Você está na página 1de 14

CURSO DE FILOSOFIA DO PENSAMENTO 2021.

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

PPGFIL – UnB

TEXTO 2

I. INTRODUÇÃO: PENSAMENTO E FILOSOFIA.


FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA.

I.1. PENSAMENTO E FILOSOFIA

1.1.1. O PENSAMENTO COMO TECELÃO DA REALIDADE (Cf. texto 1)


1.1.2. A EXPERIÊNCIA MAIS ORIGINÁRIA E RADICAL DO PENSAR É A PRÓPRIA
FATICIDADE DO VIVER HUMANO (“EXISTÊNCIA”).

Na reflexão anterior, partindo do uso linguístico e da etimologia da língua


portuguesa, meditamos sobre o pensamento como o “tecelão da realidade”.

Depois da meditação passada, veio-me à mente um poema de João Cabral de Melo


Neto, em “A educação pela pedra”. Nele, o poeta tece o canto do poema como um canto
de galo. Todo o canto faz apelo a outro canto. Em jogo está tecer a manhã...

1.

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

1
e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Ainda seremos confrontados com a necessidade de relacionar o pensamento que


medita dos pensadores e o cantar dos poetas... Mas será que tanto lá quanto aqui está em
jogo, sempre de novo, uma experiência de tecer e de tecido, cujos fios são os da
linguagem?

Voltemos, porém, à nossa tarefa inicial: tentar meditar a respeito do pensamento


e da filosofia.

Desde Aristóteles, a filosofia, tomada no sentido da [próte


philosophía], isto é, da filosofia primeira (primordial, para valer), foi tomada como o
pensar que investiga o ente enquanto ente - [on he on] / ens ut ens ]. A questão
da filosofia é a mais vasta que há. Ela não se restringe a nenhum ente em particular. Ela
abrange todo o ente: tudo o que é, que foi, que será. Não se restringe ao ente atual. O
inatual, isto é, o passado e o futuro também estão incluídos. Tudo o que não for nada cai

2
sob o alcance desta questão. Mesmo o nada, por ser o nada, também cai. Nunca podemos
ultrapassar o âmbito desta investigação. O pensamento da filosofia se dirige, pois, para o
ente no todo. A visão que se abre é, aqui, irrestrita. O filósofo, assim, nunca pode sair fora
da filosofia para falar dela. Não existe, neste sentido, nenhuma “metafilosofia”! A
filosofia é sempre uma questão importante para ela mesma. Talvez não seja assim com
outras ciências. A filosofia sempre se põe a si mesma em questão e esta questão é
fundamental. Por isso toda a nossa meditação a respeito da filosofia já se encontra
envolvida no âmbito da filosofia mesma!

Para meditar a respeito do pensamento e da filosofia é preciso, pois, pensar-


filosofar. O caminho de nossa meditação nos conduz para o lugar em que, de certo modo,
já estamos; e, de certo modo, não estamos. Já estamos: pois o âmbito da filosofia, que é
o âmbito da sua investigação, inclui tudo. E nós já estamos, de certo modo, no todo. E
não estamos: pois uma inquietação perpassa o nosso ser, o nosso estar no todo. O poeta e
pensador Novalis, certa feita, disse que a filosofia era uma saudade, uma nostalgia
(Heimweh), um impulso (Trieb), de estar por toda a parte em casa... Por que só muito
raramente nos achamos em casa neste todo em que já estamos, no todo do ente, só porque
somos perpassados pela nostalgia (a dor do apelo ao retorno!), é que filosofamos. Pensar
é pôr penso na ferida desta dor...? Odisseu era filósofo e o filósofo é um Odisseu? O
impulso da filosofia seria, assim, o ímpeto que nos impulsiona para o todo, para o estar
em casa no todo? A filosofia seria a experiência radical da finitude humana, a de que
somos sempre, de algum modo, a caminho? Seria o pensamento mais finito da finitude
humana? A respeito da finitude humana dizia Agostinho: semper in via sumus, nunquam
in patria ... O pensar surge do coração inquieto (cor inquietum) do homem, de que fala o
africano nas Confissões? Para o vivente, ser é viver. Mas o ser-viver do homem está
perpassado pela inquietude do “não”, do não-ser, da mortalidade: “media vita in morte
sumus” (no meio da vida somos na morte), diz o salmista (Ps 6, 6). E, na pregação do
Zaratustra de Nietzsche se ouve: “o que é grande no homem é que ele é uma ponte e não
um ponto final; o que é amável no homem é que ele é uma passagem e um ocaso”.

