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DOI: 10.1590/1413-81232017226.

22972016 1805

O movimento da Saúde Bucal Coletiva no Brasil

ARTIGO ARTICLE
The Group Oral Health Movement in Brazil

Catharina Leite Matos Soares 1


Jairnilson Silva Paim 1
Sonia Cristina de Lima Chaves 1
Thais Regis Aranha Rossi 2
Sandra Garrido Barros 3
Denise Nogueira Cruz 3

Abstract Group Oral Health (GOH) is a specific Resumo A Saúde Bucal Coletiva (SBC) pode de-
phenomenon in time, separate from other “Alter- signar um fenômeno histórico especifico, distinto
native Odontology”, and a theoretical reference for das outras “Odontologias Alternativas” e um re-
dental practice in healthcare services. This study is ferencial teórico para as práticas odontológicas em
an attempt to understand how long “Alternative serviços de saúde. Este estudo buscou compreen-
Odontology” will remain with the social context der a permanência das “Odontologias Alternati-
of struggling for oral health in Brazil, based on the vas” no espaço social de luta pela saúde bucal no
positions of the founding agents and their precur- Brasil, a partir de posições dos agentes fundadores
sors, bearing in mind the concepts of GOH, GH e precursores, levando em consideração as con-
(Group Health) and the SUS (Unified Healthcare cepções de SBC, Saúde Coletiva (SC) e SUS. Par-
System). We started out with Pierre Bourdieu’s tiu-se da teoria das práticas de Pierre Bourdieu,
Practice Theory, complemented with Gramsci’s complementada pelos conceitos de hegemonia e
concept of hegemony and counter-hegemony. We contra-hegemonia em Gramsci. Realizaram-se 12
completed 12 in-depth interviews, reviewed the entrevistas em profundidade, revisão documental
literature and analyzed the scientific output. We e análise da produção científica, além das traje-
also looked at the trajectories of the agents and tórias dos agentes e seus capitais em 1980 e 2013.
their capital between 1980 and 2013. The results Os resultados indicam que a concepção de SBC e
show that the concept of GOC and GH as a breach SC como ruptura com as práticas de saúde oriun-
with health practices, which gave rise to “Alterna- das às “Odontologias Alternativas” prevaleceu
tive Odontology”, prevailed among those with the entre aqueles com disposições políticas em defesa
political will to defend democracy and Healthcare da democracia e da Reforma Sanitária. Embora a
Reforms. Although GOC is a critical proposal, the SBC tenha proposta crítica, permanecem antigas
1
Instituto de Saúde
Coletiva, Universidade
older “Odontology” remains in scientific journals, “Odontologias” na produção científica e nas prá-
Federal da Bahia (UFBA). R. and in the practice of oral care. ticas de saúde bucal.
Basílio da Gama s/n, Canela. Key words Group oral health, The sociology of Palavras-chave Saúde bucal coletiva, Sociologia
40110-040 Salvador BA
Brasil. clms@ufba.br
health, Oral health da saúde, Saúde bucal
2
Departamento da Ciência
da Vida, Universidade do
Estado da Bahia. Salvador
BA Brasil.
3
Faculdade de Odontologia,
UFBA. Salvador BA Brasil.
1806
Soares CLM et al.

