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The oblivion of the transcendent-divine order as a crisis in the West by Eric Voegelin
Resumo: É perceptível na sociedade atual uma crise dos símbolos transcendentes, ou seja, vemos que no mundo
ocidental atual, aqueles símbolos engendrados no salto no ser acabaram por ser deixados de lado, fazendo com
que outros símbolos se percam também, e então fazendo com que o homem abandonasse o transcendente e vivesse
uma vida unicamente imanente. O presente trabalho apresentará o conceito de salto no ser, como ele se deu nas
sociedades hebraica e grega, e quais suas consequências, além de mostrar, por meio de uma análise da obra Ordem
e história de Eric Voegelin, como estes símbolos de transcendência, engendrados no salto no ser, acabaram sendo
abandonados pelo homem moderno, mostrando que, ao abandonar a transcendência, o homem abandona a ordem,
a consciência e o significado de sua própria existência.
Palavras-chave: Símbolo. Transcendência. Ordem
Abstract: It is remarkable in the current Society a crisis on the transcendent symbols, in other words, we notice
that in the current western world, those symbols engendered in a leap in the being ended up put set aside, making
other symbols to be lost too, and then compelling the mankind to relinquish the transcendent and lived on a purely
immanent life. The following paper is going to present the concept of leap in the being, how it happened in the
Hebrew and Greek societies, and which are its consequences, besides showing through an analysis on the work
Order and History by Eric Voegelin how those symbols of transcendence, engendered in the leap in the being,
ended up being put aside by the modern man, showing that, obliviating transcendence, man abandons order,
conscience and the meaning of his own existence.
Keywords: Symbol. Transcendence. Order
1. Introdução
Em uma rápida análise do homem moderno, de sua maneira de agir e filosofar, não é
difícil percebermos que o aspecto transcendente da realidade foi deixado de lado, fazendo com
que o homem perdesse aquilo que lhe conferia uma certa completude. O homem somente
consegue se entende quando ele perceber os símbolos transcendentes e, buscando o sumo bem
apontado por eles, viver na ordem cósmico-transcendente, ou seja, uma realidade regida pela
vontade do homem que busca o eterno, e não o imanente. Este trabalho busca analisar, por meio
dos escritos de Eric Voegelin (3 de janeiro de 1901 – 19 de janeiro de 1985), essa realidade e
se dividirá em dois momentos.
No primeiro será apresentado o conceito de ordem cósmico-divina e ordem cósmico
transcendente, mas iremos focar no divisor destas duas ordens, o salto no ser, momento do qual
o transcendente toca no intelecto do homem, fazendo com que ele se abra para a possibilidade
já existente no ser humano de buscar a Deus e a transcendência. O salto no ser se dá em dois
momentos na história, primeiro com Moisés no episódio bíblico da sarça ardente, em que Deus
se apresenta a Moisés pedindo a libertação do povo que estava cativo no Egito, e depois com
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os gregos, de maneira especial com Platão, que relata na República a desordem social em que
se encontrava a pólis de sua época por conta das desordens que já eram intrincadas na sociedade
aqueia.
Em um segundo momento iremos analisar o que levou a sociedade a chegar no ponto
de imanentismo atual, mostrando que vários eruditos, entre eles Voltaire, Diderot, Comte, etc.,
utilizaram de seus escritos para auxiliar na degeneração do pensamento transcendental.
Analisaremos também as consequências dessa desordem causada pela falta de transcendência,
de maneira especial, a perca do sentido do próprio homem, pois o mesmo só pode se
compreender completamente na tensão entre o imanente, do qual ele vive hoje, e o
transcendente, realidade que sua alma busca, se qualquer uma dessas partes for deixada de lado,
segundo Voegelin, o homem perderá sua humanidade.
A transcendência não é puramente um conceito filosófico do qual o homem pode refletir
durante sua vida e deixá-la de lado quando sentir que a reflexão foi suficiente, pois o homem,
após a abertura a busca do transcendental ocasionada pelo salto no ser, deve viver em função
de se encontrar com o sumo bem, pautando sua vida e a sociedade com uma constante
lembrança de que aquilo que ali acontece não é só para agora, mas ecoa durante a eternidade.
Buscaremos entender neste artigo como o homem se aproximou dessa realidade e como, por
várias questões, ele se afastou dela, e o que ocasionou esse afastamento.
