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Nº USP: 11248654
São Paulo
2021
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
São Paulo
2021
INTRODUÇÃO
Segundo Lukács (2009, p.63), nas formas épicas, a natureza se despe de sua vida
própria, causa estranhamento ao sentido, pois perde seu simbolismo cheio de sentido,
tornando um mero pano de fundo, um cenário que acompanha, perdendo sua independência e
tornando-se mera projeção da essência captável dos sentidos, ou seja, da interioridade.
Isso trás a natureza, de certa forma, algo além de mero aspecto cenográfico
(contrapondo com aquilo que diz Lukács), pois ela é uma linha comunicável entre o leitor e o
interior ou o éthos das personagens. Ou seja, a natureza ganha seu significado a partir da
leitura humana sobre ela, mas ele olhar humano é capaz de ler na obra, também, os aspectos
humanos não silabados difundidos pela representação geográfica-espacial sobre a qual essas
personagens passam.
Pode-se ainda valer-se dos espaços não-naturais que permeiam a construção da obra,
ou seja, um olhar atento sobre as construções sobre as quais os objetos humanos exercem suas
atividades: igrejas, casas, jardins, postos de trabalho; estejam sozinhos ou acompanhados traz
à leitura atenta noções não verbalizadas sobre aquelas personagens que não ganharam voz
através da narração.
Espaço pode carregar consigo inúmeros significados: o espaço físico, o espaço social,
o espaço sideral (ou melhor, o espaço científico) e por aí vai (SIQUEIRA, GOMES, 2010,
p.31). Na literatura, o espaço físico da página é o espaço filosófico sobre o quais cenas,
conflitos e interações desenvolvem-se abarcando também um espaço geográfico pelo qual a
personagem permeia. Tanto se diz, estuda e se observa sobre essa personagem, mas seria o
espaço que essa transita um revelador de sentidos que permeia a narrativa? Poderia o leitor
descobrir detalhamentos sobre o modo de vida e de relacionar-se dos objetos da cena olhando
atentamente aos espaços descritos no texto? No recorte dado ao espaço por Alencar, esse
campo visual de sentido, não se compõe meramente por trajetos físicos atravessados por
personagens, como mero apetrecho cenográfico; o espaço narrado tem a capacidade de
comunicar ao leitor experiências das personagens no que tange à sua personalidade e ao seu
caráter, dialogando com tudo visto acima e com a construção narrativa do enredo. Alencar faz
uso dessa comunicação entrelinhas para esclarecer alguns detalhes interessantes que se verá
discutidos avante.
CENÁRIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o
norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-
se rio caudal. É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como
uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola
majestosamente em seu vasto leito. (p.51)
O Paquequer se lança sobre seu leito e ruma por entre as florestas até adormecer “numa linda
bacia que a natureza formou”. A mata “ostentava outrora todo o seu luxo e vigor”, “florestas
virgens se estendiam” e o rio “corria no meio das arcarias”. Mais adiante, o leitor entra em
contato direto com a casa de d. Antônio de Mariz.
Esse movimento sugere ao leitor de Alencar a exaltação de dois postos que muito se
verá adiante: a natureza, representada pala mata nativa, pelos rios e pela serra do excerto
acima; e a cultura representada pela casa que abaixo se descreve. Ao longo do romance, esses
espaços se confundem, como se verá, com as identidades das personagens que habitam uma
ou outra instância ou ora habita uma, ora habita a outra.
No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto;
a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a
civilização não tivera tempo de penetrar o interior. Entretanto, via-se à margem direita
do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de
todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique. (Idem, p.52)
Mais adiante o leitor é convidado a encontrar-se com jardim, ou o “que chamaremos jardim”.
Ou seja, as vistas do narrador, esse jardim ainda é algo muito embrionário, apenas um início
ou uma intenção de formar-se de fato um jardim. Nesse ponto, o leitor pode entrar em contato
com algo que permeia um espaço entre cultura e natureza, pois o jardim é um objeto cultural
elaborado a partir da ordenação de objetos naturais (plantas, pedras, fontes e relvas).
Aqui, mais uma vez é empregado pelo narrador uma obra apenas em seu estado inicial,
o que conversa com a visão que também já foi posta de um Brasil ainda na fase inicial, de
idealização, exploração e construção, “tudo isso a mão do homem tinha criado no pequeno
espaço com uma arte e graça admirável.”
Viu-se, portanto, a floresta e a casa. Porém, segundo Peres (2020, p.142) na corte é onde
encontra-se o leitor de Alencar e ela deveria ter seu espaço referenciado na obra. Quando d.
Antônio deixa o Rio de Janeiro (por causa da sucessão do trono português à Espanha) pode-se
exaltar um terceiro componente topológico para o desenvolvimento da narrativa: o espaço da
corte, ou seja, há aqui um triângulo topológico, na obra:
— Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca
desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada
pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus
filhos. Eu o juro! (p.58)
Conforme a topoanálise, natureza entende-se por espaços não construídos pelo homem, a
citar: rios, mares, desertos, florestas, árvores, lagos, córregos, montanhas, colinas, vales,
praias, etc. Tais espações devem estar listados e indicados para serem estudados pelas
inúmeras possibilidades de efeitos de sentido numa obra literária. Então, o leitor topoanalista
deve observar “se esses espaços recebem figurativizações a ponto de os transformar em
ambiente, paisagem ou território” (FILHO, 2007, p.48).
