Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ARTIGO
http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.236
A negação da pandemia:
reflexões sobre a estratégia bolsonarista
The pandemic denial: reflections about
bolsonarist Strategy
Resumo: Este artigo propõe refletir sobre Abstract: This article proposes to reflect
a política do governo Jair Bolsonaro em about the Jair Bolsonaro government politic
relação à pandemia da covid-19. A hipótese concerning to the covid-19 pandemic. The
central é que ela se baseia na intenção de central hypothesis is that it´s intention
atingir imunidade coletiva, estimulando a to reach collective immunity. For this,
contaminação generalizada. Para atingir the government stimulates widespread
este objetivo, minimizou a gravidade da contamination. To achieve that goal he
pandemia, estimulou comportamentos has been minimized the severity of the
inadequados e disseminou informações pandemic, and ha s been stimulating
inverídicas. Considera que os meses de inappropriate behaviors, disseminating
março e abril foram decisivos na definição untrue information. This paper considers
da estratégia do governo brasileiro e avalia that the months of March and April were
os resultados que produziu. decisive in defining the strategy of the
Brazilian government, and evaluates the
results it has been produced.
Palavras-chave: Coronavírus. Pandemia. Keywords: Coronavirus. Pandemic. Covid-19.
Covid-19. Governo Bolsonaro. Bolsonaro´s government.
a
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, PR/Brasil.
Recebido: 17/10/20 Aprovado: 5/11/20
Apresentação
O
ito meses depois de registrados os primeiros casos da covid-19,
o Brasil está entre os países com os piores indicadores rela-
tivos a óbitos e contaminações.1 Em uma proposição crítica
bastante difundida, afirma-se que essa situação seria resultado da falta
de estratégia por parte do governo brasileiro. Nossa hipótese é que, ao
contrário, a terrível situação em que o país se encontra é resultado de
uma estratégia bem definida, coerente e sistematicamente aplicada por
parte do governo Jair Bolsonaro, que, orientando-se pela perspectiva de
atingir rapidamente a imunização coletiva (ou “imunidade de rebanho”),
se utilizou de distintos instrumentos para estimular a intensificação da
contaminação, recorrendo para tanto à disseminação de dados incorretos
ou mesmo inteiramente falsos e à demonstração exemplar de compor-
tamentos propícios à contaminação. Nesta perspectiva, entendemos
que integram essa estratégia a desqualificação da pandemia (“histeria”,
“história mal contada”, “gripezinha”, “neurose”), o estímulo a atitudes
que induzem à aceleração do ritmo de contaminação (aglomeração, uso
incorreto da máscara, defesa da abertura de academias, salões de beleza
e escolas) e a propagação de falsas soluções, em especial com anúncio
enganoso de medicamentos comprovadamente ineficazes.
portanto até então o novo coronavírus era abordado como epidemia, ainda que já estivesse
avançando em inúmeros países.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Gr0Nsrz7W3s. Acesso em: 18 out. 2020.
3
Esses dados foram extraídos do wordometers, assim como os demais mencionados neste
4
9
“Trump declara emergência nacional devido ao coronavírus”. Deutsche Welle Brasil, 13 mar.
2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/trump-declara-emerg%C3%AAncia-nacio-
nal-devido-ao-coronav%C3%ADrus/a-52767985, Acesso em: 18 out. 2020.
10
A principal exceção, no contexto europeu, foi a Suécia, que, sob o comando do epidemiologista
Anders Tegnell, manteve-se na perspectiva de busca pela imunização coletiva, recusando-se à
adoção de políticas oficiais voltadas à promoção do isolamento social. Nesse contexto, apesar
do isolamento voluntário de parte significativa da população, o país tinha em 17/10/2020 uma
das maiores taxas de letalidade do mundo (585 mortes por milhão de habitantes), entre cinco
e doze vezes maior que seus vizinhos nórdicos Dinamarca (117), Finlândia (63) e Noruega (51).
Ainda assim, permanecia com número de casos ativos superior ao daqueles países. Disponível
em: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em: 18 out. 2020.
13
“Covid-19 pode deixar sequelas no sistema nervoso central, diz estudo”. CNN Brasil, 22 abr.
2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/04/22/covid-19-pode-deixar-
-sequelas-no-sistema-nervoso-central-diz-estudo. Acesso em: 18 out. 2020.
14
“Ministério da Saúde determina cancelamento de cruzeiros turísticos no país”. G1, 13 mar.
2020. Disponível em: https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2020/03/13/ministerio-
-da-saude-determina-cancelamento-de-cruzeiros-turisticos-no-pais.ghtml. Acesso em: 18 out.
2020. Conforme é relatado no livro do ex-ministro Henrique Mandetta, essa não foi a primeira
medida legal relacionada à covid-19, pois antes disso havia sido aprovada uma lei que tornava
possível a imposição de quarentena em determinadas situações, com o objetivo específico de
Foi a partir daquele domingo, dia 15, que duas mensagens começaram a
circular juntas, uma se contrapondo à outra. O Ministério da Saúde indicava
um caminho, e o presidente enviava uma mensagem no sentido oposto, a
viabilizar o resgate dos brasileiros que estavam na China e garantir que ficassem confinados
até que pudessem ser liberados com segurança. O resgate foi realizado, e a quarentena dos
resgatados encerrou-se em 23 de fevereiro, dois dias antes do registro do primeiro caso no país.
