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CAPA

A ética
do aborto Por envolver noções de vida e morte, encerrar
uma gestação não pode ser nos termos de certo
ou errado, sugerem os filósofos. A possibilidade da
decisão do STF no caso de fetos anencéfalos, mais
uma vez adiada, reacende a discussão no Brasil

N
ormalmente, quem con- início da gestação, um ser humano desen-
dena o aborto também volvido, pois ele se forma gradualmente.
condena qualquer lei que Tirar a vida de uma pessoa é um dos
permita sua prática segu- maiores danos que se pode causar a ela:
ra; e quem defende a des- primeiro, se a morte subtrai um futuro
criminalização não vê nenhum problema valioso, cheio de benefícios que seriam
ético no aborto. Uns olham somente para vividos pela vítima; segundo, se a pessoa
Alcino Eduardo o feto, outros apenas para a mulher. É pos- não quer ser morta; terceiro, se a morte
Bonella é sível, porém, considerarmos o aborto uma também causa danos à família e à socie-
Professor de Ética
coisa ruim e ao mesmo tempo não con- dade da vítima; quarto, se o interesse da
da Universidade
Federal de
cordar que ele seja um crime punível com vítima em continuar vivendo for protegi-
Uberlândia (UFU) prisão. Podemos ser contra o aborto, mas a do como um direito quase absoluto.
e pesquisador do favor do direito da mulher ao aborto. Mas, por causa do erro de matar
Conselho Nacional Em geral, contra o aborto, alega-se alguém como nós, em geral, algumas
de Desenvolvimento que: é errado matar um ser humano ino- pessoas pensam que também é errado
Científico e cente (premissa maior, normativa); um tirar a vida do feto. Em alguns aspec-
Tecnológico (CNPq). feto humano é um ser humano inocente tos, o feto se parece com um de nós, por
Email: abonella@
(premissa menor, factual); portanto, é er- exemplo, ele está vivo, é um ser huma-
imagem: shutterstock

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rado matar um feto humano (conclusão). no. Mas em outros aspectos ele não se
Em favor do direito ao aborto, em geral, parece com um de nós: o embrião não é
argumenta-se contra a segunda premissa ainda um organismo, o feto precoce não
acima: um feto humano não seria, desde o tem a capacidade de sentir e ser cons-

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Uma vida valiosa começa quando se


pode apreciá-la de algum modo: só
com a capacidade para experimentar
benefícios da vida alguém pode ser
beneficiado

grande dano ao feto, pois uma explicação do erro de


nos matar reside na perda de todos os anos de vida
pela frente que teríamos (cf. Marquis, 1989).
ciente; mesmo um feto desenvolvido ainda não é au- Porém, terminar uma gestação, ao menos quan-
toconsciente e autônomo. do o feto está em formação, talvez não seja prejudicar
Há várias maneiras de justificar por que seria er- alguém, mas apenas deixar de preparar e beneficiar
rado terminar uma vida fetal, mesmo em desenvol- uma pessoa no futuro. Se interferimos no processo de
vimento, e dentre elas a mais forte é a que condena reprodução, impedindo que um espermatozoide fe-
o aborto porque terminar a vida fetal subtrairia o cunde um óvulo, também estamos impedindo que al-
futuro valioso para tal ser em desenvolvimento, já guém, no futuro, aprecie uma vida valiosa. Uma vida
que sem o aborto ele teria um futuro como o nosso. valiosa começa quando se pode apreciá-la ou experi-
Pensamos que um feto humano tem um futuro nor- mentá-la de algum modo: só com a capacidade para
malmente promissor pela frente, cheio das experiên- experimentar os bens ou benefícios da vida alguém
cias que tornam uma vida normalmente boa de ser pode ser beneficiado ou prejudicado.
vivida. Ora, tirar a vida do feto é impedir que esse Além disso, se acordássemos num hospital com
futuro valioso ocorra e é impedir que alguém como nosso corpo ligado ao corpo de outra pessoa que só
nós tenha este futuro. Aquela ação pode causar um poderá sobreviver se tal ligação for mantida por nove

