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LEITURAS DE SOCIOLOGIA # 002 - A

PREEMINÊNCIA DA MÃO DIREITA (1909), Robert


Hertz (1881-1915)
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LEITURAS DE SOCIOLOGIA
# 002

A PREEMINÊNCIA DA MÃO
DIREITA (1909), Robert Hertz
(1881-1915)

Se a Escola Sociológica
Francesa fosse um clube de
futebol, Durkheim seria presidente, técnico e um capitão estilo Dunga.
Marcel Mauss seria o craque, o camisa 10 criativo e indisciplinado. E
Robert Hertz seria a jovem "promessa", aquele jogador vindo das
categorias de base em que todos depositavam a esperança de vir a ser
um dos principais jogadores da equipe.

A primeira formação de Hertz foi em filosofia. Dez anos mais jovem do


que Mauss, de quem fora aluno, Robert Hertz logo se torna seu amigo
e colaborador em algumas pesquisas. Hertz era muito engajado
politicamente e liderava o Grupo de Estudos Socialistas. Havia
reuniões mensais para examinar as teses socialistas e pensar modos
de aplicá-las. Além disso, escrevia numa revista socialista e do
movimento cooperativista. Em 1908, quando Hertz tinha apenas 27
anos, Mauss já o convidara a substituí-lo em dois semestres. E também
o convidou para participar do principal meio de reflexão e divulgação da
Escola Sociológica Francesa o Année Sociologique. Hertz
impressionava a todos por sua simpatia, pela qualidade crítica de suas
reflexões e por trabalhar incansavelmente. Era alto e forte, sempre de
barba feita, cabelo louro, atento, com olhos penetrantes, parecendo um
jovem cientista. A amizade de Mauss e Hertz se fortaleceu em 1905,

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quando Mauss foi à Inglaterra pesquisar sobre esquimós no British
Museum, onde seu discípulo já estava a levantar dados para seus
estudos de Sociologia da Religião.

Infelizmente, Hertz morre na Primeira Guerra Mundial, antes mesmo de


completar 34 anos. Vai ser uma perda muito sentida pela Escola
Sociológica Francesa.

Como era comum na Escola Sociológica Francesa, os dados


levantados por um poderiam ser utilizados por outros. Mauss irá utilizar,
durante décadas, o rico material levantado por Hertz, obviamente
fazendo referência ao amigo e colega. Irá também reunir todo o
material disperso que Hertz ainda estava preparando, reconhecendo e
homenageando o amigo e colega.

Além disso, Hertz nos deixou alguns textos importantes, dentre eles
este "A preeminência da mão direita", publicado em 1909. O subtítulo
esclarece tudo: "um estudo sobre a polaridade religiosa". Como iremos
ver, ele irá buscar a explicação central para a preeminência da mão
direita na oposição entre sagrado e profano, dimensão central da
religião primitiva. Mas vamos devagar, ponto a ponto.

Ele começa propondo a questão: por que, se fisiologicamente são


iguais, direita e esquerda são tratadas de modo tão desigual? A saber:

"Para a mão direita vão as honras, as designações lisonjeiras, as


prerrogativas: ela age,ordena e toma. A mão esquerda, ao contrário, é
desprezada e reduzida ao papel de uma humilde auxiliar: sozinha nada
pode fazer; ela ajuda, ela apoia, ela segura."

A primeira hipótese que ele examina e a da existência de uma


assimetria orgânica. Ou seja, de que a direita seria naturalmente mais
bem dotada. Ele logo afasta essa hipótese, lembrando que:

"Toda hierarquia social afirma estar baseada na natureza das coisas,


atribuindo-se eternidade e evitando mudanças e ataques de
inovadores."

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Dá como exemplo as justificativas de Aristótes para a escravização dos
bárbaros ou, na própria época de Hertz, os que negavam direitos às
mulheres afirmando elas serem inferiores aos homens.

