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a rt i g o s

O Amor de Deus, Princípio e


Fundamento da Criação
Luís González-Quevedo, SJ

U m teólogo acaba de escrever: “Deus cria por amor, buscan-


O autor é redator da
revista e, temporaria- do nossa realização plena”1. Este artigo pretende explicitar
mente, diretor do
CEI-Itaici.
essa idéia, a partir da espiritualidade inaciana, sem repetir o que
temos escrito em outras ocasiões2.

1. Andrés Torres Queiruga,


“Ateísmo e imagem cristã A criação: enigma e mistério
de Deus”, Concilium 337
(2010/4), 42-54 (44). Cf.
do mesmo autor: Recuperar Apesar do enorme progresso científico de nossos dias, o
a Criação. Por uma religião Universo continua sendo um enigma incomensurável. Rara é a
humanizadora. São Paulo:
semana em que os astrônomos, a NASA ou as revistas cientí-
Paulus, 1999.
ficas não anunciam uma nova descoberta no campo da astro-
2. Luis González-Quevedo,
“Princípio e Fundamento:
nomia. Mas a questão metafísica — “Por que existe tudo o que
Criação, Êxodo e Alian- existe?” — continua sem resposta convincente.
ça”, Itaici 63 (2006), 9-22; No desenvolvimento científico atual, chegou-se a uma
Luís González-Quevedo, teoria padrão, segundo a qual o Universo conhecido se origi-
org., Um sentido para a
vida: Princípio e Fundamen- nou, há 13,7 bilhões de anos, com uma explosão primordial
to. São Paulo: Loyola, (o Big Bang). A partir desse instante até o dia de hoje, toda
2007. a matéria que existe no Universo está em processo de crescen-
te expansão. Os cientistas ainda não têm uma explicação
definitiva desse fenômeno.
A gravidade, ao comprimir uma enorme nuvem de hidro-
gênio, “criou” os elementos químicos mais densos, que forma-
ram bilhões de galáxias, com seus bilhões de estrelas. Em 1923,
o astrônomo Edwin Hubble descobriu a galáxia de Andrôme-
da, que é a galáxia que fica mais perto da Via Láctea. A
Galáxia de Andrômeda está a 2.500.000 anos-luz de distância
de nós. Se lembrarmos que a luz viaja a 300.000 km por se-

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gundo, cairemos na conta de que a distância que nos separa
de Andrômeda, mesmo sendo a galáxia mais próxima de nós,
é imensa.
Cinco bilhões de anos atrás, na periferia da Via Láctea,
restos de estrelas que explodiram aglutinaram-se, dando origem
ao Sistema Solar. No momento atual, os astrônomos estão em-
penhados em detectar a existência de outros sistemas solares
como o nosso, com planetas rochosos semelhantes à Terra, onde
poderia ter surgido alguma forma de vida, como aconteceu na
Terra há quatro bilhões de anos3. 3. A nave espacial Kepler,
Se a idade do Universo fosse de um ano, a vida sobre a lançada pela NASA em
março de 2009, tem por
Terra teria surgido no dia 25 de setembro. Primeiro, surgiram missão descobrir planetas
organismos unicelulares; depois, “criaturas” multicelulares, cada similares à Terra, orbitando
vez mais complexas, dando origem à vida vegetal e à vida ani- em torno de outras estrelas
da Via Láctea. Em seus dois
mal. Finalmente, às 22h30 min. do último dia do ano, nasceram
anos de existência a “missão
os primeiros seres humanos, a partir dos primatas e hominídeos4. Kepler” já contribuiu para
Foi como um réveillon cósmico, na véspera de um Ano Novo a descoberta de, pelo me-
em que o Universo continuará expandindo-se e esfriando-se, nos, 1235 exo-planetas.
até perder-se na imensa escuridão do espaço inóspito. 4. Tomo este “calendário
Os cientistas dizem que o surgimento da vida humana nes- cósmico”, idealizado por
Carl Sagan, de Elizabeth
te planeta minúsculo era improvável. Era improvável, mas A.Johnson, “O Deus vivo
aconteceu. Por que aconteceu? O Universo poderia existir sem em perspectiva cósmica”,
nós. Mas o fato é que nós, crentes ou descrentes, estamos aqui. Cadernos Teologia Pública,
Será que todo este imenso dinamismo evolutivo aconteceu por ano VII, n. 51. São Leo-
poldo, RS: Instituto Hu-
acaso? A resposta não nos convence. Seria acaso demais… manitas Unisinos, 2010,
Certamente, o desenvolvimento da astronomia e da astro- p. 6.
física mudou a nossa relação com o Universo, revelando-nos a
aparente insignificância da nossa existência sobre a Terra. Con-
templado desde as sondas espaciais, o nosso planeta é um pon-
tinho azul, rodeado de nuvens brancas. E nós que importância
temos, neste imenso Universo? Por que existimos? Qual é a
nossa origem? Afinal, quem somos nós?
Em uma hermenêutica puramente científica, Marcelo ­Gleiser
escreve: “Hoje, sabemos que somos aglomerados de poeira es-
telar dotados de consciência. Para desvendar nossa misteriosa
origem, precisamos saber de onde vieram as estrelas, como a
matéria não viva se transformou em matéria viva e como essa
virou matéria pensante”5. A ciência comprova nossa profunda 5. Marcelo Gleiser, “Ciên-
cia, fé e as três origens”,
relação com o Cosmos. O nosso corpo está composto dos mes- Folha de São Paulo, 20 de
mos elementos químicos que formaram as estrelas. “Somos fevereiro de 2011.