Filosofia, antes de ser uma ciência, uma disciplina, uma especialidade, é o próprio
domínio em que o homem existe e insiste, sempre de novo, como o ente finito que ele é.
Filosofia, neste sentido amplo e fundamental, é ação. Filosofia é, originariamente, ação.
Talvez fosse por isso que Kant tivesse dito, certa vez, que não se poderia aprender “a
filosofia”, mas apenas o filosofar. Um nexo íntimo vigora no relacionamento de filosofia

3
e história. Filosofia não é uma mera manifestação no tempo e na história. Ela é, de certo
modo, o próprio aparecimento do tempo e da história. Muitas são as necessidades do
homem: necessidades que dizem respeito à sua sobrevivência, à sua comodidade, etc. O
homem vive sob a pressão das necessidades. Necessidades remetem a necessidades. Mas,
de onde vem isto, que o homem tenha que viver sempre sob a pressão das necessidades?
O homem é, sempre de novo, atingido pelo apelo da necessidade. Ele precisa receber e
admitir este apelo, sempre de novo. Mas a escuta de e a resposta a este apelo o homem
sempre realiza medindo-se com o sentido de ser de tudo o que é. O homem se move
sempre numa interpretação do sentido de ser. Interpretar o sentido de ser de tudo o que é
não é uma entre outras coisas que o homem faz, vez ou outra. É o que o homem está
sempre, de algum modo, fazendo. Compreender e interpretar o sentido de ser constitui o
modo de ser do homem em seu relacionamento com tudo o que é: com o que ele não é e
com o que ele mesmo é. Isso é pensar... filosofar, em sentido mais amplo e fundamental.
Onde o homem realiza o ser-homem em sua especificidade, ali acontece o pensar, o
filosofar em sentido amplo e fundamental. Não importa se o homem tem ciência e
consciência disto. Não importa se ele reflete sobre isto. Reflexão, consciência e ciência
são fenômenos derivados. Pensar – filosofar – é um fenômeno originário, radical. Trata-
se da filosofia como ação e realização do próprio homem histórico, filosofia operativa.
Todas as necessidades humanas, enquanto humanas, estão sob o toque da necessidade do
pensar, do filosofar, isto é, do medir-se com o sentido do ser. O pensar é, neste sentido, o
próprio abrir-se e clarear-se do sentido do ser.

Esta abertura, esta clareira do ser, perfaz a faticidade de nosso viver humano,
enquanto humano. Antes de começar o que quer que seja, nós já fomos começados pela
faticidade de nosso viver humano. Isso é tão familiar e óbvio para nós que se confunde
com a fatualidade do “fato bruto” de existir. Esta fatualidade encobre a faticidade. Faz
com que nós apareçamos como uma coisa entre outras coisas. Encobre que já somos,
sempre, de alguma maneira, um ente cujo modo de ser é determinado pela liberdade. E
isto quer dizer: que somos um ente que tem que se medir sempre de novo com tudo tendo
que decidir sobre o sentido de ser, tendo que se responsabilizar pelo sentido do ser.
Vivemos camuflados como se fôssemos meras coisas entre as coisas. Nossa camuflagem
é tão hábil que nós chegamos a nos enganar a nós mesmos. O humano no homem consiste
em ter que medir-se com o ser: a necessidade de buscar, sempre de novo, o sentido de ser
do que é, a necessidade de ter que responsabilizar-se pelo sentido de ser do que quer que