A ação que julga a legalidade do aborto de anencéfalos, aceito na maior parte das democracias de mundo, está engavetada
há 7 anos no STF

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A posição do Vaticano sobre o caso é irredutível. Em 2009, o arcebispo de Olinda excomungou a mãe e a equipe médica que autorizou
e conduziu o aborto em uma menina de nove anos grávida de gêmeos após estupro

meses, poderíamos legitimamente pedir para nos des- A segunda premissa do argumento contra o abor-
ligar. Podemos ser bons samaritanos e aceitar a liga- to diz que o feto é um ser humano inocente. Se não
ção, mas isso não seria uma obrigação, mesmo que a é certo matar uma criança inocente (o caso exemplar
pessoa que depende de nosso organismo tenha direito de um ser humano vulnerável), então também não é
à vida: este direito não lhe dá direito sobre meu corpo. certo matar um feto. Mas isso depende do feto ser uma
O mesmo valeria para o aborto (cf. Thomson, 1971). criança, ou, ao menos, ser como uma criança nas suas
O dano da morte é uma função das boas experiên- propriedades essenciais.
cias que se perdem no futuro com ela, mas é também
uma função de quanto o ser que morre está conectado Matizes do ser
vaticano: shutterstock

àquele futuro, tem interesse nele e, no caso dos fetos, Porém, se a formação de um ser humano for uma
tal interesse é bem fraco. Por exemplo, se olhamos questão de desenvolvimento gradual, devemos per-
para um jovem cheio de planos para a próxima déca- guntar quando, neste processo gradual, o desenvol-
da, podemos dizer que ele está fortemente ligado ao vimento do feto se completou suficientemente: se no
tempo que virá, e que, retrospectivamente, quando for início, no meio, no final da gestação, ou após o nasci-
/ abr

mais velho, olhará para o passado como o mesmo su- mento. Pode ser que em problemas como o aborto e a
-

jeito. A morte para ele é uma perda enorme. eutanásia, que envolvem noções de vida e morte, não
imagens: supremo tribunal federal: rodrigues possebom

Já se olharmos um feto, no período em que ele não faça sentido sermos tudo ou nada. Talvez seja melhor
é capaz de sentir ou ser consciente, podemos dizer que olharmos as coisas como gradualistas. O filósofo Si-
não tem interesse em seu futuro e que não expressa mon Blackburn, tratando do início da vida, escreveu
ou manifesta nenhum interesse. A morte de um feto o seguinte: “O debate público é conduzido frequente-
pré-senciente não é uma grande perda para ele, pois a mente como se fosse uma questão de preto no branco,
ligação (psicológica) entre ele e o ser que estaria vivo um caso de certo ou errado em absoluto. Você deve
no futuro é inexistente. Senão a falta de uma fecun- ser ou pró-vida ou pró-escolha. Ou você acredita na
dação seria também muito grande, pois seria maior direito à vida do nascituro, ou você acredita no di-
ainda que a morte de um feto tardio, mas seria uma reito da mulher de controlar seu próprio corpo. Um
enorme perda sem vítima alguma (cf. DeGrazia, 2005, bom questionamento filosófico começa perguntando
p. 287-288; McMahan, 2002, p. 192-194). se esta visão em preto e branco não é uma ilusão, não

