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Corpo, narcisismo e identificação nas escarificações

ansiolíticas entre adolescentes na atualidade

Cristiane Oliveira1

E m Shortbus, dirigido por John Cameron Mitchell, filme


de 2006, vidas se cruzam num clube underground em
meio à aridez novaiorquina do pós-11 de Setembro. A anfitriã
é uma drag queen, que, à certa altura do filme, ao guiar um
visitante através dos salões e ao notar que ele observa com alguma
perplexidade uma cena de sexo grupal, diz-lhe: “Veja: é como
nos anos 60, só que sem esperança”. Dessa ironia, é produtivo
apreender seu valor metafórico para anunciar uma leitura acerca
das escarificações, cada vez mais frequentes entre adolescentes,
tomando a equivalência feita por Lacan2 em 1972, no discurso de
Milão, entre “falta a gozar” em sua relação com a “foraclusão da
castração”, como incidências do discurso capitalista nas formas
de subjetivação contemporâneas.

Antes, um breve percurso sobre o estatuto de corpo em psicanálise


será empreendido a fim de localizar a escarificação como
1
Profa. Adjunta do Instituto de Psicologia da UFBA. Docente do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia (POSPSI/UFBA). Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ)
com estágio doutoral na Université Paris Diderot – Paris VII. Tutora da Residência
Multiprofissional em Saúde do COM-HUPES. Editora Executiva da Revista EPOS
– Genealogias, Subjetivações, Violências. Membro do Campo Psicanalítico. E-mail:
cristianeolliveira@gmail.com.
2
LACAN, J. Discours à l’Université de Milan le 12 mai 1972, paru dans l’ouvrage
bilíngue. In: _____. In Italia/En Italie [1953-1978]. Milan: La Salamandra, 1978. p. 32-55.

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Nós do sintoma

experiência que vincula, pela corporeidade, o sujeito ao Outro.


Alguns apontamentos serão apresentados para analisar essas
experiências corporais à luz da articulação entre o tratamento
conceitual dado pela psicanálise ao narcisismo e à identificação.
Em seguida, sobre a experiência de escarificação nos adolescentes
será pensada como uma escrita sem palavras, a partir do conceito
lacaniano de letra para que se possa, então, refletir sobre as
incidências do discurso capitalista nessas manifestações de mal-
estar na juventude contemporânea.

II

O termo escarificação será utilizado como alternativa a


“automutilação”, uma vez que o que está posto em causa nesta
experiência é justamente uma relação sujeito-Outro que se
manifesta pela permeabilidade do corpo. Contudo, as escarificações
aqui em questão estão longe da experiência de fazer do corpo tela
para expressão estética, como se pode notar no body art, segundo
aborda Pires3. Cortar a própria carne do Outro, bordar seus limites,
suas fronteiras ameaçadas, dar contorno à angústia através de uma
escrita sem palavras: essa é a hipótese de trabalho acerca do ato
presente nas escarificações ansiolíticas.

Nas escarificações, torna-se imperativo ao sujeito dar


materialidade à dor psíquica, ao excesso transbordante, que invade
e devasta o sujeito que se vê como que forçado a dar materialidade
à dor psíquica através da produção de dor associada à pulsão
escópica dirigidas às ínfimas e múltiplas fendas do corpo que o
esvaziam provisória e efemeramente de seu quantum excessivo
3
PIRES, Beatriz F. O corpo como suporte da arte: piercing, implante, escarificação,
tatuagem. São Paulo: SENAC, 2005.

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Corpo, narcisismo e identificação

de angústia. Tentativa de inscrição da angústia traumática, a


escarificação testemunha a tensão vivenciada entre a mortificação
e a erotização de um corpo que é superfície de contato entre o
sujeito e o Outro.

III

Lacan, na sua Conferencia no MIT, em 2 de dezembro


de 19754, afirma o corpo como um “saco de pele”, como forma,
como expressão imaginária pela qual se faz apreensível na análise,
apontando para sua dimensão de “envolvido e envolvente”,
metáfora sugestiva pela ideia de invólucro e porosidade que
constitui e atravessa o sujeito em sua relação com o Outro, que,
parcial e precariamente se presentifica no semelhante, como uma
primeira experiência de apreensão do mundo como distinta de um
“eu”, pela introjeção de uma forma de si propiciada pelo reflexo
do semelhante5. Há um outro que antecipa para o infante uma
alteridade presentificada na autoimagem refletida no espelho, lugar
do amalgamento, da rivalidade, da agressividade.

