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“A preeminência da mão direita”

Robert Hertz

Sobre o autor e a obra:

Robert Hertz foi um dos mais jovens e mais brilhantes membros da escola sociológica
francesa.

Sua tese é baseada na análise da oposição entre a mão direita e a mão esquerda, com o
franco benefício da primeira. Hertz tenta demonstrar que o coletivo ou o espiritual se sobrepõe
ao orgânico ou individual. A preponderância da mão direita não seria, assim, algo natural e sim
resultado de significações culturais que caracterizam divisões e hierarquias sociais.

Nesta obra a maior parte dos fatos etnográficos nos quais o autor se baseia vem dos Maori,
ou mais exatamente deu uma tribo muito primitiva chamada Tuhoe.

Robert Walter Hertz, nascido em Saint-Cloud em 22 de junho 1881 morreu 13 de abril 1915
em Marchéville (durante a Primeira Guerra Mundial).

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1. Assimetria orgânica

É parte da opinião geral que a preeminência da mão direita resulta de uma predisposição
orgânica, não sendo consequência de convenções ou crenças em mudança do homem.
Biologicamente, a hipótese mais fundamentada, e também mais comprovada, relaciona
à preeminência da mão direita ao maior desenvolvimento do hemisfério cerebral esquerdo, pois
no hipocampo cerebral as fibras nervosas se cruzam, assim o lado direito do corpo é enervado
pelo lado oposto do cérebro (“somos destros na mão porque somos canhotos no cérebro”).
Alguns autores refutam a ideia de uma causa puramente orgânica para a desteridade
humana, pois a maioria dos animais domésticos são ambidestros (exceto o cavalo, quase
geralmente destro por posicionamento intrauterino, quando o potro se curva geralmente sobre o
lado esquerdo); logo, para tais pesquisadores, o privilégio da mão direita reside em condições
exteriores ao organismo.
Os canhotos, mesmo sofrendo pressão da sociedade, retêm por toda a vida uma
preferência pelo uso da mão esquerda. Numa amostra de 100 pessoas, somente 2 seriam
essencialmente canhotas, quando a imensa maioria seria destra, mas entre esses dois grupos
se encaixariam pessoas ambidestras, com leve preferência pela mão direita.
Dr. Jacobs relata que durante suas viagens de inspeção médica às Índias holandeses, as
crianças nativas tinham seus braços esquerdos amarrados para ensinar-lhes a não usá-los.
Os esforços para o desenvolvimento da aptidão esquerda são bem-sucedidos, pois
quando treinada pode equivaler-se, em habilidade, à mão direita (exemplo: tocar instrumentos,
cirurgias). Em casos de acidentes com a mão direita, a esquerda adquire a habilidade e força
que antes não tinha. No caso dos canhotos, apesar de toda a pressão para abandonarem a
esquerda, eles ainda usam esta mão, mas geralmente se desenvolvem enquanto ambidestros.
A mutilação da mão esquerda é fisiológica e não anatômica. A criança canhota é
repreendida, “quando não leva um tapa na mão audaciosa”.

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2. A polaridade religiosa

O uso da mão direita, em detrimento da esquerda, é explicado num estudo comparativo


de representações coletivas, ou seja, as ideias que dominam nossas condutas originam-se em
crenças e emoções religiosas.
O dualismo essencial no pensamento primitivo domina a organização social primitiva.
Forma-se a oposição entre sagrado e profano, ou seja entre o polo positivo e o polo negativo.
As comunidades primitivas, baseando sua organização nesta dualidade bem-mal
(sagrado-profano), compreendem a existência de uma seção oposta e complementar dentro de
sua própria tribo, onde os membros desta podem realizar funções proibidas aso membros do
primeiro grupo, sendo esta uma condição necessária à vida social. Com a evolução da
sociedade, esse dualismo passa a ser regido por uma estrutura hierárquica rígida: ao invés de
clãs separados, porém equivalentes, percebem-se classes ou castas, onde a superior é sagrada
(nobre) e a inferior é profana, suja, atrelada à tarefas vis. Observa-se, com isso, que a polaridade
social é reflexo da polaridade religiosa.
O sagrado engloba os poderes da vida, saúde, reconhecimento social, coragem na guerra
e habilidade no trabalho. No profano residem os poderes enfraquecedores e mortíferos. De um
lado encontram-se os deuses e de outro os demônios.
O maniqueísmo também se relaciona ao sexo: o sagrado está associado ao homem,
enquanto a mulher é profana, excluída das cerimônias (só é admitida quando para provocar uma
profanação intencional). No reino da magia o papel feminino se torna importante, ela é dotada
de poderes de bruxaria. Essa ideia gera uma dicotomia nas tarefas entre homens e mulheres
não podendo haver mistura ou confusão.
No ritual da tira entre os maoris a atividade é dirigida a dois polos opostos, cada qual com
sua função no culto (o da direita-leste: “vara da vida” e o da esquerda-oeste: “vara da morte”),
correspondendo às duas atitudes contrárias e complementares da vida religiosa.

