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Roteiro Seminário Hertz

Perguntar quantos na sala são canhotos, quantos são destros , e quantos são destros de
nascença.

Falar como a anatomia explica essa diferenciação.

Robert Hertz, doutorando e companheiro no Année Sociologique de Durkheim e Mauss, foi


um sociólogo da corrente francesa de sociologia do período de transição do século IX para
o XX . Especializado em sociologia da religião e particularmente interessado nas
manifestações ainda não expostas dela na vida social, ele diz em seu trabalho sobre a
preeminência do lado direito :

“Que semelhança mais perfeita existe entre nossas duas mãos! E, no entanto, que
impressionante desigualdade! Para a mão direita vão as honras, as designações lisonjeiras,
as prerrogativas: ela age, ordena e toma. A mão esquerda, ao contrário, é desprezada e
reduzida ao papel de uma humilde auxiliar: sozinha nada pode fazer; ela ajuda, ela apóia,
ela segura.”
e se questiona : Quais são os títulos de nobreza da mão direita? De onde vem a servidão
da esquerda?

“O modo diferente pelo qual a consciência coletiva concebe e avalia a direita e a esquerda
aparece claramente na linguagem.”

“ primeiro é usado para expressar as idéias de força física e .desteridade., de


.retidão. intelectual e de bom julgamento, de honradez e integridade moral; de boa sorte e
beleza, de norma jurídica; enquanto que a palavra .esquerda. evoca a maioria das idéias
contrárias a estas. Para unificar estes vários significados, supõe-se comumente que a
palavra direita significa em primeiro lugar nossa melhor mão, depois as qualidades de força
e habilidade que são naturais a ela e, por extensão, diversas virtudes análogas da mente e
do coração.

Falar sobre a ideia de masculino e feminino, os maorie e seus rituais

No entanto, “este privilégio não seria, diz Hertz, “ inerente à estrutura do genus homo, o
mas deveria sua origem exclusivamente às condições exteriores ao organismo"

Mesmo que a anatomia explique este fato “na medida em que ele resulta da estrutura do
organismo ,e por mais força que se suponha ter este determinante, ela é incapaz de
explicar a origem do ideal ou a razão para sua existência.

“ O fato é que não se aceita ou se cede à desteridade como uma necessidade natural: ela é
um ideal ao qual todos precisam conformar-se e o qual a sociedade nos força a respeitar
por meio de sanções positivas”.
Ou seja, a desteridade é antes um fato social, como definido por Durkheim, do que um fato
relativo à nossa anatomia. É próprio da escola francesa atestar a existência desse plano
fenomênico, originado das relações complexas entre indivíduos. A sociedade para ele, se
manifesta enquanto um organismo, um todo maior que suas partes funcionais.

Hertz , se utilizando da questão em voga., atesta isso dizendo:


“A preponderância da mão direita é obrigatória,imposta pela coerção e garantida por
sanções: contrariamente, uma verdadeira proibição pesa sobre a mão esquerda e a
paralisa. A diferença em valor e função entre os dois lados de nosso corpo possui, portanto,
num grau extremo, as características de uma instituição social”.

Isto é, está atrelada à funções que dizem respeito à manutenção da ordem social,
principalmente no que diz respeito à divisão social, sendo de certa forma um reflexo
simbólico desta.

“Dizendo de um modo mais preciso,” a preeminência da mão direita “é uma questão de


traçar a gênese de um imperativo que é metade estético, metade moral.”

Ora, mesmo que esses campos sejam tocados por diversas disciplinas e epistemes, eles
estão mais fortemente atrelados à manifestação da religiosidade. É próprio da religião
definir o que é belo ( estético ) e bom ( moral ), e sendo ela um fenômeno manifesto em
toda a experiência humana é de suma importância considerar o seu efeito nas sociedades.

Para isso, Hertz se propôs a analisar cuidadosamente as sociedades , tanto tradicionais


como primitivas, e a sua dimensão religiosa, em suas pesquisas, e a partir delas irá afirmar
com certo grau de confiança, que :

“As ideias secularizadas que ainda dominam nossa conduta nasceram de uma forma
mística, no reino de crenças e emoções religiosas A vida em sociedade envolve um grande
número de práticas que, sem ser integralmente parte da religião, estão estreitamente
ligadas a ela. Todos estes usos, que parecem ser puras convenções hoje, são explicadas e
adquirem significado quando relacionadas às crenças que lhe deram origem.”

Mesmo na modernidade , tempo em que “estamos longe do santuário” “o domínio dos


conceitos religiosos é tão poderoso que se faz sentir na sala de jantar, na cozinha e mesmo
naqueles lugares assombrados por demônios que não ousamos nomear”.

Portanto, entender o religioso é de certa forma entender o social. É preciso se indagar até
onde um afeta o outro, entendo primeiro suas características. Dentre elas, dirá Hertz:

“Uma oposição fundamental domina o mundo espiritual dos homens primitivos, aquela
entre o sagrado e o profano.”

Sagrado e Profano, são manifestações da ideia de ordem e caos, ser ou não ser que
permeiam o imaginário humano e determinam suas ações enquanto sua beleza e
moralidade. René Girard , estudioso das religiões comparadas irá dizer que o sagrado é
saturado de poder, é o Ser por excelência, como dizem os metafísicos. “É, portanto, fácil de
compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade,
saturar-se de poder.”

