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Cetoacidose diabética

Critérios bioquímicos para o diagnóstico de diabetes cetoacidose (CAD):


•Hiperglicemia - glicemia >200mg/dL
• pH venoso <7,3 ou bicarbonato <15 mEq/L
• Cetonemia e/ou cetonúria

Sinais clínicos de CAD:


• Desidratação
• Taquicardia, taquipneia / respiração profunda (Kussmaul); respiração com cheiro de
acetona
• Náuseas, vómitos, dor abdominal
• Confusão, sonolência, redução progressiva nível de consciência e, eventualmente, a perda
de consciência.

Classificação da gravidade da CAD conforme o grau de acidose:


• Leve: venosa: pH <7,3 e/ ou bicarbonato <15 mEq/L
• Moderado: pH <7,2 e/ou bicarbonato <10 mEq/L
• Grave: pH <7,1 e/ou bicarbonato <5 mEq/L

Tratamento:
O esquema terapêutico deve ser individualizado.
A resposta clínica e laboratorial, que é variável, deve servir como critério para realização
de mudanças no protocolo conforme a necessidade.

Objetivos da terapia:
 Tratar a desidratação
 Reverter a cetose e corrigir a acidose
 Restauração da glicemia para próximo da normal
 Monitorização das complicações da CAD e do seu tratamento
 Identificar e tratar qualquer evento precipitante

À admissão, seguir normas gerais para pacientes gravemente doentes (ABC):


Permeabilidade de vias aéreas;
O2 na presença de alteração hemodinâmica importante ou choque
Monitor cardíaco (avaliação de onda T)

Avaliação clínica completa. Dados importantes:


Peso
Pressão arterial (PA)
Exame físico geral: avaliação do estado de hidratação
Sinais clínicos úteis para avaliação do grau de desidratação nas crianças com idades
entre 1 mês a 5 anos:
-Perda de 5%- tempo de enchimento capilar prolongado (>1.5-2 s); turgor da
pele anormal (pastoso); padrão respiratório anormal (hiperpneia)
-Perda ≥ 10% - presença dos pulsos periféricos fracos ou não palpáveis,
hipotensão e oligúria.

Exame neurológico: nível de consciência e escala de coma de Glasgow (ECG).

Avaliação da glicemia capilar e cetonúria


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Exames laboratoriais:
 Glicemia
 Eletrólitos: Na, Cl, K, P, Ca, Mg, albumina
 Gasometria venosa
 Ureia, creatinina
 Hemograma à admissão
 Urina rotina/ cetonúria ou cetonemia
 Culturas (se necessário)
 ECG (avaliação da repercussão das alterações do potássio sérico)

Cateter venoso periférico (2 acessos)

Cateterização vesical, somente nos pacientes inconscientes.

Indicação de internação em UTI:


CAD grave
Longo tempo de duração dos sintomas antes da admissão hospitalar
Alteração hemodinâmica importante
Alteração do nível de consciência
Risco aumentado de edema cerebral:
Idade <5anos, acidose grave, baixo pCO2, aumento da ureia .

Monitorização rigorosa:
Anotar em folha de evolução do tratamento de CAD
Sinais vitais (FC, FR, PA) de 1/1h ou mais frequente, se necessário.
Escala de coma de Glasgow de 1/1h.

Ficar atento aos sinais/ sintomas de instalação de edema cerebral:


Cefaleia; desaceleração da frequência cardíaca; recorrência de vómitos; mudança no
estado neurológico (agitação, irritabilidade, sonolência aumentada, incontinência) ou
sinais neurológicos específicos (por exemplo, paralisia de nervos cranianos, respostas
pupilares anormais); aumento da pressão arterial; diminuição da saturação de oxigénio;
aumento rápido da concentração sérica de sódio sugerindo perda de água livre urinário
como uma manifestação de diabetes insipidus.

Balanço hídrico: ofertas e perdas de 1/1h

Insulina administrada

Glicemia capilar 1/1h; até a compensação metabólica

Exames laboratoriais: Glicemia, potássio, sódio, cloro, ureia, cálcio, magnésio, fósforo,
gasometria venosa a cada 2 a 4 horas ou mais frequente se necessário.

