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Leticia

FICHAMENTO - TEXTO BASE: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. In A


operação historiográfica. RJ: Forense Universitária, 1982, pp. 93-109.

O autor inicia este item, Uma escrita, enfatizando que “a representação histórica”,
enquanto ciência do historiador, se conecta com o lugar social, com campos institucionais
(como empresas financiadoras de pesquisas, realidades histórico-sociais dos arquivos,
diferentes áreas e abordagens historiográficas que dividem os pares da profissão etc), não
somente, com linguagens técnicas “ligadas a uma prática do desvio”. Este conceito, prática
do desvio, pode ser entendido como uma atividade que demanda do historiador, ao elaborar o
seu produto, o texto, a tentativa de se desligar de seu presente, assim como dos modelos
teóricos já fixados na banalidade do cotidiano e, por muitas vezes, compreendidos
semanticamente em nosso presente como fruto de uma ‘obviedade’.
Assim, o produto do historiador, a sua escrita, deve tentar fugir das obviedades
conceituais. O desvio está na proposta do texto se desarraigar do lógico e, assim, inverter o
processo de formação do entendimento estabelecido – pensado, talvez, como único ou como
certo –, demonstrando os possíveis meios e condições que levaram à sua atual construção.1
Percebe-se a ênfase dada pelo autor ao espaço representativo do historiador, que
necessita saber intercambiar os trabalhos da pesquisa aos da escrita. No item seguinte, A
inversão escrituária, há um certo teor de indagação, a do tipo: como o historiador deve
escrever? Michel de Certeau relembra um termo utilizado pelo autor H. I. Marrou, a “servidão
da escrita”, que pode ser entendida no sentido de o texto, às vezes, tomar rumos diferentes
daqueles teóricos, anteriormente, apenas pensados num “plano das ideais2” do pesquisador.
Neste sentido, a escrita parece em alguns momentos ganhar vida própria e tal como nós,
organicamente, tende a querer falar por si. Desta dificuldade, endossa-se no presente
fichamento a seguinte fala do autor: “a construção de uma escrita é uma passagem, sob muitos
aspectos, estranha.”.
Novamente, a prática do desvio indica outro caminho a ser trilhado com cuidado, pois
enquanto as ideias fecundas na pesquisa são infinitas, o texto é finito e, logo, deve seguir as
técnicas institucionais e profissionais. Por isso, o autor descreve a “servidão” do discurso do
historiador, ou seja, a do seu texto, à pesquisa. O historiador ao escrever é defrontado
constantemente com hiatos que por ele são preenchidos. Apenas a “representação escrituária é
‘plena’ ” (aqui entendida como, por exemplo, os acervos de arquivos ou a responsabilidade, a
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ideia, um planejamento, de ter de redigir uma escrita) e, inclusive, auxilia o preenchimento


dos hiatos
A prática, no entanto, segundo de Michel de Certeau, inverte a ‘harmonia’, é a imagem
refletida da escrita e como tal corre os ‘riscos’ de criar ilusões e mitos, mas, ainda assim, “[...]
é uma prática social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado, [...] uma lição”. 3 A
prática escrituária expõe e ensina, no presente, o passado histórico de determinadas
sociedades, ao passo que também oculta significativos símbolos destas. Não por ‘simples
incompetência’ do historiador, mas pela dificuldade epistemológica da História construir
‘verdades’ a partir de reflexos distantes no tempo. Daí as duas funções, que levam às escolhas
pessoais do historiador: “fazer história” ou “contar histórias”? Construir ‘verdades’ ou
analisar os possíveis indícios históricos das ‘sociedades mortas’? Eis aí o maior desafio,
afinal, “o que é que o historiador fabrica quando se torna escritor? Seu próprio discurso deve
revelá-lo4.”.
O item seguinte, A cronologia ou a lei mascarada, o escritor alude à importância do
pesquisador corresponder com a cronologia, pois caso assim o fizer estará possibilitando ao
seu trabalho uma boa conclusão. A historiografia carece da organização cronológica que
conduza a construção “num ‘tempo discursivo’ situado à distância do tempo ‘real’.” A
cronologia é, então, dividida pelo historiador em diferentes aspectos: o primeiro é a de
“tornar compatíveis os contrários”, isto é, condicionar numa mesma narrativa situação e
temporalidade distintas. Assim, “a temporalidade cria a possibilidade de tornar coerentes uma
‘ordem’ e o seu ‘heteróclito [anômalo]’.”5
O segundo aspecto da cronologia remete aos períodos que dividem a história, a fins
metodológicos e didáticos. Indo do presente ao passado, aí uma ambivalência, questiona o
autor como ocorre o início da histórica. Pode-se dizer que a construção historiográfica
começa, basicamente, onde ‘termina’, no seu objetivo último. Ou seja, no presente se elabora
um texto sobre certa cronologia histórica que futuramente (ou no mesmo presente) o
excederá. Logo, “o presente, postulado do discurso, torna-se a renda da operação escrituária:
o lugar de produção do texto se transforma em lugar produzido pelo texto.”.6
Faz-se importante compreender que o ‘local de partida’ de um relato historiográfico
dialoga “com algo que não pode ter lugar na história – um não lugar fundador –, sem o qual,
entretanto, não haveria historiografia.”. Pode-se intuir, a partir dessa passagem, que o local de
___________________________
12
Ibidem, p. 104.
13
Ibidem, p. 106.
14
Ibidem, p. 107.
15
Ibidem, pp. 108-109.
partida do trabalho historiográfico, o seu não lugar fundador, se refere ao “não dito” da ampla
tarefa escrituária, a qual nem sempre pode detalhar toda e qualquer informação, já que deve
responder aos limites de tempo e aos de espaço no corpo textual.
Toda escrita é iniciada numa cronologia do presente, que é o seu limiar e o seu “não
dito”, porque se “[...] estabelece numa relação necessária com um ‘começo’ que não é nada,
[é, entretanto] um não lugar fundador [...]7”. Logo, o não lugar existente em todo relato é uma
proposição axiomática deste, estabelecendo-se, assim, entre a fenda do processo da prática e o
da escrita. Entende-se, com base no argumento do autor, que a escrita pode ‘sujeitar’ o tempo
da prática a possíveis enganos, uma vez que “inverte o tempo da prática”. No entanto, tanto
uma quanto outra (escrita e prática) se conectam com um marco – com o “zero mítico do
tempo”, o qual guia a criação de sentidos na escrita e auxilia a constituição do objeto desta,
fato que, para tanto, exige o exercício, a prática sobre a “lei do outro”.
O pesquisador, escritor, de História é constantemente defrontado com o júbilo
conquistador do zero, do limiar e, talvez, da sensação de poder construir uma gênese original,
iniciada no não lugar, e que, neste decorrer de construção, pode se tornar um ‘mito das
origens’, um ‘zero explicador’. Entretanto, adverte Michel de Certeau, “quando o relato é
histórico, resiste à sedução do começo; ao Eros da origem”. 8 Por isso, aqui se compreende, o
relato histórico não deve se estruturar apenas como um conto de fábulas, embora possa dele se
apoiar, e sim como uma sistemática elaboração científica, baseada sob os ‘termos’ da
instituição do historiador.
O item A construção desdobrada tem como temática a historiografia. A escrita para
ser historiográfica deve respeitar o seu outro e responder à política normativa da função e
instituição históricas.9 Utiliza-se de construções discursivas, narrativas, interpretações e
citações (nomes próprios) para ‘entender’ o seu outro, assim como organizar através do
discurso “[...] um contrato enunciativo entre o remetente e o destinatário.”. 10
Quanto à relação entre o acontecimento e o fato, o autor torna claro que “[...] o
acontecimento é aquele que recorta para que haja inteligibilidade; o fato histórico é aquele
que preenche para que haja enunciados de sentido.11”. Há aí a problematização do que é o
acontecimento? Assim, “ele é o postulado e o ponto de partida – mas também o ponto cego –