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6. Id., “Inevitabilidade hu- guardiões da vida e do planeta”6. Será que não existe qualquer
mana” Folha de São Paulo, plano ou objetivo que oriente este descomunal mundo astronô-
19 de dezembro de 2010.
mico? Somos apenas “um acidente feliz”?
À pergunta sobre a origem do Universo, o físico britâ-
nico Stephen Hawking responde com a hipótese da “criação
espontânea”. Segundo seu último livro, escrito em parceria
com o físico Leonard Mlodinov, com o enganoso título de The
Grand Design (“O Grande desígnio”), não é preciso invocar
Deus para que o Universo tivesse um começo. A lei da gravi-

Stephen Hawking
dade teria possibilitado que o Universo se criasse a si mesmo
a partir do nada. Mas podemos perguntar: “por que existe a
lei da gravidade?”
Para explicar as leis da natureza sem recorrer a divindades,
Stephen Hawking lança ainda a hipótese de que existam “múl-
7. Folha de São Paulo, 3 de tiplos cosmos”7. Um físico espanhol, tradutor da obra de Hawking
Setembro de 2010. ao castelhano, afirma que é preciso ter mais fé para aceitar as
8. “Stephen Hawking des- hipóteses do célebre físico inglês do que para acreditar que o
carta la existencia de Dios mundo foi criado por Deus8.
para explicar el origen del
Universo”, El Mundo, Ma- Para a nossa fé, a Criação não é um enigma, mas um mis-
drid, 2 set. 2010. tério. O simples fato de existir e de tomar consciência da nossa

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própria existência, de saber que vivemos em constante interde-
pendência com o meio ambiente que nos rodeia, é para nós um
milagre permanente9. 9. “O milagre do que é vi-
Para a Bíblia, milagre (do latim mirari = admirar-se, espan- sível é, para muitas pessoas,
bem mais maravilhoso do
tar-se) é um “acontecimento inesperado, não calculável, nem que o milagre daquilo que
manipulável pelo ser humano, no qual este experimenta a atu- é invisível”, Johannes Rö-
ação de Deus”10. ser, “Como preservar o fu-
As escrituras judaico-cristãs proclamam que a beleza e a turo da Igreja?”, IHU on-
line, nº 352, ano X,
harmonia do Universo são manifestação do poder, da bondade 29.11.2010, 25-28 (28).
e do amor do Criador: “Os céus narram a glória de Deus, o
10. Xavier Alegre, “Mila-
firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 19/18,2). gre”, em: Dicionário de Con-
“De fato, partindo da grandeza e beleza das criaturas, pode-se ceitos Fundamentais do Cris-
chegar a ver, por analogia, o seu Criador” (Sb 13,5). A presença tianismo. São Paulo: Paulus,
1999, 470-474.
invisível do Senhor pode ser conhecida, confirma Paulo, “através
de suas obras, desde a criação do mundo” (Rm 1,20).
Nisso acreditou Inácio de Loyola, nisso acreditamos nós.

A criação em Santo Inácio de Loyola

Na primeira biografia de Santo Inácio de Loyola, escrita


pelo P. Pedro de Ribadeneira, conta-se que, a partir de sua
conversão em Loyola, Inácio experimentava grande consolação,
olhando a beleza do céu e das estrelas, coisa que ele fazia mui-
to a miúdo. Isso o motivava a desprezar as coisas transitórias e 11. Fontes Narrativi, IV, 94
(“Monumenta histórica
mutáveis e a inflamar-se no amor de Deus. Societais Iesu”, vol. 93).
O biógrafo acrescenta que Inácio conservou, até o fim da Cf. também a pág. 747,
vida, o costume de contemplar o céu estrelado. Pois, sendo onde se recolhe o testemu-
nho do Pe. Laínez, que via
Inácio já velho, o próprio Pedro de Ribadeneira viu o santo, de Inácio, no terraço da casa
olhos fixos no céu, enternecido até as lágrimas, e o escutou romana, em pé, fixos os
dizer: “Ah, quão vil e baixa me parece a Terra, quando olho o olhos no céu, de cabeça
céu!”11. Esta última frase foi, depois, muito repetida por autores descoberta.
piedosos, nem sempre respeitando o equilíbrio próprio da espi- 12. Cf., por exemplo, Pe-
ritualidade inaciana. dro Trigo, “Creación y
mundo material”, em Ig-
A espiritualidade inaciana não despreza a Terra, mas a con- nacio Ellacuría e Jon So-
sidera em sua relação com Deus. O planeta em que vivemos, bem brino, Mysterium Liberatio-
como tudo o que existe neste imenso Universo, foi criado por nis. Conceptos fundamenta-
les de la teología de la libe-
Deus nosso Senhor12. Esta é a afirmação fundamental que Inácio ración. Tomo II. San Sal-
herdou, sem dúvida, de toda a tradição judaico-cristã, mas que vador: UCA Editores,
ele apoia, também, na sua própria experiência espiritual. 1991, 11-48.

