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O que é ética? O que é moral?

(e o que ambas têm de político)

“Do ponto de vista ético, somos pessoas


e não podemos ser tratados como coisas.
Os valores éticos se oferecem, portanto,
como expressão e garantia de nossa
condição de sujeitos, proibindo
moralmente o que nos transforme em
coisa usada e manipulada por outros.”
Marilena Chauí. Convite à Filosofia
(p.443)
“[...] sob que condições o homem
inventou para si os juízos de valor ‘bom’
e ‘mau’? E que valor eles têm?
Obstruíram ou promoveram até agora o
crescimento do homem? São indícios de
miséria, empobrecimento, degeneração
da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles
a plenitude, a força, a vontade da vida,
sua coragem, sua certeza, seu futuro?
Nietzsche Genealogia da Moral (p.10).

O objetivo desta aula é traçar um percurso através do qual, partindo de uma


compreensão clássica (europeia) de ética, possamos contrapô-la a uma outra ética. A
que se manifesta, de um modo singular na cultura negra e, nesse âmbito, na cultura afro-
brasileira. Toda a nossa leitura e reflexão deve-se realizar ao revés do que lemos: um
olho no texto e outro em nossa condição afro-brasileira. Ler as entrelinhas de uma ética
eurocêntrica da Modernidade, e apontar sua pretensa universalidade.

Assim, esse percurso será um tanto tortuoso, porém, esclarecedor na medida em que é
necessário nos determos sobre o que nos tornou “europeus-de-fachada”, até o ponto em
que caia nossas máscaras brancas: essas, que ocultam uma forma ético-política que se
configurou ao longo dos séculos de colonização e que precisa se tornar visível e
reconhecida.

***
Partindo de seu sentido original (etimológico), ethos (grego) e mores (latim) designam a
mesma concepção, a de costumes1. Ricœur2 aponta, contudo, para uma “sutil diferença”:

“É por convenção que reservarei o termo “ética” para o desígnio


[expressão de um desejo, intenção ou vontade] de uma vida
consumada sob o signo das ações estimadas como boas, e o de
“moral” para o aspecto obrigatório, marcado por normas, obrigações e
interdições caracterizadas simultaneamente por uma exigência de
universalidade por um efeito de coerção.

Ricœur escolhe uma origem para o tratamento filosófico com o qual deseja abordar tais
questões éticas. Ele se orienta tanto através de Aristóteles quanto de Kant, ainda que de
forma heterodoxa.
É importante salientar que estas duas orientações, a despeito das circunstâncias
históricas (e desta heterodoxia), permeiam o pensamento filosófico europeu, sobretudo
no que concerne à Modernidade. Ao menos aquele que se apropria tanto das
concepções conceituais dos gregos, quanto aquelas elaboradas no auge do Iluminismo
(cerne da Modernidade eurocêntrica)
Vejamos o desdobramento de sua concepção de ética. “Eu definiria o desígnio ético
pelos três termos seguintes: o desígnio de uma vida boa, com e para os outros, em
instituições justas”3.
Como podemos observar, esta concepção traz consigo a indicação de que ethos é
intrínseco à organização sociocultural e, por conseguinte, aos conceitos de alteridade
e de reciprocidade. Estes apontam, na concepção de “desígnio de uma vida boa”, para
um futuro possível, em que ela se realizaria, na medida em que alteridade e