O corpo em psicanálise é tributário da parcialidade, da


fragmentação, das turbulências entre excesso-falta, em disjunção
com o organismo e em exigência de trabalho psíquico. Desde
Freud6, ele está indexado à noção de pulsão, em cuja nascente
pretendeu apontar uma solução para o problema que foi colocado,
pela experiência histérica, ao modelo anatomopatológico da clínica

4
LACAN, J. Conferência MIT [02/12/1975]. In: CENTRO DE ESTUDOS FREUDIA-
NOS DO RECIFE (Org.). Conferências nos Estados Unidos. Recife: CEFR, 1995. p.49.
5
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada
pela experiência psicanalítica [1966]. In: ______. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Zahar, 1998, p.96-103.
6
FREUD, S. A pulsão e suas vicissitudes [1915]. In: ______. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV, p.123-144.

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Nós do sintoma

recém-inaugurada7. É de 1905, nos Três Ensaios, a afirmação


de Freud8 de que a pulsão não tem objeto fixo e que o corpo era
recortado por zonas erógenas, porosidades pelas quais a relação
do sujeito com o Outro podia se fazer pela mediação do corpo,
conformando a natureza perverso-polimorfa (marcada pela
parcialidade pulsional e não pela degenerescência)9 da relação
com seus objetos.

Esforçando-se para dar à pulsão um status de conceito,


Freud, em 191510, afirma a pulsão como o que torna indissociável
o psíquico e o somático e, a julgar pelos destinos pulsionais por
ele traçados, o sujeito e o Outro. A pulsão estaria marcada ainda
pela possibilidade de representação, de fornecer uma saída para
a exigência de trabalho que a fonte faria ao psiquismo, o que
será retificado pela noção da pulsão de morte, em 192011, pulsão
silenciosa, que não cessa de se repetir sem se deixar representar
senão pelo trabalho de vinculação exigido da pulsão erótica.

Essas intensidades e representações marcam de modo


indelével o corpo, em conformidade com as aparições clínicas
de toda sorte de fenômenos corporais. Teixeira nos lembra que
o corpo, desde Freud, comparece na análise em sua “anatomia
significante”. A separação entre corpo e organismo, decorrente da

7
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica [1963]. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2011.
8
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: ______. Edição stan-
dard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII,
p. 218-229.
9
OLIVEIRA, C. Freud, a sexualidade perverso-polimorfa e a crítica ao discurso da dege-
nerescência: revisitando tensões entre psicanálise e psiquiatria. Ágora: Estudos em Teoria
Psicanalítica, v.19, n.1, p.53-68, 2016. Disponível em: < https://dx.doi.org/10.1590/
S1516-14982016000100004 >. Acesso em: 2 jul. 2016.
10
FREUD, S. A pulsão e suas vicissitudes, op. cit.
11
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer [1920]. In:______. Edição standard bra-
sileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XVIII, p.12-75.

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Corpo, narcisismo e identificação

teoria freudiana da pulsão, favoreceu a direção de seu tratamento


teórico e clínico em alguns níveis12: (1) o primeiro evidencia que
o corpo na experiência analítica não é (ou não deveria ser) uma
abstração; (2) corpo e sujeito nascem de processos simultâneos;
(3) o corpo deve ser entendido na sua natureza borromeana; (4)
corpo não faz desaparecer o organismo; antes demarca os limites
da psicanálise.

A vinculação do corpo ao imaginário e ao narcisismo merece


aqui uma digressão teórica. Freud coloca uma questão fundamental
em “Introdução ao Narcisismo”, de 191413: por que abandonamos
o narcisismo primário? Da figura mítica de Narciso, gostaria de
extrair, para conectá-lo à elaboração freudiana, sua mortificação,
que advém de sua recusa à ligação erótica com a ninfa Eco e
aprisionar-se à sua própria imagem, sem, portanto, mobilidade
alguma para com ela. Sem o Outro, Narciso morre agarrado à
fixidez e à sedução mortífera de sua imagem.