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Com efeito, na Autobiografia, Inácio conta que “uma vez se
representou em seu entendimento, com uma grande alegria
espiritual, o modo pelo qual Deus criou o mundo” (Autob., 29).
E, pouco depois, narra a extraordinária experiência mística à
beira do rio Cardoner, que a tradição inaciana conhece com o
nome de a “exímia ilustração”.
Ricardo García Villoslada resume assim o fruto da ilustração
do Cardoner: “Todo o mundo criado se lhe transformou em nova
13. Ricardo García-Villos- criação”. O mesmo biógrafo atribui àquela experiência mística
lada, Santo Inácio de Loyo- a guinada vocacional na vida de Inácio: “compreendeu que sua
la. São Paulo: Loyola,
1991, p. 222 e 223.
vida não deveria ser eremítica, nem cartuxana, e sim apostoli-
camente ativa”13.
14. No original espanhol,
há uma segunda ocorrên-
Nos escritos inacianos, o substantivo “criação” é muito raro.
cia, ao tratar da reforma de No livro dos Exercícios Espirituais (EE), este termo encontra-se
vida: “aprovecha mucho, en apenas em um momento importante: no primeiro ponto da
lugar da hacer elección... “Contemplação para alcançar amor”. Ao trazer à memória os
enmendar y reformar la pro-
pia vida y estado... poniendo benefícios recebidos, o exercitante deve recordar os benefícios
su creación, vida y estado de “criação, redenção e dons particulares” (EE 234)14.
para gloria y alabanza de Muito mais frequentes na literatura inaciana são as referên-
Dios nuestro Señor y salva-
cias a Deus como “Criador e Senhor”. As Constituições da
ción de su propia ánima”
(EE 1894-5). Aqui “cria- Companhia de Jesus, ao tratar da experiência de peregrinação,
ção” parece significar o dizem que os noviços deverão afastar toda a confiança no dinhei-
conjunto dos bens que o ro e nas coisas criadas, “colocando-a inteiramente, com verda-
exercitante possui, que lhe
foram dados pelo Criador.
deira fé e intenso amor, em seu Criador e Senhor” (Const. 67).
Cf. Luis F. Ladaria, “Crea- O Criador não é para Inácio um Deus longínquo, que pôs
dor”, Diccionario de Espiri- o mundo em marcha e se afastou dele, mas um Senhor presen-
tualidad Ignaciana [DEI]. te e providente, que rege suavemente e cuida com amor de suas
Bilbao/Santander: 2007,
497-503 (500). criaturas15. Por isso, aquele que dá os Exercícios não deve indu-
zir o exercitante a escolher um ou outro estado de vida, mas
15. Ladaria, loc. cit., 497.
“deixar imediatamente agir o Criador com a criatura e a cria-
16. Cf. a 2ª anotação dos
tura com seu Criador e Senhor” (EE 15).
Exercícios Espirituais,
onde Inácio recomenda Na metodologia dos EE este ponto é fundamental. Em
apresentar os pontos “bre- certa ocasião, estando eu a orientar um pequeno retiro de final
ve ou sumariamente”, por- de semana, fui ajudado pelo recém falecido P. Christophe Six,
que assim quem faz os
Exercícios, raciocinando
que ainda não era padre. Ele me disse: “Não explicar tudo.
por si mesmo, “tem maior Deixar que os exercitantes experimentem e descubram”. Como
gosto e fruto espiritual do Inácio, Christophe acreditava que nosso Criador e Senhor pode
que se quem dá os Exercí- e quer comunicar-se diretamente com os exercitantes, dando-
cios explicasse e ampliasse
muito o sentido da histó- lhes a conhecer sua vontade, sem necessidade de muitas media-
ria” (EE 2). ções humanas16.