Introdução mou-se como referência a teoria das práticas de


Pierre Bourdieu9 e seus conceitos fundamentais,
A expressão Saúde Bucal Coletiva (SBC) surge no complementados pelos conceitos de hegemonia e
final dos anos 1980 no Brasil e tem sido utilizada contra-hegemonia de Gramsci10.
para designar um fenômeno histórico específico O espaço de luta da Saúde Bucal foi analisa-
e distinto das “Odontologias alternativas”, tais do como uma rede de relações entre agentes com
como Odontologia Sanitária, Odontologia Pre- inserção e trajetórias que atravessam diferentes
ventiva e Social (OPS), Odontologia Simplifica- campos sociais. Assim, considerou-se o campo
da, entre outras1,2, como uma denominação nova científico como um espaço social onde o que está
para esses mesmos movimentos3 e como referen- em disputa é a autoridade científica, que corres-
cial para as práticas em curso nos serviços pú- ponde à “capacidade técnica ou poder social que
blicos odontológicos4. Distingue-se das demais se expressa na capacidade de falar, de agir legiti-
“Odontologias” ao propor tratar a saúde bucal na mamente, de maneira autorizada e com autori-
perspectiva dos determinantes sociais da saúde. dade, socialmente outorgada”11, que por sua vez
Embora se proponha a um fenômeno social possui relações de força e monopólios, lutas para
distinto, estudo de revisão revelou que a maio- conservar ou transformar essas relações de força,
ria dos estudos que mencionam a SBC, na ver- estratégias, interesses e lucros9,11. O campo buro-
dade, se aproximavam mais da OPS5 que dentre crático, como espaço de formulação e implemen-
as “Odontologias” mencionadas, ganhou maior tação das políticas públicas, corresponde à políti-
expressão no Brasil, no âmbito público e priva- ca de saúde bucal (PSB). Esse subespaço é repre-
do, no campo científico e nas políticas públicas, sentado pelo Estado, que detém o uso legítimo
especialmente pela atuação da Associação Bra- da violência física e simbólica em determinado
sileira de Odontologia de Promoção da Saúde território e determinada população9. O Estado é
(ABOPREV). o lugar do acúmulo de diversos tipos de capital
Tais achados são reiterados no trabalho de como o da força física, capital econômico, capi-
Celeste e Warmeling6, o qual verificou o aumento tal cultural, capital simbólico, constituindo um
das publicações da SBC em revistas odontoló- metacapital que permite sua intervenção sobre
gicas, embora se assemelhando à OPS. Também diferentes subespaços12. Já o subespaço político
a análise do perfil das pesquisas de saúde bucal representa um microcosmo de relações relativa-
em um congresso odontológico, por meio dos mente autônomo, onde existe uma minoria que
resumos publicados nos anais da 27ª SBPqO, em participa do campo (políticos profissionais) e
2010, observou que a OPS se encontra entre as uma massa de “profanos” que não encontra legi-
áreas de pesquisas mais frequentes7. Ademais, es- timidade social para a ação política e tende a in-
tudos de revisão evidenciam que há permanência teriorizar e naturalizar sua própria impotência13.
das antigas “Odontologias” que aparecem sob a Três tipos de capitais específicos foram con-
nomenclatura de SBC5,6,8. siderados: o capital científico objetivado a par-
Nesse sentido, visando discutir essa proble- tir da análise da produção científica , pesquisa e
mática, o presente artigo analisou as concepções prestígio, nas escolhas dos problemas (científicos
sobre SBC, Saúde Coletiva (SC) e SUS a partir e políticos), nos métodos (estratégias científicas)
dos agentes fundadores e precursores da SBC do acumulado por meio das ações pertinentes ao
polo dominante do subespaço científico da SBC campo científico11; b) capital burocrático objeti-
na atualidade, bem como a análise da produção vado a partir dos cargos ocupados na estrutura de
científica da referida área, buscando compreen- direção das instituições de saúde ou na hierarquia
der a permanência de antigas “Odontologias” no universitária9,11; e, c) capital político acumulado e
espaço social de luta pela saúde bucal no Brasil. expresso no poder de mobilização pela militân-
cia com o objetivo de ocupar cargos em institui-
ções de saúde, associações, participação no Mo-
Metodologia vimento Brasileiro de Renovação Odontológica
(MBRO), partidos políticos ou Centro Brasileiro
O artigo apresenta um recorte da tese de dou- de Estudos em Saúde (CEBES)13,14 (Tabela 1 e 2).
torado que analisou a constituição da SBC no Os referidos capitais foram mensurados a
Brasil. Analisou-se o espaço da SBC nos últimos partir da análise do Currículo Lattes dos agen-
24 anos (1990-2014), buscando observar a per- tes selecionados, que por sua vez, forneceram
manência das antigas correntes odontológicas informações para a análise da trajetória social,
no espaço social de luta pela saúde bucal. To- profissional e política dos entrevistados, bem
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Tabela 1. Distribuição dos capitais específicos dos entrevistados no espaço de luta da saúde bucal nos anos 1980.
Entrevistados Capital Capital Capital Volume Global Tomada de posição sobre SBC*
Científico Burocrático Político de Capital
E1 5 5 3 13 Saúde Pública tradicional
E2 3 4 4 11 Saúde das coletividades
E3 5 3 3 11 Ruptura
E4 2 2 3 7 Ruptura
E5 4 4 4 12 Ruptura
E6 2 4 3 9 Saúde Pública tradicional
E7 3 5 3 11 Ruptura
E8 2 2 3 7 Ruptura
E10 4 5 2 11 Saúde Pública tradicional
E11 4 0 0 4 Saúde das coletividades
E12 2 2 3 7 Ruptura
E13 2 1 3 6 Ruptura
*Saúde Pública tradicional: os termos saúde coletiva e saúde pública são a mesma coisa. Saúde das Coletividades: saúde coletiva
como saúde das coletividades. Ruptura: ruptura com a prática odontológica então vigentes.

Tabela 2. Distribuição dos capitais específicos dos entrevistados que permaneceram no espaço da SBC nos anos
2013.
Agentes Capital Capital Capital Volume Global de Tomada de posição
Científico Burocrático Políitico Capital
E4 2 0 2 5 Ruptura
E6 4 3 3 9 Ruptura
E8 4 2 2 8 Ruptura
E11 2 3 3 10 Ruptura
E12 4 2 2 10 Ruptura

