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UNIDADE 2

RACIONALISMO E KANT

Carga horária
• Seis horas EAD – 4ª e 5ª semanas.

Objetivos
• Entender a maneira racionalista de pensar a ética.

• Conhecer as implicações da dúvida cartesiana e sua moral


provisória.

• Problematizar a questão das paixões, do prazer e da


felicidade na ética espinosiana.

• Compreender a diferença entre ética formal e material,


como também entre ética autônoma e heterônoma, vendo
onde se situa o pensar kantiano – além de problematizar
o imperativo categórico.

Conteúdo
• Pensamento de René Descartes.

• Pensamento de Baruch Spinoza.

• Ética kantiana.
UNIDADE 2
Licenciatura em Filosofia

1 INTRODUÇÃO
Na unidade anterior, tivemos a oportunidade de pensar o indivíduo não mais
como um simples servo de Deus, mas como um ser social, e nesta sociabilidade – ora
vista como necessária, ora não – é que se fundará o agir ético moderno. A inserção na
sociedade é que possibilitará o questionamento ético, e quando não há inserção, será com
relação à sociedade que se estabelecerá qualquer caminho de ação.

Como você pôde notar, anteriormente refletimos sobre a ética na obra de alguns
dos pensadores empiristas, como Hobbes, Locke e Hume, por isso, nesta unidade, nossa
atenção será direcionada às concepções éticas dos pensadores racionalistas, tomando
como ponto de apoio as idéias fundadoras de Descartes e também de Baruch Spinoza;
após esta primeira parte, partiremos para o pensamento de Immanuel Kant.

Temos duas maneiras de pensar a questão do conhecimento: uma é a racionalista


e a outra, empirista; razão e experiência: qual caminho a seguir? A solução tornou-se
possível com Immanuel Kant e o criticismo. Assim, com as idéias deste pensador alemão,
daremos um significativo passo não só na problemática do conhecimento, mas também
em a ética moderna.

Com certeza, nas disciplinas de História da Filosofia Moderna, Contemporânea


e Teoria do Conhecimento, você tem condições de desenvolver estes temas de maneira
mais específica e profunda. O que nos interessa aqui é o fato de que a diferença de
pensamentos leva a diferentes concepções éticas.

A ação (ou os modelos dela) depende do conhecimento que se tem da


realidade.

Vejamos, então, como a ética se desenvolve no racionalismo, tendo como


referencial a obra de três grandes filósofos, com efeito, Renè Descartes, Baruch Spinosa
e Immanuel Kant.

2 RENÈ DESCARTES (1596–1650)


Considerado por muitos estudiosos “o pai da filosofia moderna”, Descartes não
deixou escritos específicos sobre ética, o que não significa a impossibilidade de, em tais
pensamentos, ser desenvolvido o tema.

Pensando nos escritos do filósofo francês entendemos a possibilidade de serem


traçados parâmetros segundo os quais deva se pautar a ação humana.

De inicio, é importante ressaltar que o pensamento cartesiano estabelece a


existência de Deus e, a partir disso é que seria possível pensar na totalidade restante,
isto porque Deus é que garante as idéias “claras e distintas”, nas quais o verdadeiro
conhecimento se dá e a verdade é encontrada. Cabe lembrar que há, no pensar cartesiano,
uma substancial separação entre corpo e alma: o primeiro proporciona as sensações que
são causa do erro.

Afirma o filósofo francês:

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Desse modo, chegava à conclusão que em mim fora inculcada por uma natureza
realmente mais perfeita do que eu e enfeixando em si todas as perfeições das
quais eu pudesse fazer uma idéia, isto é, para que eu me explique em uma só
palavra: DEUS (DESCARTES, 1972, p. 46).

E ainda ao falar das idéias perfeitas – claras e distintas – o filósofo afirma


que a idéia mais perfeita é a de Deus, que também é a causa da natureza humana.
Esta causa, se

[...] tira sua existência de alguma outra causa diferente de si, tornar-se-á a
perguntar, pela mesma razão, a respeito desta segunda causa, se ela é por si,
ou por outrem, até que gradativamente se chegue a uma última causa que se
verificará ser Deus (DESCARTES, 1973, p. 119).

O autor fixa três regras daquela que chamou de moral provisória; é provisória,
pois ao estabelecer a dúvida metódica e universal como caminho da verdade, era preciso
uma moral que garantisse uma vida sem grandes problemas justamente enquanto
duvidava.