4
seja. Não é o homem que constitui o medir-se com o ser. É o medir-se com o ser que
constitui o homem (que perfaz o humano no homem). Homem é, na medida em que se
mede com a responsabilidade de buscar e acolher o sentido de ser; e isto não só nas
particulares – pois o exercício de ter que se medir com o sentido de ser se dirige ao que é
no todo, à totalidade do ser. O homem é, assim, abertura de decisão, em que está em jogo,
sempre de novo, a determinação do sentido de ser do ente na sua totalidade, sendo que o
homem mesmo está incluído aí neste todo. Tudo o que é, foi ou será, tudo o que poderia
ser, tudo o que não pode não ser, tudo está sob o toque desta responsabilização de ser,
que constitui o ser do homem. De acordo com o modo como o homem se mede com esta
demanda de responsabilização é que o homem é medido. Pensar é, aqui, este exercício de
ser, que constitui o ser humano.

Que o homem humano seja assim constituído, isto é, esteja lançado nesta dinâmica
de medir-se com o ser tendo que se responsabilizar pelo sentido, sempre de novo, faz com
o que homem seja um ente arrojado na natureza. A natureza não oferece ao homem
somente facilidades, pois se assim o fosse, o homem apenas seguiria o curso da natureza,
como fazem as plantas e os animais. O homem seria um ente ou um vivente satisfeito.
Não haveria aquele radical descontentamento que caracteriza o homem em seus desejos
e nas buscas de seus quereres. A natureza não oferece ao homem apenas dificuldades. Se
assim o fosse, o homem estaria em contradição pura e simples com a natureza, e não em
simples oposição de contrariedade. E se assim fosse, o homem nem mesmo poderia ser e
viver e ser o ser humano que ele é. Concretamente, o homem vive na natureza comum
dos viventes e na sua própria natureza específica. O homem precisa realizar o seu ser-
homem numa dinâmica de responsabilização pelo sentido de ser. Ambíguo,
essencialmente ambíguo, é o modo de ser do homem. Ele se insere na natureza como as
plantas e os animais, mas, por outro lado, ele é constantemente pressionado para a
dinâmica criadora e pela necessidade de diferenciação. O homem não pode apenas viver.
Ele tem que sobre-viver, isto é, ele tem que viver, acionando o seu viver numa dinâmica
de superação de si, em medindo-se com o sentido de ser do ente no todo. Como um tal
ente arrojado para além, ao homem não basta ser natural, ele tem que ser sobre-natural.
Ele é, neste sentido, naturalmente sobre-natural, fisicamente meta-físico.

O homem não somente vive. O homem, para vier, como


homem, tem de sobre-viver à sua natureza. O Poeta expressou num
famoso verso: a vida é combate, que os fracos abate, os fortes, os bravos

5
só pode exaltar. Heráclito de Éfeso já tinha dado a esta luta da e pela
sobrevivência uma extensão universal: “o combate é o pai de tudo; de
tudo é senhor; de uns fez homens, de outros, deuses, a uns demonstra
escravos, a outros livres”. À pedra, lhe é dado pronto e acabado seu
modo de ser e de integrar a paisagem. A pedra não tem de conquistar
espaço, na refrega de conflitos e tensões, na disputa de lutas e empenhos
consigo mesma e com os outros. É somente no homem e para o homem
que ser e combater se identificam. Existir é ter de lutar consigo e com
os outros, para transcender sua natureza numa autenticidade de sentido.
Ser homem equivale, pois, a ter o ofício de criar a cada instante o
próprio modo de ser e realizar-se. Ao homem, porém, só lhe é conferida
a possibilidade de ser e não a realidade de existir, esta, ele tem de
conquistar, elaborando num perfil singular, dando uma fisionomia
individual à sua existência. É o sentido da passagem do mito do Gênese:
“comerás o teu pão com o suor do rosto”! O homem tem de ganhar a
vida com o próprio esforço, em todos os níveis de sua realização, não
apenas no nível econômico, mas sobretudo no nível da autenticidade de
um sentido plural e polivalente 1.