É porque existe um Outro que se pode fazer apelo ao laço


identificatório, alteridade-lugar através do qual a linguagem
constitui a experiência do falasser, cuja estrutura pode dar
guarida a este estado de dependência constituído pelo furo com
que substituímos o narcisismo pelo ideal do eu ou, como nos diz
Carlos Caires14, “aquilo que advirá como um manto para recobrir
a ferida narcísica, reconstituindo o prazer no horizonte da ficção”.
À oposição libido objetal e libido de ego, Freud ofereceu, em

12
TEIXEIRA, A. M. Ressonâncias do significante e da letra no corpo falante. In: CAR-
VALHO, Soraya (Org.). O inconsciente e o corpo do ser falante. Salvador: Associação
Científica do Campo Psicanalítico, 2010. p.19-32. p.24; 25.
13
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução [1914]. In:______. Edição standard bra-
sileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.XIV, p. 81-113.
14
CAIRES, C. Supereu, Ideal do Eu e Consciência moral. In: GERBASE, J. (Org.). Avata-
res do supereu. Salvador: Campo Psicanalítico, 2008. p. 107-111, p.107.

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Nós do sintoma

1914, uma destinação analítica: esquadrinhar, através da doença


orgânica, da paranoia e da melancolia, quais são os processos de
subjetivação que ocorrem ao longo da diferenciação da libido
e responder o que resta da renúncia a um suposto estado de
onipotência denominado de narcisismo primário. Dessa forma,
na economia psíquica, haveria uma antítese entre esses dois
vetores libidinais: “quanto mais uma é empregada, mais a outra
se esvazia”15.

Ora, o narcisismo não está lá desde sempre. A ele


corresponderia uma primeira forma de integração da parcialidade
das pulsões em um corpo tornado próprio, a partir de precipitação
ocasionada por uma ilusão integradora que vem desde fora. O que
lhe antecede é o autoerotismo, essa porção de autoconservação
parcializada em um corpo despedaçado e sem alteridade, mas já
qualitativamente alterada pelo efeito da pulsão no pequeno infante.
Há, portanto, um trabalho psíquico suplementar nesta passagem
do autoerotismo ao narcisismo.

O eu-real, correlato do autoerotismo e do corpo despedaçado,


gerado pela incorporação, vai então dar lugar a um primeiro
vestígio de eu-ideal, corpo narcísico, introjeção da imagem eu-
outro. A identificação é uma operação que se dá em um terceiro
tempo: aquele no qual se cede do narcisismo e, de uma báscula
entre o anaclítico e o narcísico, nasce, em seu lugar, o ideal do eu,
que assume função de vigia, de censor, ideal cuja realização, já
em Freud, é a fonte de satisfação substitutiva daquela ocasionada
pelo narcisismo. Em suas palavras:

15
FREUD, S. Sobre o narcisismo, op. cit., p.83.

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Corpo, narcisismo e identificação

O ideal de ego impõe severas condições à satisfação da libido


por meio de objetos, pois ele faz com que alguns sejam
rejeitados por seu censor como sendo incompatíveis onde não
se formou tal ideal, a tendência sexual em questão aparece
inalterada na personalidade sob a forma de uma perversão.
Tornar a ser seu próprio ideal [...] isso é o que as pessoas se
esforçam por atingir como sendo sua felicidade. 16

A identificação é, portanto, uma operação que se relaciona


à possibilidade de emergência do simbólico e que se distingue
do que se processa em tempos lógicos anteriores (incorporação e
introjeção, respectivamente). Freud, em “Psicologia das Massas
e Análise do Eu”17, de 1921, define a identificação como a “mais
remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”. Logo
em seguida, Freud associa essa operação ao Édipo, que, como
sabemos, em seus tempos próprios, é metáfora da entrada de um
sujeito no simbólico e que tem como correlato o encontro com a
condição sexuada (partida, dividida), na qual é preciso uma certa
relação com a linguagem para fazer aparecer uma perda de gozo
engendrada no trabalho na cadeia significante oferece18.

No Seminário sobre a Identificação, Lacan, em 196219,


afirma que ela se define pela relação de um sujeito com o
significante, recusando tratá-la como um problema do objeto
(pequeno outro ao qual se está identificado), de ligação imaginária
ao semelhante, mas como uma operação que constitui a assunção
subjetiva do simbólico, razão pela qual esse trabalho começa
enfatizando que Freud associa a identificação a um tempo no qual
16
FREUD, S. Sobre o narcisismo, op. cit., p.107.
17
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu [1921]. In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.18, p.79-
154. p.115.
18
LACAN, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar, 1992.
19
LACAN, J. O Seminário, Livro 9: a identificação [1961-1962]. Inédito.