2. A ordem
Um dos principais temas tratados por Eric Voegelin é a ordem, mesmo sendo um tema
tratado a muito tempo pelo ser humano, desde, inclusive, o período paleolítico, com alguns
símbolos e monumentos, vemos claramente isso em um dos seus textos das reflexões
autobiográficas:
Refiro-me à ordem da realidade, conhecida pelo gênero humano desde que temos os
primeiros registros escritos, e há ainda mais tempo com as pesquisas arqueológicas
que nos desvelam símbolos gravados em monumentos já no paleolítico.
Esses insights sobre a estrutura e o problema do ajuste - ou, como disse, da sintonia -
já estão presentes em documentos literários egípcios do terceiro milênio a.C.
(VOEGELIN, 2007, p. 117)
seja, os deuses influenciavam a terra, viviam aqui e o homem vivia em função de agradá-los
neste mundo, diferente da ordem que será descoberta após o salto no ser, denominada de
“transcendente-divina”, ou seja, o homem vive no cosmos em busca da realidade transcendente.
3. O salto no ser
O momento do qual a divindade toca na razão humana, mostrando para ela a verdadeira
força ordenante é o salto no ser, do qual será necessária uma breve explanação, exatamente
pela necessidade de explicar a adesão da ordem e, no futuro, o distanciamento da mesma
causado pelo ser humano.
Voegelin diz, a respeito do salto no ser, que:
pelos povos desde sempre, aquela ordem impressa no íntimo do ser pelo Logos e que guiou as
nações em seu desenvolvimento na era dos grandes impérios como os aqueus, egípcios, entre
outros. Essa ordem tem como exemplo os aqueus, povo da época de Homero, do qual ele relata
um pouco do pensamento durante a Ilíada, que há de ser analisada rapidamente neste trabalho.
Depois vemos o que de fato cria esta ruptura, que é “por meio da descoberta da ordem
transcendente-divina”. Esta ordem transcendente-divina não é descoberta pelo homem por
conta própria, mas sim influenciada pelo Logos que, em um certo momento, aproxima-se do
homem, seja com uma teofania, como aconteceu com o povo eleito por meio de Moisés, seja
pela razão, como aconteceu com os gregos em Platão e Aristóteles, ambos estes métodos de
encontro com a divindade podem ser classificados como saltos no ser, momentos dos quais a
divindade ordenante mostra a ordem primeira e acaba com a ordem cósmica e concreta, mas
passa a ser transcendente.
Ou seja, o salto no ser é, na realidade, o toque do divino na realidade, é o momento do
qual o criador da ordem, ou seja, a própria ordem, toca na razão humana, permitindo com que
ele passe de uma visão da ordem imanente, e passe para algo maior, algo transcendente,
deixando para trás a antiga ordem, da qual se degradou juntamente com o tempo. É nesse
momento que homem acaba por criar símbolos para explicitar a realidade transcendente da qual
ele começou a participar e, consequentemente, a buscar. Vai dizer Dayane Schneider:
Para Voegelin um símbolo surge da necessidade que um ser humano tem de ordenar
a sua consciência e dar significado a sua existência. Um símbolo é a intelecção que
manifesta uma estrutura de ordem que uma consciência apreendeu de uma
experiência primordial. (SCHNEIDER, 2019, p. 3)
É perceptível que a criação dos símbolos está intrinsecamente ligada a uma experiência
marcante à realidade, e como veremos a diante, os episódios do encontro com o transcendente
são grandes acontecimentos, é neste momento que o homem começa a pensar não somente em
sua sobrevivência, mas em algo a mais, e esse algo a mais deve ser simbolizado, para que não
seja perdido o ocorrido e o homem volte a vida como antes.
Dayane Schneider continua o parágrafo da seguinte maneira:
Para ele [Voegelin] a experiência do Deus transcendente que estabeleceu uma aliança
com Israel e a descoberta grega da vida da razão são os dois grandes ‘saltos no ser’
ocorridos no mundo ocidental, ou seja, um ‘salto qualitativo’ na apreensão de
significado e na criação de símbolos para tornar inteligível a ordem do ser.
