos, deduz-se que ele é primeiramente percebido como uma força
inconsciente puramente instintiva, maior e mais poderosa do que o ego, mas inteiramente
inconsciente. Ele encarna a completa sabedoria da natureza, mas não possui a luz da
consciência humana.
Na natureza, não há um instinto animal que não tenha a sua forma particular na qual
nós podemos ver o seu propósito e o seu significado. Além disso, impulsos instintivos não
aparecem sem certas restrições; eles têm a seqüência temporal própria deles, os seus
objetivos, mecanismos e restrições especiais. Para os seres humanos, as formas restritivas
dos instintos são os costumes religiosos e os tabus. Quando nós olhamos para o lado de
dentro deles, nós vemos que eles expressam o sentido de nossos instintos quando eles se
manifestam em símbolos e fantasias. Assim, parece que a religião foi originalmente um
sistema regulatório psicológico que ordenava os nossos instintos e impulsos. Somente
quando um sistema religioso se enrijece em um formalismo rígido é que ele se torna
antagônico aos instintos e negativo. Normalmente, mente e instinto constituem um par de
opostos compensatório.complementando ou contrabalançando harmoniosamente um ao
outro. Em incontáveis exemplos históricos a tensão de opostos entre mente e instinto se
tornou negativa, que é o que aconteceu nos últimos dois séculos na nossa própria cultura
também. Em tais casos, o inconsciente traz novos símbolos religiosos que vêm preencher a
lacuna entre os dois e restaurar à humanidade a memória da sua natureza original.
Geralmente é um símbolo do Self, a inteireza psíquica, que reúne os opostos que se
separaram um do outro.
Enquanto o totem animal expressa uma forma profundamente inconsciente dessa
inteireza, dessa unidade e coesão sociais, nós encontramos no seu lugar, em um nível
cultural mais elevado, o que Jung chamou de Anthropos. Como o totem animal, o
Anthropos é visto como um ancestral da humanidade, que une todas as pessoas. Em muitos
mitos, ele é até mesmo o material cru do qual todo o cosmos é formado. Ele é visto como o
princípio vital e o significado de toda existência humana e é considerado o totem de toda a
humanidade, não só de uma tribo.
Em muitos mitos de criação, pertencentes aos mais variados povos, é contado que o
universo foi originalmente formado das partes de uma gigantesca figura humana. Na Edda
germânica, era o gigante Ymir: “Da carne de Ymir, a Terra surgiu, as montanhas, dos ossos
dele...” Na China, o cosmos foi formado do duende P’na Ku, que era ao mesmo tempo um
gigante. P’na significa “casca de ovo” assim como “tornar sólido” e ku significa
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“subdesenvolvido”, “não-iluminado”, “embriônico”. Qundo P’na Ku chorou, o Rio


Amarelo e o Yang-Tse foram criados; quando ele respirou, o vento surgiu; quando ele
falou, o trovão soou; e quando ele direcionou o olhar dele, relampejou. No momento da
morte dele, as quatro montanhas sagradas da China foram formadas a partir do seu corpo,
com o Monte Sung sendo o quinto, no meio. Dos olhos dele vieram o sol e a lua. Depois de
um longo tempo, ele reencarnou no ventre de uma virgem, “a mãe sagrada da primeira
causa”, e se tornou um herói venerado. O significado desses mitos do Anthropos como a
origem primordial do cosmos corresponde ao fato de que a nossa completa percepção da
realidade é pré-formada pela nossa psique e pelas nossas estruturas psíquicas.
Nós encontramos noções similares na literatura védica da antiga Índia. Aqui, o
ancestral cósmico da humanidade foi Yama, que, nos posteriores Upanishads, se tornou
Purusha, que significa “homem” ou “pessoa”. Ele representa o Self individual ou o mais
profundo núcleo psíquico em cada indivíduo; mas, ao mesmo tempo, ele também representa
o Self coletivo, até mesmo o Self cósmico, um princípio divino onipresente.