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Nós do sintoma

pode se dar a partilha dos sexos em seus desdobramentos na relação


do sujeito com uma possível falta-a-ser que pode advir como
marca da estrutura. A partir do questionamento da consistência
ontológica do sujeito, Lacan retifica o estatuto de Outro: trata-se
de um lugar, aquele já sabido, ao qual se endereça o movimento
de produção simbólica por parte do sujeito.

É neste ponto da elaboração lacaniana sobre a identificação


que reaparece o ideal de eu, afirmado-o como um ponto a partir do
qual há uma “identificação inaugural do sujeito com o significante
radical”20, marcado pelo traço unário, marca de estrutura que
chancela que há operação simbólica possível, por sua condição de
suporte do significante. Aqui, Lacan associa como propriedades
do traço unário: ser irredutível, ser o mesmo e ser pura diferença.
Em suas palavras:

[...] o que encontramos no limite da experiência cartesiana


como tal do sujeito evanescente, é a necessidade dessa
garantia, do traço de estrutura o mais simples, do traço único,
se ouso dizer, absolutamente despersonalizado, não somente
de todo conteúdo subjetivo, mas também de toda a variação
que ultrapasse esse traço único, desse traço que é um, a
fundação do um que constitui esse traço não está tomada em
nenhuma parte a não ser em sua unicidade. Como tal, não
podemos dizer outra coisa senão que ele é o que tem de comum
todo significante, [de] ser sobretudo constituído como traço,
[de] ter esse traço por suporte.21

Identificar-se não é, portanto, amalgamar-se ao Outro.

20
LACAN, J. O Seminário, Livro 9: a identificação, op. cit., p.35.
21
Id., ibid., p.35.

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Corpo, narcisismo e identificação

IV

A essa passagem a que chamamos de adolescência é


justo atribuir um novo estádio de espelho como diz Lambotte22:
reinventar-se no progressivo desligamento da autoridade
parental [Freud] ao qual se alienou para se constituir, assumir a
responsabilidade pelo próprio gozo, suportar o fracasso dos pais
no pretenso lugar de autoridade idealizada que pareceria tudo
garantir. Essa tarefa passa pelas identificações, com as quais
torna-se possível fazer um novo-velho corpo, sexuado e precário,
uma nova forma de se posicionar no laço social, uma convocação
crescente a responder por seu gozo e por suas escolhas possíveis:
árduo trabalho de passagem destinado aos adolescentes.

Na atualidade, o mal-estar (cada vez mais codificado como


“transtorno” psiquiátrico), na passagem adolescente, está marcado
por experiências com inflexão narcísica importante, situada por
Freud23 como um conflito entre o eu e o supereu, na qual ele
localizava a melancolia e a paranoia, que tinham em comum,
naquilo que ainda faz sentido aproveitar dessa categorização, a
vicissitude pulsional de retorno da libido ao eu. Apesar de uma
descrição elíptica do ponto de vista clínico dessa modalidade de
neurose, status incerto, portanto, do ponto de vista estrutural,
Dunker 24 abriu uma via analítica bastante profícua no que diz
respeito à relação entre supereu e gozo para abordar esses,
chamemos assim, na ausência de termo melhor, esses “estados-

22
LAMBOTTE, M.-C. A deserção do outro. Entrevista a Ligia Gomes Victora, Ma. Ro-
sane Pereira Pinto e Maria Cristina Poli Pinto. Tradução de Esthér Trevisan. Revisão da
tradução de Maria Rosane Pereira Pinto. Revista da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, n.20, p.84-101, 2001.
23
FREUD, S. Neurose e psicose [1924(1923)]. In: ______. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.XIX, p.167-171.
24
DUNKER, Christian Ingo Lenz. O cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002.

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Nós do sintoma

limites” que aparecem na experiência adolescente na atualidade.


Do supereu freudiano, ele sublinha três marcas, já destacadas no
princípio do presente texto: sucedâneo dos ideais, função de auto-
observação, crítica e julgamento e o lugar das pulsões de morte,
lugar esse que demarca o imperativo de gozo que lhe é atinente,
aí já numa acepção lacaniana. E aí vem uma conexão interessante
feita pelo autor:

Em função do prazer como valor de troca para o supereu, ele


perde a possibilidade de seu valor de uso. Isso corresponde
ao fato clínico destacado por vários autores [...] de que no
transtorno narcísico haveria uma sabotagem do prazer. [...]
Isso vai do típico sentimento de apatia, tédio, futilidade
que acompanha historicamente a descrição dos transtornos
do narcisismo e o descomprometimento generalizado com
qualquer formação de ideal.