A primeira, consistia em obedecer às leis e costumes do meu país, mantendo


sempre aquela religião em que tive de Deus a graça de ser instruído desde a
infância e guiando-me em tudo o restante pelas opiniões mais moderadas e que
estivessem mais distantes do excesso, comumente aceitas na prática, pelos de ATENÇÃO!
maior bom senso entre os quais eu precisaria viver. [...] Aluno off-line: participe
ativamente das discussões
A minha segunda máxima consistia em ser tão firme e resoluto quanto me fosse desta disciplina utilizando os
diversos meios disponíveis, como
possível em meus atos e em seguir as opiniões mais duvidosas, desde que me telefone, correio, fax etc. Sua
tivesse decidido por elas, com constância não menor do que se elas fossem participação é fundamental para
exatíssimas. [...] o grupo.

A minha terceira máxima estava em buscar sempre vencer primeiro a mim do


que à sorte, em modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo,
e, de um modo geral, em acostumar-me a acreditar que nada há que esteja
tanto em nosso poder como os nossos pensamentos [...]. (DESCARTES, 1972,
p. 33-36)

Fixadas tais regras, apenas um obstáculo restará à ação humana: a não decisão;
o homem que não se decide, acaba se decidindo pelo seu próprio azar. A partir da moral
provisória, Lima Vaz afirma que:

Na ordem do bem, a vontade deve agir mesmo em face do provável que pareça
melhor aos olhos a razão; na ordem do verdadeiro, a razão não deve assentir
senão ao que se apresente como evidentemente certo. Em outras palavras, na
ordem do bem, o sujeito encontra-se em face de um ethos histórico lentamente
constituído pela experiência das gerações e transmitido pela tradição. (LIMA
VAZ, 2002, p. 283)

Reconhecidas algumas das idéias de Descartes em relação a ética, podemos


Figura 1 Spinoza
avançar para o estudo de Espinosa.
Spinoza (1632-1677), mais
conhecido como Baruch de
Spinoza (seu nome hebraico),
Bento de Espinosa ou Bento
3 BARUCH SPINOZA (1632-1677) 2 d’Espiñoza, foi um dos grandes
racionalistas da filosofia
moderna, juntamente com René
Descartes e Gottfried Leibniz.
Considerado o fundador do
Para Spinoza, a conduta reta tem como critério a própria razão humana. criticismo bíblico moderno.

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O pensador defende que todas as coisas são neutras na ordem moral, a partir do
INFORMAÇÃO: ponto de vista da eternidade; quando algo é classificado como bom ou mau, isto se deve
A obra-prima de Spinoza é a apenas às necessidades e interesses humanos.
Ethica, publicada postumamente,
em 1677.
Para este filósofo, o que contribui para o conhecimento da natureza do ser
humano ou se encontra em consonância com a razão humana é tido como bom. Neste
sentido, a razão é necessária para frear as paixões e alcançar o prazer e a felicidade.
Supõe-se daí que, tudo o que as pessoas têm em comum é o melhor para cada um e o
bem que se proporciona a si próprios.

Podemos observar na Proposição XLII da Ética que a “felicidade não é o prêmio


da virtude, mas a própria virtude; e não gozamos dela por refrearmos as paixões, mas ao
contrário, gozamos dela por podermos refrear as paixões” (SPINOZA, 1973, p. 306).

Segundo Spinoza, o conhecimento intuitivo concede o “amor intelectual de


Deus”; tal amor pode ser visto como o mais sublime estado humano. A partir daí, o filósofo
afirma que o uso adequado de tal propriedade pode levar o ser humano à contemplação
da totalidade do universo mental e físico.

Na Proposição XXXVI, da parte V da Ética encontramos:

O amor intelectual da alma relativamente a Deus é o mesmo amor de Deus,


com que ele se ama a si mesmo, não enquanto é infinito, mas enquanto pode
explicar-se pela essência da alma humana, considerada do ponto de vista da
ATENÇÃO! eternidade; isto é, o amor intelectual da alma relativamente a Deus é parte
Procure ler a Ética de Spinoza.
Esta é uma leitura imprescindível do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo (ESPINOSA, 1973, p. 302).
para o entendimento desta
disciplina.
Segundo Giovanni Reale, é importante observar o ideal ético espinosiano a partir
do amor intelectual de Deus, seguindo as etapas segundo as quais o autor holandês
procede:

1) reinterpreta de modo extremamente despreconceituoso e com grande


lucidez as paixões humanas; 2) procura esvaziar os conceitos de perfeição
e imperfeição, valor e desvalor, bem e mal de seu tradicional significado; 3)
reduz a progressão da vida moral à progressão do conhecimento; 4) identifica
na visão intelectiva da realidade o ideal supremo do homem e, nessa dimensão,
apresenta o amor a Deus (REALE, 1990, p. 430).