Reposição de líquidos e eletrólitos

Objetivos da reposição de líquidos e eletrólitos:


 Restauração do volume circulante
 Repor Na e deficit de líquidos
 Aumentar a filtração glomerular

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Reposição de líquidos (PROTOCOLO 2018 – NÃO MOSTROU DIFERENÇA ENTRE O USO DE NACL 0,45 A
0,9% - deverá ocorrer em 24 a 48 horas). PECARN FLUID Study 1389 episódios de CAD em crianças

Fase 1: Ressuscitação fluídica.


Indicado para os pacientes com diminuição da perfusão ou choque.
NaCl 0,9% - 10 a 20 mL/Kg em 1 a 2 horas. Pode ser repetido até que a perfusão seja
adequada.
Se choque: considerar tratamento do choque

Fase 2: Reposição do deficit de fluidos em 48h


Na CAD leve: pode iniciar nesta etapa.

Volume da fase 2 =
(Volume do défict de líquido calculado à admissão – Volume utilizado na ressucitação
fluídica, fase1) + (volume do soro de manutenção X 2) para 48 horas

Estimativa do volume de défict de líquido, conforme a perda hídrica:


Perda hídrica Volume
CAD leve ≤ 5% do peso até 50 ml/Kg
CAD moderada- 5 – 7 % do peso – 50 a 70 ml/Kg
CAD grave- 7 – 10 % do peso – 70 a 100 ml/kg
Choque- > 10 % do peso (muito raro) – 130 ml/Kg
Soro de manutenção diário: 100 mL/ 100 Calorias ou seja,
Até 10kg – 100mL/kg
10-20kg – 1000mL + 50mL para cada kg acima de 10Kg
>20kg – 1500mL + 20mL para cada kg acima de 20Kg
Se apresentar perdas por vómitos, diarreia ou febre considerar a reposição destas perdas.
A reposição de perdas urinárias, habitualmente não é necessária.

Obs: Em pacientes obesos para evitar a excessiva administração de líquidos, utilizar o peso
ideal.

Tempo de infusão da fase 2:


½ do volume nas primeiras 24 horas e ½ nas próximas 24h

Tipo de líquido:

Enquanto glicemia >250 – 300mg/ dL:


NaCl 0,9% (nunca NaCl <0,45%)
Infundir NaCL 0,9% + K em concentração ajustada conforme o nível de K sérico
Quando glicemia < 250 – 300 mg/dL, iniciar solução glicosada com duas bolsas de hidratação
em infusão simultânea:

Bolsa 1:
NaCL 0,9% + K em concentração conforme o nível de K sérico
Bolsa 2:
NaCL 0,9% + K em concentração conforme o nível de K sérico + Glicose 10%

- Observação a concentração K deve ser igual nas duas bolsas.

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Ajustar a concentração de glicose conforme a glicemia e velocidade de queda da
glicemia (evitar queda da glicemia acima de 90 mg/dL/h) da seguinte forma:
Para infusão de 2,5% de glicose infundir bolsa 1 em 75% do gotejamento total e bolsa 2 em
25% do gotejamento total (simultaneamente).
Para infusão de 5% de glicose infundir bolsa 1 em 50% do gotejamento total e bolsa 2 em 50%
do gotejamento total (simultaneamente). E assim sucessivamente.
Ou utilizar o protocolo proposto por Collett-Solberg, a seguir:
Glicemia inicial (mg%) % da velocidade de infusão calculada
<800 Solução sem glicose Solução com glicose 10%
Glicemia no momento (mg%) Bolsa 1 Bolsa 2
>350 100 zero
301 - 350 75 25
251 - 300 50 50
201 - 250 25 75
<200 zero 100
Se glicemia inicial maior que 800 mg% considerar tratamento de coma hiperosmolar.

Liberar ingestão de líquidos VO assim que o paciente apresentar melhora clínica, não
apresentar vómitos ou alteração do nível de consciência. E diminuir proporcionalmente a oferta
EV.
Não ofertar em 24h, volume maior que 2x o volume de manutenção diária por
aumentar o risco de edema cerebral.

Se o paciente apresentar sinais de hiperidratação, uma revisão do cálculo do volume deve


ser realizada, com diminuição do volume a ser infundido. A ausência de melhora dos
parâmetros clínicos ou laboratoriais pode alertar para a necessidade de aumento do volume e
velocidade da hidratação.

