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Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua LoPlado r a
Portuguesa (Decreto Legislativo n° 54, de 1995). m O ci . 4h_.....T.
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Título original: U . C>


La civilization féodale — de l'an mil à la C
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Preparação: Beatriz de Freitas Moreira z ...,-6
Revisão: Valquíria Della Pozza, Maria Sylvia Corrêa o d cE du 3
Índice remissivo: Luciano Marchiori o a..
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Capa: Ettore Bottini, sobre iluminuras de Les três riches
heures du Duc de Berry (1410-16), dos irmãos Limbourg
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(Musée Condé, Château de Chantilly)
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3° reimpressão, 2011
.0 o Do ano mil à colonização da América
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) 02 42 12 O,
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
tradução:
Baschet, Jérôme
A civilização feudal : do ano 1000 ã colonização da América / Marcelo Rede
Jérôrne Baschet ; tradução Marcelo Rede , prefácio Jacques Le Goff. -São
Paulo Globo, 2006. Professor do Departamento de História
o d a Universidade Federal Fluminense
Título original: La civilization féodale — de l'an mil à la coloniza- -o
tion de l'Amenque ci)
ISBN 978-85-250-4139-5
c.)
o prefácio:
1. Civilização medieval 2. Europa — História medieval 3. Idade
Jacques Le Goff
Média I. Le Goff, Jacques. Il. Título. o
nação da vida humana), O homem na terra é um peregrino
06-1863 co0-940,1 C) caminhando em meio às provações mundanas e desejando
Índice para catálogo sistemático:
1. Civilização medieval História 940.1 atingir sua pátria celeste (o lugar do Pai divino) a fim de
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil gozar da "estabilidade da morada eterna" (santo Agostinho).
adquiridos por Editora Globo S. A. Poderia parecer paradoxal que o mundo do encelulamento,
Av. Jaguaré, 1485 — 05346-902 — São Paulo — SP cujo ideal é a estabilidade local, conceba a vida terrestre
www.globolivros.com. b r como um deslocamento e o homem como um viajante (um
homo viator, segundo um tema muito corrente na época). É
que, em vista das exigências cristãs, o aqui embaixo é um
vale de lágrimas, uma passagem transitória e exterior, por
oposição ao verdadeiro lugar, objeto de todas as esperanças,
que é o além celeste. Nesse sentido, a única verdadeira
estabilidade é encontrada junto a Deus, enquanto o mundo
terrestre, como todo espaço exterior, é associado a um
deslocamento, sinônimo de perigo e de insegurança, de
provação e de sofrimento.
De resto, tanto a peregrinação como a cruzada valorizam o Igreja aparece essencialmente como uma coleção de dioceses,
movimento porque se trata de prática excepcional. Na cristandade largamente autônomas. Cada bispo, detentor de um poder espiritual
existem, é verdade, alguns grupos que se movimentam muito, e temporal considerável, é senhor em seu domínio; e o bispo de
mercadores que viajam para longe e clérigos que, para estudar nas Roma dispõe apenas de uma proeminência simbólica ainda mal
universidades mais reputadas, realizam longos périplos, abades que estabelecida. Depois, a época carolíngia marca uma primei ra
visitam os estabelecimentos postos sob sua autoridade e, mais tarde, afirmação da unidade cristã: sob instigação do imperador e do papa,
frades mendicantes enviados de um convento a outro ao sabor das Bento de Aniana unifica o movimento monástico ocidental com base
exigências da ordem e que praticam habitualmente a pregação na regra beneditina, enquanto a uniformização litúrgica difunde os
itinerante. Mas, ainda aqui, esses deslocamentos só são valorizados hábitos romanos e eclipsa, pouco a pouco, as outras tradições.
na medida em que se constituem como exceções e contribuem para Enfim, a reforma eclesial dos séculos xt e xil e seus prolongamentos
reforçar as estruturas de dominação que garantem a stabilitas loçi da até o século xm reforçam consideravelmente os poderes do papa, bem
imensa maioria dos produtores. Além disso, tais viagens obedecem a como sua proeminência simbólica. A centralização pontifícia torna-
imperativos precisos, diferentemente desses clérigos chamados se, então, a forma concreta assumida pela unidade da cristandade. O
giróvagos (ou goliardos), que não são vinculados a nenhuma função papa é a sua encarnação e a projeta além dela mesma conclamando à
ou a nenhum lugar, e Cuja instabilidade excessiva é vigorosamente cruzada ou, mais tarde, concedendo aos reinos ibéricos um direito de
denunciada. Entra-se, assim, na categoria dos vagabundos: estes, conquista, garantindo-lhes o monopólio indispensável à exploração
escapando ao princípio da estabilidade local, são incluídos por do Novo Mundo (bula Inter caetera de Alexandre em 1493;
Bertoldo de Ratisbona (1210-72) na "família do Diabo" e são vítimas Tratado de Tordesilhas, em 1494).
de uma repressão cada vez mais rigorosa a partir do século xiv.