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é o resultado de lentes morais que im- disponível, isso só pode ocorrer quan-
A maior põe o preto e branco numa paisagem de do conexões sinápticas se formam entre
parte das graus diferentes de cinza. Afinal, o fato os neurônios do córtex cerebral. O pon-
práticas abortivas biológico é que o desenvolvimento fetal to inicial mais recente desse fenômeno
registradas na é gradual. O ponto de partida unicelular se dá em torno da vigésima semana de
Antiguidade eram ou zigoto é algo bem distinto do bebê a gestação, mas é muito provável que a
não cirúrgicas, nascer. A complexidade emerge gradu- senciên­cia mesmo não ocorra antes de
por meio de almente, hora após hora, dia após dia” completado o sexto mês (cf. Korein,
ervas ou mesmo (Blackburn, 2001, p. 59-60). 1997; Glover e Fisk, 1999). DeGrazia diz
por meio do uso A posição chamada de concepcionis- que “a evidência neurológica sugere que
do mercúrio. ta, por exemplo, defende que um novo um feto vem a ser senciente em algum
No entanto, o ser humano começa instanta­neamente tempo entre o quinto e o sétimo mês da
juramento de na concepção, quando óvulo e esper- gestação” (2005, p. 279).
Hipócrates, século.
matozóide se fundem. É uma posição O filósofo Jeff McMahan é o repre-
V a.C. já proíbe o
do tipo tudo ou nada, preto no branco. sentante mais típico dessa posição sen-
uso de pessários,
Em geral é contrária ao direito ao abor- cientista. Para ilustrá-la, veja como ele
anéis introduzidos
to. Já a posição chamada sencientista conjuga uma concepção gradualista da
na vagina, para
fins abortivos ou neurológica entende que um ser hu- formação do ser humano e o problema
mano começa apenas quando os órgãos da ilicitude ou licitude do aborto: “De-
principais, especialmente o cérebro, finamos aborto precoce como o aborto
estiverem formados e funcionando que é feito antes daquele ponto – isto é,
conjugadamente a ponto de gerar a ca- o ponto em que o cérebro fetal adquire a
pacidade de sentir e ser consciente. É capacidade para sustentar a consciência
uma posição do tipo graus variados de e no qual um de nós consequentemen-
cinza, gradualista. Está mais à vonta- te começa a existir em associação com
de com o direito ao aborto, ao menos o organismo fetal. [Se esta abordagem
quando feito antes do desenvolvimento está correta] não há ninguém para ser
da senciência. afetado para melhor ou para pior por
Quando um feto humano passa a ser um aborto precoce senão a própria mu-
senciente? Segundo a melhor ciência lher, seu parceiro, ou alguém mais que

STF: a decisão era para outubro...


No Brasil há uma discussão judicial no Supremo Tribunal nos casos de risco de morte da mãe e de gravidez resul-
Federal (STF) sobre a licitude da antecipação terapêutica tante de estupro), a antecipação terapêutica do parto ou
do parto em casos de anencefalia. Desde 2004, quando interrupção terapêutica da gestação de um feto anencé-
um sindicato nacional de trabalhadores da saúde defen- falo seria crime de aborto, ainda que a interrupção da
deu no STF que uma interpretação conforme a Constitui- gestação seja sugerida pelo médico como a terapêutica
ção fundamenta e apoia o direito de a mãe antecipar o indicada para os casos de gravidez de anencéfalo.
parto no caso de anencefalia do feto, caso assim o deseje, A decisão final era esperada, após sete anos, para o segun-
aguarda-se a manifestação final da Corte sobre o mérito do semestre de 2011. No entanto, o presidente do STF,
jurídico do apelo. César Peluso, resolveu adiar a votação de todas as pau-
O problema que tal discussão judicial enfrenta é que, sob tas polêmicas até a substituição da ministra Ellen Gracie,
certa interpretação do Código Penal no Brasil (estabele- aposentada, e a volta do ministro Joaquim Barbosa de sua
cido na década de 1940, e que penaliza o aborto exceto licença médica.