Viver como sobre-viver é, pois, a experiência mais arcaica de pensar. Dela advêm
todas as outras: o pensamento mágico dos homens caçadores que pintavam nas cavernas;
que tem no êxtase a forma originária do viver; que se expressa, essencialmente como
dança, que se diz em máscaras; pensamento que se desenvolve sob a égide da Grande
Mãe, a Terra; pensamento dos xamãs. É do viver como sobre-viver que vem o pensamento
dos homens agricultores das origens: pensamento que inventa a cerâmica e a culinária,
que descobre a necessidade da iniciação, que aprende da planta a lei fundamental da vida,
no desenvolvimento circular entre semente e planta; pensamento que encontra-se com o
sagrado e com a religiosidade na oferenda das primícias das colheitas; que descobre a
genealogia; pensamento que no fiar e no tecer, aprende encontra a realidade como textura
de fios de sentidos; pensamento que no operar encontra a realidade como o nexo de
atuação e de efetivação do real; pensamento que, no pastorear, faz a experiência de si
mesmo como o de cuidar; pensamento em que a compreensão é, sempre, um poder-ser,
um ser capaz, no sentido de dominar um trabalho. Pensar é, fundamentalmente, a
experiência de ser e de viver, no sentido do habitar a terra. É cuidar da terra e do que vive.

1
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 135.

6
É abrir mundo a partir desse cuidado. É abrir-se ao céu e à terra, aos imortais e aos
mortais. Na memória dos mortos, o homem se experimenta como como ente sobre-
natural, meta-físico.

É da experiência do viver como sobre-viver que o homem encontra o pensamento


do e no mito. Uma das questões mais centrais do mito é a da culpa. O pensamento do
mito e no mito faz a experiência de que ser-homem e ser culpado se identificam. Por não
ser e viver na imanência pura e simples da natureza, por ter que se transcender,
ultrapassar, diferenciar, em relação à natureza, o homem é constituído por uma culpa
fundamental. Existir como um ser humano é encontrar-se na ambiguidade de ser na
imanência, na transcendência e na decadência, em relação à natureza. Numa entrevista a
Günther Lorenz, crítico de literatura alemão, João Guimarães Rosa diz que o Riobaldo,
protagonista do “Grande Sertão Veredas”, “é algo assim como Raskolnikov”, o
personagem central de “Culpa e expiação”, de F. Dostoievski, mas “um Raskonikov sem
culpa, e que entretanto precisa expiá-la”. Riobaldo seria, assim, o “homem humano”. Sua
culpa não resulta de um crime. Antes, ele só pode cometer crime por já ser culpado. Que
quer dizer, porém, culpa como condição humana fundamental? Num ensaio intitulado
“Da pobreza e da orfandade sem vergonha”, Gilvan Fogel, comentando uma passagem
de Grande Sertão: Veredas, diz:

Culpa (dívida, débito) fala da irrevogável situação humana de


im-perfeição, quer dizer, fala do fato de ser o homem o único ente que
é sempre um por-fazer, sempre a necessidade de ser uma tarefa de auto-
realização, pelo fato de jamais ser dado ou aparecer pronto, feito,
acabado. O homem é sempre a necessidade de lançar-se numa
ocupação, num quefazer, para completar o oco, que é sua vida; para
“encher” o “buraco”, que é sua existência. Neste sentido, a vida humana
é essencial ou constitutiva im-perfeição, in-completude – “deficiência”,
“carência”, “pouco”, pobreza. Daí ser o homem, sempre, um destino,
uma estória e, por isso, histórico. Ele é sempre sua própria destinação,
sempre a destinação do seu “lugar”, através de seus afazeres, de suas
fainas, de suas ocupações e lidas. Culpa é, irrevogavelmente, seu lugar
e, por isso, a Vida é necessária e constitutivamente atividade, revela-se
também irrevogavelmente “pouca”, “pobre”. É mesmo a ação, a
atividade do pouco, do pobre, do por-fazer. Vida é, então, em-si e por-
si culpada – a saber, em dívida, em débito com ela própria, frente a ela

7
mesma. E aí está a dor: a dor do esforço, a dor do por-fazer, que é
imposta pela situação do pouco, do pobre. Vida é precisar fazer vida;
Vida é irrevogável, incontornável esforço – “pena”, “trabalho”. Neste
sentido, o homem precisa “expiar”, quer dizer, cumprir ou realizar, o
pouco, o pobre, a culpa, que ele é. Neste sentido, ainda, “expiação” diz:
necessidade de ocupação. Nesta direção precisa ser lido também o título
da obra de Dostoievski, Culpa e expiação 2.

