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SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA CARIOCA

CURSO DE TEOLOGIA

BRUNNO MARTINS TEIXEIRA

COMPARAÇÃO ENTRE AS DINÂMICAS DA CIÊNCIA, SEGUNDO


THOMAS KUHN, E DA FÉ, SEGUNDO PAUL TILLICH

RIO DE JANEIRO
2020
BRUNNO MARTINS TEIXEIRA

COMPARAÇÃO ENTRE AS DINÂMICAS DA CIÊNCIA, SEGUNDO THOMAS


KUHN, E DA FÉ, SEGUNDO PAUL TILLICH

Monografia apresentada ao Curso de Teologia do


Seminário Teológico Batista Carioca, para
obtenção de título de bacharel em Teologia.

Orientador: Jairo Silvestre da Silva


Coorientadora: Erika Coelho Miranda Soares

RIO DE JANEIRO
2020
TEIXEIRA, Brunno Martins

Comparação entre as dinâmicas da ciência, segundo Thomas Kuhn, e da


fé, segundo Paul Tillich.

Brunno Martins Teixeira. – Rio de Janeiro, 2020.

42f.

Monografia (Bacharel em Teologia) – Seminário Teológico Batista Carioca,


2020.

1. Epistemologia. 2. Filosofia da religião. 3.Paul Tillich. 4. Thomas Kuhn.


BRUNNO MARTINS TEIXEIRA

COMPARAÇÃO ENTRE AS DINÂMICAS DA CIÊNCIA, SEGUNDO THOMAS


KUHN, E DA FÉ, SEGUNDO PAUL TILLICH

Monografia apresentada ao Curso de Teologia do


Seminário Teológico Batista Carioca, para
obtenção de título de bacharel em Teologia.

Aprovado em ____/____/________.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Orientador de Conteúdo
Seminário Teológico Batista Carioca

_______________________________________________________
Orientadora de Forma
Seminário Teológico Batista Carioca

_______________________________________________________
Examinador 1
Seminário Teológico Batista Carioca

_______________________________________________________
Examinador 2
Seminário Teológico Batista Carioca
AGRADECIMENTOS

A Deus que esteve ao meu lado em todos os momentos, me dando todo o


suporte necessário tanto nesta como em todas as outras etapas da minha vida.

À minha esposa, Aline Tavares de Lima Martins, por me motivar a ingressar


neste curso e dar suporte diário em direção à conclusão de mais essa etapa. Sem
ela este documento não existiria.

À Igreja Batista do Parque São Basílio e, em especial, ao meu pastor


Valdemir Alves da Silva. Sem eles para me incentivar e dar condições por meio da
bolsa que desfrutei, não conseguiria alcançar este feito.

Aos colegas e professores do Seminário Teológico Batista Carioca por toda a


dedicação e disponibilidade em cada momento do curso. Cada interação e aula me
ajudou crescer nesses anos de curso.

Aos orientadores Jairo Silvestre da Silva e Erika Coelho Miranda Soares pelo
apoio e direção a cada etapa, seja do curso ou da confecção desse documento.
RESUMO

O presente documento tem por objetivo pesquisar a respeito das dinâmicas


científicas e de fé religiosa, a partir de um pensador em cada área. Os pensadores
são Thomas Kuhn, em relação à ciência, e Paul Tillich, em relação à teologia e fé.
Após esta pesquisa, pretende-se estabelecer uma discussão ética para saber quais
são as possíveis aproximações e os afastamentos necessários entre as duas áreas
a partir dos pensamentos analisados, levando em conta o contexto atual. Assim,
este documento aborda temas filosóficos e epistemológicos. A metodologia utilizada
é pesquisa bibliográfica dos pensadores sobre o tema seguido de discussão ética.
Espera-se a partir deste esclarecer o leitor sobre o assunto e diminuir possíveis
tensões entre o raciocínio científico e teológico.

Palavras-chave: Thomas Kuhn; Paul Tillich; dinâmica da fé; dinâmica da ciência.


ABSTRACT

The purpose of this document is to research scientific and religious faith dynamics,
based on a reference in each area. They are Thomas Kuhn on science and Paul
Tillich on theology and faith. After this research, is established an ethical discussion
to find out what are the possible approximations and the necessary distances
between the two areas from the analyzed thoughts, considering the current context.
Thus, this document addresses philosophical and epistemological themes. The
methodology used is bibliographic research of the thinkers on the theme followed by
an ethical discussion. It is hoped from this to clarify the reader on the subject and
reduce possible tensions between scientific and theological reasoning.

Palavras-chave: Thomas Kuhn; Paul Tillich; dynamics of faith; dynamics of science.


SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 9

2 A DINÂMICA DA CIÊNCIA A PARTIR DO PENSAMENTO DE THOMAS KUHN............15


2.1 CIÊNCIA NORMAL............................................................................................................. 15
2.2 PARADIGMA CIENTÍFICO................................................................................................. 17
2.3 ANOMALIAS E CRISES NA CIÊNCIA................................................................................19
2.4 REVOLUÇÃO CIENTÍFICA................................................................................................ 20

3 A DINÂMICA DA FÉ A PARTIR DO PENSAMENTO DE PAUL TILLICH.........................24


3.1 DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DA TEOLOGIA.........................................................24
3.2 CARACTERÍSTICAS DA FÉ............................................................................................... 26
3.3 CLASSIFICAÇÕES DE FÉ................................................................................................. 28
3.4 DISTINÇÃO DO QUE NÃO É FÉ.......................................................................................31

4 POSSÍVEIS PONTOS DE CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA ENTRE CIÊNCIA E FÉ..33


4.1 PONTOS DE CONVERGÊNCIA......................................................................................... 33
4.2 PONTOS DE DIVERGÊNCIA............................................................................................. 37

5 CONCLUSÃO..................................................................................................................... 40
REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 42
9

1 INTRODUÇÃO

O assunto sobre relação entre Ciência e Religião sempre foi de interesse do


autor do trabalho, já que a sua conversão com plena consciência ao Cristianismo
Evangélico se deu ao observar os frutos das obras de seu avô, que faleceu cerca de
quatro anos antes de ele nascer, deixando a marca religiosa em sua vida. Porém a
sua formação intelectual e profissional foi em Química e, posteriormente, em Ensino
de Química e a área que sempre foi um referencial é a científica. Logo, não dá para
tal pessoa negar a influência religiosa, nem a científica.
A partir desses fatos e da crescente polarização existente entre as duas
áreas, como se para aceitar uma devesse renunciar à outra, tal pesquisa faz parte
do esforço intelectual para saber explicar a razão da própria fé por parte do autor
deste trabalho, já que relação entre ciência e religião é fruto de tensões, nos quais
grupos religiosos se opõe à ciência como se ela fosse o responsável por uma
eventual perda de fé das pessoas e grupo de cientistas sustentam a fé como inimiga
do progresso intelectual e social [CITATION MCG05 \p 64-65 \t \l 1046 ].
Essa questão que tem se inserido em várias culturas, podendo estabelecer
que desde o encontro entre os helênicos e os primeiros cristãos. O cenário tem
mudado de várias formas, com contextos mais favoráveis, hora para um, hora para
outro. Porém uma característica se mantém, a ciência faz a busca pela verdade a
partir do esforço humano e a teologia tenta entender os mistérios sobre Deus. É
possível, em contrapartida, observar atualmente uma espécie de “ignorância
recíproca”, na qual as áreas fazem uma espécie de contrato de não agressão, com
cada uma em seu lugar [CITATION ZUB17 \p 128 \t \l 1046 ]
Tem voltado à cena nos últimos anos, no cenário popular, as tensões entre as
duas áreas. Principalmente após a polarização política que tem tomado alguns
países, inclusive o Brasil [CITATION MAC19 \p 945-947 \t \l 1046 ]. Diante destes
quadros se é possível perguntar, é necessária a existência destas tensões, tendo
em vista pensamentos mais atuais relativos à teologia e à ciência?
A resposta dessa pergunta exige atenção às dinâmicas, tanto da fé, quanto
da ciência. Saber como elas se dão e, a partir disso, observar possíveis
aproximações a afastamentos. Somente a partir disso é possível entender sobre tal
questionamento.
10

A busca por esse entendimento necessita da escolha de um pensador da


ciência que vise explicar a sua dinâmica e, por outro lado, outro pensador que faça o
mesmo tipo de esclarecimento, porém a respeito da teologia e, mais precisamente,
da fé religiosa. Assim, escolheu-se como o pensador científico Thomas Kuhn e,
como o pensador teológico Paul Tillich.
A escolha da área científica se justifica porque o principal foco de Kuhn foi
entender como a ciência acontecia, o que orienta a comunidade científica na escolha
dos problemas prioritários e, por que existiram ao longo da história da ciência
momentos chave para que ela fosse como está atualmente.
Thomas Kuhn nasceu em 18 de julho de 1922, forma do em física por Havard
em 1943 e alcançando o título de PhD na área em 1949 pela mesma instituição.
Porém nos primeiros anos como pesquisador, mudou da física para a história da
ciência e, mais tarde, para a filosofia da ciência. Foi professor da cadeira de história
da ciência entre 1948 e 1956 em Havard. Após esta instituição, lecionou na
Universidade da Califórnia em Berkeley. Era ali que lecionava quando escreveu sua
obra de maior impacto: “A estrutura das revoluções científicas”, em 1962[ CITATION
BIR18 \l 1046 ].
Kuhn trabalhou como professor de história da ciência até o fim da vida,
lecionando também na Universidade de Princeton e no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT). Faleceu em 1996 como consequência de um câncer de
fígado. A última obra foi póstuma, lançada no ano 2000 em inglês e em 2017
traduzido para o português, “O caminho desde a estrutura”, traz uma entrevista feita
um ano antes de sua morte na qual ele comenta e responde a críticas feitas às suas
obras [CITATION HIC16 \p 1-16 \t \l 1046 ].
A análise dos pensamentos de Kuhn pode ser suficiente para entender a
dinâmica científica, mas não é possível analisar a fé, nem a teologia. Logo, se faz
necessário pesquisar outro pensador para conduzir a pesquisa pela dinâmica de fé.
E, para tal, escolheu-se Paul Tillich. Isto porque como ele possui grande acervo de
obras, inclusive uma com o nome “Dinâmica da fé”, além de partir para uma
explicação mais cultural do que apologética sobre a fé e a teologia.
A vida deste teólogo pode ser dividida em três fases: preparação teórica e
técnica, docência na Alemanha e envolvimento na crítica ao nazismo e, por último,
sua estadia nos Estados Unidos. Nascido em 1886, na Alemanha, era filho de pastor
luterano de alto cargo na hierarquia da igreja. A influência de sua criação o levou a
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uma linha teológica antagônica ao calvinismo, que era predominante nos Estados
Unidos. E, apesar de ser crítico da igreja, ele dizia que “nela reconheci o meu lar”.
Nunca a abandonando e exercendo a atividade da pregação da palavra até seus
últimos momentos [CITATION CAL95 \p 11-14 \t \l 1046 ].
Sobre a vida profissional de Tillich, torna-se doutor em filosofia em 1911 e no
ano seguinte torna-se grau licenciado em teologia, que era o grau mais algo no
ensino alemão de teologia na época na Universidade de Halle, centro do pietismo
alemão. Foi ordenado pastor luterano em 1914, assumindo uma paróquia em Berlim.
Na 1ª Guerra Mundial, se voluntariou como capelão a fim de dar apoio espiritual aos
soldados, mas o que obteve foram traumas levando-o a refletir sobre a vida até
então.
A experiência de guerra foi um marco para o pensamento de Tillich, que
deixou a ingênua admiração pela cultura militar e o ideal liberal e burguês. A partir
desse evento tornou-se mais realista e crítico daquilo que admirava anteriormente.
Depois destes eventos ele assume a docência na Universidade de Berlim. Nesta
fase obtém-se os primeiros relatos sobre a ideia de uma teologia da cultura e de
envolvimentos com movimentos sociais, como o Socialismo Religioso. Também se
tornou crítico do socialismo russo, pois acreditava que sem fundamento religioso não
havia um como plano social, qualquer que fosse, obter sucesso[CITATION CAL95 \p
15 \l 1046 ].
Em 1925, ao mudar para a Universidade de Marburg, ele nota em seus alunos
uma forte influência neo-ortodoxa que rejeitava os teólogos liberais mais
proeminentes à época, como Schleiermacher, e bania discussões políticas e sociais
do fazer teológico. Neste período também teve contato com Heidegger.
No segundo semestre do mesmo ano, ele muda para Dresden, neste período
escreveu alguns de seus principais artigos, como “Realismo e fé”. Em 1929, se
muda para Frankfurt e, nesta última experiência docente na Alemanha, lecionou pela
primeira vez Filosofia da Religião e Filosofia Social. Como suas críticas ao nazismo
eram constantes, tornou-se um alvo, com o auge em 1932, após expor dez teses
sobre a igreja e o Terceiro Reich, publicá-la em livro e enviar diretamente para o
próprio Hitler. Entre os conteúdos da obra está a oposição entre “o cristianismo da
cruz contra o paganismo da suástica” [CITATION CAL95 \p 17 \t \l 1046 ].
Em 1933, com outro incidente numa igreja em Berlim, Tillich por acaso
encontra Reinhold Niebuhr, teólogo famoso nos Estados Unidos na época, que
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providencia a ida dele e sua família para o continente americano. O pensador


quando fez essa migração não falava inglês, porém dominou a língua e tornou-se
um dos mais influentes teólogos do Union Theological Seminary. O período de
docência alemã foi importante para o pensador em questão, visto que a semente e
conceitos chave de sua teologia sistemática e da teologia da cultura foram
estabelecidos nesta fase [CITATION CAL95 \p 18 \t \l 1046 ].
Durante os anos que Tillich viveu no novo país, envolveu-se com instituições
de defesa de refugiados europeus, condição da qual ele compartilhava. Também
estudou psicologia e psicanálise, sob influência de Erich Fromm, que compartilhava
a condição de refugiado, que conheceu na atuação política. Esses conceitos serão
importantes para fundamentar algumas ideias de sua teologia sistemática.
O período em solo americano foi marcado pela amizade, apesar da oposição
teológica, com Karl Barth. Esta relação tensa mostra o pensamento de Tillich de
como a teologia deveria possuir maior caráter prático na mudança da história, em
oposição ao amigo. Ele também participou da criação da comissão para organização
do Conselho Mundial de Igrejas.
Na década de 50, publica sua “Teologia sistemática”, que apesar de ser muito
citada e comentada, também foi muito criticada pela falta de vínculo entre o
pensamento e a Bíblia. Para isto respondia que ela estava citada indiretamente em
suas reflexões. Essa Teologia Sistemática foi feita em volumes, ao invés de toda de
uma só vez. E ele terminou de escrever e publicar a obra somente em 1963, dois
anos antes de sua morte [CITATION CAL95 \p 17-21 \t \l 1046 ].
Em 1955 torna-se professor de Havard sem vínculo a uma unidade
específica, tendo liberdade para lecionar em vários departamentos diferentes,
tratava-se de uma posição de grande prestígio, deixando-a somente devido à idade
avançada. Recebeu homenagens e títulos honorários de várias faculdades pelos
Estados Unidos, porém a mais importante comenda não veio de uma faculdade, mas
sim do presidente da Alemanha Ocidental, a Grosses Verdienstkreuz, mais alta
honraria alemã. Morreu em 1965 deixando um grande legado à teologia[CITATION
CAL95 \p 22-23 \t \l 1046 ].
A partir das biografias destes pensadores acredita-se justificar o motivo das
suas escolhas como norteadores na busca pela resposta da pergunta posta no início
deste documento. A partir desta pesquisa, tem-se por objetivo encontrar uma
possibilidade de pensar a questão da relação entre ciência e religião. Para tal será
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feita uma discussão ética através da comparação entre as dinâmicas da ciência e da


fé.
Como é impossível se fazer uma comparação entre objetos que não são
conhecidos, este documento traz a reflexão sobre as dinâmicas científicas, no
capítulo dois, e de fé, no capítulo três, através da análise das obras de Kuhn e
Tillich. Após esta etapa, procede-se com a comparação propriamente dita, separada
em dois momentos: aproximação e afastamento, no quarto capítulo.
A possibilidade de mostrar conceitos e discutir eticamente as possibilidades
de diálogo e mostrar os limites de cada área do conhecimento possui a relevância
intelectual de esclarecer para o religioso qual é a visão do cientista e vice-versa, de
forma a ser possível diminuir a polarização, aumentando a liberdade de diálogo e,
assim, os componentes das duas áreas evoluírem intelectualmente.
A relevância para a área acadêmica está na possibilidade de expansão e
conexão entre diferentes áreas do conhecimento. No Brasil, a área de conhecimento
que faz deliberadamente esse tipo de discussão é a Ciência da Religião, que é
relevante e apresenta bons resultados, porém poucas são as interações entre os
integrantes dessa área e os cientistas que lidam com Ciência da Natureza, como
química, física ou biologia. Ao lidar com o pensamento de Kuhn, que foi físico teórico
e conhece a área de Ciências da Natureza, é mais provável que estes perfis de
cientistas consigam se sentir mais representados e, assim, se identificar mais com a
discussão e o assunto. E, depois de tal interação, acredita-se que tanto os cientistas
da religião quanto os da natureza sejam capazes de contribuir às discussões que
serão levantadas no presente trabalho.
A possibilidade de conversa entre a religião e a ciência, de forma a superar os
desafios sociais de tal interação, pode ser uma amostra para a sociedade de que o
diálogo entre diferentes segmentos sociais é algo mais eficaz do que a tentativa de
diminuição do outro e que leva à melhor relação entre as pessoas, já que é difícil
respeitar a quem não se compreende nem conhece.
A sociedade vive um tempo de intolerância em diferentes segmentos e o
sucesso de um diálogo entre áreas que para muitos são opostas pode demonstrar
que se pode fazer o mesmo entre outros segmentos sociais, como por exemplo,
políticas e econômicas. Porém outro ponto importante é que, para isto não se tornar
algo ineficaz, torna-se necessário o esclarecimento dos conceitos relacionados.
14

Outro ponto a ser esclarecido é como se deu a pesquisa bibliográfica.


Focando-se no tema, buscou-se nas obras de Kuhn e Tillich abordagens a respeito
de suas definições para as suas áreas, ciência e teologia, respectivamente, para
depois buscar como eles colocavam o estabelecimento das dinâmicas de suas
áreas. Assim, primeiro se teve acesso às obras dos dois autores, seja por meio
eletrônico ou físico, para depois examinar, em cada obra, na busca por tais
explicações e executar o fichamento. Seguiu-se com a organização das fichas por
tópicos, estas que se tornaram parte deste documento através dos capítulos e
subtópicos apresentados.
15

2 A DINÂMICA DA CIÊNCIA A PARTIR DO PENSAMENTO DE THOMAS KUHN

O pensamento de ciência de Thomas Kuhn gira em torno de “paradigmas”,


que são padrões aceitos pela comunidade e que devem ser aceitos e absorvidos por
quem deseja adentrar a tal comunidade científica. Estas são usadas para
estabelecer a fase na qual a área de conhecimento em questão se encontra.
O tempo no qual não há paradigma é chamada pré-paradigmática. Neste
momento existem várias correntes, mas nenhuma que responda de forma
satisfatória a maioria dos questionamentos principais relacionados àquela ciência. O
período seguinte é o período paradigmático, nele um paradigma está se
estabelecendo na comunidade de forma a nortear a área do conhecimento. Como
consequência do próprio progresso do período paradigmático, vem a fase da
“ciência normal”, no qual ela se concentra apenas nos problemas que o paradigma
se propõe a resolver, sem dar espaço a outros tipos de questionamento. A seguir
vem a crise, quando surgem perguntas para os quais o paradigma atual não
consegue resposta e, o último momento desta dinâmica é a da revolução científica,
que se trata do processo de estabelecimento de um novo paradigma para a área de
conhecimento. Depois desse período se reinicia o ciclo a partir de uma nova “ciência
normal”.
Para entender melhor esta dinâmica, é necessário compreender o que é e
como se relacionam ciência normal, paradigma científico, anomalias e crises
científicas e, por fim, revolução científica.

2.1 CIÊNCIA NORMAL

A definição de ciência normal para Kuhn [CITATION KHU98 \p 29 \n \t \l


1046 ] é: “a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas
passadas”. A partir desta é possível inferir que só é possível sua existência para
áreas que já tiveram realizações, logo, só existe ciência normal para as disciplinas já
estabelecidas e estruturadas com fatos marcantes para nortear seu trabalho.
Este tipo de ciência se baseia na crença de que a comunidade científica
conhece o mundo inserido em sua pesquisa, envolvendo disposição dos cientistas
para defender esta crença, independente dos custos [CITATION KHU98 \p 24 \t \l
16

1046 ]. Isto pode ser considerado a primeira quebra do senso comum, que possui a
tendência em colocar a comunidade científica como local de ausência de crenças.
A respeito dos focos deste tipo de conhecimento, existem três para a
investigação científica dentro do estágio da ciência normal. Primeiro, os fatos para
os quais o paradigma se mostra revelador da natureza, ou seja, determinação do
fato significativo. O segundo está nos fenômenos que são previstos de forma
acertada pela teoria do paradigma, ou seja, na harmonização dos fatos com a teoria.
E o terceiro está no trabalho empírico de articulação da teoria do paradigma,
resolvendo problemas residuais da mesma e tornando-a capaz de resolver outros
quebra-cabeças. A desvantagem desse último é que ele esgota as atividades de
coleta de fatos para esse paradigma [CITATION KHU98 \p 46-48 \t \l 1046 ].
O cientista aderente da “ciência normal” tem como compromisso compreender
o mundo e ampliar a precisão do conhecimento humano. A adesão a esse
compromisso o leva a pesquisar detalhadamente algum aspecto da natureza. Caso
esse processo o leve a algo que ainda não se conhece bem, o cientista deve buscar
a melhora de seus métodos para tornar conhecido isto que encontrou de diferente
[CITATION KHU98 \p 65 \l 1046 ].
Sobre a resolução de problemas neste contexto coloca-se que “resolver um
problema da pesquisa normal é alcançar o antecipado de uma nova maneira”, pois
já se tem a ideia de resultado antes da pesquisa ser efetuada, a ponto de ser isso
que o incita. O que se pratica neste tipo de ciência é a capacidade de resolver
“quebra-cabeças” (problemas que medem a engenhosidade ou capacidade de
resolução de problemas) [CITATION KHU98 \p 57-66 \t \l 1046 ].
Outro ponto importante para se entender é sobre qual não é o foco dos
cientistas, que é a aplicação da teoria paradigmática para a previsão de informações
do cotidiano. Tal questão é deixada para os engenheiros e técnicos. O objetivo
desse foco “é apresentar uma nova aplicação do paradigma ou aumentar a precisão
de uma aplicação já feita”. Este foco se faz necessário porque é o meio pelo qual
pontos de contato entre uma teoria e a natureza prática são estabelecidos
[CITATION KHU98 \p 51 \t \l 1046 ].
A ciência normal é a ensinada na academia, seja na escola para os
pequenos, até nas faculdades que lidam com a fronteira do conhecimento de
determinada área. Sobre isso são utilizados os manuais, que para o grande público
são os livros e artigos. Eles são o meio pelo qual se tenta estabelecer a ciência
17

como algo cumulativo, ocultando as revoluções necessárias para que a área de


conhecimento em questão alcançasse o patamar mais recente. Assim, somente
aqueles que viveram uma revolução científica se tornam capazes de entender o
percurso que se teve de percorrer até chegar ao ponto atual [CITATION KHU98 \p
175 \l 1046 ].
A ciência normal não tem a pretensão de resolver problemas, mas sim de
reafirmar as realizações passadas. A partir desta visão parece que é algo ruim ou
um demérito da ciência, porém, a ciência normal possibilita, através de sua rigidez, a
filtragem das novidades que realmente venham a mudá-la, deixando-a mais robusta
frente às variações impulsivas ou de menor grau de importância. Tal postura acaba
por preparar o caminho para a própria mudança, porém de forma mais saudável em
termos conceituais [CITATION KHU98 \p 91-92 \t \l 1046 ].

2.2 PARADIGMA CIENTÍFICO

O termo “paradigma científico” define “as realizações científicas


universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”
[CITATION KHU98 \p 13 \t \l 1046 ]. Assim sendo, é a partir delas que toda a
dinâmica da ciência se desenvolve. A relação da comunidade científica com o seu
paradigma é o que define a fase na qual está determinada área de conhecimento.
Antes de o paradigma existir, diz-se que a disciplina está na fase pré-
paradigmática, na qual se tem a disputa entre várias propostas de paradigma, porém
sem a predominância de nenhuma delas. Nesta fase não se pode dizer que a área
de conhecimento seja consolidada, já que “as coletas de fatos se aproximam muito
mais de uma atividade ao acaso do que daquelas que o desenvolvimento (...) da
ciência torna familiar” [CITATION KHU98 \p 35 \t \l 1046 ].
Após o paradigma se estabelecer, uma nova disciplina, ou área do
conhecimento, tem início. A partir disso, “uma comunidade científica, ao adquirir um,
paradigma, adquire igualmente um critério para a escolha de problemas que,
enquanto o paradigma for aceito, poderemos considerar como dotados de uma
solução possível” [CITATION KHU98 \p 60 \t \l 1046 ]. Pois uma vez encontrado um
primeiro paradigma com o qual se conceba a natureza, já não se pode mais falar em
18

pesquisa sem qualquer paradigma. Rejeitar um paradigma sem simultaneamente


substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência [CITATION KHU98 \p 111 \t \l
1046 ].
No curso da ciência normal sempre haverá aqueles fenômenos ou situações
para os quais o paradigma não consegue ser suficiente em suas respostas. Em
geral, isto é negligenciado pelos cientistas, pois o ato de abandono do paradigma
científico está ligado ao ato de deixar de praticar a ciência que o define [CITATION
KHU98 \p 55 \t \l 1046 ]. O que reforça a ação de que a ciência não é simplesmente
baseada em fatos, mas sim em um aspecto social, o que será aprofundado no tópico
de “revolução científica”.
Outro ponto importante sobre o paradigma científico é que mesmo na falta de
uma interpretação padronizada ou regras unânimes, ainda existirá um paradigma
orientando determinada área da ciência. Logo, a existência de paradigma não tem a
implicação na existência de qualquer conjunto de regras [CITATION KHU98 \p 60
\t \l 1046 ]. Isso significa que o paradigma científico não é o mesmo que regra, pois
para se balizar quais problemas serão resolvidos e os modelos de solução que
norteiam não implica em determinação de regras.
A partir desta é possível, na ciência, identificar o paradigma mesmo sem
haver acordo a respeito de sua interpretação ou racionalização, levando à uma
discordância de regras [CITATION KHU98 \p 68-69 \t \l 1046 ]. Pois mesmo os que,
trabalhando no mesmo campo de estudos ou em campos estreitamente
relacionados, começam seus estudos por livros e realizações científicas idênticos,
podem adquirir paradigmas muito diferentes no curso de sua especialização
profissional [CITATION KHU98 \p 75-76 \t \l 1046 ].
Exemplo disso se tem a partir da interpretação da dinâmica das ligações
químicas, sobre a qual se tem duas interpretações principais possíveis: a Teoria da
Ligação de Valência (TLV) e a Teoria do Orbital Molecular (TOM). Tais
interpretações visam explicar o mesmo fenômeno, porém com interpretações
diferentes, apesar de serem da mesma área: a química [CITATION BRO16 \p 375-
399 \t \l 1046 ]. Assim, se tem uma parte da química que explora cada interpretação,
com seus próprios quebra-cabeças para resolver, a partir de um mesmo paradigma,
relativo às ligações químicas.
19

2.3 ANOMALIAS E CRISES NA CIÊNCIA

A ciência normal não tem como objetivo a descoberta de novidades, isto é


uma anomalia para ela, porém acontece de tempos em tempos. Diante disso, é
necessário o ajuste da teoria do paradigma de forma a incluir a explicação de tal
descoberta, tornando, ao fim do processo, algo esperado. Enquanto o processo não
se completa, o novo fato não é considerado científico [CITATION KHU98 \p 77-78
\t \l 1046 ]. Assim, se pode estabelecer que a descoberta está ligada à percepção
da existência de uma anomalia, um fenômeno para o qual o paradigma não
preparou o investigador [CITATION KHU98 \p 83-84 \t \l 1046 ].
A descoberta tem como características: a consciência prévia da anomalia, a
emergência de um reconhecimento, tanto conceitual quanto observacional, e
mudança das categorias e procedimentos paradigmáticos, geralmente
acompanhada de resistência[CITATION KHU98 \p 89 \t \l 1046 ].
Quando a anomalia se torna mais do que um quebra-cabeça da ciência
normal inicia-se uma transição, seja para um período de crise ou de “ciência
extraordinária”. Este processo acontece por meio do reconhecimento e atenção cada
vez maior de tal anomalia por parte da comunidade científica. Em seguida, caso a
resolução para isso não seja alcançada, este será o objeto de estudo específico de
uma área da ciência, que não será mais a mesma de antes [CITATION KHU98 \p
113-114 \t \l 1046 ].
Em primeiro lugar é necessário pensar a respeito das condições necessárias
para a ocorrência de uma descoberta, ou anomalia. E a primeira dessas condições é
a necessidade de preparação anterior das categorias conceituais, a saber:
observação, conceituação e assimilação à teoria [CITATION KHU98 \p 81-82 \t \l
1046 ]. Para se alcançar isso é necessário o desenvolvimento da ciência normal
através das resoluções de seus quebra cabeças, pois a ciência que não possua
contraexemplos deixará de ser ciência e passará a ser instrumento para tarefas
técnicas [CITATION KHU98 \p 110 \t \l 1046 ].
Para fins de esclarecimento, os quebra-cabeças são desafios com respostas
previstas nas quais o cientista se debruça de forma que possa aprofundar, ou
confirmar, o paradigma existente. A sua simples existência está ligada a fatos e
20

fenômenos que ainda estão com necessidade de melhor explicação ou


entendimento [CITATION KHU98 \p 58 \t \l 1046 ].
Outra condição para a ocorrência de uma descoberta é um contexto
favorável. Isto se observa a partir do fato que os conceitos científicos só possuem
significado completo quando se é possível relacioná-los a partir de uma
apresentação sistemática a conceitos científicos, procedimentos de manipulação e
aplicações do paradigma anteriores [CITATION KHU98 \p 180 \t \l 1046 ]. Isto se dá
porque independente da consciência do fato, a decisão de empregar determinado
instrumento de modo específico mostra os pressupostos do investigador. Logo, para
se fazer entender um novo conceito será necessária sua ancoragem nos
paradigmas científicos correntes da comunidade [CITATION KHU98 \p 86 \l 1046 ].
Diante das condições satisfeitas e com a crise instaurada, como a
comunidade científica responde? A resposta está no fato de os cientistas não
tratarem as anomalias como contra exemplos de seus paradigmas e nem as
abandonarem. Para que um paradigma seja descartado é necessário a existência de
uma alternativa disponível [CITATION KHU98 \p 107-108 \t \l 1046 ].

2.4 REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

O entendimento da dinâmica científica a partir do pensamento de Thomas


Kuhn necessita da exposição de mais um conceito: o de “revolução científica”. Este
termo se trata de “episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um
paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível
com o anterior”. E a dinâmica desse processo consiste no confronto entre
paradigma vigente e sua crise, no qual os cientistas passam a tomar atitudes
diferentes em relação a este paradigma, transformando a natureza de suas
pesquisas [CITATION KHU98 \p 122 \t \l 1046 ].
Como sintomas desse processo, observa-se o surgimento de várias
articulações concorrentes, propondo tentativas das mais variadas, muito mais do
que seria o comum em tempos de pesquisa normal. Outro sintoma é o
descontentamento, que passa a ser algo explícito. Além disso, também se nota
maior utilização de recursos filosóficos e debate sobre os fundamentos da área de
conhecimento [CITATION KHU98 \p 125 \t \l 1046 ]. Seguindo com os sintomas,
21

uma revolução do conhecimento é algo localizado aos que lidam com isso. Os que
não são afetados diretamente pela mudança de tal área são incapazes de perceber
essa revolução, já que seus paradigmas não foram afetados [CITATION KHU98 \p
126 \t \l 1046 ].
Aprofundando o processo de revolução científica, este se dá pelo confronto
entre propostas de paradigma – do considerado novo contra a resistência do antigo
– e eventual escolha de um deles como o hegemônico. Ao contrário do que se
pensa pelo senso comum, a lógica não é o único fator determinante para essa
escolha. As técnicas argumentativas que se mostrem eficazes na comunidade que
faz a escolha são tão importantes e determinantes quanto a lógica, se não mais
[CITATION KHU98 \p 128 \t \l 1046 ].
O ato de mudar o paradigma necessariamente levará à necessidade de
mudança dos conceitos estabelecidos e familiares, levando a uma nova visão sobre
o assunto. Sobre isso Kuhn [CITATION KHU98 \p 137-138 \n \t \l 1046 ] coloca que:

Os paradigmas não diferem somente por sua substância, pois visam não
apenas à natureza, mas também à ciência que os produziu. Eles são fonte
de métodos, áreas problemáticas e padrões de solução aceitos por qualquer
comunidade científica amadurecida, em qualquer época que consideramos.
Consequentemente, a recepção de um novo paradigma requer com
frequência uma redefinição da ciência correspondente.

Assim, o duelo entre diferentes possibilidades de paradigma, devido às suas


diferentes formas de enxergar o mundo, será direcionado a estabelecer o debate
sobre quais são os problemas mais significativos para se ter resolução. Isto torna o
debate em uma disputa não apenas de conhecimento, mas também de valor
[CITATION KHU98 \p 144 \t \l 1046 ].
Como a ciência normal não tem a capacidade de corrigir o paradigma, mas
somente de expor suas anomalias e crises, estas terminam não por deliberação ou
interpretação, mas sim por um evento abrupto e não estruturado que se assemelha
a uma alteração visual, com casos de cientistas falando sobre o “cair de vendas dos
olhos” depois da ocorrência [CITATION KHU98 \p 158 \t \l 1046 ].
Logo após aceitar um novo paradigma, o cientista passa a ver os seus dados
de até então sob um novo olhar, como se visse um novo mundo. Mas, como não
mudaram nem os instrumentos nem o cientista, o que mudou foi a forma de
enxergar os dados. Logo, pode-se concluir que em vez de ser um intérprete, o
22

cientista que abraça um novo paradigma é como o homem que usa novas lentes
[CITATION KHU98 \p 156-157 \t \l 1046 ].
Um questionamento importante sobre o tema é: quem costumam ser os
primeiros a enxergar o mundo sob a perspectiva do novo paradigma? Como
resposta, em geral, os mais jovens e inexperientes, por não terem sido
contaminados o suficiente pela prática científica.
Outro ponto importante é: como se resolvem as disputas entre os paradigmas
antigos e novos? A disputa costuma ser resolvida por meio de verificações
probabilísticas, que são comparações com “todas as teorias imagináveis que se
adaptem ao mesmo conjunto de dados observados”, ou seja colocar um teste com
todas as possibilidades possíveis de paradigmas de forma a fechar a disputa, porém
isto não define completamente o vencedor.
A resolução de forma completa é possível somente através da mudança
súbita da forma de se ver o fato. E não costumam existir muitos cientistas que
executam essas mudanças em vida. O novo paradigma será adotado somente após
a renovação das gerações em um futuro de médio a longo prazo, pois como o
próprio Kuhn coloca: “a transferência de adesão de um paradigma a outro é uma
experiência de conversão que não pode ser forçada” [CITATION KHU98 \p 183-
191 \t \l 1046 ].
Isto se dá porque a conversão de paradigma não se dá através da prova, mas
sim da persuasão. E este processo terá como fatores importantes a história e
experiência de vida do cientista. O que nada tem a ver com o método científico
clássico. Assim, para um cientista aderir a um novo paradigma deverá ser
necessário o que o próprio Kuhn coloca como “fé”, que não precisa ser nem racional,
nem correta.
Apesar disso, a alegação que pode incluir aderentes ao novo paradigma,
normalmente novos aderentes da ciência, é mostrar que a mais recente forma de
observar o fenômeno consegue resolver problemas que colocavam o antigo
paradigma em crise.
Outra argumentação possível é o de “ser mais apropriado” ou “mais bonito”,
ou seja, argumento estético mesmo. Esta, em particular, se mostra muito eficiente
na pesquisa matemática. E todos esses fatores em conjunto, convertendo o maior
número de cientistas possível no menor tempo possível, torna o novo paradigma
algo mais expressivo. E, depois deste paradigma ser o novo padrão para quase a
23

totalidade dos cientistas, aqueles que resistirem já não podem mais serem
chamados de cientistas, pois o que os guia agora é puramente a fé.
Caso um paradigma fosse julgado sempre apenas por pessoas práticas, que
examinem somente sua capacidade de resolução de problemas, as ciências teriam
poucas revoluções com alguma importância. Logo, o foco da discussão
argumentativa não são os problemas a serem resolvidos, mas sim “saber que
paradigma deverá orientar no futuro as pesquisas sobre problemas” [CITATION
KHU98 \p 192-200 \t \l 1046 ].
Como resultado de todo o processo se tem a produção de novos manuais e
adaptação das academias de formação, de modo a ensinar o novo paradigma desde
o início da caminhada formativa dos novos cientistas. Uma característica importante
deste novo momento é o retorno ao estado de ciência normal. Pois os manuais
como veículos pedagógicos estabelecem a ciência como cumulativa, ocultando as
revoluções necessárias para que a área de conhecimento em questão alcançasse o
atual patamar [CITATION KHU98 \p 175 \t \l 1046 ].
Boa parte da imagem que a sociedade tem da atividade científica vem de uma
fonte autoritária que disfarça de modo sistêmico a existência e significado das
revoluções científicas. Estas fontes são responsáveis pelos materiais de formação
dos novos cientistas, direcionando a comunidade a determinado corpo de
problemas, dados e teorias já articulados, sempre confirmando o paradigma aceito
da vez [CITATION KHU98 \p 174 \t \l 1046 ].
24

3 A DINÂMICA DA FÉ A PARTIR DO PENSAMENTO DE PAUL TILLICH

Após a exposição sobre a dinâmica da ciência a partir dos pensamentos de


Thomas Kuhn, para que se proceda com uma comparação embasada, é necessário
expor sobre a dinâmica da fé a partir do pensamento de Paul Tillich. Esta se faz
definindo e caracterizando, em primeiro lugar, o que é teologia segundo tal visão. A
seguir, se faz uma análise sobre a fé na visão do pensador, sua definição,
características e classificações para ajudar a entender onde esta se encaixa e,
também, no que ele não se encaixa.

3.1 DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DA TEOLOGIA

Para Paul Tillich, teologia se trata de um objeto de análise da interpretação


humana sobre um assunto em determinado tempo [CITATION TIL05 \p 23 \t \l
1046 ]. Assim, não se trata de pregação, nem aconselhamento, mas de entender a
partir da análise o pensamento humano sobre determinado assunto. Diante disso, se
inclui à definição de teologia a análise da interpretação sobre a fé e a ciência.
Apesar de não ser pregação ou aconselhamento, a teologia ainda deve servir
às necessidades da igreja cristã. Sendo estas duas: a afirmação da verdade cristã e
a interpretação dessa verdade para cada nova geração. Diante disso, ela oscila
entre dois polos: a verdade eterna de seu fundamento e a situação temporal na qual
essa verdade eterna deve ser recebida [CITATION TIL05 \p 21-22 \t \l 1046 ].
Segundo Tillich [CITATION TIL05 \p 22-24 \n \t \l 1046 ], existem dois tipos
de teologia: a apologética e a “querigmática”. A teologia apologética é uma “teologia
que responde” às perguntas implícitas na “situação” com o poder da mensagem
eterna e os meios oferecidos pela situação das próprias perguntas. Para tal,
pressupõe-se uma base comum, por mais imprecisa que seja, porém necessita
também da proclamação como base e critério de suas afirmações.
Já a teologia “querigmática” é aquela que enfatiza a verdade imutável em
detrimento às exigências da situação presente. Logo, este tipo de teologia tenta
impor um conceito temporal como imutável, o que a incapacita de cumprir sua
25

missão[CITATION TIL05 \p 24 \t \l 1046 ]. Como exemplo de teologia querigmática


se tem a dos fundamentos, a partir do pacto de Lausanne e, também, a teologia
reformada.
A teologia, qualquer que ela seja, possui como critérios formais o seu objeto e
a sua preocupação última. Apesar de não ser base de um sistema dedutivo, estes
são os guardiões metodológicos da divisão da teologia. Sobre isso Tillich [CITATION
TIL05 \p 30 \n \t \l 1046 ] expõe que:

O objeto da teologia é aquilo que nos preocupa de forma última. Só são


teológicas aquelas proposições que tratam de seu objeto na medida em que
ele pode se tomar questão de preocupação última para nós.

Já a preocupação última está definida como aquilo que determina o ser ou


não-ser de alguém, seria a preocupação religiosa. Esta põe todas as outras em
segundo plano e tem característica incondicional, independendo de caráter, desejo
ou circunstância. Além disso, ela é total, logo, nenhum aspecto do ser está livre dela,
não havendo como fugir ou esconder [CITATION TIL05 \p 29 \t \l 1046 ]. Pode
parecer confuso a distinção entre os critérios, porém, em resumo, se pode
estabelecer que o objeto da teologia é aquilo que traz à pessoa o outro critério da
teologia, que é a preocupação última.
Após o estabelecimento dos critérios formais da teologia, se faz necessário
saber o que seria o teólogo? Para Tillich, alguém só pode ser teólogo na medida em
que reconhecer o conteúdo do círculo teológico como seu objeto teológico. A saber,
o círculo teológico constitui o ambiente da fé e orienta sobre a preocupação última
[CITATION TIL05 \p 31 \t \l 1046 ].
E, a partir da visão dos teólogos, religião é algo que se recebe a partir de algo
externo, neste caso Deus, e não é possível que se parta do homem, sendo sempre
iniciativa divina. Assim este não pode ser criação do espírito humano, mas dom do
Espírito de Deus. Isto limita a criatividade humana a si mesmo e ao mundo,
excluindo a criatividade em direção ao divino. Isto é colocado como a “doutrina
clássica da vontade” [CITATION TIL09 \p 40 \t \l 1046 ].
O que difere da definição de religião a partir das ciências humanas, para os
quais a religião está ligada a um estágio do desenvolvimento humano, o mitológico,
não tendo lugar na atual conjuntura científica da humanidade. Assim, acentuando a
diversidade de ideias e práticas religiosas, estabelecem a religião como criação
26

humana transitória, não fazendo parte de algo essencial à humanidade [CITATION


TIL09 \p 40 \l 1046 ].
O curioso é observar que tanto os teólogos quanto os cientistas críticos da
religião a definem como relação humana com seres divinos. A diferença está na
opinião acerca da existência desses seres, negada pelos cientistas e afirmada pelos
teólogos.
O procedimento de defesa da existência de Deus como algo possível de se
provar, expõe os teólogos à contradição, já que a ideia de Deus é aquele
inalcançável e acima de tudo, também deve estar acima das racionalizações
humanas. Assim, deve-se tomar as críticas dos cientistas ateus como um
“inestimável serviço”, que direciona a humanidade a “reconsiderar e a reformular o
significado tremendo da palavra Deus” [CITATION TIL09 \p 41 \t \l 1046 ].
É importante esclarecer o que o pensador estabelece a respeito da relação
entre razão e teologia. Em primeiro lugar, existem dois tipos de razão: o ontológico,
que pode ser definida como a estrutura da mente que a capacita a compreender e
configurar a realidade, e o técnico, que se preocupa com os meios de montagem da
estrutura mental. A Ciência se encaixa na razão técnica, apesar de apresentar
pressupostos ontológicos para sua prática [CITATION TIL05 \p 86-89 \t \l 1046 ].
É importante deixar claro que, para Tillich, a epistemologia, o “conhecimento”
do conhecer, é uma parte da ontologia, a ciência do ser, pois o conhecer é um
evento dentro da totalidade dos eventos. Toda afirmação epistemológica é
implicitamente ontológica [CITATION TIL05 \p 85 \t \l 1046 ].
Partindo deste raciocínio, o pensador estabelece a incapacidade da razão em
alcançar a causa primeira, ou o que é eterno. Pois é incapaz de romper os limites da
temporalidade, da causalidade, do espaço, ou da substância. Assim, a razão, e nela
se inclui a ciência, é incapaz de responder a todas as perguntas sobre todas as
coisas, pois está sujeita às condições da existência, o que a limita como algo finito,
incapaz de alcançar o infinito [CITATION TIL05 \p 95-96 \l 1046 ].

3.2 CARACTERÍSTICAS DA FÉ

Após a delimitação do pensamento de Tillich a respeito da teologia,


prossegue-se com a caracterização da fé segundo o pensador. Para iniciar este
27

processo é necessário expor a definição sobre o termo: “Fé é estar possuído por
aquilo que nos toca incondicionalmente”, exigindo sujeição incondicional e
dedicação total à promessa de realização suprema, já que a “preocupação suprema
de uma pessoa não se esgota na simples exigência de sujeição incondicional; ela
contém igualmente promessa de realização suprema, que é esperada num ato de fé”
[CITATION PAU85 \p 5-6 \t \l 1046 ].
A fonte dessa fé está no fato de o homem ser consciente da infinitude que faz
parte sem poder tomar posse disso como propriedade, e possui como fundamento o
elemento incondicional, que possui validade última [CITATION PAU85 \p 11 \t \l
1046 ].
Outra característica da fé é sua relação com a certeza, na qual não existe o
problema teórico de certeza maior ou menor, do provável ou improvável. A fé lida
com um problema existencial: em torno da questão de ser ou não-ser. Ela se
encontra numa outra dimensão que todo parecer teórico. Fé não é dar crédito, nem
um conhecimento de menor probabilidade. Certeza da fé não é a certeza
condicionada de um juízo teórico [CITATION PAU85 \p 27 \t \l 1046 ].
“A fé é certeza na medida em que ela se baseia na experiência do sagrado”.
Porém, ao mesmo tempo, existe muita incerteza neste processo, já que está lidando
com o infinito a partir da finitude. Esta insegurança não pode ser anulada, mas sim
aceita [CITATION PAU85 \p 15 \t \l 1046 ].
Para entender melhor a relação da insegurança com a fé, é necessário
lembrar da definição dada por Tillich, pois se entender a fé como crença em algo,
serão irreconciliáveis dúvida e fé. Mas ao tomar a definição de fé como “aquilo que
toca alguém incondicionalmente”, essa dúvida se torna um elemento necessário à
fé, encerrada em seu risco.
Esta dúvida não está ligada a fatos ou consequências lógicas, não estando,
assim, ligada à questão científica, pois ela não está fundamentada na veracidade ou
não de uma tese, mas sim no conhecimento da incerteza ligada a toda verdade
existencial [CITATION PAU85 \p 16-18 \t \l 1046 ].
Diante disso, vale lembrar que a fé não é algo irracional, pois não é algo que
venha deste tipo de força, nem do inconsciente. Ela é algo que transcende tanto os
elementos racionais, quanto os irracionais da vivência humana. Mas apesar de
transcendê-los, não os destrói. Pois a fé não exclui a razão, mesmo em seu caráter
de exaltação, nem exclui os elementos não racionais. A fé possui ambos os
28

elementos sem se resumir aos mesmos, mostrando o seu caráter transcendente


[CITATION PAU85 \p 9 \t \l 1046 ].
Nisso a razão se mostra como uma condição necessária para a fé, e esta
torna a razão em ato de transcendência, com êxtase, para além do que alguém seria
capaz por si mesmo. O êxtase, assim, é razão que acontece, e não que se desfaz.
Para que a razão aconteça é necessário ser levada para além dos limites da finitude
e experimentar a presença do sagrado. Se isso não acontecer, a razão se perderá
em si mesma. Logo, não há contradição entre as duas [CITATION PAU85 \p 51 \t \l
1046 ].
A fé se relaciona com o sentimental, incluindo-a em sua manifestação. Porém,
o sentimento por si só é incapaz de produzir fé, pois sem conhecimento algum a fé
não subsiste. Em contrapartida, apenas com conhecimento é impossível produzir fé,
pois esta inclui uma decisão da vontade, sendo assim a unidade desses elementos
numa pessoa [CITATION PAU85 \p 10 \t \l 1046 ].

3.3 CLASSIFICAÇÕES DE FÉ

Prosseguindo com a reflexão de Tillich sobre a fé, é importante mostrar como


ela é classificada. Para isso, é necessário mostrar quais são os critérios de
avaliação da verdade da fé. Já que sem capacidade de avaliação, a probabilidade
de se estabelecer algo que conduza a uma fé indigna, ou como diz Tillich, idólatra, é
alta.
Os critérios são encontrados ao explorar a definição de fé: “estar possuído por
aquilo que o toca incondicionalmente”. A partir daí é possível avaliar que ela é
“verdadeira” se exprime adequadamente a sua preocupação incondicional. Outro
critério possível para avaliação da fé como “verdadeira” está na análise do objeto de
fé, se ela é incondicional ou não [CITATION PAU85 \p 63 \t \l 1046 ].
Para executar tal análise, existem dois elementos a serem examinados para
se distinguir qual é o tipo de fé. Primeiro é como o sagrado está presente e é
experimentado, chama-se “santidade do ser” ou de “ontológica”. Já o segundo se
trata das demandas que se tem a partir da fé para o indivíduo, chamado de
“santidade do dever” ou de “ética”. É importante lembrar que toda fé possui todos
esses elementos combinados, porém a classificação se faz possível através da
29

observação de predominâncias de algum aspecto [CITATION PAU85 \p 40 \t \l 1046


].
A fé moral, ou da ética, se estabelece a partir de cumprimento de leis e
normas, sem tal cumprimento é impossível alcançar o “último e incondicional”.
Existem três classificações possíveis a este tipo de fé: jurídica, convencional e ética
[CITATION PAU85 \p 45 \t \l 1046 ]. O tipo moral de fé é o foco dos profetas do
Antigo Testamento em oposição à fé puramente sacramental feita de modo acrítica,
influenciando também o Cristianismo e até mesmo o movimento humanista e as
revoluções dos séculos XIX e XX. Pois ao contrário do que dizem os religiosos, o
mundo ocidental não perdeu a sua fé, ele a secularizou. Já que a preocupação
incondicional e entrega total à causa continuam [CITATION PAU85 \p 47-48 \t \l
1046 ].
Como tipos de fé ontológicas se tem alguns exemplos. O primeiro deles é a
sacramental, “que atribui a uma porção concreta da realidade o caráter de portadora
do sagrado”. Apesar de não existir um critério totalmente objetivo para julgar o valor
da fé fora dela, é possível afirmar que este tipo de fé se direciona a algo que não é
incondicional, pois o objeto tido como sacro pode no máximo indicar o incondicional
que é tocado pela fé [CITATION PAU85 \p 42 \t \l 1046 ].
Outro tipo de fé é a mística, que se trata da tentativa extrema de superar a
sacramental, por reconhecerem a incapacidade de expressar o eterno a partir do
finito. Este tipo de fé não é irracional, pois muitos dos maiores pensadores da
filosofia da Ásia e Europa pertencem a este grupo. Eles acreditam que o infinito se
encontra nas profundezas da pessoa, sua alma. O pensador ainda estabelece que:
“a mística é um tipo de fé, e não o contrário dela; e em todo tipo de fé há um
elemento místico bem como um sacramental” [CITATION PAU85 \p 42-43 \t \l
1046 ].
Outro tipo de fé ontológica é a humanista. Ela está de acordo com os
princípios do humanismo, tal qual a não existência literal de seres divinos, mas em
sua manifestação através do que é humano. Por isso os meios religiosos a têm
como falta de fé, pois negam romper os limites humanos para o sagrado. Porém, a
partir da definição dada nesta seção, pode-se colocar tal entendimento como fé.
Outro ponto importante é que, para Tillich, humanismo é entendido como a
“orientação que faz do que é verdadeiramente humano o critério e alvo da vida do
espírito, isso na arte e na filosofia, na ciência e política, nas relações sociais e na
30

ética pessoal”. Sobre esse tipo de fé é possível observar semelhanças com as


apresentadas anteriormente, pois como a sacramental, colocam em algo finito o
infinito e, como a mística, este infinito é posto nas profundezas da alma humana.
A fé humanística possui muitas formas, tal como a “romântico-conservadora”,
que associa o sagrado ao que já está dado (assemelhando à fé sacramental), mas
também pode ser atribuído àquela pessoa que se diz “sem fé” por não fazer parte de
nenhuma religião institucionalizada, mas que ao ser perguntada sobre a existência
de algo que as toque de forma incondicional, ou que “levem incondicionalmente a
sério”, respondem de maneira a preencher tais espaços com algo, colocando assim
conteúdo e mostrando a existência da fé desta pessoa [CITATION PAU85 \p 44 \t \l
1046 ].
O cientificismo em sua forma mais extremada pode ser classificado como fé
humanista do tipo progressista-utópico, pois ela se firma na tradição dada (o
paradigma científico) para criticar tanto a si como o mundo em volta e conseguir
transcender a situação presente. O que, para os adeptos deste tipo de fé, está na
inovação que a ciência proporciona. Ou seja, pode-se dizer que, mesmo se dizendo
“não possuir uma fé”, por a ciência ocupar o lugar de preocupação última, ela é o
objeto de fé [CITATION PAU85 \p 48 \t \l 1046 ].
Sobre a relação entre fé e ciência, Tillich [CITATION PAU85 \p 54-56 \n \t \l
1046 ] expõe que a utilização de argumentos científicos para a defesa da fé se
constitui em erro conceitual por tentar afirmar uma verdade a partir de argumentos
não pertencentes a ela. Por outro lado, quando teólogos, no intento de defender a
verdade da fé contra a verdade da ciência, chamam a atenção para o caráter
provisório de toda afirmação científica e, alegam com isso, ter provido um refúgio
seguro para a verdade da fé. Assim, procedem de forma indigna e não obterão
frutos, porque as verdades científicas e da fé pertencem a dimensões diferentes.
Logo, um não pode se intrometer nos interesses do outro e, ao executarem tais
tensões, sinalizam simplesmente que se esqueceram da própria dimensão.
Por isso se torna necessária a crítica tanto ao religioso que luta contra a
ciência, quanto ao cientificista extremo que, acreditando expô-la como a verdade,
apenas apresenta a sua fé. Pois apenas ciência entra em conflito com ciência e
apenas fé entra em conflito com fé[CITATION PAU85 \p 56 \t \l 1046 ].
Em sua busca pelo incondicional, apesar de sua finitude, o ser humano busca
algo impossível. Assim, se produz uma tensão da qual surge o problema entre fé e
31

tolerância. A tolerância extrema se reduz em relativismo vazio, pois se perde o que é


incondicional. Por outro lado, ao não conjugar uma tolerância consciente da
condicionalidade de toda a fé, fundamentada na certeza do incondicional, produz-se
um despotismo intolerante [CITATION PAU85 \p 40 \t \l 1046 ].
Assim, pode-se inferir que a tensão entre fé e tolerância deve ser admitida,
porém sem a possibilidade de abraçar nenhum dos extremos, sob risco de perder a
sua substância. Como exemplo disso, tem-se a fé protestante, que para Tillich, “é a
que mais possui coragem em aceitar a própria relatividade, por isso a tensão entre
fé incondicional e condicionalidade da vida concreta da fé. Pois a dinâmica da fé se
manifesta de forma mais evidente” [CITATION PAU85 \p 41 \t \l 1046 ].
A religião dá a experiência do sagrado, do intangível, do significado total e da
fonte de coragem suprema, sendo esta a sua glória. O problema é que nesse
processo também aparece sua vergonha, que consiste em se colocar como algo
absoluto, fazendo de seus mitos e doutrinas dimensões indiscutíveis e, por fim,
perseguem aos que não se submetem. Por essa postura de intolerância, o mundo
secular reage de forma apaixonada contra a religião, mas o problema é: os dois se
encontram no mesmo barco. Logo, quando o mundo secular executa tal reação, são
trazidos para si trágicas consequências [CITATION TIL09 \p 45-46 \t \l 1046 ].
Ainda sobre a fé protestante, para ela, comunicar o Evangelho está
necessariamente envolvido em capacitar uma pessoa a aceitá-lo ou rejeitá-lo de
forma definitiva. Logo, se a pessoa diz que aceitou tal Evangelho, mas esta
aceitação foi por hábito, costume ou contato social, esta se torna questionável. Pois
existe um fator que necessita ser envolvido no processo de aceitação: o lidar com a
dúvida, que foi abordada anteriormente [CITATION Pau20 \p 15-16 \t \l 1046 ].

3.4 DISTINÇÃO DO QUE NÃO É FÉ

É necessário dedicar uma seção para esclarecer do que não se trata fé, pois
é muito comum confundir algo distinto como se fosse a própria. Sobre isso, Tillich
[CITATION PAU85 \p 24 \n \t \l 1046 ] coloca que as interpretações errôneas sobre
a fé são baseadas em se tomar apenas uma das funções humanas como a
totalidade da mesma [CITATION PAU85 \p 24 \t \l 1046 ]. Esta seção será dedicada
a mostrar alguns exemplos práticos desse tipo de equívoco.
32

Uma distorção frequente é a utilização do termo “fé” como confiança numa


autoridade, cuja suas afirmações sejam dignas de crédito. Se esta for a definição de
fé, então todo o conhecimento humano será baseado na fé. Mas como ela
transcende a razão, é possível entender sua incoerência. Com base nisto, se tem
que a fé “é mais do que confiança, apesar disso ser um elemento da fé” [CITATION
PAU85 \p 25 \t \l 1046 ].
Outro equívoco é colocar a fé como somente o seu aspecto sentimental. Já
que ela consiste em estar inteiramente possuído por aquilo que o toca
incondicionalmente, não é possível renegá-la a algo simplesmente sentimental.
Aqueles que tentam colocar a fé desta forma costumam mostrar em sua defesa
preocupações últimas, o que caracterizam suas argumentações como defesa de
uma fé. Apesar de ela possuir caráter sentimental, não pode ser restrita a somente
isso, nem pode ser confundida como sendo a sua fonte [CITATION PAU85 \p 30 \t \l
1046 ].
Mais um equívoco é confundir fé com um ato puramente da vontade. Porém,
o homem é incapaz de criar fé de forma voluntária, posto que não é possível algo
finito criar sua possessão pelo infinito. Isso pode ser dito pois nem razão, nem
vontade ou autoridade são capazes de criar fé [CITATION PAU85 \p 29 \t \l 1046 ].
Sobre os equívocos a respeito do assunto, um recorrente é o que cria o
confronto dela com a ciência. Os confrontos entre fé e ciência estão centrados tanto
na concepção de que fé é um saber com baixo grau de certeza, mas com garantia
centrada na autoridade, quanto na tentativa de utilizar de afirmações “puramente
científicas” para defesa da fé. Quando isso acontecer, o confronto é entre diferentes
formas de fé [CITATION PAU85 \p 26 \t \l 1046 ].
Um dos piores erros que a teologia e a concepção corrente de religião podem
cometer, consiste em externar, propositada ou involuntariamente, ideias que
contradizem a própria estrutura do pensamento. Tais afirmações e a atitude que lhes
dá origem não são fé; elas provêm da confusão de colocar o ato de crer e acreditar
como a totalidade da fé [CITATION PAU85 \p 26 \t \l 1046 ].
É possível estabelecer isso porque a dinâmica da fé vive de experiências
numinosas, procurando manter a profundidade divina da existência através da
comunhão. Para tal, é obrigada a expressá-la a partir de símbolos, pois o numinoso,
ou a realidade de Deus, é inacessível a qualquer conceito objetivo. Assim sendo,
como a Ciência se propõe a ser um conceito objetivo, se faz incapaz de acessar a
33

realidade da fé [CITATION TIL09 \p 181 \t \l 1046 ]. Isto cria uma fé idólatra, em


contraste à definição de Tillich, elevando elementos passageiros e finitos à categoria
de infinito. Esta adulteração leva à "frustração existencial", que abala os
fundamentos da existência humana [CITATION PAU85 \p 12 \t \l 1046 ].
Logo, ao se tomar para si qualquer tipo de preocupação última, objeto da fé,
que não seja incondicional, se produz uma fé idólatra. Como exemplo disso, se tem
o colocar a ciência como tal objeto. Já que os símbolos e mitos da fé não podem ser
substituídos, pois fazem parte do que toca a pessoa de forma incondicional, outros
tipos de símbolos, sejam eles artísticos ou científicos, não possuem tal alcance
[CITATION PAU85 \p 38 \t \l 1046 ].