Vamos conhecer agora a proposta de Kant.

4 IMMANUEL KANT (1724–1804) 2

Como já foi citado, Immanuel Kant é muito conhecido no campo da Teoria do


Conhecimento. Mas, além desta área, encontramos um aprofundamento grande em outras,
como por exemplo, a estética e a própria ética. Ao tratarmos deste último tema, então,
Figura 2 Immanuel Dealer Kant fazemos referência a várias obras suas, nas quais o viés ético se faz presente – quando o
ou Emanuel Kant tema central não o for.
(2) Immanuel Dealer Kant ou
Emanuel Kant (1724-1804) foi Para este autor alemão, a razão não deveria se ligar somente à problemática do
um filósofo prussiano, geralmente ser, mas também à do dever-ser, ou seja, a razão não somente deve ser especulativa,
considerado como o último
grande filósofo dos princípios da mas também prática. Neste sentido, a razão deve ser utilizada para responder a questão:
era moderna. “como agir?”.

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Kant crítica as éticas materiais, que seriam aquelas criadas anteriores a ele,
tomando como centro o fato de que elas assinalam conteúdos (bens, fins e valores),
dando caminhos de ação; a partir de tais conteúdos é que seriam extraídos critérios de
moralidade.

Entretanto, como seria possível estabelecer uma ética de caráter racional/


universal com a grande dificuldade de se chegar a um acordo com relação aos primeiros-
valores? A moral material é, então, particular.

A proposta kantiana é de uma ética formal. Tal ética não propõe conteúdos,
pois é de caráter puramente racional e totalmente universal, contrariamente à proposta
de D. Hume.

O agir será guiado, assim, unicamente pela boa vontade que respeita a lei moral,
não havendo um fim determinado a ser perseguido.

Demonstra-se que a razão pode dirigir a vontade enquanto pura razão porque há
uma lei moral com valor universal: este é um “fato da razão” não ulteriormente
justificável. Ora, uma lei universalmente válida deve valer apenas por sua forma
de lei, ou seja, porque é lei, não pelo que (matéria) me ordena fazer [...]. Na
verdade, só há dois motivos possíveis para querer um objeto: ou porque se
deve querê-lo, porque a lei o ordena, ou porque o objeto agrada. Mas o agradar
é subjetivo, pode variar de indivíduo para indivíduo, e portanto não pode fundar
uma lei universal. A quem lhe objetara que deveria ter anteposto a noção de
bem à de lei Kant responde, a seguir, que não se pode definir o que é o bem
moral independentemente do conceito de lei, porque bem moral é aquilo que
a lei ordena. Nisso consiste o formalismo da moral kantiana (ROVIGHI, 2002,
p. 583).

Pensando dessa maneira, ação boa é aquela guiada pela intenção boa,
realizada segundo princípios, e não segundo a vontade (emotiva) que almeja alcançar
determinados fins. Kant quer que a ética seja independente das apetências, gostos e
desejos particulares.

Diz o filósofo alemão que, em qualquer realidade, “nada é possível pensar que
possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”
(KANT, 1974, p. 203).

Ainda podemos pensar a ética kantiana sob outra distinção: heterônoma ou


autônoma.

Podemos entender que uma ética é heterônoma quando há uma obrigação moral
que é imposta ao ser humano, sendo externa à sua própria vontade. Neste sentido, a ação
boa seria aquela que simplesmente se adequasse a tal imposição.

Aqui, percebemos que, então, não há responsabilidade do homem pelos tais fins
(impostos), por isso, em Kant, vemos

[...] a falência das tentativas de fazer do Bem supremo, por meio dos princípios
heterônimos da felicidade e da virtude, o determinante da vontade. Somente a
lei moral pode determinar a priori a vontade e fundamentar um uso legítimo da
razão prática no conhecimento do Bem supremo como exigência necessária da
vontade do ser racional (LIMA VAZ, 2002, p. 346).

Numa ética autônoma, a obrigação moral (lei) vem do próprio homem, neste
sentido, ele se torna responsável por ela; a ética kantiana é autônoma porque se funda na
própria razão, não necessitando de algo externo.

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Para o pensador, há a certeza da lei moral dentro do ser humano fazendo com
que dela ele não possa escapar, devendo assumi-la.

Aqui, o bem agir – o agir moral – é o cumprimento do dever; este, por sua vez,
é a realização da ação por respeito à lei moral, na liberdade. Um agir que se guiasse pelo
prazer ou unicamente na busca da felicidade não pode ser considerado moral (por ser algo
interesseiro e egoísta) nem livre (por ser determinado por desejos e paixões).

