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Introdllfão
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"E uma cidade à parte". Esta foi a defmição escolhida pelo poeta e cro-
nista Olavo Bilac para sintetizar, em 1908, o que seria a favela carioca. Não havia
muito, o prefeito Pereira Passos tornara quase real o sonho da burguesia metro
politana de transformar o Rio de Janeiro na Paris da América do Sul. Extellllina
ra as "habitações anti-higiênicas" do centro, abrira grandes avenidas com ares de
boulevards, seguira à risca o modelo haussmaniano de urbanização. Mas, para
desgosto seu e da elite que o apoiava, um efeito perverso brotou, morro acima,
com a mesma rapidez e determinação com que a avenida Central (hoje avenida
Rio Branco) assumira ares europeus. Os "resíduos" da modernização - os desa
lojados dos cortiços e os que haviam migrado de outras regiões para trabalhar nas
obras de remodelamento- encontraram solução para seu problema habitacional
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grupos formadores da sociedade brasileira" (Brasil, 1988). E óbvio que tal defini-
ção, apesar de aparentemente neutra e inclusiva, está longe de dispensar critérios
políticos que irão determinar o que deve e pode ser preservado. São decisões polí
ticas que definem quem tem direito à memória, a quem cabe realizar o inventário
de bens que podem gozar do status de patrimõnio e por que caminhos determi
nado bem cultural será preservado (Stam, 1993; Prentice, 2001). Ademais, a pre
servação de qualquer objeto, processo ou prática cultural não constitui, pelo ato
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e também [os] pequenos museus do interior, e mais ainda [os] museus portáteis,
tão caros aos homens e mulheres do povo" (Gil Moreira, 2005: 7). E o relatório
conclui: "Hoje, o centro de gravidade da política cultural do Brasil passa pelo
território dos museus"2
Os casos que apresento aqui devem ser tomados, portanto, como exem
plos de uma dupla requalificação recente: da favela, que busca ser vista como par
te historicamente relevante da cidade, assumindo uma visibilidade distinta daquela
que a associa à violência; e a da própria noção de patrimônio, que se distancia de
suas definiçôes mais cingidas, tem revistas suas instâncias de validação e passa a
qualificativo de um território geográfico e simbólico ainda amplamente estig
matizado.
formada para, na parte de cima, funcionar como museu. Ali estão expostas fanta
sias, fotografias, adereços e outros objetos que foram coletados por Dodô ao lon
go de seus 84 anos e que ajudam a constituir a memória do carnaval carioca.
Dos três mirantes que compõem o museu, o visitante tem uma vista pri
vilegiada da cidade com suas imagens de cartão-postal -Pão de Açúcar, Corcova-
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dicativa da Prefeitura; as casas mais antigas nao recebem placas, mas são "apre
sentadas" aos turistas pelos guias; as demais construções, cujo potencial turísti
co é aparentemente nulo, são ignoradas e convivem com o lixo e o esgoto
não-tratado.
Mundo afora, museus a céu aberto, ecomuseus ou museus vivos são for
mas híbridas que mesclam características dos museus convencionais com espa
ços abertos, em que narrativas próprias aos museus imeragem com a paisagem
para construir representações do patrimõnio geográfico e histórico de localida
des específicas.6 Neste sentido, problematizam dicotomias que tradicionalmen
te deram norte às políticas de distinção (passado x presente; processo x produto;
popular x erudito, público x privado) e ampliam o repertório de atribuição de va
lor no campo cultural. Os que lhe fazem oposição apontam para o risco que esses
tipos de museus correriam de reproduzir ambientes ao estilo Hagenbeck, carac
terístico das exibições coloniais de fins do século XIX em que as sociabilidades
das "culturas primitivas" eram duplicadas em cera ou encenadas por "grupos na
tivos" para apreciação do olhar europeu (Stam, 1993; Prentice, 2001). No caso da
Providência, o museu corre justamente o risco de promover a favela, sua paisa
gem, arquitetura, objetos e moradores, não tanto como entidades complexas no
presente, mas como significantes de eventos passados. O projeto prevê o
"congelamento" de barracos de madeira, vielas e becos, o que na prática
significará a desapropriação de algumas casas e a compra de parte de seu
mobiliário para que o turista saiba como é uma "moradia típica da favela".
Antes mesmo da inauguração do museu, alguns turistas visitavam a fa
vela de maneira esporádica. Um aumento nesse fluxo, conseqüência do estabele
cimento da Providência como patrimônio, é percebido como potencialmente lu
crativo pelos moradores, que já produzem artesanatos e camisetas postos à venda
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de partida". Há, contudo, limites a essa inversão que, sendo possível no nível do
discurso, na prática tem que enfrentar trincheiras violentamente resguardadas
pelo narcotráfico e pela polícia. Assim que a obra da capela centenária ficou
pronta, a edificação foi atingida por mais de 10 tiros. A Casa-Museu Dodô da
Portela amanheceu metralhada após um tiroteio entre traficantes e o Batalhão de
Operações Especiais ocorrido em março de 2006. Petersen (2006) admitiu a ex
pectativa de que a presença dos turistas no local ajudasse a conter a criminal ida
de, mas o fato é que essa presença não se viabiliza justamente porque faltam con
dições de segurança. A solução encontrada até aqui não deixa de ser algo irônica:
operar com visitas agendadas junto ao Célula Urbana a tim de que, comunicadas
previamente ao Comando da PM, não coincidam coln as datas de operações
policiais.