(SCHNEIDER 2019, p. 3)
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Mesmo com esse toque da divindade na realidade, a razão humana não é completamente
aberta, o salto no ser não é uma revelação completa da realidade, mas algo que abre os olhos
do homem para a existência da ordem transcendente-divina, isto nos é claramente explicado no
rodapé de uma de suas obras:
Apesar de ser um termo usado para esclarecer um fato que ocorreu com o povo eleito
de Israel no encontro entre Moisés e Deus, o ‘salto no ser’ é, antes de tudo, a
experiência do ser divino com o transcendente ao mundo e é inseparável da
compreensão do homem como ser humano. Mas essa experiência de transcendência
não cria uma verdade que será possuída como um objeto; ela é ‘o lampejo do eterno
no tempo’, que revoluciona a existência humana, mas, longe de aliviá-la de sua
ignorância essencial, aprofunda essa mesma ignorância ao permitir no homem um
vislumbre do mistério abissal do Ser. (VOEGELIN, 2007, p. 122)
O salto no ser também não é uma fuga da realidade, vai dizer Voegelin que:
Ou seja, a partir do momento que o homem vive o salto no ser, ele não foge da realidade,
mas aplica essa parceria feita com Deus para viver ordenadamente a realidade humana. O salto
somente tem sentido dentro da existência humana, pois é nela que a ordem se desenvolve e o
homem pode aplicar essa parceria ordenante que sua alma é envolvida após o salto.
É com Moisés que o salto no ser de fato vai acontecer, mais especificamente na
passagem da sarça ardente, Êxodo 3, 1-4, que o transcendente entra em contato com a alma do
homem, fazendo com que a mesma haja uma mudança ontológica. Voegelin vai dizer:
Por um profeta, Yahweh fez Israel subir do Egito”. A ordem de Israel teve sua origem
em moisés; e a ordem na alma de Moisés teve sua origem em seu salto no ser, ou seja,
em sua resposta a uma revelação divina. Dispomos de duas fontes principais para o
entendimento da experiência mosaica. A primeira é o prólogo à revelação, em Êxodo
2; a segunda é o relato da própria revelação, no episódio da sarça em Êxodo 3, 1-4,
17. (VOEGELIN, 2014, p. 457)
É no relato da sarça que a ordem israelita é revelada, porém o povo não toma
conhecimento dela já em sua revelação, em um primeiro momento somente Moisés, aquele que
vivenciou o salto, e depois, na passagem do Sinai, é que o povo toma parte, por meio do
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decálogo, da ordem transcendente vigente, que superou a ordem cósmica anterior, vivida pelo
povo antes de Moisés.
Mesmo o salto no ser acontecendo diretamente para só uma pessoa, no caso Moisés,
Yahweh vai incluir seu povo nesse salto qualitativo e ontológico quando vai dizer: “Eu vi a
miséria do meu povo que está no Egito.” (Ex 3, 7). vai dizer o autor: “Como o seneh (sarça)
prenuncia o Sinai, o ammi (Meu povo) prenuncia a berith pela qual os clãs hebreus, que ainda
não têm conhecimento do destino que os aguarda, serão transformados em ‘meu povo’.”
(VOEGELIN, 2014, p. 461)
Todo o povo de Deus se envolve no salto no ser, pois é para ele que Yahweh se revelou,
é para aquele povo que a ordem transcendente foi revelada,
É perceptível durante o relato bíblico da história de Israel que essa ordem transcendente-
divina que o salto no ser proporcionou ao povo não foi seguida integralmente e que os símbolos
engendrados nesse momento foram deixados de lado, isso se mostra de uma maneira clara no
livro dos juízes, quando, por várias vezes, o autor sagado aponta que: “Então os israelitas
fizeram o que era mau aos olhos de Yahweh, e serviram aos baais.” (Jz 2, 11; 3, 7, 12; 4, 1; 6,
1. Etc.). Voegelin diz que:
Vemos, pois, repetir dentro da história de Israel a degradação da ordem, em que aquela
ordem engendrada no povo, de seguir Yahweh como seu único Deus, é abandonada e então o
am Yahweh (Povo de Yahweh) vai servir a outros Deuses, fazendo com que recebam uma
punição militar diante dos povos vizinhos que, percebendo a desordem interna do povo,
atacam-no. Após a derrota, o am Yahweh volta arrependido a seu Deus, buscando perdão.
Esse padrão de afastamento e aproximação da transcendente-divina também se
apresenta nos livros de Samuel e Reis, porém não com tanta facilidade como no texto de juízes.
Após todos esses afastamentos e retornos, o am Yahweh vai perceber que o verdadeiro
portador do significado, aquele que de fato expressa a ordem do povo judeu, não é o monarca,
nem o juiz, mas sim o profeta, que tem contato direto com Deus, aquele que é o centro da
ordem israelita.