No Rigveda (10.19), as quatro castas surgem do corpo do Purusha de mil olhos.
Subseqüentemente, quando os outros deuses o estavam sacrificando, a lua surgiu da mente
dele, o sol dos seus olhos, o ar, do seu umbigo e, os céus, do seu crânio. “Ele é”, isso nos é
contado, “tudo o que houve e tudo o que haverá... Realmente ele é o eu interior de todos os
seres vivos” (Mundaka Upanishad, 2.1.).
Na antiga religião persa, Gayomart corresponde a essa figura. O nome dele vem de
gayo, “vida eterna”, e maretan, “existência mortal”. Gayomart, que era a semente do bom
deus Ahuramazda, foi o primeiro sacerdote rei. Quando ele foi morto pelo deus mal
Ahriman, os oito metais escorreram do corpo dele. Do ouro, que era a alma dele, brotou um
ruibarbo, do qual surgiu o primeiro casal humano, que produziu a raça humana.
Esses mitos deixam claro, entre outras coisas, a idéia de que a humanidade
originalmente tinha uma alma coletiva: psiquicamente, todas as pessoas eram uma unidade.
Isso aponta para uma observação que nós ainda podemos fazer: em todo lugar em que nós
somos inconscientes, nós não somos distintos das outras pessoas – nós agimos e reagimos,
pensamos e sentimos inteiramente como os outros. Jung utilizou um termo de Lévy-Bruhl
para descrever esse fenômeno, chamando-o de uma participation mystique, ou uma
identidade arcaica. Quando nós analisamos os sonhos de crianças pequenas, nós podemos
com freqüência ver que eles não sonham com os próprios problemas, mas, em vez disso,
com os problemas dos pais deles. Em grupos familiares ou em outras comunidades
intimamente conectadas, os indivíduos freqüentemente sonham com os problemas das
pessoas ao redor deles. Parece que nos níveis mais profundos do inconsciente nós não
podemos nos separar dos nossos semelhantes. A nossa psique inconsciente se funde, por
assim dizer, com a dos outros. O lado negativo desse fenômeno reside no fato de que, na
medida em que nós somos inconscientes, nós somos abertos à infecção psíquica. Os
complexos de outras pessoas podem nos afetar em tal grau que nós somos possuídos por
eles. Eles podem até mesmo desencadear uma possessão coletiva.
Um outro aspecto dessa identidade arcaica aparece no fato de que nós pensamos que
as outras pessoas são psicologicamente exatamente as mesmas que nós somos. Isso parece
nos dar o direito de julgá-las e desejar “endireitá-las”, manipulá-las, ou impor o nosso
ponto de vista sobre elas.
Mas a identidade arcaica também tem um lado positivo. Ela é a base de toda
empatia, o fundamento arquetípico de todos os nossos instintos sociais, até mesmo na
forma da suprema expressão dele, o ágape cristão ou a compaixão universal budista.
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Qualquer sentimento de relacionamento com nossos semelhantes está baseado no arquétipo


do Anthropos; em um certo sentido, ele é a personificação de Eros por excelência.
Na lenda judaica, Adão, o primeiro homem e a versão judaica do Anthropos, é com
freqüência descrito como um gigante cósmico. Deus reuniu poeira vermelha, preta, branca
e amarela dos quatro cantos da Terra para formá-lo. De acordo com o Cabalista Isaac Luria,
todas as almas da humanidade estavam contidas em Adão “como o pavio de uma vela é
entrelaçado por muitas fibras.” Nessa tradição, também, o homem primordial é o Self de
uma nação inteira, de toda a humanidade reunida. Ele é um tipo de espírito do grupo, de
quem todos extraem as suas vidas. A visão de uma alma coletiva também explica por que
certas escrituras sustentam que o corpo de Adam Kadmon é composto de todos os preceitos
da Lei. De um ponto de vista psicológico, isso significaria que a personalidade da
humanidade nesse estágio de desenvolvimento histórico se expressa somente na tradição
religiosa. O indivíduo se torna consciente do Self individual interior dele, ou da “pessoa
eterna”, somente por meio da tradição religiosa, pois somente aquela tradição expressa a
essência espiritual do ser dele. Como mostrado por Helmuth Jacobsohn, o egípcio do
período do Reino Médio (até 2.200 a.C.) ainda acreditava que ele encontrava a alma
pessoal, não-coletiva, dele, somente depois da morte, na forma da então-chamada alma ba,
um ser na forma de um pássaro que encarnava o verdadeiro Self interior dele. Durante a
vida dele, no entanto, o egípcio sentia ser real somente como um membro da comunidade,
somente até o ponto em que ele agia de acordo com as regras e leis da religião dele.
