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TOM C. AVENDAÑO
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14/07/2021 A verdade oculta das ‘empresas de garagem’ do Vale do Silício | Tecnologia | EL PAÍS Brasil
A tecnologia vem do Vale do Silício e o Vale do Silício vem de uma garagem. A lenda é
simples assim; complicado é decidir qual garagem. Há a do número 367 da Addison Avenue,
em Palo Alto, onde em 1938 William Hewlett e David Packard se trancaram para fazer
experiências com dispositivos eletrônicos e onde hoje uma placa diz: “Local de nascimento
do Vale do Silício”. Ou a do número 2066 da Crist Drive, em Los Altos, onde Steve Jobs e
Steve Wozniak construíram o primeiro computador Apple que foi vendido ao público em
1976. E há ainda a do número 232 da Santa Margarida Avenue, em Menlo Park. Essa foi
alugada em 1998 por dois jovens, Larry Page e Sergei Brin, para desenvolver uma jovem
empresa chamada Google. A garagem continua surpreendentemente intacta hoje. Com o
tapete azul que a então proprietária da casa, Susan Wojcicki, hoje executiva-chefe do
YouTube, instalou para que os inquilinos se sentissem mais à vontade. A mesa de pingue-
pongue onde se distraíam. Tudo disposto para que o mito pareça real e nada relembre que,
na realidade, o Google foi fundado dois anos antes; já havia arrecadado mais de um milhão
de dólares de vários investidores; e a economia que representava alugar uma garagem em
vez de um escritório era risível. E mais, em janeiro de 1999, depois de apenas cinco meses
pisando no tapete azul, os nove empregados do Google se mudaram para escritórios
convencionais. Mas a garagem está ali, é propriedade da empresa desde 2006, e os lucros
que gera em seu mito institucional são incalculáveis.
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Esse é o poder mágico da garagem. Um empresário que o menciona não está apenas
evocando o trabalho duro com o qual Hewlett e Packard ergueram um império tecnológico a
partir de seu escritório improvisado em Palo Alto. E também não está só relembrando os
intrépidos visionários da Apple a quem o mundo acabou dando razão. Está-se somando a
uma longa tradição a que pertence Walt Disney, que fundou sua empresa na garagem de
seu tio Robert em 1923 e que mais tarde usou dois estacionamentos como estúdios de
animação improvisados. Ou Harold Matson e Eliot Handler, que em 1945 vendiam molduras
de madeira para fotos e, com o material que sobrava, fabricavam brinquedos em sua
garagem. Fundiram seus nomes e, sob a marca Mattel, criaram a Barbie e tornaram-se uma
multinacional de primeira grandeza. Ou Michael Dell com a empresa que leva seu
sobrenome. Ou Jim Casey, da UPS. O mito da garagem transmite uma série de imagens e
valores admiráveis. Empreendedorismo. Geração espontânea de ideias brilhantes. Trabalho
duro. A liberdade de ser seu próprio chefe e desenvolver sua própria visão. A ingenuidade
de pensar que tudo vai dar certo e a humildade de continuar trabalhando quando dá certo. A
garagem não é só um enclave geográfico. “É um estado mental. É a rejeição do ‘statu quo’.
É afirmar: Não preciso de dezenas de engenheiros com mestrado para fazer frente à
concorrência”, explica Guy Kawasaki, ex-funcionário da Apple e autor de vários livros sobre
empreendedorismo no Vale do Silício. A garagem é um símbolo. Um aviso do gênero ao
qual pertence a origem de cada empresa. É o sonho americano. E também é mentira.
“É muito romântico e muito individualista”, protesta Dan Heath, jornalista do Fast Company
e co-autor, com seu irmão Chip, de vários livros sobre estratégias empresariais. “Falam-
nos do mito da garagem e visualizamos dois caras que criam algo brilhante em segredo e
depois o mostram a um mundo mais que receptivo. Quer dizer, dá uma ideia errônea do
que é preciso para vencer. Se quer começar uma empresa, suas tarefas são encontrar
trabalho, aprender como funciona a indústria e fazer contatos. Claro, é muito mais
enfadonho que uma ideia maravilhosa desenvolvida em uma garagem”.
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Ninguém quer ouvir a história dos rapazes ricos que se reúnem no Marriott
para idealizar um plano de negócios. Isso não é tão romântico como a ideia
dos iluminados se desenvolvendo do nada
Dan Heath, escritor
especializado em cultura empresarial
Também se conta que em 2005 dois amigos, Chad Hurley e Steve Chen, gravaram um
terceiro amigo em uma festa e, ao ver quanto era complicado jogar o material na Internet,
decidiram fundar o YouTube. Não se revela que Hurley tinha sido um dos primeiros
empregados no PayPal e até havia desenhado o seu logo. E que o seu sogro, James Clark, é
o fundador do Netscape Navigator. Ou seja, os criadores do YouTube eram mais de dois e
tinham conexão direta com investidores. Meses depois, Steve Chen confessou à revista
Time que a história da festa tinha sido “enfeitada” para que soasse melhor.
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A garagem que Google alugou durante cinco meses quando já era uma empresa milionária.
A fábula é cada vez mais popular. Em 2005, dois professores da Universidade da Califórnia
fizeram um estudo entre seus alunos: 89% deles podiam citar alguma empresa criada
desse jeito. Somente 48% das empresas são criadas dessa maneira, mas o estudo estima
que as aparições dos mitos de garagem na imprensa se multiplicaram 250% entre 1980 e
2000. E, como qualquer mentira contada por vezes suficientes, está se aproximando da
realidade. Quando a Comissão Nacional de Empreendimento, dos EUA, estudou as raízes
das maiores empresas do país no século XX concluiu: “Em 1917, os empreendedores
costumavam ser aqueles aos quais se havia negado o sucesso por outras vias. Em 1997,
empreendem aqueles que podem se permitir o risco. O valor da experiência prévia parece
ter diminuído”. Nenhuma das empresas estudadas, por certo, tinha sido criada do nada.
Somente 48% das empresas são criadas dessa maneira, mas o estudo
estima que as aparições dos mitos de garagem na imprensa se
multiplicaram 250% entre 1980 e 2000
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O mito dá cara a dois motores tangenciais, mas inesgotáveis, do capitalismo atual: o sonho
americano, segundo o qual um homem pode chegar ao ponto mais alto somente
trabalhando duro; e o ego da indústria tecnológica, obcecada pela ideia de invadir o mundo.
É o que acontece com os mitos atraentes demais. “Quanto mais você conta uma história,
mais evolui”, explica Heath. “Os indivíduos vão sendo ressaltados, não as organizações. Os
momentos particulares, não o progresso gradual. Creio que a história do YouTube se
tornará ainda mais triunfal com o tempo. Mais majestosa.” Contanto que ninguém acredite
nela.
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