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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


Depto. de Filosofia - Bacharelado

OS TRÊS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA HUMANA EM KIERKEGAARD


Vinicius Fulas1

INTRODUÇÃO

Ora, o problema que se impõe naturalmente a Kierkegaard quando este


acusa e critica Hegel de compreender a vida humana subordinada a um sistema,
compreensão essa que, para Kierkegaard, faz sumir os traços subjetivos e
concretos da mesma, é explicá-la com outro enfoque, não mais olhando para o
grande mecanismo que a ronda e concebendo a existência humana como
subsumida neste grande fluxo, mas para ela própria, isto é, essa vida concreta,
subjetiva, individual e seus aspectos.
Para abarcar a vida concreta do indivíduo, Kierkegaard lança mão da
noção dos três estádios da existência humana, que surge em uma de suas
primeiras obras, Temor e Tremor, de 1843. Do ponto de vista do dinamarquês,
haveriam três estádios possíveis da vida humana, tendo em cada uma delas uma
faculdade predominante e norteadora da existência em questão. São,
respectivamente, estádio estético e o desejo, estádio ético e o dever, estádio
religioso e a fé.
Trataremos desta abordagem de Kierkegaard nesta unidade, enquanto
que o exame e as críticas a ela ocorrerão na terceira unidade da disciplina, em que
tentaremos mostrar se seu pensamento filosófico, no que tange os três estádios da
existência, dá conta de explicar a complexidade da vida concreta e se esta, em
novas mãos, deixa de ser suprimida pelos mecanismos externos a ela.

1 OS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA HUMANA

A primeira questão que nos é colocada aqui é de como devemos


compreender a noção dos estádios no pensamento filosófico de Kierkegaard.

1
Graduando no curso de Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria.
Endereço eletrônico: vinicius.fulas@acad.ufsm.br
Para se ter uma boa compreensão dessa noção, é necessário advertir
contra as ideias de que 1) os estádios são fases que se passam de modo
necessário em um tempo linear, 2) que os estádios são bem delimitados e que 3)
demarcam transformações completas nos indivíduos.
Os estádios devem ser compreendidos como âmbitos da existência
humana, caracterizados pela faculdade dominante perante as outras. A própria
origem do conceito de estádio, como uma unidade de medida antiga grega,
refere-se a algo de modo espacial e não temporal. Assim sendo, um estádio é uma
categoria que demarca como se está levando a existência, qual é a faculdade
norteadora de suas ações.
Quando compreendemos a noção de estádio como fase, referindo-se
assim a uma estrutura linear e temporal de progresso, cometemos o equívoco de
pensá-los como necessários a cada vida subjetiva, como momentos que serão
ultrapassados naturalmente. O problema aqui é que se anula a liberdade,
pressuposta por Kierkegaard na própria existência, de se manter em um dos
estádios se assim o indivíduo quiser, por exemplo. A passagem de um estádio para
outro é, portanto, possível, e não necessária, pois deve-se ter em mente que ela
depende da vontade de um indivíduo dotado de liberdade.
Os estádios não possuem suas fronteiras entre si muito bem delimitadas.
Ao contrário, se mesclam e se confundem na existência. Um indivíduo pode
carregar em si características do estádio estético e ético ao mesmo tempo, por
exemplo. O que irá definir em qual deles um indivíduo está é o elemento que
prevalece diante de outro em um momento de sua vida. É por esse motivo também
que os estádios não demarcam transformações completas na vida dos indivíduos.
Na verdade, eles são reflexos concretos das faculdades naturais do ser humano,
tais como o desejo, o dever e a fé. Por isso, não se trata de abandonar os traços do
estádio anterior, mas de ressignificá-los tendo por base as características do estádio
em que se está. Oliveira e Cremonezi concluem essa questão:
Falar em esfera da existência é apontar o ponto de vista, o horizonte, a
preocupação pelo qual se examina e se quer participar na existência. Na
medida em que há faculdade e necessidades estéticas, éticas e religiosas
na existência humana, não se pode conceber o abandono puro e simples
de uma ou duas dessas faculdades para nos enclausurarmos em uma
esfera a despeito de todo o resto. Trata-se antes de privilegiar um desses
aspectos e de relacioná-lo com o todo com base nessa decisão. (2008, p.2)
Mesmo que Kierkegaard tenha criticado essencialmente o pensamento
de Hegel, não pôde deixar de ser tocado por ele, e naturalmente adotou a estrutura
dialética em sua concepção basilar do Homem, como vimos na unidade anterior
(corpo, alma e espírito). Aqui não é diferente. Se é verdade que os três estádios não
se regulam por uma estrutura linear e necessária do tempo, se regulam, ao
contrário, por uma estrutura dialética. Os estádios estético e ético compõem tese e
antítese, enquanto que o religioso a síntese. A partir deste ponto de vista, fica claro
também que os estádios possuem uma hierarquia entre si, tendo como o ápice da
existência o encontro com Deus, como veremos mais adiante. Outra coisa que fica
salientada a partir desta visão é a liberdade: a síntese (o ápice da existência) deve
ser realizada pelo próprio indivíduo, e não ocorre de maneira natural, mas por
vontade e necessidade do próprio indivíduo de se construir.