Somente depois de 2000 a. C. é que os egípcios começaram a perceber a
individualidade deles de um modo mais consciente e começaram a tentar situá-la na vida
presente. Isso levou à difusão dos mistérios de Isis-Osiris, que se fundiram com outros
cultos de mistério da região mediterrânea que tinham significados similares. Todos eles
apresentavam certos aspectos do processo de individuação de uma forma simbólica
projetada.
Aqui nós encontramos um paradoxo confuso. O símbolo do Anthropos parecia ao
indivíduo representar o seu Self, ou seja, o núcleo singular e mais profundo da
personalidade individual dele; mas, ao mesmo tempo, nos mitos e religiões, ele
representava o “totem” da humanidade – o fator arquetípico que, de forma muito ativa,
produz todos os tipos de potencialidade para um relacionamento pessoal positivo.
Claramente, os filósofos do Hinduismo estavam corretos quando eles descreveram Purusha
como o Self mais profundo de cada ser humano e, ao mesmo tempo, como um tipo de Self
cósmico. Nesse símbolo, os opostos do um e do múltiplo são reconciliados: é individual e
coletivo ao mesmo tempo.
Em termos práticos, o que isso significa é que quanto mais nós individuamos, ou
seja, quanto mais nós nos tornamos nós mesmos, mais capazes nós somos de nos
relacionarmos com nossos companheiros seres humanos e mais próximos nós ficamos
deles. Como Jung assinalou, nós só podemos atingir a inteireza interior por meio da psique,
e a psique de um ser humano não pode existir sem relacionamento com outros seres
humanos. Mas não se pode ter um relacionamento genuíno com outra pessoa até que se
tenha, por meio de um processo psíquico interno de união dos opostos, se tornado si-
mesmo. Jung diz:
Se a consolidação interna do indivíduo não é uma realização
consciente, ela ocorrerá espontaneamente e irá então assumir a bem
conhecida forma daquele incrível enrijecimento que o homem
coletivo (massificado) mostra para o seu semelhante. Sua alma,
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que só pode viver nas e das relações humanas, se perde


inevitavelmente... uma vez que sem o reconhecimento e a aceitação
conscientes do nosso vínculo com o próximo, não pode haver a
síntese da personalidade... A relação com o Self é ao mesmo tempo
a relação com o próximo. E ninguém se vincula com o outro, se
antes não se vincular consigo mesmo. (JUNG. O.C. Vol. XVI, par.
444-445).
Esse estado de coisas paradoxal é expresso por meio do símbolo do Anthropos, que
é o centro interno de cada um de nós e, ao mesmo tempo, o símbolo totêmico de toda a
humanidade. O Anthropos não só reconcilia os opostos do indivíduo e da multidão, mas
também os opostos das pessoas comuns e das culturalmente sofisticadas. Em sonhos e
fantasias, ele com freqüência aparece como um homem anônimo das classes mais baixas,
especialmente quando a atitude consciente do ego tende em direção a um esnobismo
estético, social ou intelectual. Ele também aparece com a mesma freqüência como uma
figura real – quando um indivíduo se sente esmagado por um senso de sua insignificância
coletiva. O Anthropos é muito simplesmente o ser humano, em seus mais elevados e mais
rebaixados aspectos. Cristo, a figura do Anthropos na nossa cultura, é assim referido tanto
como “o rei dos reis” e como “o menor de nós”, ou o escravo desprezado.
