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Relato de Caso

Linfoma de Burkitt
Ricardo L. Simette1
Laurindo M. Sassi2
Burkitt's lymphoma Rosilene A. Machado3
Maria Isabela Guebur4
José Luiz Dissenha5
Onivaldo Cervantes6
Mara A. B. Pianovski7
Suely Z. Voss8
Dionísio Abrão9
RESUMO ABSTRACT

Introdução: o linfoma de Burkitt pertence ao grupo dos linfomas Introduction: burkitt's lymphoma belongs to the group of the Non-
não-Hodgkin, apresentando condições malignas heterogênias que Hodgkin's lymphomas. It presents heterogenic malignant
surgem de células muito diversificadas do sistema imunológico, conditions that usually stem from highly diversified cells of the
tendo origem no linfócito B. Acomete principalmente crianças. immune system, having their origin in B lymphocytes. Case report:
Relato de Caso: paciente masculino, com cinco anos de idade, a male Caucasian 5-year-old patient presented a painless growth
caucasiano, apresentou-se com aumento de volume em hemiface on his left hemiface for 30 days. No dental disorders were found.
esquerda com trinta dias de evolução, indolor, de crescimento The extraoral exam showed a lump in his left hemiface. The
rápido. Não foram notadas alterações dentárias. Observou-se computed tomography showed a solid-looking destructive lesion in
abaulamento em hemiface esquerda. A tomografia the alveolar region of the mandible (bilaterally), left mandibular
computadorizada mostrou uma lesão destrutiva de aspecto sólido, ramus, maxilla (bilaterally), and the walls of both maxillary sinuses,
acometendo a porção alveolar da mandíbula bilateralmente, o reaching the antra. The Burkitt's lymphoma diagnosis was
ramo mandibular esquerdo, a maxila bilateralmente e as paredes confirmed through the chromosome analysis. The treatment
de ambos os seios maxilares, invadindo os antros. A análise consisted of 20 sessions of chemotherapy, with tumor reduction.
cromossômica mostrou linfoma de Burkitt. O tratamento foi The patient remains disease-free after 5 years from the beginning
quimioterápico, observando-se redução da lesão após a vigésima of the treatment. Discussion: this kind of lymphoma is a fast-
sessão. O paciente permanece sem sinal de doença, decorridos growing tumor whose etiology is uncertain, but which may have
cinco anos do inicio do tratamento. Discussão: esse tipo de association with the Epstein-Barr virus, and/or with genetic
linfoma é de crescimento rápido, etiologia incerta, mas com conditions. It is a childhood tumor afflicting mainly the boys. It has 2
provável envolvimento do vírus Epstein-Barr e origem genética. A subclasses, the endemic (or African) form, and the non-endemic (or
lesão tem uma predominância em crianças, com ocorrência maior American) one. Some authors claim that there is a third subclass
em meninos. Apresenta duas subclasses, a forma endêmica ou which would be associated to acquired immunodeficiency. Despite
africana e a forma não endêmica ou americana; alguns autores that, all subtypes present identical histology with different
citam uma terceira subclasse que seria associada com epidemiologic and biologic features.
imunodeficiência adquirida. No entanto, todos esses subtipos são
idênticos histologicamente, diferenciando-se apenas nas Key words: burkitt's lymphoma.
características epidemiológicas e biológicas.

Descritores: linfoma de Burkitt.