Culpa significa, aqui, a própria vida como transcendência, como arrojo. Ser um
homem é já ser, ter-sido, tomado pela transcendência. O homem não é planta nem bicho.
Ele é sob o, desde o, com o poder da transcendência da vida: um ser-jogado na abertura
da liberdade. Expiação é redimir, isto é, resgatar, sempre de novo, esta condição, de ser
um ente cujo modo de ser é liberdade. Toda a ação já está sob a determinação dessa
necessidade da liberdade.

A vida humana como como possibilidade de ser e como necessidade de realizar-


se, de ter que sobre-viver, como quefazer e por-fazer, é a experiência primeira e mais
originária do pensamento, que está em toda a parte, em todos os povos. Desta experiência
é que brotam as demais formas de pensamento, na arte, na religião, no mito. O
pensamento no homem irrompe desta condição ambígua de sua vida.

O homem se descobre, a cada passo de sua passagem, assumido


numa essência híbrida: em parte, sente-se afinado, em parte, descobre-
se desafinado com sua natureza. Ele se sente ao mesmo tempo um ser
natural e um ser sobre-natural, um fronteiriço ontológico, que vive na e
da intersecção de natureza e sobre-natureza, mas que é convocado a
transformar o natural e sobre-natural, numa terceira dimensão, que na
verdade se torna sua única dimensão, a condição humana. No homem,
nem a natureza é somente natureza, nem a sobre-natureza é somente
sobre-natureza. O que temos de natural não se realiza por si mesmo,
como nos chamados seres naturais. A natureza nos é uma provocação
tão essencial quanto o espírito. Em tudo o homem sente um apelo de
transcendência, no sentido de transformar tudo que toca, numa
realização típica e especificamente humana. Por sua vez, também a

2
Fogel, Gilvan. Da pobreza e da orfandade sem vergonha. Considerações sobre o Riobaldo, de “Grande
sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa. In: Schuback, Marcia C. S. (org.). Ensaios de filosofia:
homenagem a Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 66-67.

8
sobre-natureza não lhe chega pronta e acabada, mas como o desafio de
uma tarefa a ser cumprida. Nestes termos, o homem se torna desde
sempre em todas as dimensões e níveis de seu desempenho, um projeto
de vida e de realização. E somente como e enquanto projeto é que vive
e sente, assume e aceita as vicissitudes de mudança e transformação de
sua existência. Tudo o que faz ou deixa de fazer, tudo que é ou deixa de
ser, acha-se a serviço e em função deste seu projeto de vida. Mas nunca
deve-se confundir projeto de vida com programa de uso e consumo.
Programa é combinação de possibilidades dadas, já decididas, já
realizadas e gastas. Projeto, não, projeto é aventura de criar o ser que se
é na aceitação do hibridismo ontológico das diferenças nas peripécias
de sua diferenciação 3.

Filosofia é o deixar-se ser atingido pelo apelo de ser na realização de um projeto


de vida. Filosofar é escutar e responder, corresponder, a este apelo de ser. É
responsabilizar-se pela vida como possibilidade, tarefa, projeto de liberdade. É, neste
sentido, irrupção do ser estória e do ser histórico do homem. O homem é, assim, um ente
sobre-naturalmente natural ou naturalmente sobre-natural, um ente que é fisicamente
metafisicamente físico e fisicamente meta-físico. Assumir a condição humana como
filósofo é emancipar-se, isto é, é tomar-se pela mão, na realização do projeto de vida, por
e para responder e corresponder ao apelo de ser que, na pro-vocação da liberdade, nos
chama para realizar a nossa existência.

Ser filósofo é morar, é habitar o lugar de todas as coisas, é co-


fazer a gênese da gênese e, para isso, é preciso ser trans-, isto é, meta-
físico. É assim que a autêntica filosofia, em sendo distanciamento,
afastamento, configura-se como radical comprometimento com o real,
com este mundo atual, com o aqui e agora, do qual ela
concomitantemente se distancia e se afasta – estranho este aproximar-
se à medida que se afasta e afastar-se à medida que se aproxima! E isto
porque, ao fazer-se isso, se é histórico, isto é, se é comprometimento e
participação na dinâmica do devir, de vir a ser real do real, o que define
a única realidade ou a autêntica realização da realidade4.