Pesquisadores modernos da psicologia de grupo mostraram que todos os grupos,
depois do caos inicial, começam a se concentrar ao redor de um centro. Esse pode ser o
líder do grupo ou uma idéia, uma causa, um tema de discussão, e assim por diante. O centro
pode assim ser – como freqüentemente é o caso nos clubes esportivos ou em grupos
políticos ou comerciais – um simples objetivo comum, ou ele pode estar em um nível mais
elevado, como é o totem nas comunidades primitivas ou a imagem de Deus nas culturas
mais altas. Quanto mais arquetípico o centro é, mais sólido e duradoura é a coesão do
grupo.
São as religiões mundiais que até aqui mantiveram os maiores grupos humanos
juntos. O centro delas é o símbolo do Anthropos: Buda, Cristo, Maomé. Vivendo
externamente a totalidade interna deles ao máximo, esses homens atraíram a projeção do
Self – ou do homem cósmico ou do espírito cósmico divino – para eles. Tanto Buda quanto
Cristo foram, desse modo, retratados como uma mandala ou o “habitante interno” dela, o
centro de uma mandala. Na nossa época, o marxismo também começou a desempenhar um
papel que não é distante daquele de uma religião. O seu Anthropos mítico não é, no
entanto, projetado em uma pessoa individual – talvez com a exceção de Mao Tse-tung (na
União Soviética o culto à personalidade foi proibido) – mas na totalidade de um estrato
social. É, como Robert Tucker demonstrou, a classe trabalhadora, que é exaltada como a
encarnação da pessoa humana individual, nobre, criativa e desimpedida, como um gigante
que será capaz de superar todas as dificuldades, para citar Marx. Ela não tem sombra – ou
melhor, ela é projetada nos capitalistas e nos imperialistas.
Pode-se ver a mesma coisa, por exemplo, nas idéias utópicas do reformador chinês
K’ang Yu Wei, que ainda vem sendo intensamente lido na China comunista. Todo o
sistema dele é baseado no conceito de jen, que significa humanidade, amor social, e
responsabilidade. No entanto, isso tem que ser atualizado exclusivamente por meio de
medidas políticas e sociais externas. Ninguém parece estar consciente do fato simples e
óbvio de que sem jen no indivíduo não pode haver nenhum na sociedade – e que nós
devemos primeiro encontrar a fonte de jen dentro de nós mesmos, isto é, em nosso próprio
Self, antes que nós possamos estabelecer relacionamentos com nossos semelhantes. Em
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outras palavras, o fator de humanidade ou de amor é projetado em um grupo e, desse modo,


é infinitamente fragmentado.
Essa projeção marxista tem como conseqüência uma multiplicação coletiva do Self,
que é, assim, desintegrada no indivíduo e na sociedade. Quando a idéia de comunidade é
exacerbada, ela leva a um medo e a uma desconfiança gerais. Mesmo em pequenas
comunidades, a voz interior do Self no indivíduo é abafada, e, na mesma medida, o ego
com a sua vontade de poder é fortalecido. Isso resulta em uma regressão do princípio de
coesão do grupo para um nível arcaico, para padrões de comportamento parecidos com o de
animais, como nós podemos ver hoje em dia, por exemplo, em vários grupos jovens e na
reativação de símbolos totêmicos por eles. Em uma maior escala, a desilusão em massa do
Nazismo também exibiu todos os sintomas de tal regressão: Wotan, como a imagem de
Deus, que estava encarnada em Hitler. A águia negra e os totens com crânios com as
implicações terríveis e a concomitante psicose de massa. Até mesmo pequenos grupos, que
sabemos que são mais sensatos do que os grupos maiores, podem subitamente cair em um
estado de possessão emocional, como pode ser observado de tempos em tempos. Desse
modo, na sociologia moderna, a massa tende a ser avaliada negativamente, enquanto grupos
são vistos em termos positivos. Isso me parece, no entanto, deixar de lado o ponto
essencial, uma vez que tanto a massa quanto o pequeno grupo podem ser tanto sensatos
quanto possuídos. Um grupo ditatorial composto de uma pequena e poderosa panelinha
pode agir de modo tão perigoso como as massas cegas. A real distinção deve ser encontrada
em outro lugar: tudo depende de quantos indivíduos estão conscientes e pessoalmente
relacionados com os Selves internos e, como conseqüência, não projetam as sombras deles
nos outros. Isso e somente isso é capaz de evitar uma deflagração de histeria coletiva e de
ilusão de massas.