Segundo Voegelin, o cântico de Débora (Jz 5) é o texto que melhor expressa, na época
dos juízes, a ordem israelita, mostrando que o am Yahweh não estava organizado politicamente,
mas sim envolta de Yahweh, era Deus que unia o povo, o autor vai dizer:
E o que se revelou com Yahweh na tempestade real não foi uma tempestade cósmica,
mas o zidekoth Yahweh (Jz 5, 11), literalmente: a justiça de Yahweh. O significado
do termo só pode ser conjecturado como os atos justos do Deus pelos quais ele
estabeleceu a ordem justa entre os homens. Yahweh era um Deus que se revelou na
ação histórica como o criador da ordem verdadeira. (VOEGELIN, 2014, p. 264)
O am Yahweh não é um povo reunido sobre uma ordem politicamente estruturada, não
era um povo conglomerado sobre uma ordem cósmica de um reinado como os outros povos,
mas ele tinha um diferencial, o am Yahweh era o povo que se reunia em volta de Yahweh, pois,
sendo Ele o criador e dispensador da ordem verdadeira, somente por meio dele o povo venceria
as dificuldades oriundas dos povos que cultuavam falsos deuses e que investiam contra o povo
escolhido.
Os antecedentes do salto no ser grego podem ser já encontrados nas obras de Homero,
principalmente na Ilíada e na Odisseia, mas também em outras obras trágicas escritas por
pensadores da época, falaremos um pouco de cada coisa em seu devido tempo.
Iniciemos falando sobre a obra Ilíada, escrita por Homero entre os anos 750 e 700 a.C,
da qual vai nos contar o nono ano da guerra de Troia, esta guerra teve início quando a rainha
Helena, mulher de Menelau, rei da Persa, foi raptada por Páris, filho do rei Príamo, de Troia.
A obra vai ter como personagem principal Aquiles, um semideus e guerreiro grego que, em um
determinado momento, acaba por perder seu melhor amigo, Pátroclo, na guerra pelas mãos de
Heitor, filho de Príamo, rei da Persa. Aquiles, tomado de imensa cholos (Cólera), não só mata
Heitor, mas amarra em sua carruagem e começa a dar voltas no túmulo de Pátroclo com o
cadáver de Heitor, chegando à necessidade de Zeus intervir pessoalmente no acontecimento, é
exatamente aí que a obra se encerra.
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A primeira obra mostra uma desordem no âmbito social, esta realidade de desordem
grega principalmente no cholos de Aquiles, um sentimento que tomou o semideus sem que
aquilo fosse pensado ou que aquele sentimento fosse racionalizado. Esta realidade foi bem
explicitada por Voegelin na obra Ordem e história II: O mundo da pólis - obra da qual ele
analisa a Ilíada com mais profundidade - quando ele diz:
Odisseia é a continuação de Ilíada, esta obra se passa 10 anos depois da guerra de troia
e se inicia com uma assembleia dos deuses que discutem as causas da guerra e seus despojos,
o épico também conta a volta do rei Odisseu para a sua casa, este retorno demorou 17 anos,
muitas coisas passaram Odisseu para chegar em sua terra, mas, chegando lá, tomou seu lugar
novamente como rei.
A necessidade da Odisseia não é simplesmente a continuação de uma história como
uma novela ou algo do gênero, mas sim a demonstração da verdadeira busca da origem da
desordem grega: “O que está realmente em jogo, portanto, não é um progresso da moralidade
ou da teologia, mas a questão genuinamente teórica da natureza do ser no que se refere à ordem
e à desordem da existência humana” (VOEGELIN, 2009, p.177).
Em uma última análise, todavia, as epopeias homéricas acabam por ser uma única
pergunta que ecoa no coração dos gregos, “seriam os deuses os culpados (Aitioi - αϊτιον) pelo
mal existente na sociedade?”, pois existia uma massa de pessoas que acusavam os deuses
exatamente de serem os causadores do mal, esses acusadores eram chamados de aitioontai.
Um bom resumo do pensamento grego sobre os deuses foi explanado por Voegelin.
A tendência de seu interesse etiológico pode ser, portanto, circunscrita pelas seguintes
teses:
1. O homem tem o hábito de responsabilizar os deuses por seus delitos, assim como
pelas más consequências de seus erros.
2. Teoricamente, esse hábito implica a afirmação de que os deuses são a causa do mal
que os homens praticam e sofrem. Esta afirmação está errada. É o homem, e não os
deuses, o responsável pelo mal.
3. Na pratica, esse hábito é perigoso para a ordem social. Os delitos serão mais
facilmente cometidos caso se possa transferir a responsabilidade aos deuses.