Ao retomar a reformulação freudiana acerca da generalização


da perda de realidade, aplicando-a à neurose narcísica, Dunker nos
indica que, no que diz respeito ao gozo, tudo se passa como se
houvesse

[...] uma fração de gozo que é regulada pelo reconhecimento-


recalcamento da castração e que se mostra no sintoma de
sofrimento, e que ha uma segunda fração de gozo, regulada
pela recusa e que se mostra no não proibir nada [...] em nome
do [...] sofrimento o sujeito se autoriza a não se deixar proibir
nada. Ao parear o menos de gozo, do sintoma, com o mais de
gozo, da ausência de proibição, o prazer e a satisfação, como
formas de desvio para o gozo, perdem seu valor.25

A constituição do sujeito (efeito da cadeia significante)


implica uma perda, designada aqui como objeto a pela via de uma
assunção de uma relação faltante com o significante. A referência
25
DUNKER, Christian Ingo Lenz. O cálculo neurótico do gozo, op. cit., p.208;209.

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Corpo, narcisismo e identificação

à perda vem de Freud, quando este se refere à função do objeto


perdido e de sua conexão com a repetição. O gozo é o limite do
saber e a repetição motor de seu consumo.

O traço unário vai se apresentar, no Seminário 1726, dedicado


a pensar o discurso do analista na relação com os outros discursos,
como suporte para o saber enquanto meio de gozo. Lacan faz
referência ao objeto perdido de Freud lembrando-o que ele vem
associado ao masoquismo enquanto “gozo ruinoso”. Ele agrega
ao objeto perdido de Freud o seu conceito de “traço unário”, para
evocar justamente a origem do significante: “é no traço unário
que tem origem tudo o que nos interessa, a nós, analistas, como
saber”27. Perda de gozo visada pela repetição que vai ser sinalizada
pelo objeto a, em sua função do objeto perdido. O gozo se faz
possível pelo traço unário e pela repetição, responsáveis pelo seu
“desperdiçamento” e que lhe instituem uma marca. Esse gozo é
recuperado pelo saber que descende do traço unário e se extrai da
articulação significante. Seu argumento agora se encaminha para
afirmar que este saber decorrente do traço unário e da perda de
gozo é o meio de gozo, em sua tentativa permanente de restituir
o gozo perdido.

A escrita do gozo na estrutura do discurso é o objeto a, que


será abordado no entrecruzamento da “causa-de-desejo” com o
“mais-de-gozar”. Lacan toma de empréstimo a noção de mais-
valia de Marx, que implica uma subtração, a da força de trabalho
a mais que o operário tem de fornecer para que o lucro/usufruto
do patrão possa emergir. Fruto de um trabalho engendrado em
uma subtração: eis um ponto de aproximação entre mais-valia e
26
LACAN, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise, op. cit.
27
Id., ibid.; p. 48

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Nós do sintoma

mais-de-gozar. Ponto 2: necessidade de dispêndio, ambos servem


para gastar, desperdiçar. De antemão, mais-de-gozar, esclarece
Lacan, não tem a ver com transgressão, tem a ver com um bônus
a gastar pela repetição.
Dunker28 nos lembra, oportunamente, que a dor “é uma
forma provisória de detenção de gozo”, um modo de reagir à
ferocidade do supereu em sua tensão com o eu. Nesse sentido,
a escarificação se constitui como uma tentativa de inscrição do
desamparo psíquico, que se dariam no limite de quaisquer recursos
de simbolização e produziriam, pelo deslocamento da dor psíquica
para a dor física, uma forma de descarga que tende a se converter
num circuito compulsivo.
As veias abertas no corpo pela escarificação são uma tentativa
de inscrição sem palavras. Experiência-limite para mostrar o
enodamento entre corpo-significante-objeto a, conforme Lacan, na
Conferencia do MIT, em 197529, devotada a uma escrita reduzida
à impressão, à marca, à letra, na qual o sujeito salva-se da morte
pelo trabalho de ligação a realizar. Situada na metáfora do litoral,
a letra, no Seminário 1830, está entre dois domínios – saber e gozo
–, dando contorno ao furo. Ela dá guarida ao gozo. Lembremos
da imagem da letra no papel: ela não “decalca o significante”, ela
faz contornar algo, espaço vazio e, ao fazê-lo, produz-lhe borda.
Essa é uma queixa frequente dos sujeitos que se escarificam: há
ali muita dificuldade superlativa em lidar com o vazio; diante dele,
tudo se desmantela. A escarificação revela uma desertificação do
campo da Outro acusada na experiência de jovens pelo sentimento
28
DUNKER, Christian Ingo Lenz. O cálculo neurótico do gozo, op. cit.
29
LACAN, J. Conferência MIT [1975], In: CEFR (Org.).Conferências nos Estados
Unidos, op. cit..
30
LACAN, J. O Seminário, Livro 18: de um discurso que não fosse semblante [1971]. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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Corpo, narcisismo e identificação