Examina várias hipóteses e chega à seguinte conclusão a respeito da


causa orgânica: de cada cem pessoas, duas seriam naturalmente
canhotas a ponto de rejeitarem qualquer influência externa; uma
proporção bem maior seria de pessoas naturalmente destras; e entre
estes dois extremos haveria uma massa de pessoas que poderiam usar
as duas mãos, se fossem deixadas à vontade, embora com uma leve
tendência para o uso da mão direita.

De qualquer forma: por que somente a mão mais hábil é treinada? Pois
em casos em que uma pessoa destra perde esta mão, logo logo a mão
esquerda a substitui com proveito sendo capaz de adquirir novas
habilidades. Sendo assim, a predominância esmagadora da mão direita
não é explicável por fatores orgânicos e o autor tem que se voltar para
a sociologia da religião para tentar entender essa assimetria. Há que
explicar porque as mais diversas sociedades optam, literalmente, por
mutilar as possibilidades da mão esquerda.

A preponderância da mão direita não tem nada de natural: "é


obrigatória, imposta pela coerção e garantida por sanções:
contrariamente, uma verdadeira proibição pesa sobre a mão esquerda
e a paralisa." É, na verdade, "uma instituição social". Portanto, ele
propõe um estudo de sociologia, mais especificamente, "um estudo
comparativo de representações coletivas".

Aqui a sua tese é a mesma que Durkheim e Mauss já haviam


enunciado. No "mundo espiritual dos homens primitivos", haveria uma
"oposição fundamental", entre "sagrado e profano". Ou seja, a religião
daqueles que ele chama de "primitivos" seria marcada pela existência
de uma "polaridade religiosa". Ela seria originária do dualismo que
"domina a organização social primitiva", por exemplo: uma tribo dividida
em duas fratrias. A minha fratria é sagrada para mim "não posso comer
meu totem, ou derramar o sangue de um membro de minha fratria, ou
mesmo tocar seu cadáver, ou casar-me em meu clã." Por isso tenho
que buscar uma esposa na outra fratria e vice-versa.
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Ele qualifica sagrado e profano da seguinte forma:

"Os poderes que mantêm ou aumentam a vida, que fornecem saúde,


proeminência social, coragem na guerra e habilidade no trabalho,
residem todos no princípio sagrado. O profano (na medida em que viola
a esfera sagrada) e o impuro, ao contrário, são essencialmente
enfraquecedores e mortíferos: as influências funestas que oprimem,
diminuem e danificam os indivíduos vêm deste lado."

E para resumir, complementa:

"de um lado temos o polo da força, do bem e da vida, enquanto no


outro temos o polo da fraqueza, do mal e da morte."

Em seguida Hertz demonstra, a partir de dados etnográficos, sobretudo


acerca dos Maori, que esta dualidade alcança tudo que está presente
na vida destes povos: claro x escuro, dia x noite, leste e sul x oeste e
norte, alto x baixo, céu e terra. Por exemplo: leste (onde o sol nasce) e
o sul são sagrados x oeste (onde o sol "morre") e norte são profanos.
O céu, residência dos deuses e das estrelas que não conhecem a
morte, é sagrado. A terra, que absorve os mortais e esconde lugares
escuros onde se escondem serpentes e uma hoste de demônios, é
profana.

Ora, este dualismo obviamente estará presente nas práticas religiosas


dos primitivos. E se estenderá ao nosso próprio corpo, que também
será visto como dotado de uma polaridade religiosa necessária até para
que ele possa praticar os rituais religiosos tão marcadamente
polarizados. Em suma, para fechar este ponto, o autor afirma:

"Se a assimetria orgânica não existisse, ela teria que ser inventada."

Agora Hertz passa a considerar, através da análise de uma vasta


documentação etnográfica e histórica, a questão de como direita e
esquerda foram concebidas, demonstrando não somente uma
preferência absoluta pela direita, mas uma verdadeira perseguição à
mão esquerda.

