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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


CURSO DE BACHARELADO EM FILOSOFIA

VINICIUS FULAS

OS TRÊS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA HUMANA EM KIERKEGAARD


E BREVE APRECIAÇÃO

SANTA MARIA, 3 DE AGOSTO DE 2022


Vinicius Fulas

OS TRÊS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA HUMANA EM


KIERKEGAARD E BREVE APRECIAÇÃO

Trabalho Final apresentado à Profª.


Drª. Camila Barbosa e ao Profº. Drº.
Silvestre Grzibowski na disciplina de
Pesquisa Orientada em Filosofia - VI
da Universidade Federal de Santa
Maria como requisito para conclusão
da disciplina.

Santa Maria, 3 de agosto de 2022


Resumo: O presente trabalho pretende apresentar a noção dos três estádios da existência
humana no pensamento de Kierkegaard, compreendendo-a como uma filosofia da própria
vida de Kierkegaard em resposta ao idealismo de Hegel. Os três estádios marcam um
progresso do indivíduo dotado de liberdade, baseado em sua própria vontade em direção à
autenticidade. No estádio estético o indivíduo é guiado por meio de seus prazeres e desejos,
fugindo de quaisquer compromissos e responsabilidades, culminando no desespero; no
ético, é tendo como guia o dever que o indivíduo assume seus compromissos de maneira
honrada, mas percebe uma insuficiência que não pôde ter sido preenchida, culminando no
arrependimento; no terceiro estádio, o religioso, o indivíduo, movido pelo amor e pela
incompletude da vida, realiza um salto no escuro para encontrar com o Absoluto,
sincronizar sua vontade com a Dele e atingir sua autenticidade. Ao fim da exposição,
faremos uma breve apreciação acerca dessa filosofia a partir dos resultados pretendidos
com ela, considerando-os sob dois aspectos.
Palavras-chave: Estádios da existência, subjetividade, existencialismo, Kierkegaard.
1 INTRODUÇÃO

Søren Kierkegaard (1813-1855) nasceu na cidade de Copenhague, Dinamarca. É


amplamente considerado entre os historiadores da filosofia o primeiro representante do
Existencialismo. Profundamente influenciado pelo pai, Michael Kierkegaard, já velho para a
estimativa de vida da época, à instrução no latim e no grego, a ler os clássicos e a adentrar à
religião cristã, Kierkegaard foi levado até o curso de Teologia na Universidade de
Copenhague ainda jovem. Lá foi surpreendido pelo sistema filosófico de Hegel (1770-1831),
sua lógica e sua dialética. O filósofo alemão teve seu reconhecimento já em vida e, por isso,
seu pensamento chegava a todos os cantos intelectuais da época.
Kierkegaard foi seduzido pela incrível dialética hegeliana. Marilena Chauí dirá que a
lógica hegeliana “parecia-lhe uma apaixonante voluptuosidade"1. Contudo, com o passar do
tempo, o dinamarquês se impressionou com o fato de que a filosofia hegeliana, ao buscar uma
objetividade universal que explicasse coisas como o movimento da História, suprimia a ideia
de uma existência subjetiva, de uma vida concreta: “Por causa disso, Kierkegaard passou a
contestar energicamente o hegelianismo. Para o pensador dinamarquês, a existência humana
não pode deixar-se dissolver na pura conceituação intelectual.”2
Essa concepção filosófica desenvolvida a partir de seu encontro com a filosofia de
Hegel, bem outros dois eventos de sua vida, a saber, a morte de seu pai em 1838 e o
rompimento com Regine Olsen3, sua noiva, contribuíram para que o filósofo fosse levado à
solidão. Entretanto, a solidão resultante dos fatos da sua vida foi encarada de modo vantajoso,
como o filósofo relata em uma carta a Peter Lind:
O silêncio deles é nitidamente proveitoso para mim, porque me obriga a
fixar a vista no meu eu; porque me obriga a manter-me fixo na infinita
instabilidade da vida e a voltar para mim o espelho côncavo com que dantes