INTRODUÇÃO linfoblástico3. Pertence ao grupo dos linfomas não-Hodgkin,


apresentando condições malignas heterogênias que surgem de
O linfoma de Burkitt foi primeiramente descrito por Albert Cook, células muito diversificadas do sistema imunológico. É
médico missionário britânico que trabalhou no leste da África, originada do linfócito B, que representa um linfoma
na virada do século. Ele notou uma malignidade entre crianças indiferenciado1 e que tem predominância em crianças do
africanas que, predominantemente, afetava os maxilares e, gênero masculino em uma proporção de 1,9:14.
algumas vezes, vários órgãos abdominais. Meio século depois, Há uma íntima relação entre a infecção pelo Epstein-Barr vírus
um cirurgião britânico, também missionário, chamado de Denis (EBV) e o surgimento do linfoma de Burkitt. Tem sido
Burkitt, também trabalhando no leste da África, notou as demonstrado que o EBV pode produzir anormalidades
mesmas lesões nas crianças e ainda detectou massas cromossômicas em linfócito B infectado. Há forte evidência de
abdominais em alguns casos. Ele publicou seus achados em que o linfoma de Burkitt tem um vírus como fator causal e que
1958, chamando as lesões de “sarcoma envolvendo os algum agente biológico como mosquito ou artrópode clima-
maxilares” e apresentou uma análise detalhada da incidência dependente pudesse agir como vetor do vírus, implicando a
do envolvimento dos maxilares e resultado das necropsias1-2. disseminação do tumor5. O tumor de Burkitt está relacionado a
O linfoma de Burkitt pode ser chamado de linfoma africano, fatores ambientais como a altitude, temperaturas amenas e
sarcoma dos maxilares, sarcoma multicêntrico e linfoma baixo índice pluviométrico, o que explica sua relação com o

(1) Cirurgião Dentista do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba.


(2) Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis, São Paulo; Chefe do Serviço de Cirurgia e Trauma Buco-Maxilo-Facial do Hospital Erasto Gaertner,
Curitiba.
(3) Especialista e Mestre em Cirurgia e Trauma Buco-Maxilo-Facial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
(4) Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis HOSPHEL, São Paulo; Professora da Disciplina de Anatomia Humana das Faculdades Integradas
“Espírita”, FACIBEM, Curitiba.
(5) Cirurgião Dentista do Serviço de Cirurgia e Trauma Buco-Maxilo-Facial do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba.
(6) Livre Docente pelo Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, São Paulo.
(7) Doutora pelo Curso de Saúde da Criança e Adolescente da Universidade Federal do Paraná; Médica Pediatra do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba.
(8) Médica Pediatra do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba.
(9) Chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba.

Instituição: Hospital Erasto Gaertner, Curitiba.


Correspondência: Laurindo Moacir Sassi, Av. Sete de Setembro, 4698 sala 180580240-000 Curitiba, PR. E-mail: sassilm@onda.com.br
Recebido em: 03/10/2006; aceito para publicação em: 29/11/2006.

Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 36, nº 1, p. 53 - 55, janeiro / fevereiro / março 2007 53
mosquito, que tem um ambiente propício ao seu glândulas salivares com aumento do volume local; base da
desenvolvimento2. língua, com sintoma obstrutivo, ocorrendo disfagia e disfonia;
A específica distribuição geográfica do linfoma de Burkitt órbita, ocorrendo diplopia e exoftalmia; fígado; rins; coração e
corresponde com a malária hiperendêmica, sugerindo-a como ossos longos3,7,8.
um co-fator. O tumor foi postulado como relacionado, O tratamento deve ser iniciado dentro de 24 horas do
patogenicamente, ao EBV porque mais de 90 % das células diagnóstico, para o melhor prognóstico do paciente. Podem ser
tumorais mostram expressão de antígeno nuclear EBV e o feitas cirurgias para reduzir o tumor em 80 a 90%, no caso de
paciente afetado tem um título de anticorpos elevado para esse esses tumores estarem em estágio inicial e localizados em
vírus. Além disso, fatores genéticos como a translocação t dos regiões ressecáveis10.
cromossomos 8 e 14 (raramente entre o 2 e 22) através do c- A maioria dos autores preconiza a quimioterapia e radioterapia
myc também podem estar implicados. As variedades endêmica em tumores de estágio inicial3,8. A resposta ao tratamento é
e não endêmica caracterizam-se por uma translocação da rápida, principalmente, quando iniciada no estágio inicial da
parte distal do cromossomo 8 para o cromossomo 14, sendo o doença, mas recidivas são freqüentes3. A instituição da
primeiro a sede do oncogene c-myc e o último, o loco da cadeia quimioterapia e radioterapia é imperativa para prevenir a rápida
pesada da imunoglobulina5. e fatal disseminação da doença10. Com a quimioterapia múltipla,
Os linfócitos B imaturos proliferam-se rapidamente de forma uma sobrevida de dois anos é em média de 54%, com variação
monoclonal, com crescimento de quase 100%, fazendo talvez de 80% para doença em estágio inicial e 41% para doença em
a mais rápida divisão celular conhecida, garantindo o rápido estágio avançado1.
desenvolvimento do tumor e a morte rápida6.
O linfoma de Burkitt pode ser o primeiro indicativo de infecções RELATO DE CASO
por HIV. Isso é particular para homens homossexuais ou para
aqueles com alto risco de adquirir SIDA2. Paciente do gênero masculino, cinco anos de idade,
O linfoma de Burkitt é um linfoma não-Hodgkin com duas caucasiano, deu entrada no Hospital Erasto Gaertner, em
subclasses: a forma endêmica ou denominada de linfoma Curitiba, em maio de 2002. Foi relatado aumento de volume em
africano de Burkitt e a forma não endêmica ou americana. A hemiface esquerda com trinta dias de evolução, indolor e de
forma africana representa uma malignidade exclusiva da crescimento rápido, lacrimejamento no olho esquerdo e
região africana, afeta crianças e, geralmente, apresenta rinorréia esquerda. Não foram notadas alterações dentárias
envolvimento bucal e ocorre no intervalo de um a cinco meses compatíveis com o aumento de volume. Ao exame físico
dentre os primeiros sintomas ao diagnóstico3, podendo ter extraoral, observou-se abaulamento em hemiface esquerda,
envolvimento visceral e estão normalmente relacionadas ao atingindo região infra-orbitária e estendendo-se até a região
EBV2,7,8. Das doenças que ocorrem em crianças africanas, o submandibular, medindo aproximadamente 11 x 4cm,
linfoma de Burkitt pode acometer de 50 a 70%8. A forma não provocando protrusão do seio maxilar esquerdo e mandíbula.
endêmica ou americana é histologicamente idêntica à Ao exame intraoral, observou-se a expansão das corticais
endêmica, diferenciando-se em outros aspectos. Podem vestibular e lingual da região anterior e, do lado esquerdo,
ocorrer em outras regiões, como Brasil, Estados Unidos, movimentação dos dentes e gengiva com coloração vinhosa –
Colômbia, Inglaterra, Japão, China, Jamaica e outros8. Podem figura 1. A tomografia computadorizada mostrou lesão
acometer qualquer raça, não tendo predileção específica e a destrutiva de aspecto sólido acometendo a porção alveolar da
média de idade varia de 6 a 31 anos. Geralmente, envolvem os mandíbula bilateralmente, o ramo mandibular esquerdo, a
linfonodos e tecidos linfóides, principalmente a medula óssea1. maxila bilateralmente e as paredes de ambos os seios
Radiograficamente, nas manifestações bucais, apresenta-se maxilares, invadindo os antros – figura 2. À cintiligrafia óssea,
com uma imagem radiolúcida com irregularidade, acometendo foi verificado que as alterações descritas nos maxilares e
parte óssea de maxila e mandíbula; sem definição das margens mandíbula eram compatíveis com infiltração óssea local. Não
da lesão. A cortical pode estar expandida. O deslocamento foram observadas evidências de metástases à distância. Foi
dentário é citado, inclusive dos germes dentários9. Em casos realizada análise cromossômica para avaliação da existência
avançados, ocorre extensa destruição óssea com padrão de translocações. Foram analisadas 22 metáfases e, em quatro
osteolítico, imagens multiloculares podendo ser confundidas delas, foram observadas translocação t (8;14). Essa
com ameloblastoma. Esse fenômeno está associado com a translocação está presente em 75-85% dos casos de linfoma de
infiltração multicêntrica da mandíbula e tecido dental por Burkitt. Foi iniciado o tratamento, baseado em sessões de
células tumorais ou por um fator de atividade osteoclástica de quimioterapia com Oncovim e Madit. Após a vigésima sessão,
células linfóides3. Para a complementação diagnóstica, sugere- pode-se observar uma redução da lesão – figura 3. O paciente
se que todos os pacientes com suspeita clínica tenham permanece sem sinal do retorno da doença inicial, decorridos
radiografias dos maxilares como base da investigação quatro anos do inicio do tratamento.
radiológica, podendo-se usar, para complementar o
diagnóstico radiográfico, formas mais modernas como a
tomografia computadorizada e o mapeamento ósseo2.
Burkitt, em 1958, publicou trabalhos enfatizando alguns
aspectos clínicos da doença em regiões endêmicas.
Localizavam-se preferencialmente na mandíbula e maxila
onde, em algumas ocasiões, apresentavam origem multifocal
em crianças com idades variadas entre 2 e 14 anos3,7.
O tumor inicialmente ocupa a região dos processos alveolares,
onde se nota aumento da mobilidade dos dentes da região
afetada, os quais, desalojados de seus alvéolos e forçados pelo
crescimento neoplásico, terminavam por serem incorporados a
massa tumoral. O crescimento tumoral progressivo desfigura a
face do paciente, adenopatia cervical está ausente
contrastando com o freqüente enfartamento linfonodal
observados nos demais tipos de linfomas malignos. Pode
ocorrer tumor com localização visceral, incluindo a glândula
tireóide, onde o sintoma ocorre por bócio nodular ou difuso; Figura 1 – Inicio do tratamento, apresentando a lesão intrabucal.