o Museu da Maré
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que foi uma das primeiras TVs comunitárias da cidade do Rio de Janeiro, hoje
extinta, eram gravadas entrevistas com os moradores e, em seguida, divulga
vam-se os depoimentos por meio de telões instalados nas praças e ruas do com
plexo. Os moradores discutiam, então, as várias versões para acontecimentos
passados, relembravam o processo de ocupação das diferentes localidades e res
gatavam o surgimento de movimentos populares na região (Cantarino, 2006). A
iniciativa se desdobrou no projeto Rede Memória da Maré, que "funciona como
centro produtor, receptor e difusor de material informativo sobre o bairro"
(Ceasm, 2006). Hoje, a Rede Memória - com seu expressivo acervo de fotos, re
portagens, depoimentos e trabalhos acadêmicos sobre a localidade - é nacional
mente reconhecida, tendo recebido o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade
na categoria "salvaguarda de bens de natureza imaterial".12
O Museu da Maré deve ser contextualizado, sem dúvida, no árnbito des
tas iniciativas levadas a cabo pelo Ceasm e no cenário mais amplo de projetos que
têm a memória das favelas como tema. 13 Cláudia Rose Ribeiro da Silva, historia
dora e coordenadora da Rede Memória, oferece uma justificativa para essas
ações, que vai ao encontro daquela utilizada pela Prefeitura no caso do Museu da
Providência: "Apesar das distãncias sociais criadas e dos preconceitos, é preciso
lembrar que as histórias dos bairros do subúrbio e das favelas fazem parte da his
tória da cidade do Rio de Janeiro como um todo" (apud Cantarino, 2006). O texto
afixado na entrada do Museu da Maré também reforça esse argumento, que pre
tende costurar, com a linha da história, favela e cidade em um tecido contínuo:
"Nesse lugar, onde muitos só enxergam a violência, nasce uma nova maneira de
contar os tempos da cidade, a partir do diálogo, da troca e do respeito à diversida-
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o museu fica num galpão de 600 metros quadrados cedido pela antiga
Companhia Libra de Navegação, desativada há 25 anos. O espaço divide-se em
galerias que tematizam diferentes "tempos" - casa, água, resistência, trabalho,
criança, cotidiano, feira, festa, fé, medo e memória - e contam quase 70 anos de
história através de fotografias, objetos e documentos. Este acervo foi, em boa par
te, doado pelos próprios moradores, como a imagem de São Pedro, que enfeita o
barco de pesca exposto na "seção água", doada pela filha do pescador Jaqueta, fi
gura tradicional da localidade. "Recebemos de tudo", explica o coordenador
Luiz Antônio, "desde fotos até objetos antigos. Mas damos preferência àqueles
de 30, 40 anos atrás, pois têm um apelo maior" (apud O Globo, 9/5/2006). Que
"apelo maior" é esse ao qual Luiz Antônio se refere? Com seu estilo interrogati
vo, Heidegger (2001 [1957]) problematiza as relações entre objetos, historicida
de e tempo, sugerindo caminhos que me parece apropriado trilhar aqui.
Vejamos:
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eram realizadas "não é mais", abre-se um novo espaço para seu Dasein: alimen
tam o mito de origem comum que a identidade mareeme necessita para ganhar for
ça e se tornar capaz não apenas de encompassar as várias identidades locais, mas
também de ultrapassar as fronteiras impostas pelas diferentes facções do tráfico.
Porém, como se dão na prática essas intenções?
Na manhã em que fui à Maré, com minhas duas assistentes de pesqui
sa,16 o museu nem de perto lembrava a agitação dos dias anteriores.l7 Resol
vemos as três nos dividir. Eu já tinha dado por certo que faria a visita sozinha,
quando Rita se chegou ao meu lado. Moradora da Maré há 10 anos, desde que
migrou do Piauí com o marido e a filha mais velha, ela já tinha visitado o mu
seu guiada "por um rapaz que explica tudinho sobre essas fotos". Com dupla
autoridade - de moradora e de quem já conhecia a exposição -, Rita foi me
guiando na visita, reproduzindo o que ouvira antes, situando a própria bio
grafia na narrativa maior que lhe haviam contado. O dedo indicador ia encos
tando-se às fotos, imprimindo-lhes sua digital: "a minha primeira casa ficava
aqui", "da minha casa dava pra ver essa pracinha que não existe mais", "aqui
pra essas bandas fica a escola das meninas". Ela não se preocupava com as le
gendas e ia interpretando o preto-e-branco das fotos contemporâneas como
sinal de tempo passado. Procurava com atenção a foto de uma vizinha - "ela
me pediu pra ver se tem foto dela" -, mas o interesse maior de Rita estava na
instalação que reproduzia a casa de palafita. "Você tem que ir lá em cima ver a
casinha!", ela insistia. E eu, com todas as etiquetas introjetadas, resistia a mu
dar o roteiro previsto. Quando entrei no Espaço do Medo - nas paredes, teci
do preto e prateleiras com cápsulas de vários calibres recolhidas nas ruas da
Maré; no chão, tábuas mal alinhadas reproduzindo as palafitas18 - e por ali
me detive, Rita saiu apressada porque "tinha que pegar a menor em casa e le
var pro colégio". Mas não demora e Rita reaparece com Janaína, de 8 anos, e
uma amiguinha um pouco mais velha: "Trouxe as meninas pra ver a casinha".