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Pode surpreender que Inácio aplique os títulos de “Criador”
ou “Criador e Senhor” a Jesus Cristo. Por exemplo, no colóquio
do primeiro exercício da Primeira Semana: “Imaginando Cristo,
nosso Senhor, diante de mim, na cruz, fazer um colóquio: como
de Criador, se fez homem e como, da vida eterna, chegou à
morte temporal e assim morreu por meus pecados” (EE 53,1).
Igualmente nas Constituições se diz que os que entrarem
na Companhia de Jesus deverão dispor-se a “sofrer injúrias,
falsos testemunhos, afrontas, e ser tidos e julgados por doidos
(sem darem ocasião alguma para isso), porque desejam parecer-
se de algum modo com nosso Criador e Senhor Jesus Cristo”
(Const. 101).
A teologia atual tende a atribuir a criação ao Pai, a redenção
ao Filho e a santificação ao Espírito, mas a idéia de que o Pai
criou tudo por intermédio do seu Filho está presente no Novo
Testamento: tudo foi criado através de Cristo e para Cristo
(Cl 1,15-17). Tudo foi feito por intermédio da Palavra (o Logos),
e sem ela nada foi feito de tudo o que existe (Jo 1,3).
Inácio reafirma com força que a Terra, o Universo e tudo
o que ele encerra, incluídos todos os seres humanos, é obra de
um Criador transcendente.
Já no primeiro exercício, no Princípio e Fundamento, afir-
ma: “O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a
Deus nosso Senhor e, assim, salvar-se. As outras coisas sobre a
face da terra são criadas para o ser humano e para o ajudarem
a atingir o fim para o qual é criado” (EE 23,2)17. 17. El hombre es criado para
Depois, na Primeira Semana, para suscitar o arrependimento alabar, hacer reverencia y
servir a Dios nuestro Señor
dos próprios pecados, o exercitante deve pensar quem é ele em y, mediante esto, salvar su
comparação com toda a humanidade, com os anjos e com os ánima; y las otras cosas sobre
santos do paraíso, e “olhar que é a criação inteira diante de Deus”. la haz de la tierra son criadas
E ele, sozinho, o que pode ser? O conhecimento atual da imen- para el hombre, y para que
le ayuden en la prosecución
sidão do Universo acentua, astronomicamente, a sugestão ina- del fin para que es criado
ciana de “diminuir-se por meio de comparações” (EE 58). (EE 23,2-3).
Para Santo Inácio, a contemplação das “criaturas” deve levar-
nos ao Criador de todas elas. Isto é patente no último exercício,
a Contemplação para alcançar amor: “olhar como Deus habita
nas criaturas, dando-lhes o ser… Considerar como Deus trabalha
e age por mim em todas as coisas criadas sobre a terra... Olhar
como todos os bens e dons descem do alto… assim como os raios
descem do sol, as águas da fonte…” (EE 235-237).

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Na terceira parte das Constituições, que se refere aos jesuítas
que estão em formação, Inácio diz que todos devem ser exortados
a “procurar em todas as coisas a Deus nosso Senhor, afastando,
quanto possível, o amor de todas as criaturas para o pôr inteira-
mente no Criador delas, amando-O em todas, e amando a todas
n’Ele, conforme a sua santíssima e divina Vontade” (Const. 288).
Ladaria comenta que amar as criaturas “em Deus” é vê-las em sua
dependência do Criador. Com isso, não se diminui o valor das
criaturas, antes se reconhece a origem da sua grandeza.
Entre todas as criaturas, Inácio, seguindo a tradição judaico-
cristã, destaca o ser humano. Ele é imagem de Deus, templo do
Espírito Santo, destinado à redenção em Cristo. Na numerosa
correspondência inaciana, aconselha-se “olhar as criaturas, não
como belas ou graciosas, mas como banhadas no sangue de
18. Epp XII, 152; Epp XI, Cristo”18. A paixão e morte de Jesus foi o alto preço pago pela
439, cit. por Ladaria, loc. redenção da humanidade. Não há prova maior do amor que
cit. 503.
Deus tem por nós.

Refletir para tirar proveito

Com a expressão “refletir para tirar proveito”, recorrente


nas contemplações da Segunda (EE 107, 108, etc) e da Tercei-
ra Semanas (EE 194), Inácio quer que o exercitante aplique a
história contemplada para a sua realidade pessoal, tirando as
consequências práticas que o ajudem a melhorar sua vida.
Que consequências práticas poderíamos tirar da concepção
inaciana da Criação? Partindo do próprio texto do Princípio e
Fundamento, poderíamos sintetizá-las em três: louvar o Criador,
cuidar das criaturas e servir por amor.

