Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A partir das ciências humanas e da filosofia, embora sem nelas se bastar, o curso pretende
aproximar-se do tema do Antropoceno (proposição de uma nova época geológica marcada pelos
impactos em escala e velocidade de certas ações antrópicas na auto-regulação do planeta).
Encarar a fusão entre modalidades de saber tradicionalmente separadas em “ciências do espírito”
e “ciências da matéria” parece ser passagem obrigatória para abordagens as mais realistas do
tema. Como acontecimento e objeto de estudo, o Antropoceno põe em causa, de modo inédito, as
abordagens estritamente disciplinares. Considerá-lo exige afrontar qualquer exclusivismo
pretendido por áreas ou domínios do conhecimento. Consequentemente, tal programa de
investigação deve desconfiar, logo de partida, da autonomia ou suposta suficiência dos dois
grandes repertórios epistemológicos e críticos da modernidade, ambos derivados das “duas
culturas” (C. P. Snow), e que hoje podemos identificar como, de um lado, o “humanismo
multicultural”, e, de outro, o “mononaturalismo”. Nesse sentido, é como se, por exemplo, não
fizesse mais sentido separar a agenda dos Direitos Humanos da agenda dos Direitos Ambientais.
Um tal emaranhado, devidamente explorado, tem impactos significativos nas bases
epistemológicas da modernidade (conforme definição de Bruno Latour). Em seu lugar, outras
visadas pedem passagem. Contra as infecundas Guerras das Ciências (Science Wars), ganham
força as reviravoltas ontológicas (Ontological Turn) e outras viradas que permanecem ainda sem
um nome.
Dentre os chamados inelutáveis do Antropoceno, destaque-se, em outras palavras, a
urgência por conexões – ou sobretudo outras conexões – entre áreas ou domínios
tradicionalmente divisados pela modernidade. Que pode agora, por exemplo, a economia sem a
ecologia? Daí a pertinência, a cada vez crescente, de frentes forçosamente transdisciplinares,
como a Bioeconomia e a Economia Ecológica. Entram em cena, nos termos de Isabelle Stengers,
os contraintes (constrangimentos) de Gaia, essa figuração do planeta agora restaurada, sob mil
nomes, no século XXI. Tais constrangimentos, terríveis ou promissores, fazem emergir narrativas
etnograficamente orientadas que reavivam as descrições, como a que se convencionou designar
por estudos multiespécies. O curso deve se aproximar da usina dessas novas imaginações teóricas
que encaram o Antropoceno como uma espécie de forçante do pensamento contemporâneo.
Torna-se assim inevitável, por exemplo, refletir sobre a assunção de novas figurações do
“Anthropos” e suas ciências quando agora, no Antropoceno, humano e não-humano já não se
deixam mais tomar como simplesmente descontínuos entre si, em seus supostos contornos
auto-evidentes. Tal corresponde a perguntar: qual ciência do propriamente humano no
Antropoceno? Qual a do propriamente não-humano? Abre-se assim uma passagem, ainda que
exígua, na qual se vislumbra o horizonte do além do homem? O evidente se desconcerta diante
de novas e profusas evidências. Mas são estas o signo de qual ordem? Como forjar um discurso
capaz de articulá-las e sem moldá-las a expectativas prévias e restritivas?
Viradas, reviravoltas, torções nos hábitos de pensamento – eis aí as chances que os
modernos passam a reunir para que, finalmente (ou diante da escatologia contemporânea de “fim
do mundo”), possam se tomar como jamais tendo sido modernos. De fato, algum dia a teoria da
evolução e a geologia ofereceram as reconfortantes perspectivas que se esperavam delas? Não é
chegado o tempo de explorar as sendas desses discursos, prospectando neles não bem uma ideia
de natureza, mas potencialidades inauditas acerca do vivente? Que política do conceito se
extrairia daí? Certamente, para falamos com Rancière, uma nova e inesperada “partilha do
sensível”.
