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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

TOPOS: COMO O ESPAÇO REVELA O QUE NÃO É DITO EM “O GUARANI”

Matheus Nascimento Campos

Nº USP: 11248654

São Paulo

2021
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

TOPOS: COMO O ESPAÇO REVELA O QUE NÃO É DITO EM “O GUARANI”

Trabalho entregue a disciplina de “Literatura Brasileira III”


Ministrada pelo Profº Drº Marcos Flamínio Peres

São Paulo

2021
INTRODUÇÃO

O Romance trata-se de um gênero literário que invadiu a produção literária da Europa


entre os séculos XVIII e XIX. É completamente plural, não sendo possível achatá-lo a
estigmas puros que apenas o adjetivam, pois trata-se de um movimento maciço, estrondoso e
incalculavelmente contribuitivo para a consolidação da cultura literária no estilo de vida
burguês europeu.

No Brasil, o romance ganha notoriedade durante o século XIX com a presença do


romantismo. Não obstante, durante essa mesma época e possível citar a independência de
1822, o sentimento nacionalista sobre o qual pairava o país na época, ou seja, a brasilidade a
os aspectos culturais do Brasil, estavam em constantes debates a fim de fundamentar-se uma
cultura brasileira formada pela exaltação de “coisas do país”, o que seria ou não seria, de fato,
coisa brasileira / do brasileiro. (MARTINS in: Alencar, 2014, p.13).

Na literatura, essa influência nacionalista encontrará de cara com o romantismo, ou


melhor, com o romance. No romance, por sua vez, essa tradição abarcará sobre os aspectos da
cultura citadina da comunidade urbana que ia se desenvolvendo no Brasil, representando a
cultura como vividamente símbolo de um território que se tornou Brasil, mas em paralelo e,
por hora, mais relevante, sobretudo nesta época, o romance se verterá sobre os aspectos da
natureza e da história brasileira. Aqui, vê-se, índios, línguas indígenas, objetos indígenas,
culinária e rotina indígenas... em direção a esta estrada parte “O Guarani” de José de Alencar.
(MARTINS in: Alencar, 2014, p.16).

Como viu-se, inúmeros aspectos da cultura indígena foram semeados na produção


literária (e intelectual) da época. Ou, pelo menos, aquilo que se acredita poder representar
aspectos da cultura indígena como, claro, criação literária. Podendo-se fazer uso do
vocabulário indígena (a despeito das inúmeras etnias que povoavam o Brasil parece que há
sempre a escolha de uma específica como método de especializar a obra), dos costumes
indígenas (ou o que se acreditava ser costume de determinada etnia indígena. Outra forma de
abarcar a esse nacionalismo é fazer referência a um aspecto muito importante para o
romantismo europeu: a natureza.
A PAISAGEM COMO INTERIORIDADE DO INDIVÍDUO

Segundo Lukács (2009, p.63), nas formas épicas, a natureza se despe de sua vida
própria, causa estranhamento ao sentido, pois perde seu simbolismo cheio de sentido,
tornando um mero pano de fundo, um cenário que acompanha, perdendo sua independência e
tornando-se mera projeção da essência captável dos sentidos, ou seja, da interioridade.

Isso trás a natureza, de certa forma, algo além de mero aspecto cenográfico
(contrapondo com aquilo que diz Lukács), pois ela é uma linha comunicável entre o leitor e o
interior ou o éthos das personagens. Ou seja, a natureza ganha seu significado a partir da
leitura humana sobre ela, mas ele olhar humano é capaz de ler na obra, também, os aspectos
humanos não silabados difundidos pela representação geográfica-espacial sobre a qual essas
personagens passam.

Pode-se ainda valer-se dos espaços não-naturais que permeiam a construção da obra,
ou seja, um olhar atento sobre as construções sobre as quais os objetos humanos exercem suas
atividades: igrejas, casas, jardins, postos de trabalho; estejam sozinhos ou acompanhados traz
à leitura atenta noções não verbalizadas sobre aquelas personagens que não ganharam voz
através da narração.

Esses detalhes satisfazem a construção imagética por parte do leitor da personalidade e


caráter de determinada personagem. É uma forma semiológica de comunicação e a leitura
atenta a esses detalhes, revelam muitas informações interessantes. Com essa confluência:
natureza e espaços não naturais (construídos, projetados, humanizados) pode-se nomear a
leitura do espaço como objeto de comunicação escondido sobre os detalhes das cenas nos
romances.