1. Louvar o Criador
Olhar a Criação como manifestação visível do amor de Deus
levará necessariamente a criatura a louvar o seu Criador. Se
Deus é o “autor de todo bem”, como repete Inácio em muitas
19. Epp VIII, 362, 363, 583, de suas cartas19, é natural que nós O louvemos e O glorifiquemos
5854, X,5, 7 etc. Citado por por tudo de bom, grande e belo que há no Universo.
Pietro Schiavone, “Ala-
banza”, DEI. Bilbao-San- Da tríade inicial do Princípio e Fundamento (“louvar”,
tander: 2007, 115-113. “reverenciar” e “servir” a Deus), o primeiro termo parece ter a

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primazia, como se pode constatar em outros lugares paralelos
do livro dos Exercícios (cf. EE 169; 177; 179; 181, etc). Na
eleição e reforma de vida, objetivo central dos EE, o exercitan-
te não deverá querer nem procurar outra coisa que não seja “em
tudo e por tudo, o maior louvor e glória de Deus nosso Senhor”
(EE 189, 9).
Para um olhar contemplativo, o mundo inteiro torna-se
“sagrado”. Este conceito é central na História das religiões20. O 20. Cf. Rudolf Otto, O
homo religiosus — incluindo neste conceito a mulher, que cos- Sagrado. Lisboa: Edições
70, 1992.
tuma ser mais religiosa do que o varão — acredita que existe uma
realidade transcendente que se manifesta neste mundo, santifi-
cando-o. Para ele, a vida em todas as suas formas e, de maneira
particular, a existência humana tem uma origem sagrada.
Uma religiosa, no final de uns EE, sintetizou assim o fruto
que tirou do seu retiro: “Sou amada… Esse amor me abre aos
outros… Quero acolher a todos como filhos e filhas de Deus…
Sou parte da criação... Devo dar graças por tudo…”.
A experiência do encontro com Deus que os EE propiciam
levam o exercitante a acolher a sua vida, a vida dos outros e
a totalidade da criação como um imenso e permanente dom
de Deus.
É bem verdade que o sujeito moderno, secularizado, olha
com desconfiança toda experiência mística. Depois de escrever 21. Luis González-Queve-
do, “O Néo-Ateísmo”,
um livrinho sobre a experiência de Deus, tive que me ocupar Mirada Global, http://
de alguns autores que pregam o ateísmo com um fervor quase www.miradaglobal.com/in-
religioso21. Porém, os trabalhos de Mircea Eliade mostraram que dex.php. Os autores a que
“o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios me refiro são: Richard Da-
wkins, Sam Harris e Chris-
do comportamento do homem religioso, mas esvaziados dos topher Hitchens.
significados religiosos”22. O culto à Natureza não seria o produ-
22. Mircea Eliade, O Sa-
to da secularização do Cosmos criado por Deus? grado e o profano. São Pau-
Com efeito, para o sujeito mais secularizado, há ainda “lu- lo: Martins Fontes, 1992,
gares sagrados”: a terra em que nasceu, o local em que viveu um 164. Além do “casamento
civil”, de já longa tradição,
grande amor... A rua em que vivia a mulher amada era, para o surgiram hoje, na Espanha
poeta, um “lugar sagrado”, mas quando o amor acabou, a rua progressista, celebrações de
tornou-se, novamente, “uma rua qualquer”23. “batizado civil” e de “pri-
O mesmo se poderia dizer a respeito do tempo. A experi- meira comunhão civil”.
ência do sagrado, do “sobre-natural” ou “extra-ordinário” inter- 23. “Tu calle ya no es tu
rompe a continuidade homogênea do tempo profano, instau- calle, que es una calle cual-
quiera, camino de cualquier
rando o “tempo sagrado”. Mesmo sem sentido religioso explíci- parte”, Manuel Machado,
to, o sujeito pós-cristão continua a preservar alguns tempos que Cante jondo 1912.

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considera “sagrados”: o final de semana, as férias, o carnaval, os
grandes encontros esportivos ou artísticos.
Qualquer momento “profano” pode transfigurar-se em
“tempo sagrado”, pela manifestação do sagrado, do misterioso,
do que supera a expectativa natural do ser humano. Os ritos
cristãos não sacralizam o tempo, no sentido pagão do “eterno
retorno”, mas sim o santificam, sem desfazer sua duração histó-
rica. Para isso contam com um duplo apoio: com a força miste-
riosa, invisível, do Espírito e com a visibilidade sacramental do
mundo nos seus elementos mais simples (água e óleo, pão e
vinho, palavra e gesto). Pela fé, temos acesso a uma maior
proximidade do mistério.
O mistério, o “Totalmente Outro”, manifesta-se de manei-
ra privilegiada na pessoa humana. Toda pessoa é “sagrada”, isto
é, portadora de um mistério indisponível. Historicamente, con-
tinua sendo possível usar e abusar, bater e torturar, comprar e
vender uma pessoa, mas sempre restará nela uma última reali-
dade que não se pode pisar, tirar ou comercializar, algo que não
tem preço.
Com Rudolf Otto, podemos concluir que “o sagrado” é uma
experiência irredutível a qualquer outra, psicológica, sociológi-
ca ou científica, um sentimento original específico da raça
humana, que busca comunicação com o Totalmente Outro.
“Entre todas as experiências humanas, a mais profunda, a mais
24. Luis González-Quevedo, tremenda e a mais fascinante é a experiência religiosa”24.
Experiência de Deus: presen-
ça e saudade. São Paulo:
2. Cuidar das criaturas
Loyola, 2002 (“Leituras e
releituras”, 2), p. 19. O segundo termo da tríade do Princípio e Fundamento é a
reverência. A expressão aparece, novamente, na contemplação
do Nascimento de Jesus (“com todo o acatamento e reverência
25. Rogerio García Mateo, possível”, EE 114) e, sobretudo, no Diário espiritual de Santo
“Acatamiento-reveren- Inácio. Por reverência entendemos uma atitude de profundo
cia”, in: DEI, 77-79. respeito ou “acatamento”, que leva à incondicional aceitação
26. Cf. .José Román Flecha, da vontade de Deus, por amor25.
El respeto a la creación. Ma- Esta atitude de respeito ao Criador se estende às criaturas,
drid: BAC, 2001.
na medida em que elas manifestam algo da bondade Daquele
27. Cf Leonardo Boff, Sa- que as criou. A espiritualidade judaico-cristã afirma que todo o
ber cuidar. Ética do humano
– compaixão pela Terra. Pe- mundo é digno de reverência e respeito,26 todas as coisas preci-
trópolis: Vozes, 1999. sam de cuidado para continuar a existir27.