O sagrado e o profano, acabam por refletir em outras dualidades e se


tornam,respectivamente, nas figuras da direita e da esquerda.

“ O direito é o lado dos deuses, onde paira a figura branca de um bom anjo da guarda; o
lado esquerdo é dedicado aos demônios, o mal; um anjo negro maligno o mantém sob seu
domínio. Até mesmo hoje, se a mão direita é ainda a chamada boa e bonita e a esquerda
má e feia. A direita é o interior, o finito, o bem-estar assegurado e a paz; a esquerda é o
exterior, o infinito hostil e a ameaça perpétua do mal.”

Piada com anjo e demônio de desenho animado.

“Por séculos, a paralisação sistemática do braço esquerdo tem como outras mutilações,
expresso a vontade que anima os homens a fazer o sagrado predominar sobre o profano, a
sacrificar os desejos e o interesse dos indivíduos às exigências sentidas pela consciência
coletiva, e a espiritualizar o próprio corpo marcando nele a oposição de valores e os
violentos contrastes do mundo da moralidade.”

“A supremacia da mão direita é ao mesmo tempo um efeito e uma condição necessária da


ordem que governa e mantém o universo.”

A diferenciação do sagrado e profano irá determinar por consequência quais tribos,


classes ou indivíduos detêm o poder e o status. É sob esse contraste que se decidirá o que
pode e não pode ser feito dentro da comunidade. Ou seja, “O princípio pelo qual se atribui
aos homens posição e função permanece o mesmo: a polaridade social é ainda um reflexo
e uma consequência da polaridade religiosa.”

É interessante antes de prosseguirmos, parar a analisar um pouco do que diz Norbert


Elias, outro sociólogo francês, de um período pouco distante de Hertz. No seu estudo da
Teoria Simbólica, ele irá constatar que o mundo humano, :

“ consiste de dois universos diferentes, um dos quais é caracterizado pela palavra de código
"natureza" e o outro pela de "história" ou "cultura”,” ou seja, “ um mundo que pode ser
representado muito claramente através de símbolos de regularidades imutáveis ( natureza)
e um mundo que representa a estrutura de uma mudança sequencial incessante numa ou
duas direções complementares ( cultura)” ( Nobert Elias)

Entretanto, se atentarmos mais uma vez ao estudo de Hertz , veremos que, mesmo que
pertencente ao mundo cultural, “Toda hierarquia social afirma estar baseada na natureza
das coisas, atribuindo-se assim eternidade e evitando mudanças e ataques de inovadores

“Claro e escuro, dia e noite, leste e sul em oposição a oeste e norte, representam no
imaginário e localizam no espaço as duas classes contrárias de poderes sobrenaturais: de
um lado a vida nasce e sobe, do outro ela desce e se extingue.”
Para o homem: “O universo inteiro está dividido em duas esferas contrastantes: coisas,
seres e poderes atraem ou se repelem mutuamente, incluem ou se excluem mutuamente,
dependendo do fato de gravitarem em direção a um ou outro dos pólos.”

“ O dualismo é a essência do pensamento primitivo,” principalmente no que diz respeito à


religião,” que domina a organização social primitiva.”Ele afirma isso com tanta certeza que
irá dizer que o homem é um ser naturalmente duplo – homo duplex -” e que, é por isso ,por
exemplo,”que ele possui uma direita e uma esquerda tão profundamente diferenciadas.”

“Como pode o corpo do homem, o microcosmo, ou seja uma manifestação minúscula do


cosmos , escapar da lei da polaridade que governa tudo? A sociedade e todo o universo
têm uma lado que é sagrado, nobre e precioso e outro que é profano e comum”

Mesmo com a complexificação das antigas estruturas hierárquicas, as estruturas sociais


ainda se orientam sobre esta oposição. As castas da Índia por exemplo se dividem sobre o
parâmetro de qual está mais próxima de cada um dos pólos, sendo a base dominada
mundana e o topo dominante sacralizado.

“A mão direita é o símbolo e o modelo de toda aristocracia, a mão esquerda de todas as


pessoas comuns.”

Desta forma, passamos a enxergar fenômenos sociais hodiernos, como a intensa


polarização política e ideológica, como algo que não tem origem senão na própria natureza
da experiência humana que é a priori, dupla, marcada pelo contraste entre o sagrado e o
profano, a ordem eo caos, o ser e o não ser. Isso pode nos ajudar a entender outros
fenômenos menos claramente relacionados, mas não por isso menos influenciados, com
essa dualidade. A ideia de Bem-comum, por exemplo, só pode existir enquanto pessoas
que estão em discordância chegam a um ponto de igualdade. Ora, isso vai de encontro com
este aspecto dualista de nossa própria natureza, que busca manter os pólos bem distintos
um do outro. Portanto, como e de onde surge esta busca pelo Bem-comum ? Isso poderia
demonstrar que o humano é capaz de transcender a sua própria realidade por meio da vida
em comunidade, em que se manifestam fenômenos de ordem não propriamente definidos,
como diz Elias, mas que se configuram de acordo às circunstâncias em que surgem? Este é
um trabalho para a Antropologia em conjunto com a Sociologia, de descobrir como o
homem constrói a realidade social de acordo com a sua natureza ao mesmo tempo que
esta é transformada pela vivência em comunidade, quase que numa espécie de ciclo.

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