como para as posições ocupadas pelos agentes no Também foram considerados os conceitos
espaço social em análise e aferição do volume de de habitus, como disposições inconscientes dos
capital. agentes, seus esquemas de percepção, produzidos
Foram entrevistados doze cirurgiões dentis- pela história coletiva e modificados pela história
tas (CD), agentes que ocupam posição dominan- individual de cada um15. Para o habitus analisou-
te na produção cientifica das PSB na atualidade, se a trajetória considerando a participação nos
e que foram fundamentais nas origens da SBC espaços de militância, partidos políticos, diretó-
no Brasil; e aqueles que ocupavam posições do- rio acadêmico e MBRO, bem como a profissão
minantes no espaço de luta da Saúde Bucal nos dos pais e avós. Também se considerou a illusio
anos 1980. Posteriormente foi observada a po- entendida como reconhecimento de que o jogo
sição daqueles que permaneceram nesse espaço social merece ser jogado9,15 no espaço de luta em
em 2013. Os mesmos agentes foram indagados estudo.
sobre concepções de SBC, SC e SUS e questiona- Todos os entrevistados assinaram termo de
dos acerca dos principais problemas da área da consentimento informado, disponibilizando a
SBC nos dias atuais. O cotejamento das evidên- publicação das informações concedidas e suas
cias permitiu analisar a correspondência entre as identificações. O projeto foi aprovado pelo Co-
posições, disposições e tomadas de posições dos mitê de Ética em pesquisa do Instituto de Saúde
agentes investigados. Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Os
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Soares CLM et al.

dados foram analisados tomando-se a concepção bases teóricas e epistemológicas da anterior, in-
de SBC nas origens do espaço social, que pode titulada “Odontologia Preventiva e Social”, cujo
evidenciar uma possível “amnésia da gênese”9, ou nome havia mudado por solicitação da editora,
seja, um processo de esquecimento das origens, que afirmara, à época, que a especialidade havia
o que significou, neste caso, o fechamento do es- mudado de nome, segundo afirmação do autor
paço dos possíveis na construção da contra-he- em entrevista. Nesse caso, não constituiu uma
gemonia10,16 desejada ao interior desse espaço de obra que demarcasse algum tipo de ruptura e
luta, na perspectiva de Gramsci. contribuísse para a consolidação da SBC.
No subespaço político, o principal contri-
buinte foi Swedenberger Barbosa, o Berger, cuja
Resultados e Discussão atuação nos sindicatos e, principalmente, na Fe-
deração Interestadual dos Odontologistas (FIO),
Precursores e Fundadores da Saúde Bucal influenciou várias ações no subespaço burocráti-
Coletiva: contribuições e espaço de luta co, no período da emergência do SUS.
Ademais, no processo de formação de den-
A SBC emergiu do núcleo de dentistas que tista nesse subespaço com visão crítica e política
fizeram parte das discussões sobre a implanta- sobre a realidade brasileira, quase todos os entre-
ção das práticas e PSB no Instituto de Saúde de vistados tiveram algum grau de participação.
São Paulo. Entre eles, Paulo Capel Narvai, Mar- Cabe registrar que coube ao grupo paulista
co Manfredini, Paulo Frazão e Carlos Botazzo. as principais contribuições para o nascedouro do
A principal contribuição desse quarteto foi a subespaço científico da SBC. Esses agentes, quase
sistematização de uma concepção de SBC, em todos findam o doutorado na década de 1990, e
1988, que se fundamentava nas experiências das os objetos das suas teses contribuíram para o de-
“Odontologias Alternativas” como orientação senvolvimento desse subespaço.
das práticas odontológicas nos serviços muni-
cipais de saúde bucal, na implantação do SUS, Posição, disposição e tomadas de posição:
especialmente a Odontologia Simplificada e sua SBC, SC e SUS
versão crítica, a Odontologia Integral. No caso
particular de Paulo Capel Narvai, o esforço de Entre os agentes analisados, fundadores e
síntese na sua dissertação de mestrado inaugurou precursores, aqueles que ocuparam posições no
para o subespaço científico essa proposta teóri- campo burocrático e atuaram no processo de im-
ca que fora sistematizada, anteriormente, pelos plementação da atenção à saúde bucal no serviço
quatro agentes no texto “Saúde Bucal Coletiva”, público odontológico e no SUS e que apresen-
com pouca divulgação no período. Além disso, taram disposições políticas, isto é, militância no
os avanços na implantação da saúde bucal no MBRO, participação nos Encontros Nacionais de
serviço público de saúde, pela atuação de certos Administradores e Técnicos dos Serviços Odon-
agentes, na gestão municipal da saúde bucal em tológicos (ENATESPO) e militância em partidos
São Paulo, Santos, Porto Alegre e Curitiba, nota- políticos, possuem pontos de vista muito próxi-
damente Marco Manfredini, Fernando Molinos mos, com algumas variações. Entre eles, predo-
Pires, Djalmo Sanzi Souza e Sylvio Gervaed, fo- minou a visão de SBC como um movimento de
ram fundamentais para a elaboração da concep- ruptura com as práticas odontológicas desenvol-
ção de SBC, defendida por esse grupo (Figura 1). vidas nos anos 1980. Seja a prática de mercado
Dos precursores, Volnei Garrafa e Jórge Cór- hegemônica, sejam aquelas oriundas da OPS, da
don foram responsáveis pela introdução dos jo- Odontologia Simplificada e até da Odontologia
vens dentistas no subespaço político do espaço Integral. A questão central que permite a proxi-
de luta pela saúde bucal, pela RSB e o SUS. Suas midade entre esse grupo, autodenominado buca-
articulações, com o processo de democratização leiros, era o compromisso com a sociedade, com
e as lutas pela democracia, foram elementos de seus direitos sociais, com o sistema de saúde uni-
mobilização e aglutinação que resultaram na par- versal, igualitário, o compromisso com a ruptura
ticipação da organização do MBRO, na fundação do instituído e a construção de uma práxis políti-
e desenvolvimento do CEBES e na organização da ca compatível com a transformação da sociedade
1ª Conferência Nacional de Saúde Bucal (CNSB). em geral.
Nos anos 1980, Vitor Gomes Pinto publica a SBC foi uma reflexão teórica que ela se proces-
primeira obra com o título “Saúde Bucal Coleti- sou aí nos anos 1980 e que ela parte de uma crítica
va”. Todavia a mesma foi mantida sob as mesmas de que todas as correntes anteriores [...] havia certo
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Figura 1. Editorial da Revista do CEBES, Saúde em Debate, número 18, março a abril de 1986 que versa sobre a
Saúde Bucal Coletiva.