1
Vida e Obra, p. VI.
2
Ibid. Ainda sobre a crítica, R. G. Santos afirma que "Kierkegaard critica os idealistas, em especial
Hegel, ao dar o exemplo de um pensador que elabora um enorme sistema que explica toda a existência
humana e a história do mundo; mas este pensador teme encontrar a verdade, de que tudo aquilo que
construiu são "palácios" sem sentido, que nem mesmo ele habita.”
3
Ao contrário do que se poderia pensar, foi o próprio Kierkegaard que rompeu com esse matrimônio, e
não por falta de amor ou coisa pior, pois eram apaixonados, como fica aparente em uma nota de seu
diário: “Vós, soberana do meu coração, guardada na profundeza secreta do meu peito, na plenitude do meu
pensamento, ali [...] divindade desconhecida! Ó, posso eu realmente acreditar nas palavras dos poetas, que
quando se vê pela primeira vez o objecto do seu amor, imagina já tê-la visto há muito tempo, que todo o
amor assim como todo o conhecimento é lembrança, que o amor tem também as suas profecias dentro do
indivíduo.” A razão do rompimento foi por sua visão de que sua vocação não era compatível com uma
relação deste tipo. Bem, essa vocação tinha muito a ver com sua declaração de que sua vida seria de
reflexão do princípio ao fim. Além disso, por outro lado, declarava também que sua melancolia o
tornava impróprio para o casamento.
procurava abarcar a vida fora de mim mesmo. Esse silêncio agrada-me
porque me sinto capaz desse esforço e com coragem para segurar o espelho,
mostre-me ele o que mostrar, o meu ideal ou a minha caricatura.4
Esse movimento introspectivo realizado por Kierkegaard a partir dos eventos de sua
vida e o encontro com Hegel provocará na filosofia uma espécie de giro conceitual, uma
alteração no foco da filosofia, refletindo como pano de fundo em toda a contemporaneidade,
seja ampliando essa filosofia ou criticando-a: não mais buscar a verdade fora do sujeito, no
mundo ou nos seus fundamentos últimos, mas em si mesmo, olhando para dentro num ato de
reflexibilidade e análise da sua própria existência enquanto ser humano existente e concreto.
Trata-se de um movimento semelhante aos que fizeram os modernos com o estabelecimento e
desenvolvimento do cogito. Entretanto, se nos modernos tínhamos um conceito de cogito
preocupado sobretudo com o conhecimento, aqui temos uma preocupação com a existência, ou
conhecimento dela.
Na própria seção exploraremos de maneira expositiva os três estádios da existência
humana pensados por Kierkegaard e, ao final, na terceira seção, faremos uma apreciação de
seus resultados, tendo por critério o modo como essa filosofia nasce. Visto que nasce como
forte crítica ao pensamento de Hegel, acusando este de ter ignorado os elementos da vida
concreta e de subjugar essa vida a um mecanismo determinante, a filosofia de Kierkegaard,
para que cumpra com seus objetivos, deve apresentar esses elementos da vida concreta e
retirar o sujeito deste sistema determinante.

4
p. VIII
2. ADVERTÊNCIAS INICIAIS

A primeira questão que nos é colocada aqui é de como devemos compreender a noção
dos estádios no pensamento filosófico de Kierkegaard. Para se ter uma boa compreensão
dessa noção, é necessário advertir contra as ideias de que 1) os estádios são fases que se
passam de modo necessário em um tempo linear, 2) que suas fronteiras são bem delimitadas e
de que 3) demarcam transformações completas nos indivíduos.

2.1. Os estádios não demarcam tempo, mas espaço

Os estádios devem ser compreendidos como âmbitos da existência humana,


caracterizados pela faculdade dominante perante as outras. A própria origem do conceito de
estádio, como uma unidade de medida antiga grega, gera significado de algo de modo espacial
e não temporal. Assim sendo, um estádio é uma categoria que demarca como se está levando
a existência, qual é a faculdade norteadora de suas ações5.
Quando compreendemos a noção de estádio como fase, referindo-se assim a uma
estrutura linear e temporal de progresso, cometemos o equívoco de pensá-los como
necessários a cada vida subjetiva, como momentos que serão ultrapassados naturalmente com
o passar do tempo. O problema aqui é que se anula a liberdade, pressuposta por Kierkegaard
na própria existência, de se manter em um dos estádios se assim o indivíduo quiser, por
exemplo. A passagem de um estádio para outro é, portanto, possível, mas a necessidade é algo
que contraria a ideia de liberdade; deve-se ter em mente que os estádios são dependentes da
vontade do indivíduo. Um idoso de 70 anos nem por isso estará no último estádio.