Quando o cosmos e a política se mostram tão embaraçados e inextricáveis entre si, novas
diplomacias se insinuam como possíveis. É trabalho de desestabilização do pensamento e da
prática rumo a novas estabilizações provisórias, hauridas em vivas controvérsias sociotécnicas e
disputas por narrativas, mas não por isso menos objetivas. Bem ao contrário, estamos face à
eleição de uma neo-objetividade, um neo-realismo emergindo da abertura das ciências umas em
relação às outras – e mesmo em relação ao que, por contraste, se designará por “não-científico”.
De sua parte, a arqueologia, a geologia e a biologia combinam métodos de prospecção e
sondagem que almejam alcançar consenso ou estabilidade na comunidade acadêmica com
relação ao conjunto de marcadores ou assinaturas geoquímicas de tecnofósseis que tornem mais
precisa e suficiente a datação da nova época geológica do Antropoceno. É o que neste momento
se passa com os trabalhos da Comissão Internacional de Estratigrafia, organismo da União
Internacional de Ciências Geológicas. Quanto à política, sua agência se redistribui e ganha
figurações não-humanas diante da já explícita invasão do cosmos em seu seio. A natureza passa a
inspirar a política de um modo nunca antes concebido pelo ocidente moderno. As ciências e a
política são agora convocadas a se colocar em presença daquilo que geram ou mobilizam no
mundo. São chamadas a responder com responsabilidade (“response-abilities”, para mencionar o
neologismo de que Donna Haraway se vale) pelos imbróglios a um só tempo humanos e
não-humanos que se pode flagrar nos cursos da ação. Doravante, os modernos estarão diante do
imperativo de se desenvolver uma atenção às consequências de suas ações no mundo. Eis o que
Stengers (2013) nomeia como “arte das consequências” – desafio certamente incontornável nas
passagens diplomáticas do “povo da mercadoria” (Davi Kopenawa) para o “povo de Gaia”
(Latour). Pergunta retórica: serão estas passagens uma opção?
Para alunos de Graduação a bibliografia mínima está em vermelho
Cronograma de aulas:
1a sessão – 10.09
Apresentação do curso, do programa e dos ministrantes
2a sessão – 17.09
Pedro Paulo Pimenta
Título da aula: “Antropoceno. Anotações para a história de uma ideia”.
Referências bibliográficas
● Buffon - Das épocas da natureza (1778)
<http://editoraunesp.com.br/Download/SuplementoHistoriaNaturalDasEpocas daNatureza.pdf>
● Cuvier - Discurso sobre as revoluções da superfície do globo (1832)
https://www.researchgate.net/publication/340253506_Traducao_da_obra_de_Georges_Cuvier_D
iscurso_sobre_as_revolucoes_da_superficie_do_Globo_Discours_sur_les_revolutions_de_la_sur
face_du_Globe_1825_contendo_Determinacao_das_aves_denominadas_ibis_pelos_an
● Gould, S. J. (1991). Seta do tempo, ciclo do tempo. Tradução de Carlos Alfonso
Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras.
● Jacob, F. (1970; 1983). A lógica da vida. Tradução Ângela Loureiro de Souza. Rio de
Janeiro: Graal.
● Kolbert, E. (2015). A sexta extinção.Uma história não-natural. Tradução Mauro
Pinheiro. Rio de Janeiro: Intrínseca. [Cap. I e V]
Bibliografia Complementar
Bernard, C. (1878; 1966). Leçons sur les phenomènes de la vie communs aux animaux et
aux végétaux. Préface de Georges Canguilhem. Paris: Vrin.
Buffon. (1788; 1988). Les époques de la nature. Édition critique de Jacques Roger. Paris:
Éditions du Muséum de Paris.
. (2018). The Epochs of nature. Translated and edited by Jan Zalasiewicz, Anne-Sophie
Milon, and Mateusz Zalasiewicz. Chicago: The University of Chicago Press.
Cuvier, G. (1825). Discours sur les révolutions de la surface du globe. Paris: Dufour et
D’Ocagne.
Darwin, C. (1859; 2020). A origem das espécies. Tradução Pedro Paulo Pimenta. 3ª
edição. São Paulo: Ubu Editora.
Lamarck, J. B. (1809; 2021). Filosofia zoológica. Tradução Janaina Namba, Celi Hirata e
Ana Soliva. São Paulo: Editora Unesp.