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No relato sacerdotal da criação, Deus vê quanto havia
feito, “e era muito bom” (Gn 1,31). A narrativa javista, diz que
o Senhor Deus formou o homem com a argila do solo (…) e o
colocou no jardim de Éden, “para o guardar e cultivar” (Gn 2,15).
E, porque não é bom que o homem esteja só, o Criador formou
a mulher e a apresentou ao homem.
No Novo Testamento, Jesus cita as aves do céu e os lírios
do campo, como prova do cuidado que Deus tem com todas as
suas criaturas (Mt 6,25-30; Lc 12,22-28).
O amor de Deus por suas criaturas as santifica, tornando-as
merecedoras de cuidado e reverência. Toda a vida se transforma,
de alguma maneira, em uma “liturgia cósmica”. O que diferen-
cia um cálice sagrado de um simples copo ou caneca não é o
ouro ou a prata com que pode estar ornado; o que torna sagra-
do um cálice é sua relação com Deus. O que torna sagrado o
sacerdote, o pastor ou a “mãe de santo” não são as qualidades
pessoais de tal pessoa, mas a relação que ela tem com o Santo,
com o Mistério fontal, com o abismo insondável de amor, que
chamamos Deus.
Viver com cuidado, dizíamos em outra ocasião, significa
manter uma relação de respeito, de ternura e de amor com todas
as criaturas28. Não seremos suficientemente agradecidos ao 28. Luis González-Queve-
Criador se não tivermos cuidado conosco, com os outros e com do, “Amor e cuidado”,
Itaici, n. 68, 43-56 (44).
toda a criação29.
A Francisco de Borja, que tendia a se exceder nas peni- 29. Cf. João Justino de
Medeiros Silva, “Indica-
tências e na austeridade física, Inácio lhe recomendava não ções para uma espirituali-
maltratar o próprio corpo, para que “se torne mais são e mais dade do cuidado à luz da
disposto para o maior serviço divino”30. Hoje, no acompanha- teologia da criação”, Atua­
lidade Teológica, ano XIV,
mento de EE, recomendamos que os exercitantes durmam
2010, 410-418.
bem, ao menos na primeira noite, para que o cansaço físico
30. Armando Cardoso,
não lhes impeça de entrar, o mais descansadamente possível,
org., Cartas de Santo Inácio
no retiro. de Loyola. Vol. 2. São Pau-
Os pais e mães de família cuidam com carinho dos seus lo: Loyola, 1990, 78-79
filhos, especialmente quando são pequenos ou estão doentes; os (Epp II, 237). Nesta carta
a Francisco de Borja, de 28
monges e as monjas acordam muito cedo, para rezarem pela de setembro de 1548, Iná-
humanidade inteira; os religiosos e religiosas de vida ativa de- cio cita o conhecido adá-
sempenham uma enorme gama de trabalhos, em favor dos pobres, gio latino: mens sana in
das crianças, dos velhos, dos doentes e das pessoas mais frágeis; corpore sano.