Assim, nós devemos retornar ao problema dos arquétipos e à questão de se percebê-
los conscientemente ou de se ser possuído por eles. Eu já descrevi como é a possessão pela
anima ou pelo animus nos homens e nas mulheres. Mas o arquétipo do Self também é capaz
de desencadear uma possessão, cujo efeito é o de que um indivíduo se identifica com o
“grande homem” ou com a “mulher sábia” internos e, como conseqüência, se torna
desesperançosamente inflado. Todo hospício tem alguns poucos Jesus Cristos, Napoleões,
presidentes dos Estados Unidos e Virgens Maria. Quando as pessoas estão
indiscutivelmente loucas, o perigo termina aí. No entanto, há muitas pessoas que somente
secretamente se superestimam, por meio de uma identificação com uma figura de Self. Em
tais casos, eles apenas se sentem um pouquinho demais, e isso é uma das piores coisas que
podem ocorrer. Eles se tornam secretamente desumanos como conseqüência de alguma
convicção fanática ou de atitude correta. É exatamente isso que se encontra por trás de
muitos massacres da nossa época, muito mais do que as deflagrações de indivíduos com os
quais nós estamos familiarizados como sendo a causa de assassinato e de homicídios. A
maioria dos que colocam bombas em lugares públicos tem uma convicção “correta” na
cabeça deles, que, aos olhos deles, justifica o que eles fazem.
Todo fanatismo ideológico e todo afeto esmagador advêm da constelação de um
arquétipo. O arquétipo do Self não é uma exceção a isso. Ele também pode produzir esses
tipos de efeitos. Assim, nós devemos ter um grande respeito pelos velhos xamãs esquimós,
que, relacionando-se com o mundo dos espíritos, eram capazes de só serem curadores e de
não se deixarem ser possuídos pelos poderes deles. Aqueles que se tornavam possuídos
pelos espíritos estavam doentes aos olhos deles. Eles causavam cismas na comunidade mais
do que a ajudavam.
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Agora, considerando a nossa situação presente no hemisfério ocidental, nós


podemos desenhar a seguinte cena geral. Cristo, a figura do Anthropos Ocidental, uniu a
humanidade por um milênio e meio. Nós éramos, pelo menos teoricamente, todos “irmãos e
irmãs no Senhor”. Cristo, como o segundo Adão, era também o homem primordial; ele era
o Deus-homem, e, de acordo com as experiências dos místicos, o Self mais profundo de
cada indivíduo. No entanto, o fato de Cristo ser apenas bom – o mal não é parte dele, mas é
atribuído ou ao homem ou ao diabo – significava que ele não podia reconciliar todos os
opostos. O que não podia encontrar lugar na totalidade dele era projetado nos pagãos ou em
outras pessoas e poderes fora da cristandade. Isso, junto com a ascensão e a crescente
sobrevalorização do racionalismo – um último descendente da escolástica – enfraqueceu o
símbolo de Cristo a um grau sempre crescente. Assim, um grande número de pessoas
perdeu o símbolo religioso que havia inicialmente mantido as pessoas no Ocidente unidas.