Alteração da doutrina eucarística


A IGREJA, ARTICULAÇÃO DO
LOCAL E DO UNIVERSAL A transformação da doutrina eucarística é, ao mesmo tempo, um
indício e um instrumento da reorganização espacial da cristandade.
Nos primeiros séculos do cristianismo, a celebração eucarística é
Por "universal" designa-se, aqui, a cristandade romana tomada em concebida como um ato de memória (conforme as palavras de
sua globalidade, quer dizer, um universal relativo (de resto, não Cristo, que convida seus discípulos, no momento da Última Ceia, a
poderia ser diferente, pois os valores universais nunca são mais do refazer os mesmos gestos "em minha memória"). O pão e o vinho
que a "universalização de valores particulares", segundo a expressão utilizados são, então, apenas os símbolos do corpo e do sangue de
de Pierre Bourdieu). O valor que essa totalidade pôde assumir Cristo, servindo para comemorar seu sacrifício. Para Agostinho,
através dos séculos medievais é, aliás, variável. Nos séculos v e Cristo está presente no sacramento como figura, de modo que
vi, entre a hóstia e o corpo de Cristo existe a mesma diferença que
entre um signo e a coisa que ele significa. Prevalece, então, unia
grande proximidade entre os fiéis e o altar, sobretudo porque os pães
utilizados para o ritual são idênticos àqueles destinados à
alimentação corrente e são oferecidos pelos membros da
assistência. Depois, esses pães (denominados "oblata") continuam
a ser recebidos pelos clérigos, mas não são mais levados para o
altar; e, a partir do século ix, s ã o utilizados para o sacrifício pães não
fermentados (ázimos). Essa distância em relação à realidade
profana contribui para estabelecer uma separação entre os laicos e
o altar (é, de resto, um dos aspectos da divergência com o Oriente
bizantino, que conserva o uso do pão fermentado). No século Ix
358 jdrdrod A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 359
aparece também a primeira polêmica importante em matéria Radberto introduzem noções que se distanciam da concepção
eucarística. O liturgista Amalário de Metz e, sobretudo, Pascásio simbólica do
sacramento em vigor até então. A reação é forte e clérigos como volta de 1140, e que insiste judiciosamente sobre a transformação
Rábano Mauro e Ratramno de Corbie batalham para manter a da substância sem fazer um prejulgamento acerca da manutenção
teoria agostiniana. Mas o debate se esgota rapidamente, sem dar das aparências acidentais.
lugar a nenhuma definição doutrinal, como se tratasse de opiniões
individuais que não requeriam a intervenção das autoridades 31. "Eis meu corpo." (N. T.)
eclesiásticas.
A polêmica é retomada em meados do século xr, momento em
que a teologia eucarística começa verdadeiramente a se
desenvolver. Berengário de Tours, um clérigo bem formado nas
escolas da região do Loire e profeísor em Tours, provoca, por volta
de 1040, uma indignação geral, embora não faça mais do que
reafirmar as concepções tradicionais de Agostinho e de todos os
autores anteriores ao século rx confirmando-os com novas
,