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encontro com o quadro do paciente aqui relatado9. O
crescimento tumoral é progressivo e desfigura a face do
paciente, como o verificado no relato3,7.
A doença é rapidamente fatal, com morte geralmente ocorrendo
de quatro a seis meses após o diagnóstico, se não for tratada6,
porém, o tratamento iniciado dentro de 24 horas do diagnóstico
melhora consideravelmente o prognóstico do paciente, pois a
resposta ao tratamento é rápida principalmente quando se faz
no estágio inicial da doença3,10. O tratamento preconizado é a
quimioterapia e/ou radioterapia para prevenir a rápida e fatal
disseminação da doença 3,8,10.
O linfoma de Burkitt é descrito como uma patologia de evolução
rápida. O prognóstico do paciente está diretamente relacionado
ao tempo decorrido desde o primeiro sinal clínico até o início do
tratamento. Geralmente, em estágios iniciais, há envolvimento
dos maxilares, principalmente em tumor do tipo não africano.
Figura 2 – Tomografia computadorizada da maxila ao início do
tratamento. REFERÊNCIAS

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Patologia oral e maxilofacial. 1a ed Rio de Janeiro: Guanabara Koogan;
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Figura 3 – Tomografia computadorizada da maxila, sem lesão. 8. Hairston BR, Bruce AJ, Rogers RS. Viral diseases of the oral mucosa.
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O linfoma de Burkitt é descrito como um tumor pertencente ao Burkitt's lymphoma of the head and neck. Arch Otolaryngol Head Neck
grupo dos linfomas não–Hodgkin, de crescimento rápido, de Surg. 1992;118(2):193-9.
etiologia incerta, mas que provavelmente pode ter
envolvimento do vírus Epstein-Barr e de origem genética. A
lesão tem uma predominância em crianças, com ocorrência
maior em meninos. Apresenta duas subclasses, a forma
endêmica ou africana e a forma não endêmica ou americana;
alguns autores citam uma terceira subclasse que seria
associado com imunodeficiência adquirida2,5. No entanto, todos
esses subtipos são idênticos histologicamente, diferenciando-
se apenas nas características epidemiológicas e biológicas1,4-
6,8,10
.
A forma endêmica representa uma malignidade exclusiva da
região africana, afeta crianças e geralmente apresenta
envolvimento bucal, podendo ter envolvimento visceral e está
normalmente relacionada ao EBV. A forma não endêmica pode
ocorrer em outras regiões, acometer qualquer raça e a média
de idade varia de 6 a 31 anos de idade. Geralmente, envolve
com mais freqüência os linfonodos e tecidos linfóides,
principalmente a medula óssea. Estudos imunológicos
mostraram que o título dos anticorpos para antígeno Epstein-
Barr vírus é observado em menor percentagem nas áreas não
endêmicas que aqueles encontrados nos pacientes de áreas
endêmicas1,2,3,7,10.
Radiograficamente se apresenta com uma imagem radiolúcida
com irregularidades, acometendo parte óssea de maxila e
mandíbula; sem definição das margens da lesão, indo de

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