4. Historicamente, uma ordem civilizacional está em declínio e irá perecer se esse hábito
obtiver aceitação social geral. (VOEGELIN, 2009, p. 182)
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3.2.1. Platão
Depois de todos estes acontecimentos, vemos uma grande figura surgir do meio das
trevas da desordem, Voegelin vai comentar que Platão é o primeiro personagem no início do
salto no ser grego:
É visível que, para o pensador alemão, a desordem dentro da alma humana não
influencia somente aquele que padece dela, mas todo o ambiente do qual o sujeito está inserido
acaba por capengar em desordem, somente por meio de uma revolução espiritual é que esta
desordem poderia ser vencida.
Platão, já no Górgias encontra esta desordem que assolava Atenas, de uma maneira
facilmente visível pelos homens exemplares de sua época, pelos julgamentos, em que aquilo
que é o certo acaba por ser deixado de lado, vemos claramente essa análise mais aprofundada
a respeito da desordem na polis quando Platão escreve a República, esse é o diálogo que,
mesmo aparentemente estar falando sobre a vida justa, tem uma grande análise sobre a ordem
vigente em Atenas.
Precisamos, para compreender de onde vem esse vigor da desordem na alma, entender
que Platão vê os sofistas como os maiores causadores desta desordem, designando a prática
sofistica como polypragmosyne, ou allotriopragmosyne, podendo ser traduzido como a prática
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de várias artes, o pensador clássico vai dizer que não é possível praticar várias artes com
sucesso. Voegelin comenta que:
Aqui Platão nos diz, e Voegelin esclarece, que o real problema é a polypragmosyne na
alma, é quando nos dedicamos a várias coisas que não conseguimos governar verdadeiramente
a nossa alma e nos deixamos ao rumo das paixões, é nesse momento que o homem se torna
próximo daquilo que Aquiles se tornou no período da guerra de Tróia, momento do qual ele se
deixa levar pelas paixões, ou apetites, e comete atrocidades contra o seu Heitor.
Como foi dito acima, uma alma ordenada pode influenciar positivamente a sociedade,
fazendo com que a mesma perceba a desordem da qual ela está mergulhada e possa, se for da
vontade dela, voltar-se a busca do transcendente. Isso se dá porque a desordem não é material,
mas algo que está na mente do homem, da mesma maneira que uma psique ordenada pode
influenciar a realidade da qual ele habita, também um exacerbado número do psiques
desordenadas se gera e desordena outras psiques. Vai dizer Voegelin:
A República, embora comece com um diálogo sobre a vida justa do indivíduo, pode
se tornar uma investigação da ordem e desordem na sociedade, porque o estado da
psique individual, em saúde ou doença, expressa-se no estado correspondente da
sociedade. Uma pólis está em ordem quando é governada por homens com almas bem
ordenadas; ela está em desordem quando as almas dos governantes estão
desordenadas. (VOEGELIN, 2015, p. 130).
Não nos estenderemos mais, pois é visível a importância de Platão para o salto no ser
grego.
3.2.2. Aristóteles
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Já nos é conhecido que Aristóteles, antes de fundar o Liceu, foi aprendiz de Platão
durante bom tempo de sua vida, isso é claro quando analisamos como se desenvolvia seu
método de pensamento em alguns fragmentos de obras do começo de sua vida intelectual
A melhor pólis aristotélica não era nem uma pólis governada pela presença viva do
rei-filósofo, nem um jogo simbólico como a pólis das leis. Ela se tornou algo como
um enigma intelectual que precisava ser resolvido como uma questão de tradição. A
sobrevivência desse remanescente mostrou, no mínimo, a força viva da ideia helênica
de que a vida do homem só poderia encontrar a sua realização na polis. (VOEGELIN,
2015, p. 412)
Ou seja, para Aristóteles, a “boa polis” não era algo que precisava ser buscada por todos
os gregos, não resolvida por um rei-filosofo ou por uma alma ordenada unicamente, mas sim
algo que deveria ser desvendada intelectualmente com o desenvolvimento de toda a polis grega.
Voegelin deixa bem claro sua resistência ao pensamento aristotélico, é visível que ele
vai refletir que o pensamento de Aristóteles, por ser algo mais imanente, acaba por fugir daquilo
que é a ordem transcendente-divina que ambos – Aristóteles e Platão – estão tendo a
possibilidade de experimentar. Vemos, por exemplo, que Aristóteles não concebe uma relação
de amizade entre a divindade e o ser humano, pois não se pode ter uma verdadeira amizade
entre diferentes, somente entre iguais: “No caso de Aristóteles, o sintoma mais pungente dessa
hesitação é a sua insistência em que a amizade (philia) entre Deus e o homem é impossível”
(VOEGELIN, 2015, p. 421).