3
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 135-136.
4
Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras,
2009, p. 25.

9
Numa preleção de 1941, intitulada “Grundbegriffe” (conceitos fundamentais, isto
é, conceitos do fundamento), Heidegger trata da diferença dos apelos que dirigem sua fala
ao homem, chamando-o em causa e reivindicando-o.

Um é o apelo da míngua, da precisões, das carências (Bedürfnisse). É a


reivindicação do precisar, do carecer (brauchen), do não poder prescindir de. Nós
voltamos a nossa atenção ao que precisamos. Aquilo que nós precisamos, nós medimos
segundo os desejos aos quais nós cedemos e suas urgências. Necessário é, neste sentido,
aquilo sobre o que e com o que nós contamos em nossas precisões. Por detrás destes
desejos e urgências vem ao nosso encalço aquela inquietude, que transforma todo o
bastante em algo que nunca nos basta. A gana e a ganância, isto é, a cupidez não é o que
motiva esta inquietude, pelo contrário, ela já é uma consequência desta inquietude da
vida. Essa inquietude pressiona o vivente. No homem, mais do que nas plantas e nos
animais, esta inquietude não encontra formas estáveis. O homem é um ente arrojado,
lançado, no aberto. Nele, a inquietude da vida aparece de maneira mais instável. O homem
pode tomar por medida condutora de sua vida seguir esta inquietude do mero viver. Este
seguir a inquietude até lhe dá a aparência de mobilidade, de automovimento, e, esta
movimentação no fundo inquieta até se lhe dissimula como liberdade. Onde o homem
volta a sua atenção ao que ele precisa e atende irrestritamente a este apelo das suas
precisões, isto é, dos seus desejos e suas urgências, seguindo desenfreadamente os
ímpetos da inquietude da vida, nunca satisfeito, se perfila o vislumbre da liberdade. Todo
o calcular e planejar humano se move neste espaço de jogo, cujos limites não são fixos,
mas sempre de novo deslocáveis. Cria-se toda uma civilização movida pelas carências e
desejos, impelida sempre de novo a produzir e a consumir. O poder mover-se neste espaço
aberto dos desejos e das suas urgências dá ao homem a aparência de liberdade. Fica oculto
que esta mobilidade, movimentação, se dá e acontece no círculo de uma premência,
aquela exercitada pelos interesses vitais. Este homem aparentemente livre, no entanto, no
fundo, é avassalado e dominado pela premência do útil e do cômodo, do usufruto e do
seu incremento.

Outro é o apelo que chama em causa e reivindica a essência do homem enquanto


historial. A resposta e correspondência a este apelo conduz o homem a entrar numa outra
atitude de relacionamento com o ente e com o Ser. Aqui o homem se limita ao essencial.
Esta limitação tem a aparência de restrição, mas, na verdade, é libertação. Ela liberta o
homem, na medida em que libera, franqueia, a amplidão daquelas exigências