Lyell, C. (1836; 1997). The Principles of Geology. Edited with an introduction by James
A. Secord. Londres: Penguin.
Smith, W. (1815; 2020). Strata. William Smith’s Geographical Maps. Edited by Douglas
Palmer with a foreword by Robert MacFarlane. Chicago: Oxford Museum of Natural
History/University of Chicago Press.
Godfrey-Smith, P. (2020). Metazoa. Animal Life and the Birth of the Mind. Nova York:
Farrar, Straus and Giroux.
Ingold, T. (2011). The Perception of the Environment. Essays on Livelihood, Dwelling
and Skill. Londres: Routlegde.
Taquet, P. (2019). Georges Cuvier. Anatomie d’un naturaliste. Paris: Odile Jacob.
3a sessão – 24.09
André S. Bailão
Título: "Ruínas, secas e desertos: paisagens e clima e a crítica ambiental na história das ciências
(séc. XVIII e XIX)"
Leituras:
● Cronon, William. (1992). "A Place for Stories: Nature, History, and Narrative", The
Journal of American History, 78 (4), 1347-1376.
Tradução para o espanhol: Cronon, "Un lugar para relatos: naturaleza, historia y
narrativa" in: G. Palacio Castañeda, A. Ulloa (eds.) Repensando la Naturaleza.
Reflexiones desde la Historia Ambiental, p. 30-65.
● Grove, Richard. "The Culture of Islands and the History of Environmental Concern",
Harvard Seminar on Environmental Values, 18 abril 2000. Disponível em:
http://ecoethics.net/hsev/200004txt.htm (Haverá uma versão em português disponível
até a aula).
Leituras complementares
● Davis, Diana K. "Desert ‘wastes’ of the Maghreb: desertification narratives in French
colonial environmental history of North Africa”, Cultural Geographies, 11, 2004: pp.
359–387.
● Cushman, Gregory T. “Humboldtian Science, Creole Meteorology, and the Discovery of
Human-Caused Climate Change in South America”, Osiris, 26 (1), Klima, 2011: p. 16-44
● Endfiel, G. & Nash, D. (2002) "Drought, desiccation and discourse: Missionary
correspondence and nineteenth-century climate change in central southern Africa",
Geographical Journal, 168 (1): 33-47.
● Pádua, José Augusto. "Aniquilando as Naturais Produções": Crítica Iluminista, Crise
Colonial e as Origens do Ambientalismo Político no Brasil - 1786-1810", Dados, 42 (3),
1999). Disponível em:
https://www.academia.edu/20036386/_Aniquilando_as_Naturais_Produ%C3%A7%C3%
B5es_Cr%C3%ADtica_Iluminista_Crise_Colonial_e_as_Origens_do_Ambientalismo_Po
l%C3%ADtico_no_Brasil_1786_1810_1999_
● Pádua, J. A. (2009) "Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico" In: K. Grinberg, R.
Salles (orgs.), O Brasil Império, Vol. III, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira,
2009, p. 313-365. Disponível em:
https://www.academia.edu/11614647/Natureza_e_Sociedade_no_Brasil_Mon%C3%A1rq
uico_2009_
4a sessão – 01.10
Stelio Marras: "O Antropoceno, essa máquina de desestabilizar o pensamento"
ou
"A inteligibilidade em colapso: algumas ressalvas e cautelas na compreensão do Antropoceno"
Bibliografia complementar:
● Latour, Bruno. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio
de Janeiro, Bazar do Tempo, 2020.
● Tsing, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília,
IEB/Mil Folhas, 2019.
● Serres, Michel. O contrato natural. Lisboa, Instituto Piaget, 1990.
5a sessão – 08.10
Joana Cabral de Oliveira: "Notas sobre a implosão do humano e as fissuras do capital"
Bibliografia complementar:
● Viveiros de Castro, Eduardo e Danowski, Debora. Há um mundo por vir?. 2014.
● Kopenawa, Davi & Albert, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um Xamã
Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
6a sessão – 15.10
Karen Shiratori: "Ecologia decolonial e contradomesticação: reflexões sobre o plantationceno"
Bibliografia complementar:
TSING, Anna. 2018. "Nine provocations for the study of domestication". In: Domesticationg
gone wild: politics and practices of multiespecies relations. Heather Anne Swanson, Marianne
Elisabeth Lien, Gro B. Ween (orgs). Durham : Duke University Press, 2018. Pp.: 231-251.