os bispos e os presbíteros, seus colaboradores, assumem o cuida-


do pastoral de uma diocese ou paróquia. Todos os batizados agem

44 Itaici – revista de espiritualidade inaciana, n. 83 (Março/2011)


como “representantes de Deus”, quando cuidam da Terra e de
todos os viventes, que Ele lhes confiou.
Hoje, somos cada dia mais conscientes da necessidade de
cuidar da Terra, do ar que respiramos e da água imprescindível
para a vida, de preservar as espécies vegetais e animais e os
ecossistemas. Porém, ainda estamos longe de uma consciência
coletiva capaz de frear os estragos causados pela intervenção
31. Dom Odilo Scherer, humana na natureza31.
“Questão ecológica, ques- A segunda Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
tão moral”, O Estado de São
Paulo, 12 de fevereiro de Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro em
2011. 1992, consagrou o conceito de “desenvolvimento sustentável”,
que busca conciliar o desenvolvimento sócio-econômico com
a conservação e proteção dos ecossistemas da Terra. Os movi-
mentos e as organizações que trabalham em favor do meio
ambiente, atualmente, concentram seus esforços na próxima
Conferência, que, por realizar-se novamente no Rio de Janeiro,
32. A Conferência das Na- vinte anos depois, está sendo chamada de “Rio+20”32. Nestas
ções Unidas sobre Desen- duas décadas, a causa ecológica ganhou tanto prestígio social,
volvimento Sustentável
acontecerá no Rio de Ja- que está sendo explorada, até como “estratégia de marketing”
neiro, em maio de 2012. das grandes empresas.

3 - Servir por amor


O serviço é o último e decisivo termo na descrição que o
Princípio e Fundamento faz da finalidade da existência humana.
Na literatura inaciana, com muita frequência, o louvar está
33. Nos EE, o serviço é unido ao servir33. O serviço é garantia da autenticidade do
associado ao louvor de louvor e da reverência devidos ao Criador. Por sua parte, o
Deus em onze ocasiões: EE
20.23.46.98.155.157.168-
louvor purifica o serviço da tentação utilitarista, tornando-o
169.183.316.322. mais gratuito. O louvor por si só pode ser uma ilusão alienante;
34. C. Viard, “Crés pour o serviço por si só pode perder-se nos caminhos do ativismo34.
louver”, Christus 26 (1979), Mas, de que serviço se trata? Certamente, não se trata aqui
213-223 (p. 215 e 221).
do trabalho escravo, nem do serviço de simples sobrevivência.
O sujeito inaciano aspira a prestar a seu Criador e Senhor o
“maior serviço”, um serviço nascido do amor agradecido. Por-
que não há motivação mais forte para qualquer realização
humana do que o amor.
A conhecida expressão “em tudo amar e servir”, na Con-
templação para alcançar amor, só vem depois de o exercitante
ter reconhecido os benefícios recebidos. A memória agradecida

Itaici – revista de espiritualidade inaciana, n. 83 (Março/2011) 45


de “tanto bem recebido” (EE 233) deverá conduzir o exercitan-
te ao serviço por amor.
Se o mundo é a manifestação do amor de Deus, “servir e
dar glória a Deus é inseparável de amá-Lo e servi-Lo na sua
criação, em tudo”35. Isso poderá nos ajudar a compreender a 35. J.A. García, “servicio/
diferença existente entre a mística inaciana e a mística carme- servir”, DEI, 1637-1647
(1646).
litana. Esta última pode sintetizar-se na “Suma da perfeição”,
atribuída a São João da Cruz:

Olvido do que é criado,


memória do Criador,
atenção ao interior
e estar amando o Amado.36 36. São João da Cruz, Obras
Completas. Petrópolis: Vo-
zes, 1984, 60. [Olvido de lo
Na mística carmelitana (na espiritualidade monástica, em creado/ memoria del Crea-
geral), o mundo é visto, prioritariamente, como obstáculo que dor/ atención a lo interior/ y
deve ser desprezado e esquecido. Na mística inaciana (na espi- estarse amando al Amado].
ritualidade apostólica, em geral), o mundo é visto, prioritaria-
mente, como “âmbito da missão e lugar de encontro com Deus”37. 37. J. A. Guerrero, “mun-
Por isso, deve ser amado e compreendido, para ser redimido. do”, DEI, 1309-1313
(1311).
Deus amou tanto o mundo que enviou seu próprio Filho,
não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo
(Jo  3,16-17). O amor de Deus e o amor ao próximo não se
opõem entre si, antes se complementam. Assim também a “fuga
(ou distanciamento estratégico) do mundo” e a “inserção no
mundo” são duas vocações cristãs complementares.
A mística carmelitana é uma mística esponsal, enquanto a
mística inaciana é uma “mística de serviço por amor”38. Inácio 38. José de Guibert, La
sentia grande admiração pela vida puramente contemplativa. espiritualidad de la Com-
pañía de Jesús. Santander:
Teresa de Jesus e João da Cruz não desprezavam o serviço apos- Sal Terrae, 1955, 122.
tólico. Mas os místicos do Carmelo enfatizam mais o “estarse
amando al Amado”, enquanto Inácio priorizou o “ayudar a las
almas”. (Autob., 45).
A vocação dos membros da Companhia de Jesus, segundo
suas Constituições, será “viver em qualquer parte do mundo
onde se espera maior serviço de Deus e maior ajuda das almas”
(Const. 304). Foi esta vocação que levou São Francisco Xavier
e Mateus Ricci à Ásia e que trouxe Manuel da Nóbrega e José
39. 34ª Congregação Geral
de Anchieta ao Brasil. Em nossos dias, os jesuítas foram defini- da Companhia de Jesus. De-
dos como “servidores da missão de Cristo”39. creto 2.