10
(Anmutungen), que advêm à sua essência, isto é, ao seu modo próprio de ser. O homem,
então, volta a sua atenção àquilo de que pode prescindir, mas que, na verdade, o introduz
num domínio de ser caracterizado pela simplicidade e pela clareza. Este domínio é o locus
em que pode ser fundado o reino da liberdade. Neste reino, o ser humano, seguindo o
apelo do Ser, fica de pé no aberto, na medida em que coloca sob si todos os apelos do que
é preciso e do que é útil. A resposta ao apelo do Ser é, na verdade, uma correspondência.
Filosofia é, na verdade, a correspondência da essência do homem histórico ao apelo do
Ser, ao seu chamado. Mas, o que diz este apelo? Que palavra pronuncia? Sua palavra,
porém, corresponde ao silenciamento do mistério. O silenciar do mistério, porém, nada
tem de mudez. No silenciar, a voz do Ser soa e ressoa, tine e retine, percute e repercute
na existência como nunca. Seu silêncio é a quietude do espírito. Seu vigor é suave. Não
pressiona, não constrange, não se impõe. É o apelo da serenidade do Nada, do retraimento
do mistério do Ser. Foi certamente ouvindo tal apelo que Periandro, um dos sete sábios
da Grécia, no oriente do ocidente, sentenciou: “meléta tò pân!”: cuida do Todo. O apelo
do Ser chama o homem para entrar na sua essência de cuidado, de um cuidado, que não
é regido pela inquietude, mas sim pela quietude, pelo recolhimento no essencial. O
homem precisa, como sentenciava Píndaro, vir a ser o que ele, essencialmente, é,
aprendendo com a experiência. Isso acontece como uma incessante libertação para a
liberdade verdadeira, para o reino da liberdade do Ser. É a partir daí que o homem aprende
a cuidar do próprio cuidado, o qual não se dirige apenas a este ou aquele ente, a cada vez,
mas ao Todo. O apelo do Ser requer do ânimo humano o seu cuidado. O homem é
chamado pelo Ser a ser o seu cuidador. É o sentido da famosa imagem da carta sobre o
humanismo, que nomeia o homem como o “Pastor do Ser”.

Pensar, primordialmente, radicalmente, não é um ato que o homem faz, mas o ato
de ser, primordial, que perfaz o modo de ser do homem. Não é uma faculdade e uma
propriedade que o homem tem. É, antes, um traço do ser, da essência, do homem; do
humano, da humanidade nele. Enquanto tal, funda, rege, perpassa e consuma tudo o que
o que o homem vem a ser e deixa de ser, tudo o que o homem produz, põe em obra, faz,
diz. Neste sentido, pensamento é o acontecer do humano no homem.

Por isso é que a vida e a morte, ou seja, a própria existência, é a experiência


primeira de pensamento. Neste sentido, todo homem é pensador. Ser pensador não é
nenhum privilégio de nenhum saber nem nenhum mérito de nenhum agir. Todo homem,
pelo modo de se dar a realização de sua humanidade, é pensador. A ele foi dado o gosto

11
pela revelação do mistério de ser em tudo o que está sendo. Neste sentido, pensar não é
coisa de elite. O pensamento, aqui, porém, não é nem consciência nem ciência. O
pensamento encontra-se na vida dos homens comuns, do povo, como a Rosa de Ângelus
Silesius:

Die Ros ist ohn warum;

Sie blühet weil sie blühet.

Sie acht nicht ihrer selbst,

fragt nicht, ob man sie siehet.

A rosa é sem por quê

Floresce por florescer,

Não olha para seu buquê,

Nem pergunta se alguém a vê.

Como flores que florescem por toda a parte, nos lotes abandonados, nos terrenos
baldios, por entre pedras e nas fendas dos muros, floresce o pensamento na vida dos
homens. Sem nenhuma pretensão, de ter, de saber, de poder. Floresce por florescer. Sem
motivo, sem finalidade. Floresce, com a simples experiência de ser, de viver. De viver
“morte e vida severina”. Num “Grande Sertão” e em suas “Veredas”. Floresce na fraqueza
e na ternura da vida. O pensamento floresce na vida real dos homens e mulheres da Terra,
na sua coragem de ser. Na luta diária pela pela vida, luta inglória pela sobre-vida. Floresce
como limpidez intrépida, singela, jovial, mas inaparente. Floresce em meio à pobreza do
ter, como pobreza de ser, pobreza que não é carência, mas abertura para a riqueza
essencial da vida, que não consiste na abundância do ter, de bens, de posses, e de poder,
prestígio, influência, etc. Floresce como finitude agraciada, engraçada, agradecida.
Floresce como humildade. Floresce em meio ao abandono e ao esquecimento. Floresce
como jovialidade em meio à dor. Floresce como o acolher da morte na vida e como o
encontrar da vida na morte.