Muitas pessoas agora procuram-no no Budismo, outros no Marxismo com os símbolos
totêmicos regressivos dele, e outros ainda simplesmente se sentem perdidos e aderem a
idéias e valores superficiais enquanto assumem uma atitude genérica cristã diante de seus
semelhantes. No entanto, essa é uma abordagem tão anêmica que, em situações críticas, ela
imediatamente entra em colapso e dá lugar a uma barbárie arcaica.
No entanto, como em todas as neuroses, quer no indivíduo, quer no coletivo, o
inconsciente aqui também mostra a sua tendência de reconciliar os opostos mais uma vez e
de curar a cisão. Nós ainda não somos capazes de prever como isso ocorrerá em uma escala
mundial, mas nós já podemos ver agora e termos como certo que uma nova figura de
Anthropos, que guarda uma semelhança com o “homem redondo ou quadrado” ou o
“verdadeiro homem” dos alquimistas, está se formando no inconsciente coletivo. Ela não é
uma figura anti-Cristã, mas, por assim dizer, uma forma mais completa de Cristo, uma que
realmente contém os opostos do indivíduo e do múltiplo, do masculino e do feminino,
mente e matéria, e bem e mal Essa figura aparece em cada processo de individuação que se
aprofunda o suficiente. Até agora, ela só surgiu como a experiência interna de indivíduos
que a procuram, que desistiram da luta externa deles e olharam para as suas próprias
sombras para alcançar um relacionamento mais profundo e mais autêntico com seus
semelhantes. Perto do fim de sua vida, Jung não estava particularmente otimista quanto ao
nosso futuro. Muita coisa apontava para a guerra, para a psicose de massas e para o desastre
iminente. Mas uma coisa parecia certa para ele: somente se um número adequado de
indivíduos se tornasse consciente no sentido que nós descrevemos poderia a nossa
civilização se renovar e sobreviver. De outro modo, nós certamente regrediríamos à
barbárie, a uma mentalidade tribal regressiva, à guerra sem fim, possivelmente ao ponto da
extinção final.
Dado que a psicologia junguiana não é muito difundida entre as massas, nós
devemos nos perguntar como ela pode ser de alguma utilidade para o mundo, dado que o
processo de individuação é a única ajuda para esse problema e a sua única solução. A isso,
nós podemos responder que o processo de individuação não é só determinado pela análise
junguiana, mas é, em si mesmo, um processo natural, que pode ser levado a uma conclusão
frutífera por todo indivíduo que trabalhe em si mesmo com honestidade e perseverança. O
êxito de Jung consiste primariamente em ter trazido esse processo à consciência e em ter
descoberto como é possível apoiá-lo. Fundamentalmente importa pouco como esse
processo é chamado, desde que ele seja experienciado conscientemente. Baseado no que eu
tenho visto, há também caminhos estranhos e incomuns encontrados por pessoas incomuns
com a ajuda do inconsciente. O Anthropos reúne todas elas. Talvez os poderes curadores do
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inconsciente coletivo mais profundo nos salvarão e produzirão uma nova forma de
comunidade humana. Mas as forças divisoras daqueles que estão possuídos por demônios,
isto é, por complexos inconscientes unilaterais e as idéias e emoções distorcidas que são
parte deles – também são poderosas. Não há sentido em negar a existência deles ou em
lutar contra eles. O “verdadeiro ser humano”, como Jung chamava o Self, nunca tomará
parte no jogo de “pastor e ovelha”, porque ele tem o suficiente para fazer apenas com ele
mesmo. Ele mergulha fundo nos níveis da psique mais profundos, onde na verdade ele é um
com a humanidade toda, além do alcance das lutas de poder diárias. Desse nível vem a
criatividade. Uma pessoa só pode ser criativa em conexão com o “homem comum” dentro
dela mesma – e é por isso, talvez, que dessas profundezas, nós possamos ser capazes de
renovar a nossa cultura.

VON FRANZ, M. L. Individuation and Social Relationship in Jungian Psychology.


In:_______. Archetypal dimensions of the psyche. Shambhala: London, 1999.

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