justificativas de natureza gramatical (em particular, uma análise


profunda da fórmula central da missa "hoc est corpus ineum"").
Numerosos autores, como Lanfranc du Bec ou Guitmond de
Aversa, apoiados pelo papa Leão ix e Gregório vil e pelas principais
figuras da reforma gregoriana, opõem-se, então, a Berengário.
Convocado por numerosas assembleias eclesiásticas, ele é obrigado
a retratar-se e suas concepções são condenadas por urna bula
pontifícia em 1059. Isso mostra claramente que uma ortodoxia
eucarística inteiramente nova está em vigor a partir de então. Não
está mais em questão uma evocação simbólica e espiritual de
Cristo, mas uma presença substancial do corpo de Cristo na hóstia.
A bula de 1059 não hesita em afirmar que "o pão e o vinho são o
verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo; eles são
fisicamente tomados e verdadeiramente comidos pelos fiéis".
Doravante, explica-se que existe uma unidade essencial entre as três
formas do corpus Christi (a hóstia consagrada, o corpo histórico
de Cristo e a Igreja). Como a hóstia é assimilada ao corpo
histórico de Cristo, pode-se afirmar que Cristo está realmente
presente no sacramento. A hóstia não é mais, então, um símbolo
que dá suporte a um ato de memória; ela faz experimentar a
presença real de Cristo, presença não espiritual, mas material de seu
"verdadeiro corpo". Assim, quando o sacerdote consagra a hóstia,
uma metamorfose se realiza (um "milagre", diz Hugo de Saint-
Victor): o pão e o vinho deixam de ser substancialmente pão e
vinho; eles se transfõrmarn e se tornam essencialmente o corpo
e o sangue de Cristo, mesmo se as espécies acidentais (as
aparências) do pão e do vinho subsistam e permaneçam visíveis.
É essa metamorfose que é nomeada pelo termo transubstanciação,
atestado pela primeira vez na obra do teólogo Roberto Pullus, por
411
Tal teoria, qualificada de realismo eucarístico, não tem nenhum eucarístico em face dos perigos das teorias declaradas heterodoxas
fundamento nem nas Escrituras nem na tradição; ela supõe, então, de Berengário. Depois, entre 1198 e 1203, o bispo de Paris, Eudes
resolver enormes dificuldades lógicas e intelectuais. Sua de Sully, prescreve o uso desse gesto em sua diocese, até que essa
implantação é lenta, avançando à medida que são aperfeiçoadas as nova prática termina por se difundir em todo o Ocidente.
argumentações lógicas que permitem contrapor as múltiplas Compreende-se a importância desse gesto, que torna sensível o
objeções possíveis. Além disso, em seu esforço para impor uma dou - efeito das palavras de consagração e sublinha o caráter
trina sem precedente, as proposições combativas do período entre extraordinário da transubstanciação que provocam. A elevação exibe
1050 e 1130 geram formulações bastante rudes, que insistem muito a presença real de Cristo e a submete à adoração de todos. Esse
literalmente sobre a presença material do corpo de Cristo na hóstia e gesto torna-se, então, tão importante que ele concentra a atenção
sobre sua ingestão pelos fiéis. Ora, os autores ulteriores não tardam dos fiéis, a tal ponto que assistir à elevação lhes pareça um
em perceber as dificuldades de semelhantes afirmações, notadamente substituto aceitável da comunhão. Isso não é surpreendente, se for
porque uma concepção exageradamente realista arrisca limitar Deus lembrado que esta última permanece rara para a maioria dos fiéis,
no tempo e no espaço. Finalmente, Tomás de Aquino propõe uma que não têm razões para ir além da obrigação anual fixada pelo
síntese nuançada e moderada. Para ele, a presença física de Cristo na Concílio de Latrão rv. É que a eucaristia é um objeto tão sagrado e,
hóstia realiza-se de uma maneira que não é material, mas invisível e portanto, tão perigoso para o homem exposto ao pecado, que é
espiritual, de modo que o corpo do Salvador é comido não sob sua melhor não ser excessivamente zeloso. Do mesmo modo, assistir à
forma natural, mas sob stip espécie sacramental. O essencial não é, elevação parece uma maneira suficiente e menos arriscada de adorar
entretanto, absolutamente posto em causa, a saber, a a Deus e, no século ui, são conhecidos fiéis que correm de uma
transubstanciação, a presença real e a identidade substancial da igreja a outra para testemunhar o maior número possível de eleva-
hóstia e do corpo histórico de Cristo. ções. E se os teólogos sublinham que a visão da hóstia não é um
Práticas inéditas manifestam o brilho recentemente adquirido sacramento, eles lhe atribuem, todavia, uma notável virtude
pelo sacramento eucarístico. Assim, o gesto pelo qual o sacerdote eleva espiritual, comparando-a à comunhão e qualificando-a de
a hóstia, após suas palavras de consagração, aparece justamente na "mastigação pela visão" (nanducatio per visum). Sem dúvida,
região de Tours, no século m, como que para apoiar o realismo
é para canalizar tal devoção e, mais largamente, para permitir o horror suscitado pelas narrativas de profanação da hóstia.
prolongamento Frequentes a partir do século mu, elas são comumente
do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa utilizadas contra os judeus (que são acusados, assim, de repetir
dedicada ao pró- contra o sacramento o crime cometido contra Jesus), mas,
, sobretudo, afiançam o realismo eucarístico: que prova da
prio sacramento eucarístico: o Corpus Christi. Realizada em Liège presença real é melhor do que uma hóstia que sangra? De resto,
desde os anos 1240, ela é oficializada pelo papa Urbano n/, em fora as narrativas de profanação, milagres cada vez mais fre-
1264, e floresce, sobretudo sob o estímulo do papa de Avignon quentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico: assim, o
Clemente v, no início do século xiv. No momento dessa Menino Jesus aparece nas mãos do sacerdote no momento da
festividade solene, a hóstia consagrada, exibida em um ostensório elevação (como na visão do rei Eduardo, o Confessor, relatada
transparente e, assim, tornada visível a todos os fiéis, é levada em por Mateus Paris, no século xllt; como vista na figura 31, na p.
procissão sob um pálio através da cidade; depois, é celebrado um 363), a não ser qué a hóstia sangre acima do altar ou se trans-
ofício especial, chamado Corpus Christi (cuja redação é devida a forme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote.
Tomás de Aquino). A procissão, que faz sair o objeto sagrado de Enfim, entre os simples fiéis, o desejo de ver a hóstia não se
seu próprio lugar (o que não deixa de ser perigoso), exibe o poder enfraquece, concorrendo sempre com a prática da comunhão.
sacralizado do clero, que toma posse do espaço urbano graças à A eucaristia torna-se, assim, nos três últimos séculos da Idade
deambulação de seu emblema maior, a hóstia. Média, um "supersacramento", superior a todos os outros, pois
Nos últimos séculos da Idade Média, a devoção eucarística permite o contato, de maneira repetida, com a presença
adquire incessantemente importância crescente, cujo reverso é o corporal de Cristo (Miri Rubin).
360 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 361
Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada
entre os séculos xt e mi? Pode-se, sem muita dificuldade,
sustentar que essa revolução doutrinal está em estreita relação
com duas transformações sociais maiores desse mesmo período:
o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e
laicos. Com toda a evidência, a doutrina da presença real ressalta
a eminência do ritual eucarística e lhe confere uma sacralidade
espetacular reforçada. Ela atribui, então, um poder simbólico
ampliado ao sacerdote, capaz de realizar um ato tão
extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho
em sangue. A um só tempo, fora do domínio do natural (ou
"contranatureza", diz o teólogo Simão de Tournai) e indispensável
à salvação de todos, a operação realizada pelo sacerdote reforça
sua sacralidade e justifica a distância que separa