12
Para o homem, pensar é ser, e ser é pensar. Pensar é o próprio modo de dar-se da
vigência do ser-homem. É a referência de ser para com o ser. O pensar é a própria
presença humana no seu modo de ser, isto é, enquanto existência, ou seja, enquanto
abertura exposta e disposta para o ser. A presença humana é, neste sentido, o espaço
aberto em si mesmo pela irrupção do ser. É um círculo de desvelamento do ser. Pensar é
o acontecer da presença humana. É a abertura da imensidão, altura e profundidade, e
originariedade do ser. Isso é anterior a toda consciência e autoconsciência, a toda reflexão,
a todo discurso. Esta abertura, na medida em que é, como vazio, como nada, deixa ser a
vigência de ser e não ser. A presença humana é esta pura força de abertura. Nela acontece
a clareira do ser.

Pensamento quer dizer, aqui, a experiência do ser, se quisermos, da realidade. O


pensamento é o ser (a realidade das realizações) se dando na imediatez da experiência. É
a experiência da realidade se dando e se subtraindo nas realizações, portanto, do mistério
do ser. Mistério, aqui, é uma vigência sub-reptícia. Doa-se furtivamente. Entrega-se
recusando-se. Oferece-se subtraindo-se. Expõe-se retraindo-se. O ser, a realidade, é sub-
reptícia. Sua vigência nunca é direta. Seu impacto é sempre oblíquo. O ser se nos oferece
nos seres (nos entes – ou, se pensarmos no todo: no ente). Mas nenhuma ser (ente: isto
que é) é o ser. Por isso, o ser se doa como nada.

Em suas peregrinações de ser e não ser, de vir a ser e de deixar de ser, o homem
está sempre viajando por entre a realidade e as realizações. Esta viagem é a experiência.
O homem nunca alcança a realidade. A realidade é que sempre alcança o homem e lhe
atinge de um modo ou de outro. Pensar é ser atingido pelo impacto oblíquo da realidade.
Mais que uma visão da realidade, o pensar é um contato da realidade. É experiência 5. Um
contato pré-discursivo. Todo o discurso chega tarde. Todo o tematizar e refletir, por se
darem no domínio do discurso, é já tardio. No contato doa-se e retrai-se o sentido. Este é
fonte de inteligibilidade e compreensão. O pensar é, neste sentido originário, uma
experiência primigênia do mistério da realidade. O filósofo fala a partir desta experiência.
Esta experiência se oferece como o silêncio da Linguagem. O filósofo fala a partir do

5
Cf. a famosa indicação de Henri Bergson: “um filósofo digno deste nome nunca disse senão uma só coisa:
ou melhor, tentou dizê-la mais do que disse verdadeiramente. E não disse senão uma só coisa porque não
viu senão um só ponto: fosse menos uma visão do que um contato”. É o que Bergson chamava de intuição
filosófica. Este ponto é, talvez, de uma só vez, centro e todo. É potencialmente o todo. É algo como semente
e botão. Algo como fonte. Sendo mais radical, talvez: um vazio... pleno. O simples (sem dobras) de que
emerge todo o desdobramento do todo. Este ponto se encontra, talvez, no íntimo mais íntimo, no âmago do
homem. É daí que ele emerge.

13
silêncio da Linguagem. A Linguagem se diz, isto é, se mostra, se retraindo, isto é,
silenciando-se. Por e para escutar o dizer da Linguagem é que o filósofo fala. O filósofo
nunca pode falar sobre a Linguagem, isto é, fora dela. Só pode falar nela (no seu medium:
meio-elemento) e a partir dela. É desta impossibilidade que nascem todas as
possibilidades de falar e dizer do discurso filosófico.

Dizíamos: o homem nunca alcança a realidade. O que o homem alcança são as


realizações. Há realizações em que o homem recebe o impacto oblíquo da realidade de
uma maneira privilegiada: são as criações do espírito. “Espírito” não é, aqui, o oposto de
matéria, nem de corpo. “Espírito” é, aqui, a vitalidade, a vida da vida, que vige e vigora
na referência de ser que se instaura entre o mistério de ser (a realidade) e o homem.
Pensamento é, então, a irrupção do homem no Todo. O pensar é sempre uma realização
singular de abertura para o Todo da vida.

14

Você também pode gostar