1
“Ethos é um termo filosófico que significa “o espírito característico, o tom de sentimento prevalecente,
de um povo ou comunidade; o ‘gênio’ de uma instituição ou sistema”, embora tenha suas raízes originais
na palavra grega “etho” ou “ser acostumado a”, indicando que o ethos tem que ver com os costumes e as
normas de uma sociedade (Miller, 1974, p. 309-10). O ethos não focaliza o indivíduo, mas a expressão
dos valores da sociedade no indivíduo e por meio dele. Para ser um bom exemplo do ethos, então, o
indivíduo deve exibir os traços de personalidade mais valorizados em uma sociedade. Tais virtudes em
relação à sociedade clássica de Atenas, por exemplo, seriam “a justiça, a coragem, a sobriedade, a
magnificência [excelência], a magnanimidade [generosidade], a prudência e a sabedoria” (Halloran, 1982,
p. 60). Na retórica, o ethos se refere não a quem discursa, mas à plateia. Se alguém se pronuncia, cabe à
plateia determinar se o orador tem alto ou baixo ethos. [Nota da organizadora.]”. (grifos meu)
As citações desta nota podem ser consultadas in: Elisa L. Nascimento. Afrocentricidade. p. 359
2
Paul Ricœur Ética e Moral. http://www.lusosofia.net/textos/ricoeur_paul_etica_e_moral_rpf1990.pdf.
3
Idem, p.5
reciprocidade convergissem entre si. Trata-se, assim, nesta concepção, de um voto:
“Possa eu, possas tu, possamos nós viver bem”.
Ricoeur desdobra este significado para a compreensão de cuidado (de si, do outro, da
instituição) como estima, tanto significando respeito e consideração como,
principalmente, de avaliação (portanto, um julgar racional) da ação de si e do outro,
(mutualidade) portanto, tende a um sentido reflexivo sobre o agir mútuo. Contudo, o
caráter reflexivo, para o autor, assume, devido ao caráter sociocultural, uma dimensão
dialogal implícita, que implicaria na solicitude (o cuidado) recíproca em face do outro:
um “tu também”.
Ou seja, a autonomia de um sujeito da ação refluiria reciprocamente, enfim, para a
autonomia do outro: “O milagre da reciprocidade é que as pessoas são reconhecidas
como insubstituíveis uma pela outra na própria troca”. É a amizade.4
E quando não é possível a reciprocidade, a troca? No exercício “ideal” desta Ética, a
impossibilidade da troca deve (ou deveria) revelar a fragilidade do outro como aquele
que sofre e, diante dele, manifestar-se a compaixão, o aproximar-se afetivamente do
afeto do outro (empatia?)5.

4
Até o momento, poderíamos nos perguntar: tais considerações sobre a ética, não seriam “idealistas”,
malgrado a justeza de suas intenções? Poderíamos efetiva-las, ao menos, no restrito círculo pedagógico de
uma aula despedagogizada, como um espaço para a empatia? Paulo Freire, talvez? Vejamos o que se
segue.
5
Neste ponto, se faz necessária uma introdução à questão política no que concerne à relação entre
sofrimento e compaixão diante da fragilidade. É possível entender essa relação inicialmente circunscrita
a certa possibilidade: o significado de sofrimento como absolutamente próprio às circunstancias
existências inerentes ao viver, tais como as vicissitudes derivadas das escolhas (possíveis, finitas) de um
destino; mas, igualmente, em relação à condição finita humana, a morte pessoal do outro.
Por outro lado, como assinalou A. Mbeme (Necropolítica), há uma política da morte. A administração
geo-biopolítica de quem pode viver e deve quem dever morrer:. “Esse controle pressupõe a distribuição
da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma
cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula como termo (aparentemente familiar)
‘racismo’” (Necropolítica p.16)
O que requer a compreensão do sofrimento resultante desta morte como um desígnio político do Estado
e consequentemente, para os que sofrem com a morte do outro, a realização de um luto político diante da
violência política estatal. E sabemos quem são os condenados à morte. (Trata-se da fragilidade
resultante desta política). Entretanto, a natureza deste luto, em face da vida, necessita ser superado:
politizar a compaixão e o luto? Como? https://revistacult.uol.com.br/home/feridas-de-uma-heranca-
dolorosa/. Sobre o livro Necropolítica, de Achille Mbembe, confira https://www.procomum.org/wp-
content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf.

Observo, em relação à política da morte, que a administração governamental da vacinação atual pode ser
compreendida como estratégia biopolítica de eugenia, algo continuamente pretendido desde o século
passado, no Brasil. Sendo, portanto, uma política de controle e, no limite, de sacrifício de populações
vulneráveis.
Aqui, a alteridade, revelando-se como fragilidade do outro, impõe o tema das
instituições justas, isto é, uma compreensão do outro que requer a perspectiva
(politicamente complexa), da igualdade jurídica. O que é uma instituição? “Podemos
com efeito compreender uma instituição como um sistema de partilha, de repartição,
implicando direitos e deveres, rendimentos e patrimônios, responsabilidades e poderes,
numa palavra benefícios e encargos” (meu grifo) 6