entendimento de que as práticas de OPS, Odonto- Outra visão corresponde à negação dialéti-
logia Simplificada, Odontologia Integral [...] surgiu ca do campo odontológico, já que não põe em
essa possibilidade de você pensar no referencial para questão o campo de origem, cujos conteúdos são
organização das práticas odontológicas. (E 10). odontológicos, mas mantém a SBC restrita aos
Como ruptura consiste em conteúdo crítico “iniciados” (graduados em Odontologia).
para as práticas em questão, seus fundamentos se SBC não é Odontologia, [...] Odontologia não
originaram nas ideias da SC e na RSB e das ex- é saúde bucal, e não queremos propriamente uma
periências práticas em curso na década de 1980. ruptura de base epistemológica com a Odontolo-
Acrescenta-se a questão da práxis política para a gia, por que ela, de algum modo, continua sendo
defesa e compreensão da sociedade. um leito natural de onde viemos, nós somos todos
[...] Deveria ser um conceito politizado se você graduados em Odontologia. [...] A SBC para mim
exercer a saúde bucal de forma politizada, você en- é mais um movimento, mais um dos movimentos
volver a causalidade das doenças bucais e a forma em que nós nos jogamos na construção social, nos
de atenção aos problemas que ocorrem a partir da relacionando com o instituído, mas também sendo
causalidade de uma maneira ampliada, universali- instituinte de novas, de novas relações, novas for-
zada e includente e não excludente. [...] para mim é mas de inserção, de inclusão, de interpretação, de
obrigatoriamente ter que passar por um conceito de compreensão da sociedade (E 11).
politização da práxis odontológica, não meramente Aqueles que participaram da construção das
atender coletividade, atender coletividade com um PSB em algum momento histórico, mas que não
compromisso realmente transformador (E 5). estiveram nos movimentos políticos do espaço
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Soares CLM et al.