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Ele começa com a linguagem. Aqui percebe-se um contraste enorme
nas línguas indo-européias em geral. De um lado, temos um único
termo, estável, para a direita. Do outro, há inúmeros termos para a
esquerda, que logo desaparecem e são substituídos por outros. No
testemunho do linguista Meillet "quando se fala do lado esquerdo evita-
se pronunciar a palavra apropriada e tende-se a substituí-la por outras
diferentes que são constantemente renovadas." Isso se dá, acrescenta
Hertz "pelos sentimentos de inquietação e aversão sentidos pela
comunidade a respeito do seu lado esquerdo."

Ainda do ponto de vista linguístico, mas desta vez abordando o


conteúdo, persiste o contraste: a direita expressa ideias de força física,
de retidão intelectual, de bom julgamento, de honradez e integridade
moral; de boa sorte e beleza, de norma jurídica. Já a esquerda "evoca
a maioria das ideias contrárias a estas"

Depois ele acrescenta diversos dados etnográficos da cerrada


oposição entre esquerda e direita nas mais diversas sociedades, trecho
que vamos pular por conta do pouco espaço.

O ponto a seguir trata das "Funções das duas mãos", ou seja: como as
mãos direita e esquerda são utilizadas nas mais diversas sociedades,
que derivam, obviamente, do valor atribuído ao lado direito e ao lado
esquerdo. Neste item ele mostra que a mão direita é utilizada para o
contato com o sagrado e predomina nos rituais normais. A mão
esquerda, ao contrário, serve para a feitiçaria, pois nela residem os
"poderes maléficos que jazem no lado esquerdo." Costumava-se dizer
dos santos cristãos que já no berço, mamavam somente no seio direito.
Na Nigéria do Sul, as mulheres eram proibidas de usar a mão esquerda
para cozinhar, se o fizessem poderiam ser acusadas de feiticeiras.

Para sumarizar este ponto:

"em qualquer lugar uma lei imutável governa as funções das duas
mãos. Não mais do que o profano tem a permissão de misturar-se com
o sagrado, tem a esquerda a permissão de violar a direita. Uma
atividade preponderante da mão ruim seria ilegítima ou excepcional,
pois seria o fim do homem e de todo o resto se o profano tivesse algum
dia permissão para prevalecer sobre o sagrado e a morte sobre a vida.
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A supremacia da mão direita é ao mesmo tempo um efeito e uma
condição necessária da ordem que governa e mantém o universo."

CONCLUSÃO

A principal, já está clara, mas o autor a reafirma:

"A diferenciação obrigatória entre os lados do corpo é um caso


particular e uma consequência do dualismo inerente ao pensamento
primitivo."

Polaridade sim, OK, mas por que a preferência pela direita. O autor
explica da seguinte forma:

"As leves vantagens físicas possuídas pela mão direita são apenas a
ocasião de uma diferenciação qualitativa da qual a causa está além do
indivíduo, na constituição da consciência coletiva. Uma quase que
insignificante assimetria corporal é suficiente para virar em uma direção
e na outra representações contrárias que já estão completamente
formadas. a partir daí, graças à plasticidade do organismo, a coação
social adiciona aos membros opostos e incorpora neles qualidades de
força e de fraqueza, desteridade e inércia, que no adulto parecem
surgir espontaneamente da natureza."

Por fim, ele fecha o artigo com uma proposta prática, como cabia a um
socialista engajado como ele: "o sonho de uma humanidade dotada
com duas 'mãos direitas". Por isso ele propõe:

"Nem a estética nem a moralidade sofreriam com a revolução de se


supor que não existam vantagens físicas e técnicas de peso para a
humanidade em permitir que a mão esquerda atinja ao menos seu
desenvolvimento completo."

E conclui:

"Se a coação de um ideal místico foi capaz por muitos séculos de fazer
do homem um ser unilateral, fisiologicamente mutilado, uma
comunidade liberada e perspicaz se empenhará em desenvolver
melhor as energias adormecidas no seu lado esquerdo e no nosso
hemisfério cerebral direito, e em assegurar, por um treino apropriado,
um desenvolvimento mais harmonioso do organismo."
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Fonte: HERTZ, Robert. "A preeminência da mão direita: um estudo
sobre a polaridade religiosa", Religião e Sociedade (6) 1980. pp. 99-
128.

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