362 jérôlne Baschet

31. Cristo aparece miraculosamente na hóstia, c. 1255-60 (abadia de Saint-Albans ou


Westminster, História do santo rei Eduardo, Cambridge, University Library, Ee.3.59, p.
37/fl. 27)
Celebrando a missa, o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia. É então
que, segundo o relato por vezes atribuído a Mateus Paris, o santo rei Eduardo, o Confessor,
teria tido a visão do Menino Jesus nas mãos do sacerdote, no lugar da hóstia. Esse tipo de
milagre, mencionado em vários relatos a partir do século xii, é uma maneira de confirmação
exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real. Com efeito, como fazer
entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo e que este se torna
realmente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote?

clérigos e laicos. Podemos, então, afirmar a existência de um


laço fundamental entre o reforço do poder clerical e o
desenvolvimento da nova teologia da eucaristia (Miri Rubin). Isso
é tornado ainda mais claro pelo fato de que, no século XII, no
mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico, o
cálice é, salvo casos excepcionais, retirado dos laicos e o
sacerdote passa a ser o único a comungar sob as duas espécies. A
distância entre clérigos e laicos é marcada, assim, por uma
diferença ritual bem visível, e uma reivindicação dos
A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 363

partidários de Hus, no século xv, é que ela seja abolida e que se É somente nos séculos xi e XII que o uso de um lugar
restitua aos laicos a comunhão sob as duas espécies. De maneira sagrado é objeto de uma justificativa precisa, tornada
ainda mais clara, a maior parte dos hereges, notadamente os cátaros necessária pela contestação das hereges. Aqueles que são
e os lolardos, e, depois, os reformados, contesta radicalmente a interrogados pelo Sínodo de Arras, em 1205, e os discípulos de
doutrina da presença real, transformada no fun damento do poder Pedro de Balis, no século seguinte, pretendem voltar à prática
exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal. antiga e negam