15
Recorremos aqui a aspectos específicos do relato de Mandetta sem, no entanto, endossar sua
interpretação de conjunto, como indicaremos na próxima seção.
16
“Infovid 12: os primeiros momentos da pandemia”. Instituto Questão de Ciência, 19 ago. 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kMFj7hPwOyU&ab_channel=iqciencia.
Acesso em: 18 out. 2020.
17
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kMFj7hPwOyU. Acesso em: 18 out. 2020.
Postagem do Monitor do Debate Político no Meio Digital, 4 abr. 2020. Disponível em: https://
19
Número Número
Declaração Data de casos de óbitos
na data na data
“O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do
mundo. Uma nação como o Brasil só estará livre quando 17/3 346 1
certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos”
“Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, tá o.k.?” 20/3 957 11
“O povo foi enganado esse tempo todo sobre o vírus” 26/3 2.902 77
“Se o vírus pegar em mim, não vou sentir quase nada” 30/3 4.630 163
“Está começando a ir embora essa questão do vírus” 12/4 22.192 1.223
“Eu não sou coveiro, tá certo?” 20/4 40.743 2.587
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias,
28/4 72.899 5.063
mas não faço milagre”
mortos por acidente estão sendo contabilizados como mortos pelo vírus.
Esses cinco áudios são responsáveis por 35% dos compartilhamentos totais
da amostra analisada.20
20
“Áudios em grupos de Watsapp negam mortes por coronavírus”. Eleições sem Fake / Monitor
do Debate Político no Meio Digital, 29 mar. 2020. Disponível em: https://drive.google.com/
file/d/1LAD2eAaehCtFFzUw5iUbPuvUABjA97Na/view?fbclid=IwAR3f7kXrlq6FQXVSiGUL-
MM_4yB3kN5EYRAZw310UlbNDcNJ9y7V5GvaonqI. Acesso em: 18 out. 2020.
A permanência de relatos fantasiosos como este é atestada pelo fato de que foi repetido mais
21
de seis meses depois por Celso Russomano, candidato bolsonarista à prefeitura de São Paulo,
que citou exatamente a alegada “resistência” dos moradores de rua como justificativa de sua
oposição a medidas de isolamento social. “Russomano insiste em resistência de moradores de
rua à covid-19: ‘Imunes’”. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/russomanno-in-
siste-em-resistencia-de-moradores-de-rua-a-covid-19-imunes. Acesso em: 18 out. 2020.
22
“É #fake que o vírus não resiste ao calor e a temperatura de 26 ou 27 graus”. G1, 18 mar. 2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2020/03/18/e-fake-que-novo-corona-
virus-nao-resiste-ao-calor-e-a-temperatura-de-26oc-ou-27oc.ghtml. Acesso em: 18 out. 2020.
23
“Fake news ‘do borracheiro’ é usada para desacreditar números do coronavírus”. Clicrbs, 29
mar. 2020. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/03/
fake-news-do-borracheiro-e-usada-para-desacreditar-numeros-do-coronavirus-ck8dibh7y02t-
z01o91mc4j6s4.html. Acesso em: 17 out. 2020.
“Nota Técnica #09 — Eleitores e apoiadores de Bolsonaro respeitam menos a quarentena”.
24
Monitor do Debate Político no Meio Digital, 6 maio 2020. Disponível em: https://www.monitor-
digital.org/2020/05/06/nota-tecnica-09/?fbclid=IwAR2F3_TkJ-tjj7UYpL24wpBstUtXlZ-DHX-
wO8d-iiUCfpGFmQP7yAVgdOqE. Acesso em: 18 out. 2020.
25
Disponível em: https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/. Acesso em: 18 out. 2020.
Considerações finais
26
De acordo com o Boletim Epidemiológico Especial 34, 28,1% (57.292) do total de óbitos regis-
trados por síndrome respiratória aguda grave até 6/10/2020 estava classificado na categoria
“não especificada” Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/
October/08/Boletim-epidemiologico-COVID-34.pdf, p. 31. Acesso em: 18 out. 2020. Júlio Cro-
da menciona que uma validação independente estabeleceu que mais de 95% desses óbitos é
covid-19, ainda que não seja contabilizado como tal. “Infovid 12: os primeiros momentos da
pandemia”. Instituto Questão de Ciência, 19 ago. 2020. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=kMFj7hPwOyU&ab_channel=iqciencia. Acesso em: 18 out. 2020.
De acordo com a agência de checagem Aos Fatos, até 15 de outubro, Jair Bolsonaro proferiu
27
684 afirmações falsas ou distorcidas tratando do coronavírus. Dentre elas, as mais recor-
rentes referem-se à afirmação de que o Supremo Tribunal Federal o teria impedido de agir
(58 ocorrências), a de que o país só estará livre do vírus quando 70% da população tiver sido
contaminada (34 ocorrências) e a de que a hidroxicloroquina é eficaz, ou que não tem sua
eficácia desmentida por nenhum estudo (dezenove ocorrências). Disponível em: https://www.
aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/. Acesso em: 18 out. 2020.
Referência
MANDETTA, Luiz Henrique. Um paciente chamado Brasil: os bastidores da luta contra o
coronavírus. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020.
Sobre o autor
Gilberto Grassi Calil – Doutor em História Social. Estágio de Pós‑Doutora-
mento na Universidade do Porto. Professor-associado do Curso de História e do
Programa de Pós-Graduação em História.
E-mail: gilbertocalil@uol.com.br
Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons.