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para fora, pode contemplar o Sol, que representa a

1 Diversidade de teorias éticas ideia do bem. Portanto, “alcançar o bem” depende


da capacidade de “compreender bem”.
Por que estudar as diferentes teorias éticas? Tal-
vez você se pergunte qual é o interesse em saber o
Aristóteles: a virtude
que um grego de 2,5 mil anos atrás pensou sobre a
felicidade, se hoje o mundo é outro, muito diferente Aristóteles (c. 384-322 a.C.) aprofundou a dis-
do que era naquele tempo. cussão a respeito das questões éticas. Na obra Ética
Ao estudá-las, porém, percebemos que a discus- a Nicômaco, refletiu sobre o fim último de todas as
são sobre ética é muito mais rica e complexa do que atividades humanas, uma vez que tudo o que fazemos
suspeitamos. Nossas argumentações alcançariam visa alcançar um bem – ou o que nos parece ser um bem.
Ao examinar os bens desejáveis, como os prazeres, a
rigor maior se recorrêssemos aos pensadores que
riqueza, a honra, a fama, o filósofo observa que estes
nos antecederam, não para segui-los cegamente, mas
não são fruídos por si mesmos, mas visam sempre a
para refletirmos com mais propriedade e autonomia.
outra coisa. Pergunta-se, então, qual seria o sumo bem,
aquele que é um fim em si mesmo, e não um meio para o
2 A reflexão ética grega que quer que seja, e encontra a resposta no conceito de
“boa vida”, de “vida feliz” (em grego, eudaimonía). Por
Na Grécia antiga, a ética estava intrinsecamente isso, a filosofia moral de Aristóteles é uma eudemonia.
ligada à política, ou seja, à administração da pólis. Mesmo que reservasse ao filósofo o exercício
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Tratava-se, no entanto, de um campo reservado mais complexo da racionalidade, Aristóteles reco-


apenas aos homens livres. nhecia que as pessoas comuns também aspiram ao
Enquanto isso, na vida privada prevaleciam a desi- saber e se deleitam com ele, satisfeitas por esclare-
gualdade e a ausência de liberdade, já que mulheres cer dúvidas ou compreender melhor algo que antes
e escravos estavam destinados a manter a subsis- lhes parecia confuso.
tência da vida humana em atividades relacionadas A vida humana, porém, não se resume ao intelecto
ao corpo: a mulher pela procriação e o escravo pelo e encontra sua expressão na ação, em uma ativida-
trabalho manual. de bem realizada. Para Aristóteles, o bem é a ação
Assim diz a filósofa Hannah Arendt (1906-1975): exercida de acordo com sua excelência ou virtude.
A função própria de um homem é a atividade de
O ser político, o viver numa pólis, significava que sua alma em conformidade com um princípio racional.
tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e Aristóteles dá os exemplos de um tocador de lira e de
não através de força e violência. Para os gregos, for- um bom tocador de lira: embora genericamente ambos
çar alguém mediante violência, ordenar ao invés de desempenhem a mesma função, um bom tocador de
persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as lira realiza sua atividade com excelência. E continua:
pessoas, típicos da vida fora da pólis, característicos
do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa
[...] se realmente assim é [...], o bem do homem
imperava com poderes incontestes e despóticos.
nos aparece como uma atividade da alma em
ARENDT, Hannah. A condição humana. 9. ed. Rio de Janeiro: consonância com a virtude, e, se há mais de uma
Forense Universitária, 1999. p. 35-36.
virtude, com a melhor e mais completa.
Mas é preciso ajuntar “numa vida completa”.
Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um
Platão: ética e sabedoria dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um
breve espaço de tempo, não faz um homem feliz
Em inúmeros diálogos, Platão (c. 428-347 a.C.) e venturoso.
descreve as discussões de Sócrates a respeito das ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural,
virtudes e da natureza do bem, nos quais ressalta 1973. p. 256. (Coleção Os Pensadores)
a convicção de que a virtude se identifica com a
sabedoria, e o vício, com a ignorância. A virtude, É por isso que a vida moral não se resume a um só
portanto, pode ser aprendida. ato moral, mas à repetição do agir moral. Em outras
Na célebre passagem de A República em que Pla- palavras, o agir virtuoso não é ocasional e fortuito,
tão descreve a alegoria da caverna, reaparece essa mas um hábito, fundado no desejo e na capacidade de
ideia: o sábio é o único capaz de se soltar das amarras perseverar no bem. Do mesmo modo, a felicidade pres-
que o obrigavam a ver apenas sombras e, ao dirigir-se supõe uma vida inteira e não se reduz a um só momento.
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que é excesso e o que é falta em uma virtude, por-

DaviD ReDfeRn/Getty imaGes


que “às vezes devemos inclinar-nos para o excesso
e outras vezes para a deficiência”. Por exemplo, a
irascibilidade (ira, irritação) pode não ser avaliada
como excesso em ocasiões nas quais não convém
a apatia ou a tolerância. Por sua vez, alguém que
costuma agir de modo temerário talvez classifique
a prudência de um corajoso como covardia.

Para refletir

Com base na citação de Aristóteles, analise com


um colega comportamentos em que, dependendo das
circunstâncias, o justo meio deveria inclinar-se para o
excesso ou para a falta. Por exemplo, nos casos de vai-
Jimi Hendrix em concerto em Londres (Inglaterra), 1969. Um dade, vergonha, confiança, gentileza, respeito próprio.
artista talentoso e com domínio técnico na execução de sua
arte é chamado de virtuose.
Justiça e amizade
O justo meio De acordo com Aristóteles, a justiça é uma virtude

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A moral não é uma ciência exata, pois depende completa:
de elementos irracionais da alma, como os afetos
fortes das paixões humanas, a fim de submetê-los à É completa porque aquele que a possui pode
ordem da razão. A propósito, Aristóteles desenvolveu exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas
a teoria da mediania – ou justo meio –, pela qual toda também sobre o seu próximo. [...] Por essa mesma
virtude é boa quando é controlada no seu excesso e razão se diz que somente a justiça, entre todas as vir-
na sua falta. Em outras palavras, agir virtuosamente tudes, é o “bem de um outro”, visto que se relaciona
é encontrar a mediania entre dois extremos, que são com o nosso próximo, fazendo o que é vantajoso a
chamados “vícios”. Veja alguns exemplos: um outro, seja um governante, seja um associado.
Idem, ibidem. p. 322.
• A virtude da coragem torna-se excessiva quando
é temeridade (audácia excessiva), e deficiente
Dependendo do caso, a justiça pode ser uma
quando é covardia.
virtude moral (quando se refere às relações entre as
• “Gastar dinheiro” pode significar a virtude da pessoas) ou política (quando se refere às relações en-
generosidade, da prodigalidade, enquanto seus tre os indivíduos e o governo, estabelecidas em leis).
extremos são a dissipação ou a avareza.
Aristóteles explica a justiça em termos de proporção
• A virtude da temperança é o meio-termo entre e igualdade. Tratar as pessoas com justiça consiste em
voluptuosidade e insensibilidade. distribuir os bens em sua devida proporção, o que nos
• No trato com os outros, a virtude é a afabilidade, remete à teoria do justo meio: não se deve dar às pes-
enquanto seus extremos são a subserviência e a soas nem demasiado nem de menos. Deve haver, por-
grosseria. tanto, a justa proporção entre o bem atribuído (ou prê-
Aristóteles conclui que a virtude é uma espécie mio) e o mérito demonstrado. Ou ainda, caso se trate de
de mediania, já que ela visa ao meio-termo: uma sanção, uma proporção entre o crime e sua pena.
A justiça deve ser também distributiva, quando
são consideradas as diferenças entre as pessoas.
A virtude é, pois, uma disposição de caráter
Nesse caso, a justa distribuição de bens, direitos e
relacionada com a escolha e consistente numa
responsabilidades está em conformidade com as
mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual
é determinada por um princípio racional próprio necessidades e capacidades de cada indivíduo.
do homem dotado de sabedoria prática. Por fim, para Aristóteles, a amizade é a coroação
Idem, ibidem. p. 273.
da vida virtuosa, possível apenas entre os prudentes
e justos, já que a amizade pressupõe a justiça, a
generosidade, a benevolência, a reciprocidade dos
Ao se referir a um “princípio racional próprio do sentimentos. Amar a si e aos amigos de maneira
homem dotado de sabedoria prática”, Aristóteles generosa e desinteressada é, para Aristóteles, o que
reforça o papel relevante de cada um ao definir o há de mais necessário para viver.
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Epicurismo
3 Ética helenista
Para os epicuristas, também conhecidos como
O helenismo caracterizou-se pela fusão das hedonistas, o sumo bem encontra-se no prazer.
culturas grega e oriental, devido à expansão do Im- Atualmente, costuma-se dizer que a civilização
pério Macedônico de Alexandre, o Grande, e depois contemporânea é adepta do hedonismo, mas em um
pela conquista romana. Estendeu-se desde o sécu- sentido muito distante do pensamento de Epicuro
lo III a.C. até o século III d.C., considerando o estoi- de Samos, que desprezava os prazeres ligados aos
cismo romano desde Sêneca até Marco Aurélio. anseios por riqueza, poder, fama ou movidos pela
Certos historiadores compartilham a ideia de que sensualidade desregrada. Essa visão deturpada
o helenismo representou uma longa decadência em deve-se àqueles que vislumbravam aspectos ma-
relação ao esplendor da filosofia grega clássica. No terialistas e ateístas em sua física, interpretações
entanto, outros estudiosos desfazem a ótica depre- intensificadas pelo cristianismo medieval.
ciativa para identificá-lo com um novo modo de ver Os que leram seus escritos, porém, descobrem que
o mundo e a si mesmo. De fato, o helenismo ampliou para Epicuro os deuses são felizes por terem serenida-
o espaço restrito da pólis grega numa visão cosmo- de. O filósofo entende essa imperturbabilidade como
polita constituída por outros tipos de solidariedade. meta humana: a sabedoria prática é a que permite
Advertem Reale e Antiseri: distinguir os prazeres que podem ser fruídos sem
provocar dor ou perturbação. Por isso caracteriza o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

prazer supremo pela ausência de dor do corpo (aponia)


O ideal da pólis é substituído pelo ideal “cos-
e pela ausência de perturbação da alma (ataraxia).
mopolita” (o mundo inteiro é uma pólis), e o ho-
mem-citadino é substituído pelo homem-indivíduo; Refere-se, então, aos prazeres naturais e neces-
a contraposição grego-bárbaro em larga medida sários, como comer e beber quando se tem fome ou
é superada pela concepção do homem em uma sede e repousar quando se está cansado. Não rejeita
dimensão de igualitarismo universal. os prazeres naturais e não necessários, como cultivar
amizade, saborear comida e bebida refinadas e vestir-
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia
pagã antiga. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007. p. 249. v. 1. -se bem – desde que com comedimento. Despreza,
porém, os prazeres não naturais e não necessários,
que fatalmente provocam instabilidade e sofrimento.
Inicialmente, o helenismo ainda manteve seu
Assim diz Epicuro:
epicentro em Atenas. Destacaram-se as correntes
do cinismo, epicurismo, estoicismo e ceticismo, que
abordaram questões de física, ética e lógica. Das O prazer é o início e o fim de uma vida feliz.
discussões realizadas em suas escolas, participavam Com efeito, nós o identificamos com o bem primei-
ro e inerente ao ser humano [...]. Embora o prazer
não só assíduos discípulos, mas ouvintes ocasionais,
seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso
até porque, para a nova concepção de filosofia, esse
escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que
tipo de reflexão devia ser acessível a todos. Não por evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm
acaso, Epicuro (c. 341-270 a.C.) dizia: efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo
que consideramos muitos sofrimentos preferíveis
aos prazeres, se um prazer maior advier depois de
[...] que ninguém hesite em se dedicar à filosofia suportarmos essas dores por muito tempo.
enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois
Idem, ibidem. p. 37-38.
de velho, porque ninguém jamais é demasiado
jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde
do espírito. Epicuro também refletiu sobre a morte. Segundo
ele, a morte nada significa porque não existe para os
EPICURO. Carta sobre a felicidade: a Meneceu.
São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 21. vivos, e os mortos não estão mais aqui para explicá-la.
Lamenta que a maioria das pessoas fuja da morte como
se fosse o maior dos males, quando na verdade não
A noção de “saúde do espírito” denota uma ca- há vantagem alguma em viver eternamente. Ferrenho
racterística comum às escolas helenísticas: a ênfase crítico dos mitos e das superstições, Epicuro seguia
na discussão sobre a melhor maneira de viver, seja o materialismo típico do atomismo de Demócrito e
na alegria, seja no infortúnio. considerava que a alma, de natureza material (corpó-
Vejamos as principais tendências que se desta- rea), desaparece com a morte. Mais do que ter a alma
caram no período do helenismo grego. imortal, vale a maneira pela qual escolhemos viver.
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