social, entendem a SBC como sinônimo de Saúde Aqueles que explicitaram concepções relati-
Pública (SP) ou como aquela que é responsável vas à SP tradicional, por sua vez, apresentaram
por alcançar os mais altos níveis de saúde bucal grande acumulação de capital burocrático, tendo
possíveis. exercido altos cargos de direção relativa à saúde
Eu tenho até dificuldade de definir o que é SC, bucal no nível nacional e internacional, com tra-
entendeu? Por que [...] o que é SC, eu me dediquei jetória no campo científico relacionada à Odon-
a fazer coisas. É, eu falo, eu gosto do conceito de tologia Sanitária. Nenhum destes participou do
SP (E 8). MBRO ou do Cebes, exibindo diferentes toma-
O objetivo primordial do trabalho de um cirur- das de posição quando relacionados àqueles que
gião-dentista consiste em proporcionar uma boa compreendem a SBC como ruptura.
saúde bucal aos seus pacientes. Para a odontologia Entre os agentes que consideraram a SBC
como um todo, isto corresponde ao alcance de ní- como ruptura, há diferentes acumulações de ca-
veis ou padrões adequados de saúde bucal para o pital burocrático e científico. Muitos exerciam
conjunto da população de um país, de uma região cargos de gestão no nível municipal ou estadual
ou de uma localidade (E2). e outros ocupavam diferentes posições no cam-
Há, ainda, um ponto de vista que aponta a po científico. Aqueles que definiram a SBC como
SBC como uma ampliação da OPS e como aque- saúde das coletividades eram membros ligados à
la que trata da coletividade em todos os setores Aboprev com pertencimento dominante ao cam-
da vida humana, seja público ou privado. Essas po científico. A Tabela 1 sistematiza a distribui-
visões correspondem a agentes que militaram na ção desigual dos diferentes capitais entre os en-
Aboprev, sob as influências da OPS e as ideias trevistados e suas tomadas de posição em torno
oriundas dos países escandinavos. dos sentidos da SBC.
Eu não sou entusiasta do termo SBC. Eu acho Quanto à concepção de SC, esta resguarda
que saúde bucal é a qualquer nível, seja ela promo- as mesmas relações entre posições, disposições e
vida numa consultoria, seja ela promovida num tomadas de posições entre os entrevistados. Para
grupo, seja ela promovida em nível de população, aqueles que participaram das lutas políticas, pre-
ela tem que ser saúde bucal, o melhor possível [...]. domina a visão da SC como um conteúdo críti-
Aqui no Brasil tem essa visão de que a SP é a SC, e co à SP tradicional, articulado ao movimento de
a saúde individual é outra. Não na Escandinávia, RSB e à luta pela democracia.
que é tudo SP. O Programa Nacional de SP con- SC, ela passa a ter este conteúdo conceitual
trola a atividade até dos consultores; em função de crítico que a diferencia de SP. E daí por que ela
ter saúde, eles contribuem também na saúde das não pode ser apenas uma roupagem, uma espécie
pessoas. Na minha visão, não existe essa dicotomia de etiqueta, de rótulo que você coloque nas anti-
de várias saúdes. Existe saúde; como é que nós va- gas práticas sanitárias. [...] pensar segmentos da
mos fazer com que ela chegue ao maior número de sociedade, sobretudo carentes, pobres, população
pessoas dentro de uma comunidade de um país é de baixa renda, gente excluída e tal para pensar
um desafio, mas tudo deveria ser, no meu modo comunidade, não! Nós tínhamos uma concepção
de ver, coletivo, tudo deveria ser público, mesmo os universal, nós tínhamos uma concepção de socie-
consultórios particulares deveriam fazer parte do dade e nós estávamos revolucionando por meio das
programa de SP (E 3). plataformas dos movimentos sociais na saúde da
Os agentes que se envolveram nos processos própria RSB. (E 7)
políticos de luta pela democracia na RSB pen- A SC é um movimento teórico e político no
savam, guardadas suas particularidades, a SBC âmbito da SP brasileira [...] Qual o projeto da SC
como um conteúdo crítico, de ruptura com o ins- brasileira? [...] lá se propõe a lutar pela construção
tituído, com as práticas odontológicas tradicio- de um sistema de saúde de acesso universal, a saúde
nais que envolviam tanto a odontologia privada, como direito de todos (...) (E 6).
como a OPS e a odontologia integral. Expressa, A SC como sinônimo de SP é reconhecida
basicamente, o pensamento acerca da socieda- entre aqueles entrevistados que participaram de
de e suas relações com o econômico, o político processos de governo, atuando nas políticas de
e o social. Por outro lado, os agentes que não se saúde, mas que se mantiveram longe dos movi-
envolveram nesses processos de luta, pensavam mentos sociais, tendo formação na SP tradicional
como continuidade com a SP tradicional, no caso e Odontologia Sanitária.
odontológico, como uma disciplina de SP, apro- SC é um sinônimo moderno de SP, o oposto da
ximando-se da Odontologia Sanitária da década saúde considerada do ponto de vista individual (E
de 1950. 2).
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Para os membros ligados à Aboprev, a SC re- no Brasil17, já que a análise das áreas de fomento
presenta a saúde das coletividades em todos os da Federação Dentária Internacional (FDI), não
subsetores da produção econômica, seja público contempla os objetos da SBC.
ou privado. Alguns membros não souberam de- Mas mesmo essa expressão também é muito
fini-la. brasileira sabe, e a gente conhece, claro, OPS, mo-
SC é a saúde de todos. SC para mim deveria ser vimento da Medicina Preventiva americana, da
pleonasmo, deveria ser de todos. SC é obvio que é Odontologia Preventiva americana, e o social veio
de todo mundo, mas criam-se rivalidades: - ah eu por empréstimo aqui na América Latina. Mesmo
sou da SC, não sou da saúde de consultório, não Odontologia em Saúde Coletiva é mal-entendida
sou disso, não sou daquilo, ah eu sou dentista pri- (E 11).
vado, não sou da SC, essas compartimentalizações Esse cenário se repete no Brasil, observando
como eu falei antes são ruins (E 3). a publicação “Saúde Bucal Coletiva: Metodolo-
Como no caso da SBC, a visão de SC como gia de Trabalho e Práticas”18, coletânea que reúne
movimento crítico da saúde, de ruptura com a trabalhos de professores e profissionais de saúde
SP tradicional é especialmente compartilhada bucal e que apresenta pontos positivos acerca da
entre os agentes que tiveram aproximação dos consolidação de um subespaço científico da SBC,
problemas de implementação de políticas no porém também ilustra traços de permanência
serviço público, egressos dos movimentos sociais das odontologias anteriores19.
em odontologia e que possuem disposição polí- Ressalta-se, entretanto, o esforço de constru-
tica. Já a visão de SC como SP é comum entre ção de uma teoria social para a saúde bucal, ini-
os agentes cuja trajetória envolve ocupação de ciado por Carlos Botazzo, um dos fundadores da
cargos em Ministério da Saúde e Organismos SBC, introduzindo o tema da “bucalidade”20. Não
Internacionais e, por sua vez, que também não há concordância, entretanto, de que essa propos-
apresentaram envolvimento com a luta política ta consistiria na SBC. Alguns autores referem que
das diversas ordens. Os integrantes da Aboprev, seria algo distinto da SBC21-23, apontando certa
ou não conseguiram conceituar a SC, ou a enten- crise de identidade para esta na atualidade.
diam como distinção entre saúde do “coletivo” Observa-se que a controvérsia apresentada
que não pode pagar e os que podem pagar. na produção científica da SBC tem se refletido
A maioria dos entrevistados compreende o nas práticas de saúde bucal realizadas nos servi-
SUS como projeto de transformação da socie- ços de saúde. Para seus agentes, a SBC permanece
dade e produto de lutas e embates em prol da subalternizada pelas práticas odontológicas tra-
democratização da sociedade. A visão sobre o dicionais no âmbito privado e nos serviços pú-
SUS como sistema único universal, que expressa blicos, reforçando assim, por sua vez, as práticas
direitos sociais, é compartilhado inclusive pelos odontológicas tradicionais.
agentes que não se envolveram na luta política A SBC surge como a SC, disputando os rumos
específica da saúde bucal e mesmo em prol da das políticas públicas de saúde bucal em todos os
democratização, ainda que o reconheça como níveis de governos: federal, estaduais, municipais.
um sistema a se consolidar. Apenas em um dos [...]. Elas são políticas capturadas pela Odontolo-
casos o sistema é comparado ao sistema público gia de Mercado. [...] disputa os rumos das políticas
da Escandinávia. públicas. A Odontologia de Mercado é hegemônica
Observam-se congruências entre os pontos na política da saúde brasileira. O que é hegemônico
de vista apresentados pelos distintos agentes em na política nacional de saúde bucal não são as pro-
interação nesse espaço social e suas posições e postas da SBC, pelo contrário, elas são contra-hege-
disposições. Cabe registrar que, mesmo entre mônicas. Elas vivem disputando e perdendo (E 6).
aqueles que não fizeram parte da luta política [...] a raiz odontológica, as pessoas no limite
pela inserção da saúde bucal no SUS, há concor- chegam mesmo à Odontologia comunitária e pre-
dância, ao menos, na visão sobre o SUS como ventiva, talvez porque as pessoas gostem assim de
sistema universal e maior sistema público do prevenir cárie, doença periodontal. As pessoas pen-
mundo. sam em educar para a saúde, as pessoas pensam em
fazer programas comunitários para crianças, agora
Saúde Bucal Coletiva na Atualidade entrar naquilo que é o campo mais vasto, mais den-
so, mais conflituoso teoricamente e praticamente,
A permanência das antigas “Odontologias” é eu estou falando de teoria da ação prática (E 11).
notada, de início, quando observado que o pla- A análise das práticas de SBC revela a manu-
no internacional não favorece a pesquisa em SBC tenção das contradições do campo odontológico,
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Soares CLM et al.