Realismo eucarístico, lugar sagrado e comunhão eclesial

Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma


sociedade fundada sobre a separação radical entre clérigos e laicas,
contribui igualmente para o ordenamento espacial do sistema feudal.
Com efeito, a presença real valoriza o ritual local que se realiza em
cada igreja, sobre cada altar: ali, naquele exato lugar, está
verdadeiramente presente o corpo de Cristo. Ora, um evento tão
extraordinário como a presença real do Salvador não pode se produzir
senão em um lugar fortemente sacralizado, vigorosamente extraído do
espaço terrestre normal. É por isso que o realismo eucarístico está
estreitamente ligado à nova doutrina do lugar eclesiástico, estabelecida
no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamento nas
Escrituras ou na Patrística, como bem demonstrou Dominique Iogna-
Prat. Nos primeiros séculos do cristianismo, a questão do lugar onde
seria realizada a celebração tem pouca importância; ela é quase sem
interesse e qualquer mesa, por mais modesta que seja, pode servir de
altar. A "reticência em relação ao enraizamento espacial das práticas
de culto" domina então (Michel Lauwers), e Agostinho faz ainda
esta pergunta irônica: "São os muros que fazem os cristãos?". Uma
primeira transformação intervém no fim do século iv, quando a
presença de relíquias no altar é julgada útil e, mais tarde, em 401,
considerada indispensável para a celebração da missa (santo
Ambrósio explica que, do mesmo modo que as almas dos mártires
aparecem sob o altar celeste do Apocalipse, os corpos dos san tos
devem se encontrar sob o altar terrestre). O lugar deixa de ser
indiferente e a geografia sagrada de que falamos começa a se
estabelecer: durante a Alta Idade Média, os grandes santuários
perfumados e rutilantes, em meio a um mundo mal iluminado e
malcheiroso, aparecem como "fragmentos de paraíso" (Peter Brown).
A prática conserva, entretanto, certa maleabilidade e, na época
carolíngia, é necessário condenar a celebração da eucaristia nas
residências privadas e relembrar a indispensável presença das
relíquias no altar.
radicalmente a necessidade do edifício cultual. Trata-se, a seus olhos, Deus (todavia, ele pode se produzir alhures, em situações
de uma realidade material desprovida de todo valor, enquanto somente excepcionais, até mesmo miraculosas, enquanto a simples prece,
a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece em qualquer lugar, é dotada de uma eficácia mais limitada). Além
deveriam importar. Diante desse ataque, que visando à igreja-edifício disso, o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do
ameaça a Igreja-instituição, os clérigos são obrigados a reagir e afirmar espiritual e do material (segunda parte, capítulo iv). Ele é feito de
urna doutrina do lugar eclesial, enfatizando seu caráter necessário e sua pedras e um corpo material inscreve-se em seu coração (a relíquia),
sacralidade. Assim, embora seja necessário reconhecer com Agostinho mas — e é isso que os contestadores não querem nem ouvir —ele é
que "Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar", é espiritualizado pelo ritual da consagração, que o transforma em
possível afirmar a necessidade de um "lugar especial", onde Deus esteja imagem da Jerusalém celeste. É por isso que, nesse lugar e através
"mais presente" do que alhures (Atos de Arras), de um "lugar próprio", do sacrifício ritual que nele se desenrola, uma comunicação
que é "a morada privilegiada de Deus" e o quadro "das preces mais privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu, entre os
eficazes" (Pedro, o Venerável). Se todas as justificativas sublinham que o homens e o divino. Assim, o realismo eucarístico, junto com a
edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembleia dos fiéis, não doutrina do lugar eucarístico que o acompanha, aporta uma
é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu contribuição decisiva para a valorização do centro de cada
poder sagrado ("Toda religião demanda um lugar onde os objetas do entidade paroquial e, então, para a polarização do espaço feudal.
culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntim o Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar (e exigir
àquilo que foi instituído", diz ainda o abade de ao mesmo tempo) a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza;
Cluny). r ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja. Como toda
Doravante, o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração refeição, a eucaristia é um rito comunitário, e, como aquele que é
(o altar) e seu duplo invólucro (a igreja, consagrada por um ritual de oferecido em sacrifício é o próprio Senhor, faz a provação ritual
dedicação progressivamente fundamentado, e o cemitério, também ele não somente da comunidade de indivíduos presentes, mas da
objeto de uma consagração). Do ponto de vista dos clérigos, o lugar comunidade de todos os cristãos, vivos ou mortos. A refeição
sagrado assim definido é o único onde se opera, de maneira ao mesmo eucarística faz
tempo tão permanente e tão intensa, o contato entre os homens e
entrar, assim, na comunhão da Igreja universal, terrestre e celeste. cada paróquia se observa, então, o seguinte complexo: no centro
Não se pode, com efeito, ignorar que a expressão "corpo de Cristo" do centro, o altar associado tanto ao corpo-relíquia de um santo
designa, ao mesmo tempo, a hóstia consagrada e a Igreja (segunda como ao corpo--hóstia de Cristo; depois, o lugar eclesial
parte, capítulo iv). Tornar realmente presente o corpo de Cristo na sacralizado, reproduzindo, no mais das vezes, a forma do corpo
hóstia é, então, fazer existir a Igreja como corpo e como crucificado de Jesus; enfim, o cemitério consagrado, lugar dos
comunidade universal. Incorporando o corpo de Cristo (a hóstia), os corpos-mortos. É esse dispositivo concêntrico de corpos
fiéis incorporam-se ao corpo de Cristo (a Igreja). Então, o associados que assegura a polarização do espaço local e a
sacramento eucarístico, valorizado ao extremo pela presença real, estabilidade dos seres vivos que o ocupam, ao mesmo tempo que
manifesta ritualmente a unidade da cristandade. põe cada lugar particular em comunhão com o corpo-Igreja da
A partir daí, todas as igrejas onde advém a presença real de cristandade e em correspondência com a Igreja celeste. A insti -
Cristo podem aparecer seja como centros, seja como microcosmos tuição eclesial consegue, assim, por um jogo de articulações e
à imagem do macrocosmo da cristandade e em estreita conjunção remissões, associar a comunidade restrita (a paróquia) e a
com ele. Mas a articulação do local e do universal manifesta-se comunidade ampla (a cristandade), reforçando a coesão tanto de
também por uma dualidade entre as relíquias, associadas a uma uma como de outra.
figura santa que remete em geral a uma inserção local, e à hóstia
que, como corpo de Cristo, assume um valor sobretudo universal. Se
o altar é o lugar dessa dupla inserção, o edifício eclesial o é A imagem concêntrica do mundo
igualmente, pois, ao mesmo tempo, é associado ao santo que é o
seu titular e à Igreja celeste, do qual é a imagem. No coração de
364 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 365
Não se pode concluir este capítulo sem extravasar as fronteiras dica das costas africanas pelos portugueses, o prestígio ameaçador
da cristandade e evocar brevemente as concepções da terra e do dos tártaros, nos anos 1220, e, desde a estabilização do Império
universo. Estas prolongam, de resto, a visão concêntrica do espaço Mongol, a esperança de obter a conversão de seu chefe, o Grande
analisada até aqui. Deve-se, de início, relembrar a importância das Khan, suscita uma notável corrente de viajantes e de trocas, que
margens da cristandade: zonas de conquista e de integração tardia, se esgota somente por volta de 1400. O papado envia uma dezena
tanto em direção ao Norte e Leste como na. Península Ibérica. Para de embaixadas, em particular a dos franciscanos João do Plan Carpin,
além, estende-se o mundo não cristão, aquele dos conflitos e das em 1245, e Guilherme de Rubrouck, em 1253. Procuram-se os
trocas com os muçulmanos, e, mais longe, a África profunda e o discípulos de são Tomás, suposto apóstolo das Índias, e algumas
Extremo Oriente. Essas paragens não são totalmente ignoradas: conversões são obtidas. Os irmãos Polo, ao mesmo tempo movidos
desde antes da exploração metó- por seus negócios e embaixadores da cristandade, chegam à China
pela primeira vez em 1266, de onde trazem uma mensagem de
Kubilai solicitando ao papa pregadores da fé católica; depois, em
1275 (dessa vez com o jovem Marco, autor do Livro das
maravilhas), ficando dezesseis anos a serviço do Grande Khan,
voltando depois para Veneza, via Sumatra e Índia. Embora os relatos
desses viajantes tragam novas informações sobre um mundo do
qual sublinham a ordem e a riqueza, eles não impederp
absolutamente que o Oriente continue sendo o domínio do
imaginário e do maravilhoso: o conhecimento adquirido em campo
"aglutina-se às lendas preexistentes mais do que as substitui" (Paul
Zumthor). Lá, vivem povos monstruosos que são já descritos pelos
autores antigos, corno Plínio e Solino e que Isidoro de Sevilha e
Rábano Mauro fazem entrar no saber compartilhado pelos clérigos
medievais, inclusive pelos mais doutos, como Alberto, o Grande,
ou Roger Bacon: os cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro,
que se comunicam latindo, os panócios, bizarramente dotados de
orelhas gigantescas, os ciapodos, com um único pé, tão grande que
eles o utilizam para se proteger do sol, os homens sem cabeça que
têm o rosto no tronco, os opistópodes, que têm os pés invertidos, com
os calcanhares virados para a frente, sem falar nos ciclopes, nos
pigmeus e outros gigantes (figura 32, na p. 368). Lá, ainda (na
Grande Muralha da China), são prisioneiros Gog e Magog, os povos
que se abaterão sobre a cristandade no final dos tempos. Na Ásia,
igualmente (ou na Etiópia), encontra-se o Preste João, soberano de
uni reino cristão onde reinam a justiça, a paz e a abundância. A
carta que se supõe que ele endereçou ao imperador de Bizâncio
circula no Ocidente a partir do século XIII e conhece difusão
crescente até o século xvi. O papa Alexandre III envia-lhe uma
mensagem em 1177; numerosos príncipes sonham selar uma aliança
com ele e todos os viajantes que se aventuram no Oriente
esforçam-se para localizar o mítico reino de João.
Mesmo se o saber geográfico é objeto de maior atenção a
partir do século xli (e, sobretudo, a partir do fim do século xiii, com
o aperfeiçoamento dos portulanos, cartas costeiras fundadas sobre a (representações do mundo mais do que mapas) só podiam ser
observação e uma estimativa das distâncias), as mappae inundi extremamente esquemáticas e, no essencial, fantásticas. Assim, a