Eric Voegelin vai perceber outro problema no pensamento de Aristóteles, a grande
imanentização, é perceptível que a metafísica elaborada por Aristóteles é como uma contravia
do pensamento metafísico platônico, sendo este o criador do mundo das ideias, aquele já busca
um pensamento mais próximo da realidade, excluindo um outro mundo:
A natureza aristotélica do homem continua a ser uma essência imanente como forma
de um ser orgânico; a sua realização é um problema dentro do mundo. Embora o eu
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noético seja o theiotaton1 no homem, e embora sua realização seja concebida como
uma imortalização, a natureza humana encontra a sua realização imanentemente. A
transcendência não transforma a alma de tal maneira que ela possa encontrar sua
plena realização na transfiguração, por meio da Graça, na morte. (VOEGELIN, 2015,
p. 421-422)
4. Símbolos
Como já dissemos acima (p. 4-5), o salto no ser engendra vários símbolos e somente
por meio desses símbolos é que o homem pode interpretar a realidade, pois a mesma, agora
com um caráter transcendente, não é exprimível pela linguagem humana, deve-se então
encontrar símbolos que signifiquem essas realidades que agora movem o homem para o último
degrau da existência. Não é de nosso feitio, mas se faz necessário uma extensa citação que
explana exatamente como se dá esse processo de simbolização, iremos comentar um pouco a
respeito de cada momento do processo em seguida.
Voegelin nos apresenta na sua obra, e a professora Schneider vai deixar claríssimo com
sua explanação, que o processo de simbolização se dá em três etapas: a primeira é a participação
do homem no ser: ele sabe que é e que faz parte de uma comunidade de seres que habitam a
1 Theiotaton seria algo como “divinizado”, aqui Voegelin vai dizer que o nous é a parte divina no homem.
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realidade; a segunda é a durabilidade do ser: o homem não é infinito, então aquilo que ele
conseguiu apreender da realidade por meio dos símbolos deve ser passada a diante para que
aqueles que permanecerem possam continuar o processo, e não retroceder tudo; a última etapa
do processo de simbolização é inteligir o incognoscível: o homem utiliza dos símbolos para
aproximar a realidade incognoscível a sua compreensão, normalmente por meio de analogias
com a realidade mais simples de compreender.
Precisamos entender que os símbolos não são conceitos e nem somente funções que
representam a realidade:
O símbolo é mais que um conceito, mais que uma função representativa, surge num
momento presencial em que a realidade se ilumina. Voegelin selecionou o termo
símbolo para indicar como o pensar meditativo emerge da realidade da ordem, para
criar ordem na consciência questionante. Não pertence apensa ao âmbito da
comunicação em que dois interlocutores partilham uma idêntica experiência já
concluída: é também um modo de predicação que descobre novidades na tensão
original. [...] A função simbólica é evocativa da experiência de participação do ser,
na qual a consciência atinge a transparência para o questionamento originário, e a
partir da qual se deixa dizer a palavra meditativa, que articula em respostas o processo
da realidade. A expressão simbólica está dependente do evento que a produz; é
portadora de uma interrogação e de uma resposta, de uma experiência de ser e de uma
experiência de dizer. (SCHNEIDER, 2019, p. 11-12)
A utilização dos símbolos para a compreensão da realidade é necessária então para que
a participação do homem em uma experiência, incognoscível se não por aproximação
linguística, seja passada a outros da maneira mais próxima do acontecido e então essa
experiência engendradora de símbolos e, por exemplo, que produz o salto no ser não se perca
e o homem retroceda para uma ordem cósmico-divina, sem a busca do agathon nem da
consciência de uma realidade transcendente.
O símbolo, como também dito acima, depende da experiência que a engendra, ou seja,
ele fará sentido, em um primeiro momento, para o povo e a cultura daquele local onde a
experiência engendradora aconteceu, por isso que, com os hebreus, Yahweh se revela na sarça
e, com os gregos essa experiência, segundo Voegelin, se dá pela razão, não seria possível
inverter os papéis, como apresentar a divindade na sarça para Platão, seria algo desconhecido
pelo mesmo que não teria a capacidade de compreender a realidade que lhe aparecia, e o
símbolo gerado dela, no caso a divindade transcendente, não seria captado.
Por fim, Voegelin vai separar os símbolos em graus: Os primordiais, sendo eles
divididos entre o mito, a filosofia e a revelação divina, são os que enunciam a tensão do homem
entre a imanência e a transcendência; os secundários são os que formalizam as verdades
experienciadas pela noésis; e os terciários que mantem sua forma, mas pervertem a realidade
15
(cf. SCHNEIDER, p. 13), mas não entraremos nesse assunto para não nos estendermos em
demasia.