2.2. Suas fronteiras se entrelaçam e são reflexo das faculdades

Os estádios não possuem suas fronteiras entre si muito bem delimitadas. Ao contrário,
se mesclam e se confundem na existência. Um indivíduo pode carregar em si características
do estádio estético e ético ao mesmo tempo, por exemplo. O que será determinante para o
estádio em que se está é o elemento-guia que prevalece diante dos outros naquele momento de
sua vida. É por esse motivo também que os estádios não demarcam transformações completas

5
Pode-se optar, como muitos optam, por “estágio” em vez de “estádio”. Estágio, por sua vez, se remete de
maneira temporal e não espacial. Nos pareceu, pelas razões apresentadas no parágrafo seguinte, mais adequado
referirmo-nos com a solução apresentada aqui. De qualquer forma que seja, o que importa é termos em mente as
condições explicitadas por Kierkegaard para compreender sua filosofia.
na vida dos indivíduos. Na verdade, eles são reflexos concretos das faculdades naturais do ser
humano, tais como o desejo, o dever e a fé/amor. Por isso, não se trata de abandonar os traços
do estádio anterior, mas de ressignificá-los tendo por base as características do estádio em que
se está. Oliveira e Cremonezi concluem essa questão:
Falar em esfera da existência é apontar o ponto de vista, o horizonte, a
preocupação pelo qual se examina e se quer participar na existência. Na
medida em que há faculdade e necessidades estéticas, éticas e religiosas na
existência humana, não se pode conceber o abandono puro e simples de
uma ou duas dessas faculdades para nos enclausurarmos em uma esfera a
despeito de todo o resto. Trata-se antes de privilegiar um desses aspectos e
de relacioná-lo com o todo com base nessa decisão. (2008, p.2)
Mesmo que Kierkegaard tenha criticado essencialmente o pensamento de Hegel, não
pôde deixar de ser tocado por ele, adotando naturalmente a estrutura dialética em algumas de
suas concepções. Aqui não é diferente. Se é verdade que os três estádios não se regulam por
uma estrutura linear e necessária do tempo, se regulam, ao contrário, por uma estrutura
dialética. Os estádios estético e ético compõem tese e antítese, enquanto que o religioso a
síntese. A partir deste ponto de vista, fica claro também que os estádios possuem uma
hierarquia entre si, tendo como o ápice da existência o encontro com o Absoluto, como
veremos mais adiante. Outra coisa que fica salientada a partir desta visão é a liberdade: a
síntese (o ápice da existência) deve ser realizada pelo próprio indivíduo, e não ocorre de
maneira natural, mas por vontade e necessidade do próprio indivíduo de construir sua própria
existência.
3. OS TRÊS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA HUMANA

Ora, o problema que se impõe naturalmente a Kierkegaard quando este acusa e critica
Hegel de compreender a vida humana subordinada a um sistema, compreensão essa que, para
Kierkegaard, faz sumir os traços subjetivos e concretos da mesma, é explicá-la com outro
enfoque, não mais olhando para o grande mecanismo que a ronda e concebendo a existência
humana como subsumida neste grande fluxo, mas para ela própria, isto é, essa vida concreta,
subjetiva, individual e seus aspectos.
Para abarcar a vida concreta do indivíduo, Kierkegaard lança mão da noção dos três
estádios da existência humana, um reflexo filosófico de sua própria vida, que surge em uma
de suas primeiras obras, Temor e Tremor, de 1843. Do ponto de vista do dinamarquês,
haveriam três estádios possíveis da vida humana, tendo em cada uma delas uma faculdade
predominante e norteadora da existência em questão. São, respectivamente, estádio estético e
o desejo, estádio ético e o dever, estádio religioso e a fé.