33. Mappa mundi de Ebstorf, c. 1230-35 (Baixa-Saxônia, obra destruída).


Este vasto mapa-múndi de três metros e meio de diâmetro foi realizado pelo monastério
beneditino de Ebstorf. Ele retoma, adaptando-o, o esquema clássico dos mapas em T' (a
Ásia na metade superior; a Europa no quarto inferior esquerdo; a África embaixo, à direita,
o conjunto formando um círculo cercado pelo oceano). Os dois últimos continentes são
separados pela principal zona marítima, de cor escura, que corresponde ao
Mediterrâneo. As diferentes regiões são indicadas umas ao lado das outras, sem preocupação
com a forma dos territórios. ❑ mapa-mundi é, entretanto, saturado de informações
(Jerusalém ao centro; edifícios emblemáticos dos diferentes povos conhecidos; monstros e
32. Os povos lendários dos confins, segundo as miniaturas do Livro das maravilhas, espécies dos confins da terra, por exemplo, Gog e Magog além da Muralha da China). O
1411-12 (Bibliothèque Nationale de France, Paris, rns. fr . 2810, fls. 29v. e 76v.)
mundo é circular e uno, à imagem de Cristo, cuja cabeça aparece a leste, os pés, a oeste, e
Este manuscrito do Livra das maravilhas, compilação de relatos de viagem, foi encomendado
as mãos, ao norte e ao sul.
pelo duque de Borgonha, João Sem Medo, a fim de oferecê-lo a seu tio, o duque João de Ben-y.
O relato, notadamente o de Marco Polo, foi abundantemente ilustrado, muitas vezes forçando
sua dimensão maravilhosa. Aqui, o iluminador, o mestre de Boucicaut, mostra os cinocéfalos
das ilhas Adamã, enquanto Marco Polo menciona somente homens tão feios que se pareciam
com cachorros. Do mesmo modo, quando o texto evoca as raças extremamente sel vagens da
Sibéria, a pintura as traduz recorrendo ao repertório clássico dos povos legendários (um
homem sem cabeça com o rosto no tronco, um ciapodo protegendo-se do sol com seu
enorme pé, e um ciclope). O fundo da miniatura mostra esboços de paisagens características
do início do século xv.
mappa mundi de -Ebstorf, gigantesca imagem de três metros e tro, realizada em um monastério beneditino de Luxemburgo por
meio de diâme- volta de 1235,
retoma, como a maior parte das representações medievais, o Mas a oposição entre as formas plana e esférica da Terra não é,
esquema em "T" talvez, a mais determinante, sem dúvida porque este ponto é
que divide o disco terrestre em três partes: no alto, a Ásia; indiferente em relação à representação concêntrica do espaço,
embaixo, à direita, a então dominante. A questão principal que ocupa os espíritos no
África; embaixo, à esquerda, a Europa (figura 33, na p. 369). final da Idade Média consiste principalmente em avaliar os ris -
Jerusalém ocupa cos em que se incorre ao se afastar do mundo habitado conhecido
o umbigo do mundo, ao mesmo tempo que aquele do corpo de (o ecúmeno)
Cristo, cuja cabeça, as mãos e os pés aparecem nos quatro pontos
cardeais. A terra-corpo de Cristo forma um vasto e único
continente, drenado por uma densa rede de rios (entre os quais o
Ganges, na Índia, e o Nilo, na África) e mares estreitos. Aqui, o
mundo terrestre é uno (porque ele é o Cristo) e sua periferia é
ocupada pelo oceano. Reencontra-se, assim, na escala do
mundo, a visão concêntrica que ordena os espaços da
cristandade: um centro; espaços cada vez mais distantes, todavia
soldados pela metáfora corporal; depois, a periferia da periferia, o
oceano, imensidão líquida bem adequada para marcar o
desconhecido supremo e a exterioridade radical para um mundo
fundado sobre o vínculo com a terra.
Tal imagem é unanimemente partilhada, independentemente
do fato de que se conceba a Terra como sendo plana ou esférica.
As duas ideias coexistiram durante a Idade Média, dando lugar
muitas vezes a misturas mais ou menos coerentes (William
Randles). Para os partidários da Terra plana, corno Cosmas
Indicopleustas e Isidoro de Sevilha, o oceano marca o limite do
disco terrestre, habitado de um só lado. Em revanche, João de
Mandeville, cujo Livro, redigido em 1356 e destinado a grande
sucesso, fornece uma espécie de síntese do saber geográfico
medieval, admitindo, na sequência de autores como Beda, o Venerável,
Guilherme de Conches ou Brunetto k Latini (1250), o caráter
esférico da Terra: "inteiramente redonda corno urna maçã". Não
sem contradições, ele afirma que o mundo é habitado em todas as
suas partes e estima ser possível explorar todos os mares do globo,
a despeito dos riscos de tal empresa. A concepção esférica do
mundo é confirmada pela redescoberta de Ptolomeu, autor grego do
século ri cuja obra é traduzida e transformada em mapas em
,