isto é, avanços tecnológicos com práticas emi- E o que se faz nessa área, ela é hegemonizada
nentemente restauradoras, dificuldades de rom- pelo consultório particular. As operadoras de pla-
pimento com a clínica tradicional e de incorpo- nos de saúde tão aí com uma expansão notável.
ração da equipe de saúde bucal na estratégia de [...] Nos últimos dez anos, entre 98 e 2008, a ex-
saúde da família (ESB/ESF)24. O fato dessa con- pansão foi de mais de 400% da população coberta
cepção de SBC não se encontrar consolidada no pelos planos privados odontológicos. Esses são os
Brasil, nem tampouco no âmbito internacional, interesses que predominam. Quais são as dificulda-
confere o desafio de ampliação da comunidade des da SBC se reproduzir como movimento, como
científica da SBC. campo de produção de conhecimento, e campo de
SBC talvez seja um conceito compartilhado por práticas sociais, se fortalecer pra, enfim, para fazer
poucos. Ela não é uma comunidade epistêmica que esse enfrentamento? (E 6)
pensa a SBC. [...] Fora do Brasil não dá para falar Observa-se o compromisso de alguns funda-
disso entendeu? Se eu uso às vezes no texto em lín- dores com a solidificação do subespaço científico,
gua inglesa que eu pretendo publicar no exterior os para a conformação de um “campo” da SBC. Essa
revisores imediatamente ou ficam na perplexidade, premissa encontra-se coerente com os objetivos
na incógnita, pensam que eu errei a tradução de al- profissionais desses fundadores, que por sua vez
gum conceito. Pedem para eu substituir por Dental ilustra a illusio no interior desse espaço.
Public Health, Oral Health, [...] (E 11). [...] meu objetivo seria mexer com a prática
Nesse caso, o conhecimento dessa concepção [...] então é mexer a carga conceitual que tá colo-
por uma parcela restrita de dentistas constitui-se cada, e ver o quanto que você pode estar transfor-
em um dos principais problemas para a manu- mando isso na prática (E 4).
tenção do espaço social, tal como nas origens. Ademais, alguns fundadores permanecem te-
Outras pessoas “reproduzem” o termo, filiam-se matizando a SBC, tais como Carlos Botazzo, Paulo
a ele, mas de fato não reconhecem as distinções Capel e Paulo Frazão21,26,27, tendo a publicação “Di-
entre ele e as “velhas odontologias”. Permanecem álogos sobre a boca”, em 2013, um esforço de recu-
velhos habitus que permitem a reprodução da peração conceitual e da trajetória da SBC28, bem
OPS no Brasil. O desconhecimento da constru- como o texto intitulado “Saúde Bucal Coletiva:
ção teórico-política da SBC faz com que esta seja antecedentes e estado da arte” em livro de SC, no
identificada, de certa forma, com a velha OPS, qual aparecem novos agentes abordando a SBC27.
mas com nova denominação. Outros movimentos vêm ocorrendo no su-
Embora a produção teórica sobre SBC seja bespaço científico nas décadas que sucederam
reconhecida, ainda não é subcampo nem da SC a emergência da SBC, na direção de construção
e nem da Odontologia. A mais recente reforma de um arcabouço teórico e metodológico para a
educacional, viabilizada pelas Novas Diretrizes prática da SBC. Várias obras têm sido publicadas
Curriculares – Pró-saúde –, que promoveu in- com essa intenção. Em 2008, Samuel Moysés, Leo
centivos na mudança dos vários currículos de Kriger e Simone Moysés publicam coletânea que
cursos de odontologia, propiciou a inserção da mescla discussões teóricas e experiências práti-
SBC em pequena parte deles. Em alguns casos, cas29. Recentemente, Samuel Moysés, em parce-
“Odontologia em Saúde Coletiva” ou “Saúde Co- ria com Paulo Goes, lançou a obra denominada:
letiva”, explicitando os diferentes pontos de vista “Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bu-
dos grupos de pesquisadores da área. cal” com a participação de vários agentes citados
Essa problemática foi investigada por Rodri- ao longo desse trabalho, incluindo alguns dos
gues et al.25, envolvendo a análise dos currículos fundadores30. O termo utilizado mais recorrente-
de 123 cursos de Odontologia que tinham forma- mente como título das obras é SC31.
do pelo menos uma turma até 2003. Os autores A resposta a essa problemática talvez esteja
concluem na investigação que a nomenclatura no fato de que, embora a SBC se filie aos pres-
mais recorrente para designar a área de SC é OPS. supostos da SC, seu processo de reprodução se
Desse modo, constata-se que as preocupações aproxima cada vez mais da “odontologia” e de
com as mudanças das práticas odontológicas não suas práticas sociais, notadamente aquelas orien-
ficaram no passado. É uma questão que continua tadas pela OPS e pela Odontologia Sanitária.
em jogo. Corresponde à luta cotidiana ineren- Sendo assim, um dos principais desafios para a
tes às práticas de saúde bucal no serviço público SBC, na atualidade, seria articular seus subes-
odontológico, já que a SBC tem o compromisso paços burocrático e político, de modo que o de-
com os serviços públicos de saúde, com a justiça senvolvimento teórico dê subsídio para a prática
social e com a manutenção do direito à saúde. odontológica nos serviços de saúde.
1813