2 ESTÁDIO ESTÉTICO

A faculdade que domina o indivíduo no estádio estético é o desejo, a


sensação. O primeiro dos estágios elencado por Kierkegaard pode inclusive ser
considerado uma alusão à sua própria vida. Com o rompimento matrimonial com
Regine Olsen e a morte de seu pai, Kierkegaard se viu entregue aos prazeres
momentâneos e sensíveis, a uma condição de caçador incessável de seu próprio
gozo:
[...] entregou-se a uma vida desregrada de prazeres, gastando altas somas
em roupas, comidas e bebidas. Esse período crítico de sua juventude
iniciou-se no mesmo ano da morte de seu pai (1838) e teve evidentes
relações com esse triste acontecimento. (KIERKEGAARD, 1979, p. X)

A figura de Don Juan, um sedutor fictício difundido na cultura literária, é a


que mais representa o esteta. É aquele que está completamente entregue à carne,
ao terrestre, à vida desregrada e sedutora. Ele não busca um sentido para sua vida,
mas apenas as migalhas que encontra nesta para tentar preencher seu vazio
interior. Por isso é um desesperado por excelência, “um sujeito sem graça, é alguém
desgraçado, é um indivíduo pobre miserável, vil desprezível, digno de dó e
compaixão” (OLIVEIRA; CREMONEZI, 2008, p..
O esteta é também aquele que não consegue manter relações amorosas
e sociais de maneira estável, pois, guiado pelo seu desejo desenfreado, é movido a
experimentar diversas relações e diversas pessoas em nome de seu prazer. Vive as
pessoas como uma “experiência sem amanhã”, um “brinquedo de um instante”.
O problema que abala o esteta, bem como o motor através do qual o
indivíduo é impulsionado a sair deste estádio, é o de que, guiando-se como um
hedonista à satisfação de seus desejos, percebe não encontrar nesse caminho fim
algum que lhe garanta uma satisfação completa. A vida do esteta é rodeada por um
tédio que sempre lhe persegue; não importa o quanto caminha, percebe que os
passos do tédio são rápidos e que ele o acompanha. O cúmulo do esteta é o
sentimento de desespero, que consiste em perder as esperanças quanto ao que lhe
virá adiante.

3 ESTÁDIO ÉTICO

O indivíduo que compreende a que fim se leva sendo um esteta, ao


desespero, é impulsionado a renunciar o princípio do desejo, isto é, não mais se
guiar por ele em suas decisões na existência, mas sim ao princípio do dever. Em
outras palavras, deixa a vontade estética para seguir a lei ética, e por isso, para
Kierkegaard, é um indivíduo no estádio ético, que atingiu um nível existencial
superior ao esteta, pois agora tem um sentido para sua vida.
O indivíduo que guia sua existência pela faculdade do dever tem como
sentido da vida a adequação à lei ética universal, à moral externa. A figura aqui é do
esposo fiel, que não renuncia totalmente os prazeres da carne, mas os adequa ao
matrimônio; que consegue manter relações amorosas sólidas, pois não foge das
responsabilidades e não se guia pelo momento; que vive uma vida regrada na
sociedade, na família e no trabalho.
Esta adequação está longe de ser um problema para o ético, pois é de
sua vontade seguir o dever e as regras morais de sua comunidade. Seguir as regras
porque deseja segui-las não é um peso para o ético, mas um bem estar. Aqui,
portanto, é a razão o princípio norteador deste estádio.
Entretanto, Kierkegaard considera que o ético encontra uma contradição
entre razão e amor. Para o filósofo, as leis universais da moral não são capazes de
nortear com sucesso todos os diversos acontecimentos da existência, isto é, há
momentos na vida em que não temos como nos guiar por uma regra universal de
comportamento. O amor pede a suspensão temporária da ética, pois uma lei
universal não pode dar conta de cada existência particular. Sendo assim, cada ação
regida pela lei universal exclui o indivíduo em particular. Quando o indivíduo se
percebe nesta situação de exclusão de si mesmo, surge o arrependimento.
Ademais, ressurge a angústia, pois percebe não ter novamente qualquer princípio
seguro para nortear suas ações, e se vê de volta envolvido no mar de possibilidades
da existência.
Em Temor e Tremor (1979), Kierkegaard analisa a situação do
personagem bíblico Abraão. Para o indivíduo ético, a atitude de Abraão não é nada
mais que uma tentativa de assassinato de seu próprio filho. Entretanto, para o
indivíduo que reconhece o amor e percebe que as regras não norteiam com
segurança toda situação, percebe na atitude de Abraão um sacrifício em nome de
um bem maior, o amor2.
O problema do indivíduo que passou pelo estádio estético e se encontra
no estádio ético, bem como o motor para a saída deste último, é, portanto, a
descoberta de que nem vontades estéticas e nem leis éticas conduzem a um
caminho existencial pleno, pois nelas somos conduzidos ou à momentaneidade da
sensação e às contradições da moral universal: “Kierkegaard aponta a aflição
extrema do homem ao deparar-se com o vazio que não é preenchido nem pelos
prazeres estéticos, nem pelas obrigações éticas”, dizem Oliveira e Cremonezi. O
indivíduo que percebe não ter encontrado seu caminho nos estádios anteriores
percebe ter de renunciar aos princípios do desejo e do dever para realizar o salto da
fé.