3.1. Estádio Estético

A faculdade que domina o indivíduo no estádio estético é o desejo, a sensação. O


primeiro dos estádios elencado por Kierkegaard já nos mostra uma grande semelhança com
sua própria vida. Com o rompimento matrimonial com Regine Olsen e a morte de seu pai,
Kierkegaard se viu entregue aos prazeres momentâneos e sensíveis, a uma condição de
caçador incessável de seu próprio gozo:
[...] entregou-se a uma vida desregrada de prazeres, gastando altas somas
em roupas, comidas e bebidas. Esse período crítico de sua juventude
iniciou-se no mesmo ano da morte de seu pai (1838) e teve evidentes
relações com esse triste acontecimento. (CHAUÍ, 1979)
A figura de Don Juan, um sedutor fictício difundido na cultura literária, é a que mais
representa o esteta. É aquele que está completamente entregue à carne, ao terrestre, à vida
desregrada e sedutora. Ele não busca um sentido para sua vida, mas apenas as migalhas que
encontra nesta para tentar preencher seu vazio interior. Por isso é um desesperado por
excelência, “um sujeito sem graça, é alguém desgraçado, é um indivíduo pobre miserável, vil
desprezível, digno de dó e compaixão” (OLIVEIRA; CREMONEZI, 2008)
O esteta é também aquele que não consegue manter relações amorosas e sociais de
maneira estável, pois, guiado pelo seu desejo desenfreado, é movido a experimentar diversas
relações e diversas pessoas em nome de seu prazer. Vive as pessoas como uma “experiência
sem amanhã”, um “brinquedo de um instante”.
O problema que abala o esteta, bem como o motor através do qual o indivíduo é
impulsionado a sair deste estádio, é o de que, guiando-se como um hedonista à satisfação de
seus desejos, percebe não encontrar nesse caminho fim algum que lhe garanta uma satisfação
completa. A vida do esteta é rodeada por um tédio que sempre lhe persegue; não importa o
quanto caminha, percebe que os passos do tédio são rápidos e que ele o acompanha. O cúmulo
do esteta é o sentimento de desespero, que consiste em perder as esperanças quanto ao que lhe
virá adiante.

3.2. Estádio Ético

O indivíduo que compreende a que fim se leva sendo um esteta, ao desespero, é


impulsionado a renunciar o desejo como princípio, isto é, não mais se guiar por ele em suas
decisões na existência, mas sim ao princípio do dever. Em outras palavras, deixa a vontade
estética para seguir a lei ética, e por isso, para Kierkegaard, é um indivíduo no estádio ético,
que atingiu um nível existencial superior ao esteta, pois agora tem um sentido para sua vida.
O indivíduo que guia sua existência pela faculdade do dever tem como sentido da vida
a adequação à lei ética universal, à moral externa. A figura aqui é do esposo fiel, que não
renuncia totalmente os prazeres da carne, mas os adequa ao matrimônio; que consegue manter
relações amorosas sólidas, pois não foge das responsabilidades e não se guia pelo momento;
que vive uma vida regrada na sociedade, na família e no trabalho.
Esta adequação está longe de ser um problema para o ético, pois é de sua vontade
seguir o dever e as regras morais de sua comunidade. Seguir as regras porque deseja segui-las
não é um peso para o ético, mas um bem estar. Aqui, portanto, é a razão o princípio norteador
deste estádio.
Entretanto, Kierkegaard considera que o ético encontra uma contradição entre razão e
amor. Para o filósofo, as leis universais da moral não são capazes de nortear com sucesso
todos os diversos acontecimentos da existência, isto é, há momentos na vida em que não
temos como nos guiar por uma regra universal de comportamento. O amor pede a suspensão
temporária da ética, pois uma lei universal não pode dar conta de cada existência particular.
Sendo assim, cada ação regida pela lei universal exclui o indivíduo em particular. Quando o
indivíduo se percebe nesta situação de exclusão de si mesmo, surge o arrependimento.
Ademais, ressurge a angústia, pois percebe não ter novamente qualquer princípio seguro para
nortear suas ações, e se vê de volta envolvido no mar de possibilidades da existência.
Em Temor e Tremor (1979), Kierkegaard analisa a situação do personagem bíblico
Abraão. Para o indivíduo ético, a atitude de Abraão não é nada mais que uma tentativa de
assassinato de seu próprio filho. Entretanto, para o indivíduo que reconhece o amor e percebe
que as regras não norteiam com segurança toda situação, percebe na atitude de Abraão um
sacrifício em nome de um bem maior, o amor6.
O problema do indivíduo que passou pelo estádio estético e se encontra no estádio
ético, bem como o motor para a saída deste último, é, portanto, a descoberta de que nem
vontades estéticas e nem leis éticas conduzem a um caminho existencial pleno, pois nelas
somos conduzidos ou à momentaneidade da sensação e às contradições da moral universal:
“Kierkegaard aponta a aflição extrema do homem ao deparar-se com o vazio que não é
preenchido nem pelos prazeres estéticos, nem pelas obrigações éticas” (OLIVEIRA;
CREMONEZI, 2008). O indivíduo que percebe não ter encontrado seu caminho nos estádios
anteriores percebe ter de renunciar aos princípios do desejo e do dever para realizar o salto da
fé.