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Dentre os agentes estudados, alguns perma- PSB no processo da RSB. Ademais, a configura-
neceram no espaço desde sua fundação, mas ocu- ção atual do espaço odontológico e as relações
pando posições distintas. Esses profissionais, que políticas, econômicas e sociais, que se refletem
figuravam nos anos de 1980 como dominados na hegemonia das práticas e na permanência da
no espaço, hoje assumem posições dominantes, odontologia de mercado, encontram-se entre os
encabeçando discussões sobre o tema no subes- principais problemas da área hoje, cujo reforço às
paço científico, assim como alguns deles vêm in- “Odontologias Alternativas” das décadas anterio-
tegrando o burocrático através de comissões de res preserva a autonomia do campo odontológico.
assessoramento da política nacional ou no plane- [...] A Odontologia de Mercado mudou no país
jamento e realização dos inquéritos epidemioló- [...] quando a gente fazia faculdade, quando come-
gicos brasileiros (Figura 2). Todos os agentes que çou a discutir essa questão da prática odontológi-
permaneceram no espaço tomaram posição, em ca privada, ela era uma prática de dentistas ou de
relação à SBC, de ruptura com as práticas odon- grupos de dentistas que faziam a sua prática pelo
tológicas então vigentes, tendo como campo de desembolso direto [...] O crescimento desse setor
domínio o científico (Tabela 2). de planos e seguros odontológicos introduziu uma
A recuperação da sua face política também nova forma de relação de capital [...] (E 10).
deve compreender a pauta dos agentes desse Essa hegemonia acaba sendo reforçada pela
espaço social. A formação de dentistas compro- Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), ou
metidos com a SC e com a mudança das práticas seja, pelo subespaço burocrático, hoje liderado
odontológicas tem sido preocupação de alguns por egressos da “Odontologia em Saúde Coleti-
fundadores. A ampliação na quantidade de den- va”, movimento ideológico prévio que originou
tistas com formação crítica e comprometidos a SBC.
com a prática de saúde bucal, “não odontológi- Educar, limpar [...] tá tudo preservado, tudo co-
ca”, pode ser um caminho para assegurar novos locado, embora a PNSB não conduza obrigatoria-
movimentos contra-hegemônicos. mente a esse caminho, mas a tradição está colocada
Cabe, então, recuperar e reatualizar a crítica aí. [...] o resto da odontologia privada fica preserva-
das origens da SBC como um resgate da amnésia da. Então, [...] distribuição de kit de Higiene Bucal
da gênese e da matriz política que se perdeu ao [...] a Colgate está muito bem obrigado (E 4).
longo do tempo histórico, no período pós-cons- Assim como a SC, a SBC corresponde a um
tituinte, particularmente pela implementação das caso sui generis, que nasce influenciado pelas