Espaço pode carregar consigo inúmeros significados: o espaço físico, o espaço social,
o espaço sideral (ou melhor, o espaço científico) e por aí vai (SIQUEIRA, GOMES, 2010,
p.31). Na literatura, o espaço físico da página é o espaço filosófico sobre o quais cenas,
conflitos e interações desenvolvem-se abarcando também um espaço geográfico pelo qual a
personagem permeia. Tanto se diz, estuda e se observa sobre essa personagem, mas seria o
espaço que essa transita um revelador de sentidos que permeia a narrativa? Poderia o leitor
descobrir detalhamentos sobre o modo de vida e de relacionar-se dos objetos da cena olhando
atentamente aos espaços descritos no texto? No recorte dado ao espaço por Alencar, esse
campo visual de sentido, não se compõe meramente por trajetos físicos atravessados por
personagens, como mero apetrecho cenográfico; o espaço narrado tem a capacidade de
comunicar ao leitor experiências das personagens no que tange à sua personalidade e ao seu
caráter, dialogando com tudo visto acima e com a construção narrativa do enredo. Alencar faz
uso dessa comunicação entrelinhas para esclarecer alguns detalhes interessantes que se verá
discutidos avante.

CENÁRIO

O primeiro capítulo da obra intitulado “Cenário” inaugura de forma descritiva, a obra


já de antemão elevando o significado dos espaços sobre o qual desdobrarão os acontecimentos
narrados, aponta a localidade, cita o Rio Paquequer, a Serra dos Órgãos. Conforme vê-se
abaixo (Alencar, 2014):

De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o
norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-
se rio caudal. É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como
uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola
majestosamente em seu vasto leito. (p.51)

O Paquequer se lança sobre seu leito e ruma por entre as florestas até adormecer “numa linda
bacia que a natureza formou”. A mata “ostentava outrora todo o seu luxo e vigor”, “florestas
virgens se estendiam” e o rio “corria no meio das arcarias”. Mais adiante, o leitor entra em
contato direto com a casa de d. Antônio de Mariz.

Esse movimento sugere ao leitor de Alencar a exaltação de dois postos que muito se
verá adiante: a natureza, representada pala mata nativa, pelos rios e pela serra do excerto
acima; e a cultura representada pela casa que abaixo se descreve. Ao longo do romance, esses
espaços se confundem, como se verá, com as identidades das personagens que habitam uma
ou outra instância ou ora habita uma, ora habita a outra.

No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto;
a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a
civilização não tivera tempo de penetrar o interior. Entretanto, via-se à margem direita
do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de
todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique. (Idem, p.52)

A casa é tida como simples “que ainda apresentam


as nossas primitivas habitações” pode ser lida aqui
como um enigmático reflexo do Brasil de “O
Guarani”. No romance, o Brasil do século XVII é
ainda um Brasil a ser explorado, a ser civilizado e a
casa é seu correlato. Adunado pelas características
simples e “grosseiras” do edifício, ainda assim é
um marco da presença da cultura humana
corroborada pelo assentamento arquitetônico.

IMAGEM 1 – A casa de Antônio de Mariz e a

natureza em volta (Luciana Rocha In: Alencar, 2014, p.53)

PERI: NATUREZA, CULTURA E O HÍBRIDO

Mais adiante o leitor é convidado a encontrar-se com jardim, ou o “que chamaremos jardim”.
Ou seja, as vistas do narrador, esse jardim ainda é algo muito embrionário, apenas um início
ou uma intenção de formar-se de fato um jardim. Nesse ponto, o leitor pode entrar em contato
com algo que permeia um espaço entre cultura e natureza, pois o jardim é um objeto cultural
elaborado a partir da ordenação de objetos naturais (plantas, pedras, fontes e relvas).

Aqui, mais uma vez é empregado pelo narrador uma obra apenas em seu estado inicial,
o que conversa com a visão que também já foi posta de um Brasil ainda na fase inicial, de
idealização, exploração e construção, “tudo isso a mão do homem tinha criado no pequeno
espaço com uma arte e graça admirável.”