3.3. Estádio Religioso

A partir da consciência subjetiva de um indivíduo de que sua existência não é


realizada nem pelas vontades estéticas e nem pela lei ética, ele é impulsionado a realizar um
salto no escuro, o salto da fé. Entretanto, Oliveira e Cremonezi ressaltam que
[...] apesar da vida religiosa ser consequência dos dois primeiros estágios,
requer-se por ela uma decisão. Kierkegaard entende que teve que fazer uma
escolha, muito clara, pela vida religiosa. Entre as várias vocações que
estavam diante de si, ele escolheu a vida religiosa, que para o filósofo
torna-se a forma de vida mais difícil, entre outras coisas, por ser marcada
pela solidão e pelo olhar atento de Deus. (OLIVEIRA; CREMONEZI,
2008)
Por isso, é também o estádio do risco e das incertezas. Na visão de Kierkegaard, o
indivíduo no estádio religioso tem o poder de se colocar diante de Deus, do Absoluto.
Portanto, neste estádio, em última instância, não se impera nem a sensação nem a razão, mas
o amor.

6
A verdadeira moral zomba da moral, disse Pascal no século XVII. O amor está além do bem e do mal, disse
Nietzsche poucas décadas depois de Kierkegaard. Em outras palavras, o amor desconhece regras universais de
conduta.
Aqui é preciso tomar um certo cuidado. Novamente, não se trata de subsumir a
liberdade individual perante a grandeza de Deus, e como que obedecer os ideais de Deus (e do
cristianismo) de acordo com isso. Ao contrário, o indivíduo que passou pelos três estádios
quer regular suas ações pelo amor, pela fé, e se aproxima de Deus na medida em que este é o
sujeito e representação máxima do amor. Trata-se, portanto, de uma identificação de sua
vontade com a vontade de Deus, e não uma adequação aos ideais Dele.
O estádio religioso é, portanto, o estádio adulto da existência humana, a síntese entre
os contraditórios. É também o estádio da vida autêntica: o indivíduo se regra de maneira
subjetiva, carregando em si a vontade de Deus.

3.4. Conclusão

De acordo com a presente exposição, podemos concluir que Kierkegaard cumpre com
sua proposta de tentar explicar a vida concreta do Homem, com suas situações limítrofes e
sua busca por uma vida autêntica dotada de sentido. A partir dos eventos de sua vida, buscou
aquilo que chamamos aqui de giro conceitual, isto é, de passar a buscar o conhecimento do Eu
e de sua existência partindo de uma subjetividade existencial e concreta. Essa mudança no
paradigma da filosofia estará de maneira ou de outra em muitas peças de nossa
contemporaneidade.
Vimos que é da relação dialética entre os estádios estético e ético que o Homem é
capaz de realizar sua síntese, atingindo o estádio religioso, marcado pelo encontro com Deus e
o amor como regulador de suas ações. O que resta examinar, e o que será feito na seção
seguinte, será testar, a partir de certos critérios, sua explicação da vida pelos três estádios e
compreender se Kierkegaard consegue cumprir com suas pretensões.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS E APRECIAÇÃO

Vimos nas unidades anteriores que a filosofia de Kierkegaard nasce como crítica ao
idealismo alemão, sobretudo ao idealismo de Hegel. O filósofo dinamarquês acusa Hegel de
ter “aprisionado” o indivíduo num grande sistema, abordagem tal que abre mão de qualquer
aspecto concreto, subjetivo e existencial dos indivíduos, mas que foca na estrutura da
realidade e o modo de compreensão dela - a dialética. Assim, as preocupações da filosofia de
Kierkegaard centram-se numa libertação do indivíduo das garras do idealismo hegeliano e,
coerentemente, sua explicação da vida humana deve carregar certos traços para que se
constitua uma nova forma de pensar a existência humana. Estes traços que Kierkegaard
precisa atender na sua explicação são: pensar o indivíduo 1) levando em conta os aspectos
concretos de sua vida e 2) liberto deste sistema que o suprime.