Década de 1980 Década de 2010


Capital burocrático

Capital burocrático

Capital Científico Capital Científico

Figura 2. Arquitetura do Espaço de Luta da Saúde Bucal no Brasil nos anos 1980 e a posição dos agentes
fundadores em 2010.
1814
Soares CLM et al.

ideias e pelos agentes da SC. A articulação en- e/ou assumir posição dominada no âmbito dos
tre dois espaços sociais mantém as antigas redes periódicos da SC, sendo a própria criação de um
de relações estabelecidas naquele período, que GT específico de Saúde Bucal na Abrasco ques-
vieram se estreitando e ampliando ao longo do tionada por diversos membros da entidade.
tempo e que podem ser observadas nos processos Outra leitura possível é que esse grupo de
de orientações de teses. Nestes, os agentes da SC dentistas, em posição dominada no espaço de lu-
orientam os trabalhos dos da SBC, envolvendo tas pela saúde bucal nos anos 1980, rompeu com
odontólogos nos programas de pós-graduação a OPS na busca de criar um novo espaço, a SBC,
em SC, na organização e participação dos con- onde assumiram posições dominantes. Esse novo
gressos da Abrasco, o que culminou com a cria- espaço, criado tendo como base os referenciais do
ção, em 2007, do GT de Saúde Bucal da Abrasco. espaço da SC32, ainda que trouxesse uma crítica
à abordagem odontológica, não conseguiu insti-
tuir uma efetiva mudança nas práticas. Os pro-
Considerações Finais cessos de trabalho no âmbito assistencial ou da
gestão em saúde continuaram restritos ao cirur-
A SBC, como fenômeno sócio-histórico, repre- gião-dentista, nas práticas higienistas oriundas
sentou um espaço social que emergiu da consti- da OPS, ampliando-se, quando muito, às profis-
tuição de uma rede de relações entre agentes da sões auxiliares em saúde bucal. O fazer e o pensar
SBC oriundos do movimento da RSB, SC e OPS a saúde bucal continuaram sendo uma tarefa ex-
mais sensíveis às práticas comunitárias. As corren- clusiva do cirurgião-dentista e de seus auxiliares,
tes odontológicas em curso nas décadas de 1970 e sem a participação de outras áreas da saúde e de
1980 eram incapazes de mudar a prática odonto- outros setores da sociedade. Não há multidisci-
lógica e a situação de saúde bucal no Brasil. plinariedade e a intersetorialidade fica restrita às
Pode-se dizer que esse espaço nasceu como práticas escolares.
crítica às práticas vinculadas à odontologia priva- É possível ainda uma reflexão de cunho epis-
da de mercado e, também, como crítica às “Odon- temológico acerca do termo SBC. Consideran-
tologias Alternativas”, sendo, portanto, um movi- do a SC como espaço com autonomia ainda em
mento de politização da odontologia brasileira, construção32, a proposição de ruptura no âmbito
evoluindo para uma reflexão crítica envolvendo da odontologia adequar-se-ia ao que poderíamos
os modelos de prática odontológica em curso na- provisoriamente denominar de Saúde Bucal em
quele período, especialmente a simplificada e a Saúde Coletiva, ou, até mesmo, e, principalmente,
integral. Corresponde também a um referencial por identificar uma ausência de multidisciplina-
teórico para as políticas e as práticas de saúde bu- ridade, Odontologia em Saúde Coletiva.
cal no âmbito do SUS, uma vez que se propõe a Ainda que a SBC se constitua como uma ver-
intervir sobre os determinantes sociais, admitin- tente crítica, análise do espaço da saúde bucal na
do-se práticas sociais de naturezas distintas como atualidade aponta também para a expansão da
as técnicas, ideológicas e políticas. Na política e face privada da odontologia. Nesse particular, ob-
na ciência, ela está na retórica dos discursos, mas serva-se que a SBC ainda não foi capaz de desen-
ainda não na prática dos serviços de saúde. volver a contra-hegemonia necessária para rever-
Destaca-se que o grupo de dentistas, inicial- ter a direção das práticas odontológicas em curso.
mente dominados, alcançou o polo dominan- A persistência de práticas de odontologia sa-
te no espaço de luta da saúde bucal brasileira nitária e preventiva podem estar relacionadas aos
na atualidade. Isso deve-se ao fato dos mesmos desafios revelados pelos seus fundadores, como a
terem assumido posições importantes nos su- ampliação de quadros com constituição de novos
bespaços burocrático (assumindo cargos ou em sujeitos, formação política e visão crítica, com-
comissões de assessoramento) e político, partici- promisso com práticas além das odontológicas,
pando da formulação e implementação da PNSB incorporação de outras profissões de saúde no
e contribuindo para a constituição do discurso fazer e pensar a saúde bucal e vice-versa. Assim,
das principais entidades de classe. No subespaço A SBC permanece na luta pela hegemonia das
científico, entretanto, continuou precisando ade- práticas, tal como nasceu, disputando os rumos
quar-se às normas dos periódicos odontológicos das PSB no Brasil.
1815

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Colaboradores Referências

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Artigo apresentado em 17/08/2016


Aprovado em 04/11/2016
Versão final apresentada em 06/11/2016

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