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A favor e contra: o aborto é visto como uma decisão pessoal ou uma violação do direito à vida do próximo

pudesse se importar com ela ou com sua descendên- precoce nunca foi capaz de consciência. Alguém que
cia possível”. Ainda de acordo com o filósofo esta- pode voltar do coma persistente ainda tem as capaci-
dunidense, “um aborto precoce – aquele feito até o dades mentais, que estão apenas suspensas num dado
meio da gestação mais ou menos – não mata nin- momento, enquanto o feto precoce não é ainda capaz
guém; ele apenas impede alguém de vir a existir. disso, não tem essa potencialidade ou tem só o que no
Nesse aspecto, ele é relevantemente igual à contra- passado se chamava de potencialidade passiva.
cepção e totalmente diferente do matar uma pes- Algumas pessoas sugerem que se seres humanos
soa. Não há, novamente, ninguém para ser morto” sem vida cerebral estão clínica e legalmente mortos,
(McMahan, 2002, p. 267). tanto é que são doados os órgãos de pessoas nessas
Um problema importante é se só seres capazes de situações para outras, tirando-lhes, porém, a vida
sentir e experimentar o mundo à sua volta podem biológica que está presente; se um ser humano é
ser, literal ou realmente, prejudicados, sofrer dano, uma vida humana meramente biológica, matam-se
cartazes sobre aborto: reprodução

no sentido relevante da expressão. Para McMahan, os doadores que estão cerebralmente mortos, mas
sem as capacidades subjetivas que tornam um ser ainda estão vivos, com o coração batendo, outros
sensível à dor e ao sofrimento, assim como ao prazer órgãos funcionando, etc.; então tirar a vida bioló-
e à felicidade, tal ser, mesmo que vivo, ainda não so- gica de fetos precoces não deveria ser o equivalente
fre nada, nem dano, nem benefício, seja o que for que de matar alguém.
seja feito para ele. Vamos, porém, admitir a plausibilidade da segun-
da premissa: vamos supor que seja verdade que o feto
A questão do sentir seja um ser humano inocente no sentido da primeira
/ abr

É claro que aceitar o gradualismo e a ideia de que premissa. Será que temos de endossar a conclusão, de
-
imagens: nelson jobim: antonio cruz

a vida humana propriamente dita (biológica e psico- que é errado matar um feto humano? Por um lado pa-
lógica) não começa instantaneamente em um dado rece que sim, é só uma questão de lógica. Por outro
ponto da gestação deixa esta posição da neutralidade lado, como este é um raciocínio sobre parte dos fatos
do aborto precoce mais forte. Mas pode-se pensar que e princípios (valores) envolvidos no tema do aborto,
o feto precoce é como um ser humano que não sente não é difícil sustentar que a conclusão não se aplica ao
e não tem consciência hoje, mas foi capaz disso um término da gestação solicitada e autorizada pela mãe,
dia, ou, quem sabe, não é momentaneamente capaz mas sim às ações que tiram a vida de um feto contra a
disso, mas ainda o é no futuro? Não. Na verdade o feto vontade da mãe.

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Proibir o aborto tem sido uma das


formas usadas pelos homens para
controlar o corpo das mulheres, já
que essa conduta torna os homens
mais poderosos

que métodos anticoncepcionais às vezes falham, que


as mulheres muitas vezes são forçadas por compa-
nheiros ou por estranhos ao ato sexual, e, mesmo
que não seja o caso, as circunstâncias sociais e eco-
Num conflito de interesses entre mãe e feto duran- nômicas podem mudar abruptamente, as mulheres
te a gestação não seria errado, assim pode ser expresso gestantes podem ser muito novas, pobres e fracas
o raciocínio, que a mãe disponha prioritariamente do para querer uma gestação num dado momento de
seu corpo e não seja obrigada a manter uma gestação sua vida, mas não em outro.
indesejada, por exemplo, por causa dos ônus que a ges- Além disso, proibir o aborto tem sido uma das for-
tação envolve e por causa do princípio de respeito pela mas usadas pelos homens para controlar o corpo das
privacidade do próprio corpo. O erro de assassinar mulheres, já que essa conduta historicamente torna os
um ser humano inocente permanece erro, o feto como homens mais poderosos. Por exemplo, eles não têm o
um ser humano inocente também permanece um ônus da gestação, e em geral é mais difícil fazê-los as-
fato, mas uma mulher, na relação biológica especial da sumir o ônus da criação, como a mãe o assume. Mu-
gestação, não assassinaria alguém ao interromper ou lheres abandonadas e sem o direito de abortar engros-
impedir o uso do seu corpo (cf. Thomson, 1971). sam o número das mulheres muito pobres do planeta.
Neste caso não há senão o fim prematuro da ges- Esses fatores sugerem ver o aborto precoce com olhos
tação, e, em nome do respeito à liberdade da mulher, mais tolerantes.
isso, por mais que seja lamentável, não deveria ser Também podem ocorrer problemas graves de saú-
moral e legalmente condenável. É preciso lembrar de com a mãe ou problemas psicológicos relevantes.