de abandono parental, de enfraquecimento dos laços sociais, de


uma seca que dificulta a produção permanente de um espaço de
elasticidade para lidar com a norma, de um vazio, por fim, de
significação que dê alguma sustentação à existência.

VI

Gostaria de, nesse ponto, retomar a “falta a gozar” e a


“foraclusão da castração” como incidências do discurso capitalista
nas formas de subjetivação que podem estar presentes no mal-estar
contemporâneo. Carmen Gallano31 sublinha da fórmula do discurso
capitalista que “o sujeito do capitalismo é um sujeito sem Outro”,
deixando o sujeito à deriva entre aquilo que ela nomeia como “ânsia
do consumidor” e “apatia do consumido”. Ainda seguindo Gallano,
em sua leitura de Lacan, o conflito se manifestaria a partir do que
ela chamou de “ataduras” do sujeito ao discurso do capitalista:
sujeito sem Outro e sem potencial de erotização pelo saber; sujeito
vinculado a objetos como gadgets, que se generalizam e reduzem
tudo a seu valor instrumental; desejo reduzido à necessidade de
conter a ânsia ocasionada pela falta em gozar.
Ocorre que, como bem sinaliza Collete Soler32, quando a
mais-valia passa a ser a causa de desejo de toda uma economia,
centrada no produzir e no consumir, o que se decanta é a “falta a
gozar”. Ao contrário dos outros discursos, não há hiato entre o gozo
possível e a verdade do que seria para ele esperado no discurso
capitalista. Nele, o objeto mais valia é o que comanda o sujeito,
numa ligação direta, sem Outro.
31
GALLANO, Carmen. Um sujeito-outro: há uma subversão psicanalítica do sujeito sem
o outro do capitalismo? Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, Associação do
Campo Lacaniano, n.12, p.13-31, abr.2006.
32
SOLER, Colette. O discurso capitalista. Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro,
Associação do Campo Lacaniano, n.22, p.57-67, maio 2011.

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Nós do sintoma

Soler cria um neologismo – narcinismo – para falar


desta forma de subjetivação daí emergente em uma cultura do
individualismo predatório. Narcisismo e cinismo, termos que se
fundem e testemunham a emergência do sujeito do capitalismo
que “tem nele mesmo sua própria causa e [...] que se devota aos
seus próprios gozos”33. Temos de pensar que isso não é sinônimo
de que o sujeito está a salvo do Outro, muito pelo contrário, é aí
que ele está em posição de vulnerabilidade, posto que dependente
do semblante que o gadget pode lhe oferecer.

Detenhamo-nos ainda no que Soler aponta para uma


aparente contradição entre a “falta a gozar” e a foraclusão da
castração. Podemos pensar que se há falta a gozar há anseio,
insatisfação, desejo. Então, por que Lacan falaria em “foraclusão
da castração” como marca do discurso capitalista, amplificada
em nossos dias? Transformados em mercadorias, a experiência
amorosa ficaria submetida, ao menos em certo registro, à lógica
do consumo. Ela recorre ao amor como recurso analítico. Ora se
o amor, para a psicanálise, atesta a castração, já que “é dar o que
não se tem”, um discurso que o exclui, torna, por conseguinte a
castração excluída.

É aí que se localiza a devastação ocasionada pelo vazio,


presente, por exemplo, na experiência das escarificações
ansiolíticas, seja ele índice da pergunta sem resposta, da sexuação
sempre problemática e que coloca em jogo as insuficiências, dos
domingos sombrios que se arrastam ad aeternum, do silêncio que
abre um espaço de indeterminação.

SOLER, Colette. O discurso capitalista. Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro,


33

Associação do Campo Lacaniano, n.22, p.63, maio 2011.

168

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