4.1. O problema da vida concreta

É possível dizer que Kierkegaard cumpre com o primeiro requisito de sua filosofia,
isto é, ele pensa o indivíduo levando em conta os aspectos concretos dessa vida. Os três
estádios da existência são reflexos de uma verdadeira vida concreta, a de Kierkegaard, e
parecem ter correspondência, em certa medida, à vida humana geral, no que diz respeito ao
seu campo subjetivo: as preocupações com a auto realização e a autenticidade, as seduções da
vida e o desespero, o dilema da escolha e a angústia, a insuficiência que nos faz buscar algo
maior que nós. Por isso, a filosofia de Kierkegaard nos concede, dentre outras coisas, matéria
para pensarmos nossa própria existência e condição enquanto seres humanos.

4.1.2. O problema do indivíduo suprimido

O segundo ponto, sobre pensar o indivíduo liberto do sistema que o suprime (no caso,
a dialética hegeliana), se mostra um pouco mais complexo que o primeiro. Quando
Kierkegaard acusa Hegel de ter suprimido o indivíduo a uma estrutura, ele quer dizer que
nessa perspectiva não é possível pensá-lo sem ela, pois a compreensão da nossa existência
deve ser buscada olhando para fora, para o objetivo, essa estrutura, e não para dentro, para o
subjetivo. Kierkegaard pensa o indivíduo como liberto deste sistema na medida em que
inverte esse paradigma, colocando o espelho voltado para o sujeito, buscando a realização e a
compreensão da existência a partir da subjetividade. Na perspectiva de Kierkegaard, o que
determina o indivíduo não é mais um fluxo externo que estrutura toda a realidade, mas a
própria vontade e liberdade desse indivíduo que escolhe seus caminhos, retirando assim o
indivíduo da prisão de Hegel.
Entretanto, um problema - um tanto implícito - pode surgir. Kierkegaard parece retirar
o indivíduo do sistema de Hegel, a estrutura da realidade, mas colocá-lo sob outro sistema, o
seu pensamento determinante dos aspectos da existência, ainda que este tenha um peso
diferente. Isto é: se é certo que Kierkegaard retira o indivíduo do sistema hegeliano, ele o faz
através de uma sistematização da própria existência, determinando seus aspectos possíveis; se
ele de fato abarca a vida concreta, o faz através dos elementos de sua própria, sendo, em certa
medida, pessoal. Kierkegaard realiza, portanto, uma determinação pessoal da existência em
geral, o que, a título de matéria para o pensamento, não encontramos problema, pois atinge
sua finalidade de nos fazer pensar sobre a nossa própria existência das considerações de
Kierkegaard sobre a sua própria. Mas como resposta definitiva ao que é a existência em geral,
quando ele tece uma teoria que responde como atingir a realização e a autenticidade, quais os
elementos esperados nesse caminho, a necessidade da fé, pode ser insuficiente para outras
existências.
Quer dizer, então, que para que um indivíduo se realize na vida e possua uma
existência autêntica, é preciso seguir os passos descritos e vividos por Kierkegaard? Nesse
ponto o último estádio, o religioso, se mostra o mais preocupante. Como pode-se esperar que
uma existência atinja seu ápice a partir do contato com Deus, um feito tão pessoal e
particular? Kierkegaard não se contenta em expor o “método” de compreensão da existência,
esse olhar para o subjetivo, mas arrisca a estabelecer os possíveis estádios que compõem essa
existência e os caminhos que podem ser seguidos nela. Assim, ao retirar o indivíduo da cerca
do hegelianismo e pensar sobre a existência em geral, parece acabar por resumir as
existências particulares à dele.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PRIMÁRIA

KIERKEGAARD, S. Diário de um sedutor; Temor e Tremor; O Desespero


Humano. Nova Cultural: São Paulo, 1979.
______. Ou-Ou: Um Fragmento de Vida (Primeira Parte). Lisboa: Relógio D'Água
Editores, 2013.

BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA

OLIVEIRA, I. CREMONEZI, A. R. A existência humana em seus estágios estético,


ético e religioso, segundo Sören Kierkegaard. Revista Frontistés, Santa Maria, vol. 2, n. 3,
2008.

SANTOS, R. G. Sobre o desespero em Kierkegaard: uma crítica ao idealismo


alemão. In: ALMEIDA, F. A. (Org.). Filosofia: os desafios do pensar. São Paulo: Científica
Digital, 2021, pp. 198-219.

SGANZERLA, A.; VALVERDE, A. J. R.; FALABRETTI, E. (Orgs.). Natureza


humana em movimento: ensaios de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2012.

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