___________________________
7
Ibidem, p. 98.
8
Ibidem, p. 99.
9
Ver detalhes – da produção semântica com a seleção e da inteligibilidade literária; da narrativização e da
semantização; do caráter misto etc –, pp. 100-101.
10
Ibidem, p. 102.
11
Ibidem, p. 103.
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da compreensão” e auxilia analisar um raciocínio histórico. Neste sentido, o texto permite ao


historiador trabalhar com os sentidos (fatos) e com as condições (acontecimentos).12
O autor ao ser se referir sobre o lugar do estranho como útil, aludiu que a
historiografia não consegue tornar totalmente inteligível o incompreensível, tornando a escrita
um discurso erosivo, frágil e ligado aos “recortes semânticos” – os quais definem e separam o
discurso em diferentes campos teóricos, como, exemplifica o autor, os séculos, períodos etc –
que os veiculam com o lugar social. Em vista disso, as combinações de recortes e conceitos,
referem-se ao próprio movimento da escrita.13
O terceiro e interessante paradoxo da escrita historiográfica, para Michel de Certeau,
diz respeito aos objetos que a história trata em geral ao criar narrativas, os mortos e as suas
particularidades numa dada sociedade, com suas inúmeras implicações, e tempo. Num diálogo
entre a obra histórica “mostrar”, tal como uma exposição em um museu, ou “significar,
permite-se o autor aferir que “[...] o ‘mostrar tende a se substituir ao ‘significar’ ”. E a prática
da pesquisa, mais uma vez, por ele, enfatizada, tende a ‘trocar de lugar’ com a prática da
escrita. Isto é, “a prática encontra o passado sob a forma de um desvio a modelos presentes”, e
não os ‘pilares’ histórico-sociais contemporâneos iguais aos que existiram no passado.
Argumento importante é a função dada à escrita e sua construção nas sociedades e no
decorrer da história dos homens, pois,
[...] a escrita representa um papel de um rito de sepultamento; ela exorciza a
morte introduzindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma função
simbolizadora; permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem,
um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente: ‘marcar’
um passado, é dar um lugar à morte, mas também redistribuir o espaço das
possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e,
consequentemente, utilizar a narratividade, que enterra os mortos, como um
meio de estabelecer um lugar para os vivos. 14

Honestamente, não corroborar com o parágrafo acima é praticamente uma insensatez.


Visto isto, porém, compreende-se aqui que a historiografia mais que se servir da morte para
articular uma lei do presente e enterrar os mortos do passado, ela os revive, alimenta-os na
história do presente, na memória da criatura humana e, assim, na conexão de “[...] um corpo
social [...] com a sua linguagem.”.15 A ‘representação’, do autor, dada aos mortos foi, portanto,
a única observação “contestada” no presente fichamento, e consciente de respeito pelo escritor
da referida obra.
___________________________
12
Ibidem, p. 104.
13
Ibidem, p. 106.
14
Ibidem, p. 107.
15
Ibidem, pp. 108-109.

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