Viu-se, portanto, a floresta e a casa. Porém, segundo Peres (2020, p.142) na corte é onde
encontra-se o leitor de Alencar e ela deveria ter seu espaço referenciado na obra. Quando d.
Antônio deixa o Rio de Janeiro (por causa da sucessão do trono português à Espanha) pode-se
exaltar um terceiro componente topológico para o desenvolvimento da narrativa: o espaço da
corte, ou seja, há aqui um triângulo topológico, na obra:

— Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca
desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada
pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus
filhos. Eu o juro! (p.58)

Conforme a topoanálise, natureza entende-se por espaços não construídos pelo homem, a
citar: rios, mares, desertos, florestas, árvores, lagos, córregos, montanhas, colinas, vales,
praias, etc. Tais espações devem estar listados e indicados para serem estudados pelas
inúmeras possibilidades de efeitos de sentido numa obra literária. Então, o leitor topoanalista
deve observar “se esses espaços recebem figurativizações a ponto de os transformar em
ambiente, paisagem ou território” (FILHO, 2007, p.48).

As a florestas, no imaginário coletivo como espaço desinstiticionalizado onde as leis


humanas não são praticadas em que o “ordenamento da civilização ocidental não vigora” é
possivelmente povoada por sujeitos que estão às margens da lei ou até mesmo seres
sobrenaturais. Na obra de Alencar, a mata representa um espaço de instintos, de
renascimentos, de aventuras e da ideação do objeto de amor. Esse espaço selvagem, longe do
domínio das regras da sociedade ocidental, carrega consigo também em seu cerne, a traição
(PERES, 2020, p.143).

Esse lugar preparado para a recepção de aventuras (e traições) é habitat natural de


Peri, porém, mesmo sendo índio Peri relega a liderança da tribo dos aimorés, a ele atribuída
após a morte de seu pai, à sua mãe. Quebra com o princípio de lealdade a seu povo, como
uma quebra de regras a nível antropológico.

A casa e floresta compartilham uma fronteira muito frágil, de difícil observação. Essa
mesma fronteira encarne-se em Peri: ele selvagem, crescido na floresta, larga seu povo para
viver com Ceci, objeto de sua paixão, numa espécie de cavalheiro selvagem, que trás consigo
a superioridade de um nobre cavaleiro, mas sem deixar de lado as constituições que sua
natureza indígena lhe infringe.
Para Santos (2018):

(...) não haveria como justificar a ação, ou até mesmo a motivação de agir de Peri se
ele não estivesse inserido em uma floresta e convivesse com animais ferozes. A
floresta o impele a correr, subir em árvores e a descer em precipícios para ajudar sua
amada. Em alguns momentos na obra o narrador procura descrever com precisão a
casa dos Mariz no alto como uma reprodução de um castelo medieval, mas, apesar de
precisa, está inserida na floresta que é vasta e apresenta características gerais de
diversas florestas sem precisão. A falta de precisão da floresta desvia a atenção para
Peri e sua atividade na narrativa. (p. 12).

Ou seja, as características limítrofes da casa e da floresta, imprecisamente narradas, ou seja,


em contextos gerais de floresta e de casa, está Peri. Ele é a confluência desses dois mundos
que representam a clássica distinção do debate filosófico: a natureza e a cultura.

Mas onde mora Peri? Bem, Peri possui uma cabana próxima a casa de d. Antônio de
Mariz. Fica “a extrema do pequeno jardim”, ou seja, do espaço que mescla natureza e homem:
o jardim; a casa de Peri está no extremo dessa mescla. Sua cabana dá-se na beira de um
precipício, era feita de sapé “cujos esteios eram duas palmeiras” que cresciam por entre as
fendas das pedras, “as abas do teto desciam até o chão”. Mesmo sendo descrita como uma
habitação selvagem, a casa de Peri, é uma casa. Por casa, entende-se que é um aspecto da
cultura humana. Uma propriedade, um espaço fechado a ser ocupado, que teve seu teto
pensado para privar “a água da chuva de entrar” na habitação. Ou seja, sua casa resume por
completo o caráter de Peri: um ser híbrido.

O QUARTO DE CECI

O quarto de Ceci é um ambiente muito interessante na obra: é o último cômodo. No quarto de


Ceci, a natureza também se impõe: aqui jaz objetos de madeira ornamentados, trabalhados na
decoração do ambiente. Há também crucifixos e ornamentos feitos com a natureza da Serra
dos Órgãos. Há uma coleção de pedras coloridas e multiformes. “Uma garça-real empalhada,
prestes a desatar o voo, segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ela abria com a ponta
de suas asas brancas e caindo sobre a porta, vendava esse ninho da inocência aos olhos
profanos”.