A casa e floresta compartilham uma fronteira muito frágil, de difícil observação. Essa
mesma fronteira encarne-se em Peri: ele selvagem, crescido na floresta, larga seu povo para
viver com Ceci, objeto de sua paixão, numa espécie de cavalheiro selvagem, que trás consigo
a superioridade de um nobre cavaleiro, mas sem deixar de lado as constituições que sua
natureza indígena lhe infringe.
Para Santos (2018):
(...) não haveria como justificar a ação, ou até mesmo a motivação de agir de Peri se
ele não estivesse inserido em uma floresta e convivesse com animais ferozes. A
floresta o impele a correr, subir em árvores e a descer em precipícios para ajudar sua
amada. Em alguns momentos na obra o narrador procura descrever com precisão a
casa dos Mariz no alto como uma reprodução de um castelo medieval, mas, apesar de
precisa, está inserida na floresta que é vasta e apresenta características gerais de
diversas florestas sem precisão. A falta de precisão da floresta desvia a atenção para
Peri e sua atividade na narrativa. (p. 12).
Mas onde mora Peri? Bem, Peri possui uma cabana próxima a casa de d. Antônio de
Mariz. Fica “a extrema do pequeno jardim”, ou seja, do espaço que mescla natureza e homem:
o jardim; a casa de Peri está no extremo dessa mescla. Sua cabana dá-se na beira de um
precipício, era feita de sapé “cujos esteios eram duas palmeiras” que cresciam por entre as
fendas das pedras, “as abas do teto desciam até o chão”. Mesmo sendo descrita como uma
habitação selvagem, a casa de Peri, é uma casa. Por casa, entende-se que é um aspecto da
cultura humana. Uma propriedade, um espaço fechado a ser ocupado, que teve seu teto
pensado para privar “a água da chuva de entrar” na habitação. Ou seja, sua casa resume por
completo o caráter de Peri: um ser híbrido.
O QUARTO DE CECI
Aqui vê-se a presença dos reinos animal: “uma garça-real empalhada”; mineral: “uma coleção
de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas”; e vegetal: “escabelo de
madeira dourada”. Percebe-se animal empalhado, coleção mineral e escabelo de vegetal.
Todos estão trabalhados, disformes e sem vida. Conforme comenta Peres (2019):
Segundo o mesmo autor, Ceci é como essa natureza: estática, sempre em seus aposentos, sai
de lá pouquíssimas vezes, mas que desperta o interesse por muitos. A natureza, bem como
Ceci, é um objeto de desejo do herói romântico, não só desse herói, mas por si, é (e são)
objeto de desejo. Ceci vê-se, portanto, entre três possíveis pretendentes: Loredano, Álvaro e
Peri, amores que representam a violência, a cortesia e a idealização.
CONCLUSÃO
Para concluir, pode-se ressaltar que o espaço não é apenas uma esfera geográfica que enfeita a
criação literária, mas ele é parte dessa criação. Idealizado, o espaço aproxima o leitor de uma
leitura mais profícua e atenta sobre o caráter da personagem, mas, mais do que isso, ele revela
as instâncias de comunicação que não são silabadas diretamente dentro do campo narrativo da
obra. É como um enigma que exige um trabalho de descobrimento, de experimentação e de
comparação com outras linguagens a procura da promoção de um debate literário mais “atento
aos detalhes” que busca dialogar sobre a literatura, não meramente como uma sequência de
fatos narrados livremente expressados, mas como um lugar de representação de inúmeras
possibilidades ligadas ao éthos dos objetos em representação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] ALENCAR, José. O guarani. Cotia: Ateliê Editorial, 2014, 3ª edição, 524 p.
[2] FILHO, Ozíris Borges. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca: Ribeirão
Gráfica e Editora, 2007, 188p.
[3] LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2009, 2ª edição, 236.
[4] MARTINS, Eduardo Vieira. Apresentação In: ALENCAR, José. O guarani. Cotia: Ateliê
Editorial, 2014, 3ª edição, 524 p.
[7] SANTOS, Márcio Antônio da Costa. A Teoria do Espaço de Osman Lins. Uberaba:
Revista Topus, 2018, v. 04, n. 02.
[8] SIQUEIRA, Joelma Santa; GOMES, Elaine Cavalcante. Reflexão sobre espaço e
romance. Viçosa: Gláuks, 2010, v. 10 n. 2 p. 31-41.
GALERIA DE IMAGENS
[1] ROCHA, Luciana. Ilustrações In: ALENCAR, José. O guarani. Cotia: Ateliê Editorial,
2014, 3ª edição, 524 p.