MITMAN, Gregg. Reflections on the Plantationcene: A conversation with Donna Haraway and
Anna Tsing. In: The Plantationocene Series: Plantation Worlds, Past and Present:
https://edgeeffects.net/plantationocene-series-plantation-worlds/
SHIRATORI, Karen; CANGUSSU, Daniel; FURQUIM, Laura. “Life in tree scenarios: plant
controversies between Jamamadi gardens and Hi-Merimã patauá palm orchards (Middle Purus
River, Amazonas, Brazil)”. (prelo)
LIEN, Marianne Elisabeth et al. 2018. “Introduction: Naming the Beast - Exploring the
Otherwise”. In: Domesticationg gone wild: politics and practices of multiespecies relations.
Heather Anne Swanson, Marianne Elisabeth Lien, Gro B. Ween (orgs). Durham : Duke
University Press. Pp. 1-23.
HAUDRICOURT, André. 1962. “Domestication des Animaux, Culture des Plantes et Traitement
d'Autrui.” L'Homme II (1): 40-50.
CLEMENT, C.R. 1999. “1492 and the loss of Amazonian crop genetic resources. I. The relation
between domestication and human population decline”. Economic Botany, v.53, n.2: 188-202.
7a sessão – 22.10
Renato Sztutman - "Ciência e ficção: especulação e imaginação para resistir no
Antropoceno"
● Danowski, Déborah & Viveiros de Castro, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os
medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014. [capítulos a definir]
● Haraway, Donna. Staying With the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham:
Duke University Press, 2016. [capítulos a definir]
● Le Guin, Ursula. Os despossuídos. São Paulo: Aleph, 2019.
● Limulja, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami (Pya ú –
Toototopi). [Cap. 5 - "Do sonho ao mito"]. Tese de doutorado. Florianópolis: UFSC,
2019.
● Stengers, Isabelle. "Penser à partir du ravage écologique". In: Hache, É. (ed.) De
l'univers clos au monde infini. Paris, Éditions Déhors, 2014.
● Stengers, Isabelle. "L'insistance du possible". In: Stengers, I. & Debaise, D. (eds.)
Gestes Spéculatifs. Paris: Les presses du réel, 2015.
Bibliografia complementar:
8a sessão – 05.11
Renzo Taddei: “Pensamento, ação e meio ambiente no Antropoceno”
Bibliografia complementar:
9a sessão – 12.11
Eduardo Neves "Entre o passado e o fim do mundo: do Holoceno ao Antropoceno"
Bibliografia complementar:
● Chakrabarty, Dipesh. “The Climate of History: Four Theses”. Critical inquiry 35.2:
197-222; 2009.
● Crutzen, P. J. “Geology of Mankind”. Nature 415, 2002.
● Scott. James C. Against the Grain: A Deep History of the Earliest States, Yale
University Press, 2017 (Introdução e Capítulo 1).
● Zalasiewicz, Jan, et al. “The Working Group on the Anthropocene: Summary of
evidence and interim recommendations”. Anthropocene 19: 55-60, 2017.
● Demos, T. J. (2016) Decolonizing Nature - Contemporary Art and the Politics of Ecology,
Berlim: Sternberg Press.
● Davis, H.; Turpin, E. (org) (2015). Art in the Anthropocene - Encounters among
aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies, Open Humanities Press.
● Mirzoeff, N. (2014). “Visualising the Anthropocene”. Public Culture 26:2: Duke
University Press.
● Catálogo da conferência-dançada «Antropocenas » (2017), de João dos Santos Martins e
Rita Natálio
Referências artísticas
https://www.paulotavares.net/treesvinespalms-text
https://www.hkw.de/en/programm/projekte/2018/mississippi_an_anthropocene_river/mississippi
_an_anthropocene_river_start.php
https://kadist.org/work/mermaids-or-aiden-in-wonderland/
Trabalho de final:
Formular, com base nas discussões e leituras do curso, uma reflexão em forma de ensaio ou
intervenção.
Critérios de avaliação:
Participação em aula, frequência e trabalho final