A ideia de instituição como sistema de partilha deseja concretizar, agora no âmbito de


um sistema jurídico (e, portanto, compreendido não tanto a partir do ethos em seu
sentido comunitário7), o entendimento de justiça como o que abarca (ou seja, como o
que inclui) o “face-a-face da amizade ou do amor”. Este sujeito seria o “parceiro de um
sistema de distribuição”. A justiça se realizando como e na distribuição: cada qual
sendo “o destinatário de uma justa partilha”. O que lemos aqui, nas entrelinhas desta
citação, é que a abordagem de Ricoeur encontra-se no horizonte de uma subjetividade
entendida agora como indivíduo8 : “a justiça consiste precisamente em atribuir a cada
um a parte que lhe cabe”. Ainda que, a bem da verdade, queira superar tal ideia
eminentemente Moderna (quando tenta ambiguamente superar o formalismo moral): “É
inevitável que a ideia de justiça enverede pelas sendas do formalismo pelo qual já a
seguir caracterizaremos a moral”.

***
Formalismo moral quer dizer: o valor do valor moral das ações, as que constituirão a
vida boa, receberá sua legitimidade de uma norma que não se origine de uma criação
arbitrária, oriunda das circunstâncias particulares e contingentes. Há, portanto, a
necessidade de legitimação da norma, isto é, um critério cujo princípio se situe como
condição prévia de validade moral da ação de tal forma que esta ação moral não se

6
As cotas raciais seriam um exemplo? Vide os bastidores do debate sobre as cotas racias na UnB:
https://www.youtube.com/watch?v=fCcyxahMDBk Perceba, neste vídeo, para além de uma questão
jurídica e de formulação de igualdade de direitos, o tema da branquitude.
7
O historiador nigeriano Toyin Omoyeni Falola, acentuando a longa existência pré-colonial da identidade
africana, apesar da multiplicidade de grupos étnicos, revela um fundo comum a esta etnicidade: “Um
aspecto comum na maior parte da África pré-colonial era o conceito de comunidade. (...) muitos autores
enfatizam a centralidade do ethos da comunidade e do parentesco (...). A comunidade cumpria uma
função de integração” (O Poder das Culturas Africanas. p.90-91). Nossa leitura pressupõe que, nas
entrelinhas, o que subjaz em Ricœur não são reflexões que incluam variáveis antropológicas, etnológicas,
por exemplo. Mas as perpassam preocupações culturais contemporâneas no âmbito da Ética e da
Moralidade sobre os conceitos problemáticos de alteridade, justiça, reciprocidade, cuidado, etc. Assim
sendo, está longe da etimologia de Ética como ethos e mores através dos quais a comunidade aparece
imediata e explicitamente.
8
cf. nota 1, a relação entre indivíduo e comunidade.
derive das circunstancias particulares (ou individuais) e contingentes da vida, diante das
quais, justamente por serem particulares e contingentes, perderíamos nossa condição de
sujeitos/indivíduos autônomos, condição para a vida boa. Porém, ao contrário, há um
critério que nos obrigaria racionalmente a agir. Trata-se da possibilidade de que nossa
ação moral possa ser universalizada (seja válida para todos os homens e em todas as
circunstancias) através de duas perguntas:
1.“age unicamente segundo a máxima [princípio evidente por si mesmo] que faz com
que possas querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal”. Ricœur indica o
desdobramento kantiano que busca tornar a máxima “menos genérica”:
2.“age sempre de tal forma que trates a humanidade na tua própria pessoa e na pessoa
de outrem, nunca como um meio, mas sempre também com um fim em si”.
***
Ricoeur, mostra o que subjaz a estas máximas: a realização da ética necessita que ela
corresponda a um valor para ação moral que não se sustente através da violência.
Porém, Ricœur, a partir do tema do mal radical, aproxima-se de Kant, para quem,
segundo Ricoeur, a violência resulta de um processo de exploração como relação
“espontânea do homem [para] com o homem”, ou que, assim, ela, a violência, “está
inscrita na própria estrutura da interação humana”. Citemos Ricoeur:

“O que importa primeiro ter em conta é uma situação¸ onde alguém


exerce um poder sobre outrem e onde, consequentemente, a um agente
corresponde um paciente que potencialmente é vítima da ação do
primeiro. Sobre esta dissimetria de fundo enraízam-se todas as derivas
malévolas da interação em resultado do poder que uma vontade exerce
sobre outra”. (...) A moral é a figura que a solicitude assume frente à
violência e à ameaça de violência. A todas as figuras do mal de
violência responde a interdição moral.”

Porém, não explicita a natureza desta exploração, tampouco a natureza desse poder, isto
é, dessa relação social dissimétrica.

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