Aqui vê-se a presença dos reinos animal: “uma garça-real empalhada”; mineral: “uma coleção
de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas”; e vegetal: “escabelo de
madeira dourada”. Percebe-se animal empalhado, coleção mineral e escabelo de vegetal.
Todos estão trabalhados, disformes e sem vida. Conforme comenta Peres (2019):

A garça é uma metáfora da morte, ou do estado em que a natureza se encontra


reduzida no interior do aposento da donzela: uma natureza morta, em termos não
apenas ontológicos, mas também pictóricos. Não é casual que a ênfase no volume no
início do capítulo dê vez à luz como elemento essencial de composição, exibindo aos
olhos do leitor uma variada palheta de cores: o branco do alabastro, o “dourado” da
madeira do escabelo, as “cores mimosas” dos minerais, a “palha matizada de várias
cores”, o negro e o escarlate das penas, o “azul” da cortina de tafetá e o branco,
particularmente, das asas da garça real. (p. 21-2)

Segundo o mesmo autor, Ceci é como essa natureza: estática, sempre em seus aposentos, sai
de lá pouquíssimas vezes, mas que desperta o interesse por muitos. A natureza, bem como
Ceci, é um objeto de desejo do herói romântico, não só desse herói, mas por si, é (e são)
objeto de desejo. Ceci vê-se, portanto, entre três possíveis pretendentes: Loredano, Álvaro e
Peri, amores que representam a violência, a cortesia e a idealização.

O quarto de Ceci também é também o da natureza domada, assujeitada pelas mãos do


homem, essa natureza/Ceci está no quarto sempre controlada pelas mãos do homem: é o
animal que foi empalhado, é o mineral que foi colhido e colecionado, é o vegetal que foi
esculpido em apoio para os pés e é Ceci que é subjugada aos desejos de seu pai e da sociedade
formada naquela instância

CONCLUSÃO
Para concluir, pode-se ressaltar que o espaço não é apenas uma esfera geográfica que enfeita a
criação literária, mas ele é parte dessa criação. Idealizado, o espaço aproxima o leitor de uma
leitura mais profícua e atenta sobre o caráter da personagem, mas, mais do que isso, ele revela
as instâncias de comunicação que não são silabadas diretamente dentro do campo narrativo da
obra. É como um enigma que exige um trabalho de descobrimento, de experimentação e de
comparação com outras linguagens a procura da promoção de um debate literário mais “atento
aos detalhes” que busca dialogar sobre a literatura, não meramente como uma sequência de
fatos narrados livremente expressados, mas como um lugar de representação de inúmeras
possibilidades ligadas ao éthos dos objetos em representação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] ALENCAR, José. O guarani. Cotia: Ateliê Editorial, 2014, 3ª edição, 524 p.

[2] FILHO, Ozíris Borges. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca: Ribeirão
Gráfica e Editora, 2007, 188p.

[3] LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2009, 2ª edição, 236.

[4] MARTINS, Eduardo Vieira. Apresentação In: ALENCAR, José. O guarani. Cotia: Ateliê
Editorial, 2014, 3ª edição, 524 p.

[5] PERES, Marcos Flamínio. O Quarto de Ceci: Paisagem, Natureza-Morta e Desejo em O


Guarani, de José de Alencar. Rio de Janeiro: ALEA, 2019, v. 21/3 p.17-32.

[6] ________, Marcos Flamínio. Peri em Brocéliande: o deserto-floresta em O Guarani,


de José de Alencar. Araraquara: Itinerários, 2010, n. 51, p. 139-155.

[7] SANTOS, Márcio Antônio da Costa. A Teoria do Espaço de Osman Lins. Uberaba:
Revista Topus, 2018, v. 04, n. 02.

[8] SIQUEIRA, Joelma Santa; GOMES, Elaine Cavalcante. Reflexão sobre espaço e
romance. Viçosa: Gláuks, 2010, v. 10 n. 2 p. 31-41.

GALERIA DE IMAGENS

[1] ROCHA, Luciana. Ilustrações In: ALENCAR, José. O guarani. Cotia: Ateliê Editorial,
2014, 3ª edição, 524 p.

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