4 ESTÁDIO RELIGIOSO

[...] apesar da vida religiosa ser consequência dos dois primeiros estágios,
requer-se por ela uma decisão. Kierkegaard entende que teve que fazer
uma escolha, muito clara, pela vida religiosa. Entre as várias vocações que
estavam diante de si, ele escolheu a vida religiosa, que para o filósofo
torna-se a forma de vida mais difícil, entre outras coisas, por ser marcada
pela solidão e pelo olhar atento de Deus. (OLIVEIRA; CREMONEZI, 2008,
p. X)

A partir da consciência subjetiva de um indivíduo de que sua existência


não é realizada nem pelas vontades estéticas e nem pela lei ética, ele é

2
A verdadeira moral zomba da moral, disse Pascal no século XVII. O amor está além do bem e do
mal, disse Nietzsche poucas décadas depois de Kierkegaard. Em outras palavras, o amor
desconhece regras universais de conduta.
impulsionado a realizar um salto no escuro, o salto da fé. Por isso, é também o
estádio do risco e das incertezas.
Na visão de Kierkegaard, o indivíduo no estádio religioso tem o poder de
se colocar diante de Deus, do Absoluto. Portanto, neste estádio, em última
instância, não se impera nem a sensação nem a razão, mas o amor.
Aqui é preciso tomar um certo cuidado. Novamente, não se trata de
subsumir a liberdade individual perante a grandeza de Deus, e como que obedecer
os ideais de Deus (e do cristianismo) de acordo com isso. Ao contrário, o indivíduo
que passou pelos três estádios quer regular suas ações pelo amor, pela fé, e se
aproxima de Deus na medida em que este é o sujeito e representação máxima do
amor. Trata-se, portanto, de uma identificação de sua vontade com a vontade de
Deus, e não uma adequação aos ideais Dele.
O estádio religioso é, portanto, o estádio adulto da existência humana, a
síntese entre os contraditórios. É também o estádio da vida autêntica: o indivíduo se
regra de maneira subjetiva, carregando em si a vontade de Deus.

5 CONCLUSÃO

De acordo com a presente exposição, podemos concluir que Kierkegaard


cumpre com sua proposta de tentar explicar a vida concreta do Homem, com suas
situações limítrofes e sua busca por uma vida autêntica dotada de sentido. Vimos
que é da relação dialética entre os estádios estético e ético que o Homem é capaz
de realizar sua síntese, atingindo o estádio religioso, marcado pelo encontro com
Deus e o amor como regulador de suas ações. O que resta examinar, e o que será
feito na unidade seguinte, será testar, a partir de certos critérios, sua explicação da
vida pelos três estádios e compreender se a) Kierkegaard consegue renunciar
aquele elemento que tanto criticou, a saber, a supressão da vida concreta e se b) os
três estádios dão conta de explicar a complexidade da existência humana.
BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL
KIERKEGAARD, S. Vida e Obra; Diário de um sedutor; Temor e Tremor; O
Desespero Humano. Nova Cultural: São Paulo, 1979.

BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA
Estádio estético, Wikipedia. Disponível em Estádio estético – Wikipédia, a
enciclopédia livre. Data de acesso: 29 mai 2022.

Estádio ético, Wikipedia. Disponível em Estádio ético – Wikipédia, a enciclopédia


livre. Data de acesso: 29 mai 2022.

Estádio religioso, Wikipedia. Disponível em Estádio religioso – Wikipédia, a


enciclopédia livre. Data de acesso: 29 mai 2022.

OLIVEIRA, I. CREMONEZI, A. R. A existência humana em seus estágios


estético, ético e religioso, segundo Sören Kierkegaard. Revista Frontistés, Santa
Maria, vol. 2, n. 3, 2008. Disponível em
<http://revistas-old.fapas.edu.br/index.php/frontistes/article/view/132> Data de
acesso: 28 mai 2022.

SANTOS, R. G. Sobre o desespero em Kierkegaard: uma crítica ao idealismo


alemão. In: ALMEIDA, F. A. (Org.). Filosofia: os desafios do pensar. São Paulo:
Científica Digital, 2021, pp. 198-219.

Søren Kierkegaard, Wikipedia. Disponível em Søren Kierkegaard – Wikipédia, a


enciclopédia livre. Data de acesso em 7 de maio de 2022.

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