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3. As características da direita e da esquerda

A diferenciação entre direita e esquerda já aparece na linguagem. Enquanto a direita


é descrita por apenas um termo (destro que remete à ideia de habilidade/destreza) a esquerda
é alcunhada por vários nomes depreciativos ou eufemísticos (exemplo: canhoto, canho,
sinistro, canhestro, esquerdinho). Essas várias denominações da esquerda, por muitas vezes
instáveis, podem ser explicadas pelo sentimento de inquietação e aversão sentidos pela
comunidade a respeito do lado esquerdo. Os nomes dados buscariam, então, reduzir ou abolir
o mal, já que a condição, em si, não poderia ser mudada.
Entre os maoris, o direito é o lado sagrado, residência dos poderes bons e criativos; o
esquerdo é o profano, cuja função é tão somente a dos poderes perturbadores e suspeitos.
Nas religiões o direito é o lado dos deuses, onde paira a figura branca do anjo da guarda; o
lado esquerdo associa-se aos demônios, a um anjo negro maligno.
Para os maoris as influências benéfica entram pela direita, enquanto a morte e a
miséria penetram pela esquerda, portanto usam-se amuletos do lado esquerdo, que seria o
lado exposto, indefeso. O anel usado no anelar esquerdo tem por finalidade nos manter
afastados das tentações e outras coisas más.
Um exemplo desta dualidade é encontrado nas pinturas do Novo Testamento, onde é
a mão direita que aponta para o céu (paraíso) e a mão esquerda mostra o inferno (mundo dos
condenados). A relação entre esquerda-norte/oeste e direita-sul/leste é evidenciada em
algumas línguas, onde as mesmas palavras dão significado aos lados do corpo e aos pontos
cardeais.

Figura 1 – pintura de Michelangelo que mostra Deus apontando o sol, superior à direita e a lua, à
esquerda

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Os dervixes, enquanto rodopiam, mantêm a mão direita levantada com a palma para
cima, recebendo as bênçãos do céu que a mão esquerda, retida embaixo na direção da terra,
transmite ao mundo cá de baixo.

Figura 2 – dervixe rodopiante turco

O sol é o olho direito de Hórus e a lua o esquerdo. Nas representações cristãs da


crucificação, o sol brilha na região à direita da cruz, onde a nova Igreja triunfa, enquanto a lua
ilumina o lado do ladrão impenitente e da sinagoga caída.

Figura 3- pintura da crucificação de Cristo onde se percebe o sol, á direita superior e a lua à esquerda
superior.

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Entre os Wulwanga da Austrália dois paus são usados para marcar o ritmo durante as
cerimônias: o segurado pela mão direita é chamado de homem enquanto o outro é chamado de
mulher. Privilegia-se o sexo forte do lado forte. Deus tomou uma das costelas esquerdas de Adão
para criar Eva, associando a mulher ao lado esquerdo do corpo, fraco, subalterno, passivo.
Para os pitagóricos na tabela dos contrários se equilibram e constituem as forças do
universo: finito e infinito; ímpar e par; direita e esquerda; macho e fêmea; estável e mutante; alto
e baixo.

4. A função das duas mãos

Alguns índios da América do Norte podem conversar sem dizer uma única palavra,
apenas por movimentos das cabeças e dos braços. A mão direita representa o eu e a esquerda
o não-eu ou outros. A ideia de alto é expressa elevando-se a mão direita enquanto a esquerda
se mantém horizontal e imóvel, já a ideia de baixo é expressa abaixando-se a “mão inferior”
abaixo da direita. A mão direita significa virilidade, poder, bravura, enquanto que esta mão
voltada para a esquerda e colocada abaixo da mão esquerda significa ideia de morte, destruição,
enterro.
Apenas a mão direita é apta às ações/relações beneficentes. Os deuses estão a nossa
direita, sendo para este lado que nos voltamos quando rezamos. Um lugar agrado deve ser
adentrado primeiramente com o pé direito. As oferendas sagradas são apresentadas pela mão
direita, pois é esta que recebe os favores do céu e os transmite nas bênçãos.

Figura 4 –Buda com a mão direita erguida.

No que se relaciona ao apaziguamento dos seres malignos e à destruição de más


influências é a mão esquerda que age, ela está ocupada com tudo que é demoníaco. Os
pecadores são expulsos da Igreja pela porta esquerda.
O sangue extraído do lado esquerdo do corpo provoca a morte. Ao contrário, o sangue
do lado direito dá a vida, regenera.