4 POSSÍVEIS PONTOS DE CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA ENTRE


CIÊNCIA E FÉ

A partir deste ponto, após exposição dos pensamentos dos autores sobre as
dinâmicas da ciência e da fé, serão colocados os possíveis pontos de aproximação e
necessários pontos de afastamento entre as dinâmicas, a partir do entendimento do
autor deste documento sobre o que foi exposto anteriormente.

4.1 PONTOS DE CONVERGÊNCIA

Sobre os pontos de convergência, o primeiro que é possível observar é a


proximidade entre o estabelecimento de teologias sistemáticas e paradigmas
científicos. Pois para um problema se enquadrar como “quebra-cabeça” não bastam
as condições objetivas, mas também devem obedecer a regras limitadoras de
possíveis soluções e dos seus passos. O mesmo acontece ao se estabelecer um
dogma religioso, não se limita apenas a resolução do problema como também da
metodologia e princípio adotado no processo.
Outra semelhança é que, ao se abandonar o paradigma de sua área, o
cientista está deixando aquela ciência, algo muito semelhante ao praticante da fé
que, ao abandonar o dogma, se pode dizer que não pertence mais à determinada
linha de fé.
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Continuando nas possíveis semelhanças, assim como a ciência pode ter um


paradigma científico sem ter total acordo a respeito da interpretação ou
racionalização dele, é possível a partir de um mesmo evento fundante de uma
religião, se estabelecer diferentes formas de crença, nas quais não se tem total
acordo. É possível exemplificar isso com as denominações do cristianismo
protestante, ou até mesmo com a Igreja Católica Apostólica Romana e as igrejas
históricas de tradição reformada, como a luterana.
Ainda sobre doutrinas e dogmas como analogia ao paradigma científico,
assim como, para uma descoberta científica acontecer é necessária a preparação
anterior das categorias conceituais como observação, conceituações e assimilação
da teoria, a proposição e aceitação de uma nova doutrina ou dogma também está
ligada a estas mesmas preparações. Vide o próprio estabelecimento da Igreja
Batista histórica que se fez a partir da visão de que:

A religião do homem está entre Deus e ele: o rei não tem que responder por
ela e nem pode o rei ser juiz entre Deus e o homem. Que haja, pois,
heréticos, turcos ou judeus, ou outros mais, não cabe ao poder terreno puni-
los de maneira nenhuma. [CITATION SHU20 \l 1046 ].

Esta é uma tradução de parte do livro “Uma breve declaração do mistério da


iniquidade” de Thomas Helwys encontrada no site da Convenção Batista Brasileira
informando a respeito da história da Igreja Batista. Essa declaração foi publicada em
1612, antes da Revolução Francesa. Ela foi tão chocante à época, que Thomas foi
preso, vindo a falecer quatro anos depois. O mundo ainda não estava pronto para o
que ele tinha a dizer. Porém, pode-se dizer que, nos estados laicos, esta é norma
social atualmente.
Ainda sobre a descoberta na ciência, esta é ligada à percepção de uma
anomalia no paradigma científico, semelhantemente, o processo de ressignificação
ocorre no meio de fé, pois isto começa a acontecer diante da percepção de eventos
para os quais a comunidade não está preparada para dar respostas somente com os
dogmas vigentes.
Estes dogmas pressupõem uma linguagem própria, assim como determinado
paradigma científico, sendo possível identificar não somente a disciplina do
conhecimento ao qual o cientista está inserido, como também o meio de fé do
religioso.
35

“Como podem teorias inovadoras brotarem da Ciência normal, se esta não


tem por objetivo a inovação?” Esta pergunta é similar a: como podem inovações
sociais serem consequência de uma religião institucionalizada de caráter cultural
conservador? Ambas possuem respostas parecidas.
Para começar, “o fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca
de novas regras”. Outro ponto de convergência é que antes de uma nova teoria (ou
doutrina) emergir, surge uma proliferação de teorias tentando adaptar os fatos às
regras antigas, pois os problemas para os quais se tem o fracasso da explicação até
então são antigos conhecidos dos investigadores. E, por último, as soluções
antecipadas das crises, feitas por aqueles que se debruçaram nelas antes das
mesmas, são ignoradas pela comunidade por não acharem necessária a utilização
desse raciocínio. Assim, independente da área observada, “o significado das crises
consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar
os instrumentos”, sejam eles de cunho religioso ou científico.
Assim como a ciência normal, a comunidade de fé possibilita, em sua rigidez
dogmática, a filtragem das novidades para que somente as que venham a ser
realmente relevantes emerjam como novas linhas doutrinárias, ou até dogmáticas.
Diante disso, outra pergunta que ambas as áreas respondem de forma
análoga é “como responder às crises?” Pois assim como o cientista, que não trata a
anomalia como contraexemplo de seu paradigma e nem as abandona, o teólogo não
trata como contradição à sua fé mesmo os fatos mais difíceis de se lidar a partir da
mesma. Pois o paradigma científico, para o cientista, e o dogma, para o teólogo,
norteiam suas visões de mundo, sendo impossível abandoná-los sem modificar a si
próprios.
Sobre o reconhecimento de uma crise, enquanto na ciência isto se dá a partir
da observação e atenção cada vez maior da anomalia por parte da comunidade
científica, pode-se estabelecer que o mesmo acontece numa comunidade religiosa,
já que é possível relacionar este processo com as interações entre cultura e fé.
Quando surge uma abordagem social para as quais as determinadas respostas da
fé de até então se tornam insuficientes, inicia-se uma crise no meio teológico,
recebendo cada vez mais atenção e reconhecimento da comunidade estudiosa da
fé.
A diferença neste caso está no movimento de resistência que se tem.
Enquanto a ciência gera uma nova disciplina de estudo no processo de crise, o meio
36

de fé pode até gerar uma nova vertente religiosa, mas é provável que a antiga não
só se se mantenha, mas também continue dominante – o que na ciência é mais
improvável.
Outro ponto de convergência entre a dinâmica científica e de fé é a
conversão. Pois esta se dá no meio científico de forma parecida com a de fé,
chegando a ser utilizada tal palavra pelo próprio Kuhn ao comentar sobre o assunto.
Isto acontece porque a conversão se dá, principalmente, a partir da persuasão, que
é algo subjetivo, ao invés de ser a partir simplesmente de provas objetivas. Sendo
possível que um cientista seja convertido a um novo paradigma científico, mesmo
ele sendo incorreta e menos racional que a anterior. Evidentemente esta também é
a dinâmica da conversão de fé.
O processo de substituição do paradigma científico de uma comunidade
científica e das doutrinas de uma comunidade de fé tem características similares.
Assim como exposto a respeito da ciência, a fé também costuma ter em seus jovens
e inexperientes os primeiros a enxergar o mundo sob a nova perspectiva da doutrina
diferente. E isto se dá pelo mesmo motivo, por não terem sido “contaminados” o
suficiente pela prática doutrinária da comunidade.
É possível comentar a respeito do mesmo assunto sobre a necessidade de os
costumes e doutrinas de até então fracassarem de forma evidente em resolver os
problemas levantados na comunidade, gerando a crise e dando chance de se
levantarem novas visões, novas doutrinas.
Assim como no meio científico, a resolução do impasse se dá a partir da
busca por qual é capaz de responder melhor aos anseios levantados pelas crises,
mas devido aos movimentos de resistência, a nova doutrina, ou se estabelece como
nova linha de fé, ou substitui a antiga, através da renovação das gerações. Pois,
tanto a mudança de paradigma, quanto de doutrina envolvem mudança súbita de
visão de mundo.
Esta súbita mudança de visão de mundo, não só para o cientista, mas
também para o teólogo, faz com que seja possível enxergar novas vertentes onde
antes era impossível, apesar de nada ter mudado, além do prisma pelo qual se
entende a fé e a revelação do Eterno, redefinindo assim, toda a religião, como
exemplo, se pode observar o fenômeno da Reforma Protestante. Pois apesar de o
Protestantismo também ser Cristianismo, como o Catolicismo do qual teve origem,
37

tem dogmas e dinâmicas completamente diferentes devido à mudança nos dogmas,


análogo à mudança do paradigma na ciência.
Mais uma fonte de aproximação entre as dinâmicas científicas e de fé é a
produção dos materiais de iniciação aos novos aderentes. Enquanto na ciência se
tem produção de livros e manuais que deixam de lado as tensões que geraram o
desenvolvimento do paradigma, o mesmo problema se tem ao se colocar, por
exemplo, a Bíblia como ditado divino sem levar em conta as tensões dos concílios,
como o de Niceia, ou da Reforma Protestante, por exemplo. Isto se dá como uma
tentativa de preservar a fé, porém acaba por simplesmente gerar pessoas que não
entendem o porquê da sua fé ser algo tão caro.
Pela natureza e importância do processo, assim como a comunidade
científica, a de fé também suscitará o debate, diante das várias possibilidades de
doutrinas, sobre qual é o problema prioritário para se alcançar solução e quais
desses problemas são secundários. Ou seja, como na ciência, apesar de existir a
dinâmica de conhecimento, o fiel da balança será a disputa de valor. Assim, se
tornará uma questão de avaliar para qual problema se é mais valioso possuir uma
solução. Por exemplo, a cristologia adotada pela comunidade mostrará quais são os
problemas de maior valor e que possuem prioridade para sua resolução.
A última semelhança comentada por aqui é a de que tal processo de
“revolução”, seja científica ou religiosa, é perceptível somente aos que possuem
seus paradigmas, ou dogmas, afetados. Pois para aquele que não faz parte do meio
religioso cristão, não interfere em nada se estabelecer a Bíblia como “suficiente” ou
não para princípios de vida. Afinal de contas, ele já não tem mesmo. O mudar neste
meio religioso não o afeta. É capaz de até a pessoa nem saber o que aconteceu no
meio de fé.