Acompanhei. Mal entraram, Janaína e Tatiana foram mexendo no fogão,
abrindo a caixinha que revelava brincos e broches, bisbilhotando a gaveta
que guardava cartas antigas - lugares que eu não pensara em tocar. "Meu pai
tinha um rádio desse... tinha que passar o dia todinho no sol pra poder ligar",
Rita lembrava alto. As meninas continuavam mexendo em tudo, experimen
tando os sapatos, brincando com as bonequinhas de pano que enfeitavam a
cama. Rita ia pontuando com "cuidado aí!", mas também abria os armários e
folheava os livros. Eu me comportava como visita, Rita e as meninas eram de
casa. Para elas, os objetos expostos e as fotografias inspiravam lembranças,
permitiam-lhes interrogar a própria experiência, faziam convergir passado e
presente sob a perspectiva do futuro: "Como vai ser a Vila do João quando a
gente crescer?", Janaína perguntou sorrindo.
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A pequena nota gerou nada menos que 26 comentários que, em sua abso
luta maioria, ignoraram o argumento central de Vargas, isto é, se recusaram a
discutir que museu merecia o título de originalidade ou qual era o mais eficiente
em suas estratégias de exposição. O tema em torno do qual gravitaram, com me
nos ou mais indignação, para criticar ou para defender, foi o da legitimidade da
favela como patrimônio: "Esse negócio de glamourizar favelas, em vez de pro
mover a sua extinção via remoções ou reurbanização, levou o Rio à situação que
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provocar. Passados quase cem anos, a definição de Bilac- "E uma cidade à parte"
- parece ainda fazer sentido para muitos entre nós.
Apesar de baseado em observações de campo, entrevistas com infor
mantes qualificados e estudos anteriores sobre favela e sobre patrimônio, este
anigo, dado o caráter recente e o perfil polêmico de seu objeto, não pôde mais
do que apresentar algumas reflexões em torno do tema. A situação de conflito
que se instaurou no Morro da Providência nos últimos meses impediu um
acompanhamento mais sistemático do nível de envolvimento dos moradores
locais com o museu. No caso da Maré, também é preciso aguardar e ver se o en
tusiasmo inicial dos moradores terá fôlego longo e se a idéia será capaz de con
taminar outras iniciativas. De todo modo, me parece pertinente arriscar três
modestas conclusões:
- Apesar de a evocação da memória seguir estratégias distintas nos dois
museus, ambos buscam absorver e superar a heterogeneidade social da favela.
Ou melhor dito: os museus procuram restituir unidade e inteligibilidade às dis
sonâncias, afastamentos e disputas que inevitavelmente marcam territórios de
sociabilidade complexa como as favelas. Na Providência, criando-se um genérico
de origem; na Maré, alimentando-se o mito da idelllidade mareense .
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Notas
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R eferências bibliográficas
ULHT
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Resumo
Este artigo examina e problematiza o processo de elaboração da favela como
patrimônio da cidade a partir da análise comparativa de duas experiências
recentes: a do Museu a Céu Aberto do Morro da Providência, instituído pela
Prefeitura do Rio de Janeiro em agosto de 2005, e a do Museu da Maré que,
por iniciativa dos moradores locais e com apoio do Governo Federal, veio a
ser inaugurado em maio de 2006.
Palavras-chave: favela, patrimônio, Museu da Maré, Museu a Céu Aberto do
Morro da Providência
Abstract
This article examines and discusses the process of elaborating the favela as an
urban patrimony by comparing two recent experiences: the Museu a Céu
Aberto do Morro da Providência, created by the government of Rio de Janeiro
in August 2005, and the Museu da Maré, a project conducted by the local
residents with the support of the Federal Governrnent, opened in May 2006.
Key words: favela, patrimony, Museu da Maré, Museu a Céu Aberto do
Morro da Providência
Résumé
Cet article se penche sur le processus d'élaboration de la favela en tant que
patrimoine de la ville. Dans une perspective comparatiste on analyse deux
essais récents: le "Museu a Céu Aberto" au Morro da Previdência, crée par la
Mairie de la ville de Rio de Janeiro, et le "Museu da Maré", fondé en mars
2006 par les habitants eux-mêmes, avec soutien du gouvernement fédéral.
Mots-clés: favela, patrimoine, Museu da Maré, Museu a Céu Aberto do Morro
da Providência
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