5. Abandono da ordem
Vimos, pois, que o homem, após entrar em contato com o transcendente muda
completamente sua maneira de pensar e de analisar o mundo, agora o homem não busca mais
a uma vida imanente, preocupado com seus afazeres terem um fim terreno, mas sim buscam a
eternidade, e volta-se a buscar e, ordenando sua própria alma, levar outros a conhecer essa
transcendência.
Após analisarmos o conceito de salto no ser, e como a ordem transcendente-divina
adentra no consciente do homem, precisamos entender como o homem moderno abandona essa
busca pela transcendência para se encontrar em uma vida imanente e sem sentido algum.
Vemos que:
Vemos que a crise existente na modernidade não se dá por uma via política unicamente
– é notório que este e outros âmbitos da vida são afetados –, mas se inicia no campo do intelecto,
entre aqueles que compreendem e buscam uma vida ordenada por meio de um pensamento
transcendente, e aqueles que, ignorando a transcendência, vivem uma vida imanente e vazia:
“A deformação da ordem era, afinal de contas, o movimento que se afastava da experiência de
ordem, que se afastava do realissimum (o realíssimo: o fundamento divino)” (idem, p. 54)
Este movimento de desdivinização não se inicia do nada, mas tem sua fundação em
algumas hesitações principalmente no pensamento aristotélico, como já dito acima2, por conta
de um aparente pensamento imanente de Aristóteles, que não percebeu a intimidade do homem
e a transcendência. Para Voegelin, essa realidade descrita por Aristóteles, e que faz o homem
jamais alcança a transcendência por completo, acaba por dar a brecha ao gnosticismo, um
abandono da transcendência e um voltar-se para a imanência. Essa influência pode ser
percebida nos dias de hoje:
2 p. 11
16
Vamos encontrar uma situação teórica similar no fim da Idade Média, quando, com
a desintegração do cristianismo e a nova onda de imanentismo, pensadores políticos
começaram a evocar a ideia de uma realização intramundana da existência humana
perfeita. A imanentização da realidade transcendente resultou, nesse sentido, no
desenvolvimento de ‘ideais’ políticos e, por fim, no quiliasmo político de transformar
a sociedade num paraíso terrestre por meio de organização e violência. Os modernos
e imanentista possuidores da Verdade não hesitam em estender as suas bênçãos a
todos a quem ela não diz respeito. (VOEGELIN, 2015, p. 422)
As origens da crise do Ocidente, de acordo com Voegelin, podem ser traçadas nos
escritos do século XII de Joaquim de Flora. Joaquim de Flora foi um ‘monge calabrês
do século XII, que fundou uma nova ordem religiosa, [e] deu à civilização ocidental
a periodização da história em três estágios, que tornou possível a conceptualização
da própria modernidade. A divisão que Joaquim fez da história em Idades do Pai, do
Filho e do Espírito Santo foi a precursora da periodização de Flavio Biondo em
história antiga, medieval e moderna, e das teorizações do Terceiro Reinado em
Condorcet, Comte, Marx, Lenin e Hitler (VOEGELIN, apud FEDERICI, 2011).
Joaquim criou uma ‘consciência de época’ (VOEGELIN, apud FEDERICI, 2011) –
uma atitude de que uma nova era tinha começado, que uma nova ordem era uma
cristandade imanentizada (ou inteiramente terrena). (FEDERICI, 2011, p. 55).
Já vimos, mesmo que breve mente, qual foi a semente e como se desenvolveu esta
árvore do imanentismo que, com sua copa, iria tampar a visão transcendente da realidade, agora
precisamos compreender o que essa linha de pensamento acaba por causar no homem e na
sociedade. Mendo Castro Henriques vai nos dizer:
Até onde sei, o conceito de alienação (allotriosis) foi criado pelos estoicos e muito
usado, mais tarde, por Plotino. Na psicopatologia estoica, allotriosis é um estado de
retirada do próprio eu, o qual se constitui pela tensão entre o homem e o plano divino
da existência. Uma vez que, tanto na filosofia clássica quanto na estoica, o plano
divino da existência é o logos ou fonte de ordem neste mundo, a retirada do eu,
constituído por essa força ordenadora, é o uso da razão, que o homem evidentemente
continua a possuir, para justificar sua existência nesse estado de alienação.