4.2 PONTOS DE DIVERGÊNCIA

A respeito dos distanciamentos necessários ao se pensar sobre as dinâmicas


científicas e de fé, é necessário estabelecer o que deve ficar para cada um. Pois
como já exposto no raciocínio de Tillich, como a ciência busca tratar de coisas a
partir de um olhar objetivo, e este olhar é finito, se torna impossível para ela alcançar
a transcendência da fé. Porém isso não faz dela menor, pois sem este esforço
38

humano, se é impossível compreender de forma plena, inclusive a distinção entre o


que é pertencente ao infinito e o que é ligado a finitude do mundo natural.
A partir disso é necessário citar o que Tillich, em “Teologia da cultura”
[CITATION TIL09 \p 179-180 \n \t \l 1046 ], comenta sobre o assunto. Para o
pensador, a teologia deve deixar para a ciência a descrição dos objetos e sua
relação com a natureza e história, tanto com os seres humanos quanto com o
mundo em si. Porém se deve exigir dos críticos da Teologia que a tratem com
justiça, isto é, que ataquem as formas mais desenvolvidas da disciplina ao invés das
obsoletas. Isso é equivalente a criticar a medicina como se ela fosse igual à da idade
medieval atualmente.
Deve-se lembrar mais uma vez, que a teologia mais desenvolvida não se
perturba com os ataques que a razão técnica, neste caso a ciência, faz à fé cristã,
pois eles só são capazes de destruir superstições, sem capacidade de tocar a fé
real. A partir disso, “a Teologia deveria ser grata pela função crítica exercida pela
razão técnica, porque ela mostra que não existe “algo” como um Deus dentro do
contexto das relações meio/fins”. Logo, se pode concluir que não faz sentido a
dicotomia fé versus ciência. Isto mostra que aqueles que tem sua fé abalada pelas
críticas científicas tem como alicerces dessa uma superstição e não o próprio Deus
[CITATION TIL05 \p 88 \t \l 1046 ].
Sobre esta dicotomia sem sentido, uma forma especialmente débil e
desagradável de apologética usava o argumentum ex ignorantia (“argumento a partir
da ignorância”), no qual se tenta descobrir lacunas no conhecimento histórico e
científico a fim de encontrar um lugar para Deus e suas ações em um mundo
completamente calculável e “imanente” [CITATION TIL05 \p 22 \t \l 1046 ].
É notável que tal postura é retomada atualmente por meio de grupos que
tentam descredibilizar a ciência e teologias sérias para impor suas visões de mundo.
Pode-se observar isto na onda de teorias da conspiração que tomaram corpo e
representação nos últimos anos, nos quais se tem maior polarização político social
[ CITATION MAC19 \l 1046 ].
A partir do extremismo da ciência, tem-se o formalismo. Este aparece, quando
se enfatiza somente o lado formal da racionalidade. Nisto o conhecimento
controlador e a lógica formal que derivam disso são tratados como única fonte da
razão. A partir desta premissa, o racionalismo extremado, chamado por Tillich de
Intelectualismo, se encaixa como uma maneira do formalismo, no qual a Ciência
39

seria o “monopolizador da função cognitiva” o que dá razão às reações emocionais à


sua exigência de união, ao invés de apenas controle. Porém tais reações
emocionais acabam por esquecer a obrigação de um “pensamento estrito, sério e
tecnicamente correto em todas as questões” [CITATION TIL05 \p 103 \t \l 1046 ].
Continuando a pensar sobre o âmbito cognitivo da razão, a profundidade
desta é a possibilidade de apontar para a verdade que há em si, a saber, “ao poder
do ser infinito e do que é ultimamente real”, a partir das verdades relativas em cada
campo de conhecimento. Esta profundidade da razão explica o mito e o culto, como
duas funções da mente humana que o caráter racional não é capaz de afirmar nem
negar, por possuir uma estrutura independente não redutível a outras funções, nem
derivável de elementos psicológicos ou sociológicos [CITATION TIL05 \p 93 \t \l
1046 ]. Assim, mostra-se mais uma vez que a fé envolve elementos transcendentes
aos esforços humanos do conhecimento.
Sobre a teologia e a ciência, é possível inserir a colocação de Kuhn
[CITATION KUH17 \p 50 \t \l 1046 ] a respeito do conceito de incomensurabilidade:

A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é a afirmação de que


não há linguagem em que ambas as teorias, concebidas como conjunto de
sentenças, possam ser traduzidas sem haver resíduos ou perdas.

O termo pode ser exemplificado a partir de uma palavra de uma língua que
não possua correspondente na outra, um exemplo seria a palavra “saudade” em
português que não possui correspondente para o inglês.
A partir desta definição de incomensurabilidade é possível afirmar que a
teologia e a ciência possuem tal característica entre si, já que não é possível traduzir
entre uma e outra diretamente sem haver prejuízos à compreensão de suas bases
conceituais. Isto significa que é impossível analisar, de forma total, a teologia a partir
da ciência e vice-versa, não que seja impossível compará-las.
Isto é importante para compreender que cada uma possui uma função
distinta, apesar das aproximações feitas anteriormente. Assim sendo, se faz
importante a valorização de cada área e o conhecimento das suas distinções. Já que
uma compreensão errada disto faz com que se confunda as duas e, desta forma, a
confusão atrapalha não só o entendimento de cada área, mas também incapacita a
pessoa a relacionar ciência e teologia.
40

5 CONCLUSÃO

Os capítulos anteriores mostraram o pensamento científico de Thomas Kuhn,


que está centrado em entender o paradigma científico e a dinâmica ao redor dele, já
que as classificações das fases da ciência vêm de como a comunidade está lidando
com este conceito. Partindo-se disso, expôs-se sobre o que é ciência normal e suas
características. O mesmo se fez a respeito do paradigma científico. Continuou-se
analisando o pensamento sobre anomalias da ciência normal e as subsequentes
crises e, por último, mostrou como elas são resolvidas por meio das revoluções
científicas.
A partir dos pensamentos de Thomas Kuhn, é possível entender a ciência não
como algo cumulativo e alheio ao seu contexto social, mas exatamente como o
oposto, com tensões e rupturas condizentes com a visão da sociedade de sua
época.
Observando o exposto a respeito do pensamento de Tillich, mostrou-se no
documento a definição e caracterização, primeiro da teologia, em seguida, da fé.
Relativo à fé, também foram expostos esclarecimentos a respeito de suas
classificações e dos juízos do pensador a respeito de cada uma e a relação delas
com seguimentos da sociedade.
Analisando tais pensamentos é possível estabelecer o processo de fé
religiosa como algo ligado àquilo que traz a preocupação última, o que faz com que
alguém deixe todas as outras questões de lado. Assim, a fé é algo multifacetado em
suas manifestações e compreensões, incluindo as formas não tidas socialmente
como fé, como o cientificismo e a fé em alguma linha política.
Seguindo as linhas de raciocínio estipuladas pelos pensadores analisados, é
possível observar semelhanças entre as dinâmicas da fé e da ciência, de forma que
41

perde sentido estabelecê-las como dicotômicas, como se uma fosse opositora da


outra, pois ao proceder desta forma se descaracterizam, seja a ciência tornando-se
fé, ou uma teologia que deixa de cumprir a sua função.
Por outro lado, nota-se que ciência e fé possuem diferentes dimensões de
existência e finalidades, logo, são incomensuráveis entre si, considerando o conceito
trazido por Kuhn. Porém, isto não significa que não seja possível a comparação,
mas sim a compreensão completa de uma a partir da outra.
Após todas estas reflexões, infere-se que o conflito entre ciência e fé na
sociedade atual seja fruto de mau entendimento dos conceitos expostos neste
documento, de forma que ficam prejudicadas ambas as áreas. Seja o cientista que
coloca na ciência o seu objeto de fé, aderindo à uma fé idólatra, fadada à frustração,
ou o teólogo que ao renunciar à racionalidade para defender seu modo de crer,
mostrando sua fé abalada pelas críticas científicas, tem como alicerces dessa uma
superstição e não o próprio Deus.
Ultimamente, é importante estabelecer possíveis prosseguimentos para a
pesquisa, já que esta pode seguir diferentes caminhos. A primeira delas é o enfoque
em fenômenos religiosos analisados a partir da perspectiva adotada neste
documento, tal procedimento tem o potencial de ser esclarecedor para a
comunidade de fé sobre os seus próprios acontecimentos.
Outro caminho possível é a inserção de outros autores, tanto da teologia
quanto da ciência, para expansão da comparação e discussão ética feitas. Esta
possui o potencial de elucidar outros pontos que, por acaso, não tenham sido o foco
neste documento, aumentando o esclarecimento e minando as tensões entre
teologia e ciência.
A possibilidade de se seguir o caminho da análise histórica dos conceitos
científicos de teólogos e religiosos de cientistas também se apresenta, já que isso
pode esclarecer como o fator social interferiu nas obras disponíveis de cada autor a
se analisar. Acredita-se que o potencial deste caminho seja de mostrar como as
tensões pessoais de cada pensador são diferentes das levantadas pela comunidade
que analisa os escritos do autor, dissolvendo tensões artificiais.
42

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