Florença (1409), depois em Augsburgo (1482). Se, desde o


século mit, a esfericidade ganha terreno entre a maioria de autores,
ela se torna, ao longo dos séculos seguintes, a concepção unâ nime
dos homens de saber. Assim, por volta de 1410, é um mundo
esférico que é descrito pela Imago Mundi do cardeal Pedro de
Ailly, uma obra sobre a qual Cristóvão Colombo meditará e
anotará abundantemente.
e se lançar na imensidão do oceano que a bordeja (problema, desta das nove ordens angélicas. Assim, o universo inteiro organiza-se
feita, extremamente dependente da percepção concêntrica e da segundo uma lógica concêntrica, de modo que macrocosmo e
oposição interior/exterior). Para todos, tratando-se de zonas microcosmo se correspondem, conforme a lógica cristã das
eminentemente periféricas, o perigo só pode ser considerável. correspondências. Até o fim da Idade Média, a possibilidade de
E, como se disse, a força de Cristóvão Colombo não está em sua pensar um universo infinito, debatida pelos teólogos do século
opção em favor da forma esférica, pouco singular e não desprovida x[v, permanece marginal — o franciscano Tomás Bradwardine,
de ambiguidade, mas no fato de estar convencido, em mestre em Oxford, é a exceção — e sem verdadeiro alcance.
decorrência de erros de cálculos que acentuavam os de Ptolomeu Ainda será preciso esperar três séculos para que desabem "as
— e contra a opinião corrente, partilhada especialmente pela esferas celestes que mantinham unido o belo cosmo de
comissão encarregada de avaliar o seu projeto —, que entre o Aristóteles" (Alexandre Koyré). Desde 1584, Giordano Bruno
Ocidente e a Ásia havia apenas um "mar estreito", reduzindo lança, entretanto, afirmações tão contrárias à lógica do espaço
consideravelmente, assim, a exterioridade ameaçadora do polarizado medieval que elas acabam por lhe valer a fogueira:
desconhecido oceânico. "Não existem pontos no espaço que possam formar poios definidos
Enfim, a concepção do universo projeta na escala cósmica a e determinados para a nossa Terra; da mesma maneira, esta não
representação concêntrica do espaço. Ela se funda, com efeito, forma um polo definido e determinado para nenhum outro
sobre o modelo grego das esferas celestes, formulado ponto do espaço. [...1 A partir de pontos de vista diferentes, todos
notadamente por Aristóteles. No centro, encontra-se a Terra, podem ser vistos como centro ou como pontos da circunferência.
cercada de esferas ocupadas pelos diferentes astros conhecidos [...] A Terra não é o centro do universo; ela só é central em relação
(começando pela Lua e pelo Sol, seguidos pelos planetas, como ao nosso próprio espaço circundante... Desde que suponhamos um
Marte e Vênus). A Ida& Média prolonga com frequência essa corpo de tamanho ínfimo, deve-se renunciar a lhe atribuir um
imagem de esferas celestes, dispondo no céu empíreo a hierarquia centro ou uma periferia" (De rinfinito universo e inundi).