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O itinerário espiritual de Santo Inácio de Loyola sintetiza
as atitudes fundamentais que o cristão pode ter diante do mun-
do: na sua juventude, foi “homem de mundo”, inserido na
cultura do seu tempo; convertido, abandonou o mundo e as
coisas mundanas, para seguir unicamente a Cristo; finalmente,
na terceira e última fase, sentiu-se enviado por Deus ao mundo
40. J. A. Guerrero, loc. cit., e passou a buscar e a encontrar a Deus em todas as coisas40.
1310.

Conclusão

O tema da Campanha da Fraternidade deste ano trouxe-me


a lembrança do teatro de Ugo Betti (1892-1953), talvez o maior
dramaturgo italiano, depois de Luigi Pirandello.
Ugo Betti foi um juiz que presenciou duas guer-
ras mundiais e foi perseguido, primeiro pelos
fascistas e, depois, pelos antifascistas. Nos últi-
mos anos de sua vida, Betti retornou à prática
da religião católica, da qual se tinha afastado.
Tema recorrente no teatro de Ugo Betti é
a natureza do mal e a experiência existencial da
culpa, do perdão e da redenção. Os mais conhe-
cidos de seus dramas são: Corruzione al Palazzo
di Giustizia (“Corrupção no palácio de justiça”,
1945); Delitto all’Isole delle Capre (“Crime na
Ilha das Cabras”, 1946); e La regina e gli insorti
(“A rainha e os rebeldes”, 1949), cujo assunto,
Ugo Betti passo a resumir.
(searchquotes.com) Em um país imaginário estoura uma revolução. O rei está
morto, mas a rainha consegue fugir. Os rebeldes a perseguem
e a confundem com uma dessas mulheres a quem Jesus garan-
tiu que entrariam no Reino antes que os fariseus. A mulher
jura que não é a rainha, mas os insurrectos não acreditam e a
levam à prisão. Lá a mulher é tratada como se fosse a rainha.
41. Toda mulher tem a
capacidade de se tornar Aos poucos, a protagonista, — na estréia no Brasil, represen-
uma rainha, quando for tada por Dina Sfat — vai assumindo a identidade de uma
amada. Bastaria lembrar o rainha41.
poema de Pablo Neruda:
No desfecho do drama, a suposta rainha é levada a uma
La Reina, que publicamos
nesta revista, n. 68 (junho praça, para ser enforcada. É um belo dia de sol. A protagonista
2007), p. 53. olha em torno de si e exclama: “Que belo cenário para o final

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de uma vida. Lástima que não tenhamos sabido aproveitá-la!”
E morre como uma rainha.
Deus nos deu um belo cenário, para o desenvolvimento
da nossa vida… A imensidão do Universo e a nossa própria
pequenez nos revelam a grandeza e a delicadeza do amor do
Criador.
O poeta William Blake dizia que podemos ver o Universo
em um grão de areia. Abraão viu nas inumeráveis estrelas um
sinal de que Deus lhe daria uma numerosa descendência
(Gn  15,5). Inácio de Loyola nos ensinou a olhar o mundo e
todas as coisas sobre a face da Terra como dons que Deus nos
deu, para que “em tudo” possamos “amar e servir” nosso Criador
e Senhor.
Deus quer que o louvemos e o sirvamos, não porque Ele
precise do nosso serviço e louvor, mas porque deseja o nosso
bem. O louvor, quando sincero, engrandece mais o admirador
do que o Admirado. O serviço feito por amor enobrece mais o
servidor do que o Senhor.
O louvor que Deus deseja não se reduz à expressão oral de
nossa admiração, nem mesmo ao sincero louvor do coração, mas
deve incluir as obras ou toda a vida42. 42. Santo Tomás distingue
Os EE terminam com a oportuna advertência de que “o amor a laus oris (louvar com a
boca) da laus cordis (louvar
consiste mais em obras do que em palavras” (EE 230). E as Cons- com o coração). Cf. Suma
tituições começam afirmando que “a suave disposição da divina teológica. Vol. 6. São Paulo:
Providência pede a cooperação de suas criaturas” (Const. 134). Loyola, 2005, 427 [II-II, a.
Inácio sabia que, se, por um lado, os seres humanos têm o privi- 1, ad 2]. A tradição acres-
centa ainda a laus operis
légio de poderem cooperar com o próprio Criador, por outro lado, (louvar com as obras).
eles têm a tremenda responsabilidade de desfigurar a criação di-
vina, “colocando impedimentos” à ação de Deus.
Por amor, o sujeito inaciano é chamado a colaborar com
todas as criaturas, com os crentes e com os descrentes, para que
este mundo seja, cada dia mais, expressão da beleza e da bon-
dade do Criador e para que, nele, todos os seres humanos possam
realizar-se plenamente.

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