(VOEGELIN, 2007, p. 118)
Pois a crise é uma perda da primeira ordem, é algo que ameaça o próprio significado
do mundo ocidental; suas consequências não são menos do que a perda da consciência
da realidade que leva, em seus estágios mais avançados, ao assassinato em massa
totalitário3 e à destruição existencial. (VOEGELIN, 2007, p. 51)
3 Faz-se necessário lembrar que Voegelin viveu durante a segunda guerra mundial, tendo, inclusive, que
fugir para os Estados Unidos por conta da perseguição feita pelo exército nazista contra os pensadores
que não eram a favor do método de governo de Hitler.
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E também:
desordens sociais tais como, uso de drogas, altas taxas de divórcio e um materialismo
desenfreado refletiam a alienação do homem em relação à transcendência, e a crença
geral de que a felicidade humana pode ser alcançada sem submissão a uma autoridade
mais alta do que o desejo humano. (VOEGELIN, 2007, p. 49)
Após toda esta explanação de como o homem é influenciado pelo abandono do logos
como plano divino da existência, se faz necessário mostrar que ainda há uma luz no fim do
túnel, o homem não está fadado a viver toda a sua existência mundana alienado em um mundo
sem uma visão real do transcendente. Ainda existem meios para se retornar aquilo que é o
verdadeiro e correto, uma vida na tensão entre a existência imanente e a transcendência.
Vai nos dizer Federici:
É na busca pela Aletheia que o homem encontra a ordem, podemos ver que as duas
palavras gregas, doxa e doxai – opinião e ilusão –, só se diferenciam por uma letra, ou seja,
tem a mesma raiz, a ilusão não é nada mais que uma opinião tratada como verdade, a questão
essencial que deve ser feita para que a ordem seja alcançada é a busca pela Aletheia que,
consequentemente, leva ao Agathon.
7. Considerações finais
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Percebemos que o homem, por conta da degradação dos símbolos engendrados pelas
experiências transcendentes, acabou por não saber mais quem era, perdeu a consciência de
quem é por falta da tensão necessária entre a realidade transcendente e a imanente. Com essa
ideia, Voegelin não diz que gostaria de voltar a uma época em que o pensamento transcendente
fosse vigente na realidade, mas fazer com que os pontos que nos levam a viver plenamente a
transcendência continuem na modernidade, em resumo, ele quer trazer Platão, Aristóteles e os
outros para a modernidade, e não voltar para a Grécia antiga.
Para compreendermos, em fim, Voegelin vai nos dizer:
A Dikaiosyne que impõe a ordem reta às forças dentro da alma tem a sua origem fora
da alma. O lugar da Dikaiosyne no modelo aponta para a realidade transcendente
como a fonte da ordem. (VOEGELIN, 2015, p. 172)
Quando se perde esse aspecto da realidade – de que a Dikaiosyne (a ordem reta da alma)
não tem sua origem em si mesma ou na força do homem, mas sim pela realidade transcendente
que rege a realidade – o homem acaba por trocar o eixo da existência, não mais buscando o
Agathon, mas um bem pessoal, subjetivo e que não leva a nada se não a morte.
Voegelin vai nos mostrar que a Ordem não é algo pessoal, mas tem uma autoridade tão
grande que molda o homem e faz com que o mesmo molde a realidade em sua volta.
Podemos dizer, pois, que a ordem transcendente-divina, que foi revelada por Deus para
os hebreus por meio de Moisés no Salto no ser e para os gregos por Platão e Aristóteles por
meio do nous é, além da revelação da natureza transcendente do homem, também o início da
missão do mesmo que, por meio de uma alma ordenada – ou que pelo menos busque tal ordem
– ele possa transmiti-la para a sociedade, fazendo com que todos tomem conhecimento de si e
saiam da alienação causada pelo imanentismo e da vida fora da consciência do Logos.
Referências
FEDERICI, Michel P. Eric Voegelin: a restauração da ordem. São Paulo: É Realizações, 2011.
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HENRIQUES, Mendo Castro. A filosofia civil de Eric Voegelin. São Paulo: É Realizações, 2010.
VOEGELIN, Eric. Ordem e história I: Israel e a revelação. Tradução: Cecília Camargo Bartolotti.
São Paulo: Loyola, 2014.
VOEGELIN, Eric. Ordem e história II: O mundo da pólis. Tradução: Luciana Pudenzi. São Paulo:
Loyola, 2009.
VOEGELIN, Eric. Ordem e história III: Platão e Aristóteles. Tradução: Cecília Camargo Bartolotti.
São Paulo: Loyola, 2015.
VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas. Tradução: Maria Inês de Carvalho. São Paulo: É
Realizações, 2007.