Neste sentido Lima Vaz comenta:

Se a vontade não é, em si mesma, plenamente conforme a razão, suas ações


de acordo com a lei serão objetivamente necessárias, mas subjetivamente
contingentes e a relação das leis com tal vontade para que as suas ações se
tornem subjetivamente necessárias deverá ser uma relação determinante que
assuma a forma da obrigação. (LIMA VAZ, 2002, p. 339)

Para o filósofo alemão, não importa que o indivíduo atue com inteligência, pois
as circunstâncias e os acidentes são características às quais a ação humana está sujeita.
INFORMAÇÃO:
Procure anotar as principais Desta maneira, o ato, em sua moralidade, não pode ser julgado pelas suas conseqüências,
informações e conceitos que mas sim pela motivação ética que tem.
surgirem ao longo dos estudos.
Sua organização garantirá o
sucesso de sua aprendizagem. Kant diz que em uma ação, seu valor moral

[...] não reside, portanto, no efeito que dela se espera; também não reside
em qualquer princípio da ação que precise de pedir o seu móbil a este efeito
esperado. Pois todos estes efeitos (a amenidade da nossa situação e mesmo o
fomento da felicidade alheia) podiam também ser alcançados por outras causas,
e não se precisava portanto para tal da vontade de um ser racional, na qual
vontade – e só nela – se pode encontrar o bem supremo e incondicionado. Por
conseguinte, nada senão a representação da lei em si mesma, que em verdade
só no ser racional se realiza, enquanto é ela, e não o esperado efeito, que
determina a vontade, pode construir o bem excelente a que chamamos moral,
o qual se encontra já presente na própria pessoa que age segundo esta lei, mas
se não deve esperar somente do efeito da ação (KANT, 1974, p. 209).

O bem em si mesmo se torna princípio geral, inclinação-raiz, que faz com que
a pessoa aja, como obrigação. Assim, Kant estabelece a regra denominada imperativo
categórico: aja como se a máxima de tua ação pudesse ser escolhida, por tua vontade,
como lei universal; tal denominação (imperativo categórico) se deve por ser geral e, ao
mesmo tempo, encerrar um mandato.

Afirma o filósofo alemão que

[...] são possíveis os imperativos categóricos, porque a idéia da liberdade


faz de mim um membro do mundo inteligível; pelo que, se eu fosse só isto,
todas as minhas ações seriam sempre conformes à autonomia da vontade;
mas como ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas
minhas ações devem ser conformes a esta autonomia. E esse dever categórico
representa uma proposição sintética a priori, porque acima da minha vontade
afetada por apetites sensíveis sobrevém ainda a idéia dessa mesma vontade,
mas como pertencente ao mundo inteligível, pura, prática por si mesma, que
contém a condição suprema da primeira, segundo a razão; mais ou menos
como às intuições do mundo sensível se juntam conceitos do entendimento,
os quais por si mesmos nada mais significam senão a forma de lei em geral, e
assim tornam possíveis proposições sintéticas a priori. Sobre as quais repousa
todo o conhecimento de uma natureza (KANT, 1974, p. 249).

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5 CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade estudamos três autores significativos que muito contribuem para
a formação ética do estudante de Filosofia. Na primeira parte, com Descartes e Spinosa,
vimos de que maneira o pensar racionalista nos auxilia a entender o tema ético-moral
tomando por base unicamente o aspecto racional.

Daí nos questionamos: é possível a construção de uma ética unicamente baseada


na certeza do cogito cartesiano? Pensemos na necessidade de se admitir um ser superior
– Deus – para o estabelecimento das éticas racionalistas estudadas.

Depois disso, vimos a ética kantiana, em sua singularidade, também como


“revolução copernicana”, no estabelecimento do imperativo categórico e na avaliação
moral de um ato apenas pela sua intenção.

Vimos assim, como se deu o pensar ético moderno em sua evolução, teorias que,
aos poucos, vão construindo os caminhos de estabelecimento da ética contemporânea.

Na próxima unidade veremos outras importantes influências éticas a partir da


ciência e também da corrente chamada utilitarismo.

6 E-REFERÊNCIAS
Lista de figuras
Figura 1 Spinoza – Disponivel em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Baruch_de_Espinosa>.
Acesso em 03 nov. 2006.
Figura 2 Immanuel Kant – Disponivel em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Immanuel_
Kant>. Acesso em 03 set. 2006.

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Anotações

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