Reposição de potássio:
Apesar do K sérico à admissão, geralmente, estar normal ou mesmo elevado existe uma
diminuição do K corporal total e os níveis de K tendem a diminuir rapidamente com a
administração de insulina.
Se na avaliação inicial:
K< 3,5 - Iniciar já na expansão inicial e antes da insulina, com cautela, e monitorização do
ritmo cardíaco por eletrocardiograma.
3,5 < K <5,5: iniciar após ressuscitação fluídica na fase 2 e concomitante ao início da
insulina
K>5,5: postergar a infusão de K até assegurar a presença de bom débito urinário.

Concentração K a ser administrada:


Se indicado na fase 1: 20 mEq/ L
Fase 2: 30 - 40 mEq/ L
NUNCA EXCEDER A VELOCIDADE DE INFUSÃO DE K de 0,5 mEq/Kg/h.

Ajustes da oferta de K são realizadas conforme controles séricos.

Se dosagem de K imediata, não for possível, deverá ser realizada a monitorização do ECG
e considerar:

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Hipocalemia se prolongamento do intervalo PR, achatamento e inversão da onda T,
depressão ST, ondas U proeminentes, intervalo QT aparentemente longo
Hipercalemia se onda T alta, em pico e simétrica e encurtamento QT.

Correção da acidose:
A acidose mesmo grave é reversível pelos fluidos e insulina, sendo raramente necessária
a sua reposição. A insulina interrompe a produção de cetoácidos e permite que os cetoácidos
sejam metabolizados gerando bicarbonato. A reposição de bicarbonato pode levar a acidose
paradoxal do SNC e hipocalemia.
Se a infusão de bicarbonato for considerada necessária, infundir com cautela 1-2 mEq /
Kg em tempo igual ou maior que 60 minutos. Se hipercalemia severa ou pH<6,9 com
evidência de comprometimento da contractilidade cardiovascular.

Reposição de fósforo:
Na presença de hipofosfatemia grave (P <1mg/dL) associada aos sintomas de depleção de
P (irritabilidade, parestesias, confusão, convulsão, coma, diminuição da contratilidade
miocárdica, fraqueza do diafragma levando a falência respiratória, miopatia proximal, disfagia,
ileo, eventos hemorrágicos ou rabdomiólise), o P deve ser reposto na forma de fosfato de
potássio com monitorização do cálcio sérico e com o abatimento do K oferecido nas soluções
de KCl.

Insulina

Início: 1-2 horas após o início da administração de líquidos. Ou seja, após a fase1.
Infusão EV contínua (bomba de infusão; acesso venoso exclusivo)
Dose: 0,05 Ui/Kg/hora (0,05 a 0,1).
Não necessita de bolus inicial.
Diluição: 50Ui de insulina regular em 50 mL de NaCl0,9% (1Ui/1mL). Lavar o equipo
com solução antes de iniciar a infusão.
Esta infusão deve ser mantida até resolução da CAD (pH >7,3; Bic > 15).
Lembrar que a cetonúria poderá persistir por período mais prolongado e não serve como
marcador da correção da acidose.

Se ocorrer queda da glicemia (glicemia < 250 – 300 mg% ou apresentar rápido ritmo de
queda da glicemia >90 mg/dL/h) acrescentar glicose à expansão, conforme descrito acima. Se
o paciente apresentar grande sensibilidade à insulina, considerar a necessidade de diminuir
gradualmente a velocidade de infusão da insulina 0,1 – 0,05 – 0,03 ui/Kg/h para prevenir a
hipoglicemia.

A suspensão da infusão EV e transição para insulina subcutânea deverá ser realizada


quando a acidose for corrigida e o paciente aceite dieta por via oral.
A primeira dose de insulina regular (0.1-0,2 Ui/kg) SC deverá ser administrada insulina
regular (R) 30 a 60 minutos antes da suspensão da infusão EV. Deverá ser mantida insulina
regular a cada 4 a 6 horas SC até a administração da insulina de ação intermediária NPH.

Caso a administração EV não seja possível, o esquema intermitente poderá ser utilizado:
Insulina regular 2/2h SC ou IM
Dose inicial: 0,2 Ui/kg
Seguido por 0,1 – 0,15 Ui/Kg 4/4h.
Se glicemia < 250-300mg% antes da correção da acidose, diminuir a dose para 0,05Ui/Kg/
dose até resolução da CAD e acrescentar solução com glicose.