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Um exemplo interessante da crença na malignidade da esquerda reside no
comportamento de nativos da costa da Guiné. Quando se bebe, é necessário cuidado com a
mão esquerda do nativo, pois o próprio contato de seu polegar esquerdo com a bebida seria
suficiente para torna-la fatal. Diz-se que todo nativo esconde embaixo da unha do seu polegar
esquerdo uma substância tóxica (na verdade um veneno imaginário).
A mão esquerda quando muito hábil é sinal de uma natureza contrária à ordem corrente,
caracterizando, assim, algo perverso e demoníaco: toda pessoa canhota é um possível feiticeiro.
Esta é a razão pela qual seres reais ou imaginários, que se acredita possuírem poderes mágicos,
são representados como se fossem canhotos. Em contraste, a preponderância da mão direita
remete ao divino e imuniza ao que é profano ou impuro: assim, são os santos cristãos que em
seu berço eram tão piedosos que recusavam o seio esquerdo de suas mães. Quando os
pitagóricos cruzavam as pernas tomavam cuidado de jamais colocar a esquerda sobre a direita.
Durante o casamento são as mãos direitas que se unem, já que é esta que presta
juramento, conclui contratos, toma posse e presta assistência. O casamento contraído com a
mão esquerda é uma união clandestina da qual só pode resultar bastardos. A mão esquerda é a
mão do perjúrio, da traição e da fraude. Os romanos dedicaram à direita a boa-fé. Em persa “dar
a esquerda” significa trair. O rei leva suas insígnias do lado direito e coloca a sua direita os que
lhe considera merecedores.
Muitos povos primitivos, quando em estado de impureza (exemplo: luto) podem não usar
ambas as mãos, particularmente quando comem, pois assim poderiam ingerir a própria morte.
Para evitar tal situação eles recebem a comida pelas mãos de outrem ou comem diretamente do
chão. Frequentemente só a mão direita é usada nas refeições, seja para comer ou no seu
preparo. A mão esquerda se ocupa das tarefas desagradáveis (para limpar as aberturas do corpo
“abaixo do umbigo”).
A própria sacralidade da guerra ou da caça confere a diferenciação entre direita e
esquerda. A arma é sagrada e portanto só pode ser usada pela mão direita. É o lado direito do
homem que se dedica ao Deus da guerra. A ação da mão esquerda se restringe à defesa, uso
do escudo.

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Figura 5- falange hoplítica em vaso grego de figuras negras, evidenciando o uso da lança na mão direita e
do escudo na esquerda.

Em civilizações agrícola pacíficas, como é o caso dos Zuni, as duas mãos perdem a ideia
de dualismo conflitivo, pois para eles os lados do corpo são irmãos, o direito é o mais velho,
reflexivo, sábio e de julgamento seguro; enquanto o esquerdo é impetuoso, impulsivo, feito para
a ação.
A supremacia da mão direita é ao mesmo tempo um efeito e uma condição necessária
da ordem que governa e mantém o universo.

5. Conclusão

Como o lado sagrado é invariavelmente o direito e o profano o esquerdo?


Para alguns autores essa diferenciação se explica pelas regras de orientação para a
adoração do sol. O devoto olha naturalmente para onde o sol nasce, a fonte de toda a vida. A
maior parte dos edifícios sagrados está orientada para o leste.
Acredita-se que o dual espetáculo da natureza (luz do dia X trevas, calor X frio) tenha
ensinado o homem a distinguir e a opor sua direita e sua esquerda.
As regiões celestiais não são caracterizadas uniformemente, por exemplo: para os
indianos e os romanos o norte é a região fausta, habitada por deuses, enquanto o sul pertence
aos mortos.
As leves vantagens físicas da mão direita não se explicam unicamente pela assimetria
corporal, muito pelo contrário, essa assimetria é estimulada por conceitos extra-humanos, é
assim reforçada por ideias pré-formadas. Graças à plasticidade do organismo, a coerção social
torna a direita preponderante.
O desenvolvimento exclusivo da mão direita é considerado, às vezes, como um atributo
característico do homem e um sinal de sua proeminência moral.

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A estrutura do pensamento social determina as representações intelectuais da direita e
da esquerda, sendo estas prévias à própria experiência individual, ou seja, o home, ainda que
quando criança seja ambidestro (ou até mesmo canhoto), já nasce numa sociedade que privilegia
a mão direita.
As ideias religiosas que determinam uma distância intransponível entre coisas e seres,
sagrado e profano e consequentemente a superioridade da mão direita, estão perdendo terreno.
Somente uma comunidade perspicaz e ciente do contrassenso que é negligenciar a mão
esquerda será capaz de estimular o lado direito do cérebro, a fim de, através de treinamento
apropriado, garantir um desenvolvimento mais harmonioso do organismo.

Figura 5- afresco da Capela Sistina, Vaticano – mostrando o dedo direito de Deus em contato com o
indicador esquerdo do homem.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HERTZ, R. W. – A preeminência da mão direita

“La préèminence de la main droite: étude sur la polarité religieuse”, Reuve


Philosophique, Vol. LXVII, pp. 533-580; Death and the rigth hand, Glencoe, Illinois, The
Press, 1960 (trad.de Rodnay e Claudia Needham).

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