CONCLUSÃO: DOMINÂNCIA ESPACIAL NA experiências da exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o


IDADE MÉDIA, DOMINÂNCIA TEMPORAL próprio lugar, protetor e familiar. Enfim, o estabelecimento de uma
HOJE geografia sagrada estrutura um espaço heterogêneo e
hierarquizado, polarizado pelos santos e suas relíquias. Esta
A partir daqui, é possível contar entre as características organização que "assegura o máximo de estabilidade possível, ao
fundamentais do feudalismo a tensão entre fragmentação e unidade, a mesmo tempo que permite as trocas necessárias" e que fixa os
articulação entre encelulamento paroquial e o fato de pertencer à homens na região de conhecimento, ao mesmo passo que afirma o
cristandade, assim como a articulação entre stabilitas loci e fato de pertencerem a uma entidade tida corno universal, sugere
mobilidade (tratando-se deste último ponto, é possível distinguir, de quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade
uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo, feudal é decisiva. Não é surpreendente que uma das contribuições
distanciamentos positivos — a deambulação penitenciai e, depois, a maiores da Igreja à organização das colônias americanas tenha
peregrinação e a cruzada — e distanciamentos negativos — a consistido de uma prática sistemática de deslocamentos e
vagabundagem e o banimento). Três elementos, ao menos, reagrupamentos das populações indígenas (as reducciones e con-
concorrem para tal resultado. Em primeiro lugar, a criação da malha gregaciones), que criam novas aldeias cujo centro é, evidentemente,
paroquial ordena cada célula em torno de um polo formado pelo uma igreja (no caso de Bartolomeu de Las Casas, por exemplo,
edifício cultual sacralizado e o cemitério consagrado, tendo, em seu nota-se, desde seus primeiros projetos de colonização pacífica, em
coração, o altar e suas relíquias, onde a eucaristia faz ocorrer a 1551 e 1520, uma verdadeira obsessão para organizar os índios em
presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja universal. Em aldeias). Como fruto de sua secular experiência na congregatio
segundo lugar, o desenvolvimento sistemático da oposição inte - horninum da Europa Ocidental, a Igreja sabe que o controle das
rior/exterior, notadamente pela prática de peregrinação, associa as populações passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo. Tal
370 jérônie Bascàet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 371
,

é, em todo caso, o princípio indispensável ao funcionaménto da


sociedade feudal ocidental e, igualmente ao que parece, do
"feudalismo dependente" implantado no Novo Mundo. "tirania dos relógios" e à compulsão de saber que horas são. Uma
Se o feudalismo é caracterizado por uma "dominação espacial'', regra faz sentir seus efeitos sobre todos os aspectos da vida: "tempo é
isso não ocorre mais hoje. No mundo contemporâneo, é o tempo que dinheiro". Inversamente, na sociedade medieval, o coração da
parece constituir o ponto organização social e das relações de produção dependia da relação
nadai da organização social, pois, com base no assalariamento e no com o espaço: a primeira condição do funcionamento do sistema
cálculo do feudal era a fixação dos homens ao solo, sua integração em uma
tempo de trabalho — forma sempre dominante das relações de célula espacial restrita, na qual se entrelaçam (sem se sobrepor) poder
produção —, senhorial, comunidade aldeã e quadro paroquial — uma célula na
desenvolveram-se consequências múltiplas para seres apressados, qual deviam ser batizados, quitar as obrigações eclesiais e senhoriais
submetidos à e, por fim, ser enterrados para se juntar na morte à comunidade dos
ancestrais. Hoje, quando o lugar está em via de não ser mais percebido
corno uma dimensão necessária dos seres e dos eventos, quando as
manifestações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em
qualquer ponto do globo, estamos em via de perder esse sentido da
localização. Nós vivemos, é verdade, o paradoxo de uma
"globalização fragmentada", que multiplica as fronteiras, exacerba
sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento
mundfal desigual. Entretanto, o mercado prolonga, nos domínios
que o favorecem, sua obra de homogeneização e de banalização
espaciais, iniciada no século xvffi, a tal ponto que a uniformização
mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos lugares e que as
possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam, por
vezes, a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da
existência humana (a qual não poderia existir a não ser estando aí, em
algum lugar). No momento em que as fábricas e os escritórios são
incessantemente deslocados em busca de uma mão de obra menos
custosa, poder-se-ia dizer que a deslocalização torna-se uma
característica geral do mundo contemporâneo, na medida em que a
extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão
espacial e a Fazer desaparecer a relação com o próprio lugar como
traço fundamental da experiência humana.
É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças
modernas —fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição
de moradia — seja a prisão: privação de liberdade e entrave à
capacidade de deslocamento, localização forçada por decorrência.
Na Idade Média, a prisão era uma pena muito acessória, enquanto
o banimento era, ao contrário, essencial (Hannah Zaremzka).
Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar, o exílio era uma
quase morte social, pois os banidos tinham grande dificuldade para
refazer sua vida alhures: "Nesta sociedade de honra, vale mais ser

372 jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 373


um homem morto que um homem ultrajado? De certo modo, o exílio
é pior que a morte" (Claude Gauvard). Ao inverso do princípio de
stabilitas toei, o banimento constituía uma obrigação de deslocamento,
deslocalização forçada, ou seja, o exato inverso do castigo carcerário.
Coerção principalmente espacial de um lado, coerção
essencialmente temporal do outro: aí está, dito de modo muito
esquemático, uma das marcas de distinção radical entre ❑ mundo
medieval e o mundo contemporâneo.

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