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Após resolução da CAD, nos pacientes recém diagnosticados:
Iniciar com insulina NPH 0,5Ui/Kg/dia sendo 2/3 pela manhã e 1/3 às 22:00. Nas
crianças pequenas considerar a utilização de dose inicial menor (0,3 Ui/Kg).
Persistir monitorizando a glicemia capilar antes do café, antes do almoço, antes do
jantar, antes da ceia, 3:00 e na presença de sintomas de hipoglicemia ou hiperglicemia. Caso o
paciente apresente hiperglicemia >200 mg% administrar dose de correção com insulina regular
SC 0,1 a 0,2 ui/Kg.
Nos pacientes em tratamento, manter a dose habitual de insulina ou aumentar a dose em
20% se existir associação de processo infeccioso.

Monitorização e tratamento de complicações

Edema cerebral: Atenção a início de cefaleia após o início do tratamento ou piora,


diminuição da FC, mudança do padrão neurológico, sinais neurológicos específicos,
aumento da PA e diminuição da SaO2.
Complicação grave e responsável por 60 a 90% dos casos de morte na CAD. Mais
comum nas crianças.
Monitorizar continuamente o quadro neurológico.
Fatores de risco: criança pequena, diagnóstico recente, longa duração dos sintomas,
hipocapnia importante, aumento da ureia inicial, acidose grave, uso do bicarbonato,
diminuição importante e precoce da osmolaridade efetiva, pouca elevação do sódio ou queda
precoce do sódio corrigido para a glicemia, infusão de grandes volumes nas primeiras 4 horas,
administração da insulina na primeira hora.

Escore para diagnóstico do edema cerebral:


Critério diagnóstico Critério maior Critério menor
Resposta motora e verbal Alteração ou flutuação de Vómitos
inadequada à dor nível de consciência
Postura de decorticação ou Desaceleração da FC Cefaleia
decerebração (<20bpm). Não atribuída à
melhora ou sono
Paralisia de nervos Incontinência inapropriada Letargia ou dificuldade de
cranianos para a idade acordar
Respiração com padrão PA> 90mmHg
neurológico
Idade <5 anos
Diagnóstico de edema cerebral se existe a presença de:(Sensibilidade de 92%)
1 critério diagnóstico ou
2 critérios maiores ou
1 critério maior e 2 menores

Tratamento do edema cerebral:


Imediato
Elevar a cabeceira.
Reduzir para 1/3 a infusão de líquidos
Manitol 0,5 a 1 g/Kg EV em 10 a 15 minutos e repetir se não houver resposta em 30
minutos a 2 horas.
Solução salina hipertônica (3%) 2,5 a 5 ml/ kg em 10 a 15 minutos pode ser alternativa
ou realizado se não houver resposta ao manitol.
Intubação se necessário.
Após início do tratamento, realizar imagem SNC para diagnóstico diferencial de
hemorragias ou trombose.
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Fórmulas:

Na corrigido= Na + 1,6 X [(Glicemia mg% -100) / 100)]

Ânio Gap = Na - (Cl + Bic) VR= 12 +/- 2

Referências:

Albuquerque, CTM & Carvalho LFA. Cetoacidose diabética na infância e na adolescência;


Protocolo Clínico 036. Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). 2013.
Disponível em http/: www.fhemig.mg.gov.br

Collett-Solberg P. Cetoacidose diabética em crianças: revisão da fisiopatologia e


tratamento com o uso do método de duas soluções salinas. J Pediatr (Rio J) 2001; 77(1): 9-16.

Olivieri L, Chasm R. Diabetic ketoacidosis in the pediatric emergency department. Emerg


Med Clin North Am. 2013 Aug;31(3):755-73.

Wolfsdorf JI. The International Society of Pediatric and Adolescent Diabetes guidelines
for management of diabetic ketoacidosis: Do the guidelines need to be modified? Pediatr
Diabetes. 2014 Jun;15(4):277-86.

Wolfsdorf JI, Allgrove J, Craig ME, Edge J, Glaser N, Jain V, Lee WW, Mungai LN,
Rosenbloom AL, Sperling MA, Hanas R. Diabetic ketoacidosis and hyperglycemic
hyperosmolar state. Pediatr Diabetes. 2014 Sep;15 Suppl 20:154-79.

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