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Mesmo sem tais problemas mais graves, a de doenças incompatíveis com a vida, como Aborto e eutanásia são
duas questões centrais
gestação envolve sempre o uso do corpo da a anencefalia.
imagem: cena do filme: invasões bárbaras: reprodução

no filme canadense
mulher, desconfortos e dores no parto e na Um feto ou um recém-nascido anencé- Invasões bárbaras
recuperação do parto; pode ser sempre psi- falo carece do chamado cérebro superior (2003), que usa a
morte de um pai de
cologicamente difícil – especialmente se a (higher brain), os hemisférios cerebrais onde família para discutir a
mulher não quer a gestação –, pode inter- se forma o córtex cerebral. Esta é a parte do derrocada do projeto
ferir com os planos de vida e com o estilo cérebro responsável por nossas capacidades de vida moderno

de vida da mulher. Também podem existir cognitivas e emocionais propriamente ditas:


ou ocorrer problemas graves de saúde com sem elas não temos nem senciência, nem
o feto em gestação, e a mãe pode, se puder consciência, nem autoconsciência. A anence-
abortá-lo precocemente, tentar outra ges- falia é incompatível com a vida extrauterina.
tação, para que o futuro filho não tenha Mesmo se houver um período breve
aqueles problemas. É o caso, por exemplo, em que um bebê humano com anencefalia

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viva, será uma vida sem a experiência mental ou psi-


cológica conhecida. E, ao contrário de um feto sau-
dável, ele não tem nem a mera potencialidade de de-
senvolver essas capacidades em qualquer período de
seu desenvolvimento futuro. No entanto, mesmo não
possuindo os hemisférios cerebrais, fetos anencéfalos
ainda possuem o tronco cerebral (lower brain), a par-
te do sistema nervoso que controla funções vegetati-
vas, o que faz com que, em certos casos, e por breve
período de tempo, eles possuam alguma capacidade
de sustentação da vida meramente biológica. Eles são
seres humanos (geneticamente humanos) e estão vi-
vos (biologicamente).
A maioria dos fetos com essa anomalia, porém,
morre durante a gestação, e dos que chegam a nas-
cer, a maioria morre nas primeiras horas. Uma per-
centagem pequena sobreviverá meses, mas não se
conhece nenhum caso de sobrevivência, sendo con-
siderada uma doença totalmente mortal. Quando a
anencefalia é diagnosticada durante a gestação, algu-
mas mulheres querem o término da gestação; outras
escolhem ter o filho. Mesmo dentre as pessoas que A supressão da formação do córtex cerebral faz com que os bebês
pensam que o aborto é errado, várias têm dúvidas se anencéfalos vivam, no máximo, alguns meses após o nascimento
é errado interromper a gestação neste caso. E entre
as que acham que o aborto é um direito da mulher,
muitas reforçarão que neste caso falta totalmente Alguns pais podem pensar que manter a gesta-
qualquer benefício para o feto, ou para uma pessoa ção com tal anomalia é um desrespeito não só a eles,
futura que dele viesse. mas também ao bebê. Outros pais podem discordar

A Carta da Concórdia
“Eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de
propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto
e de outros temas concernentes à família e à livre expressão
de qualquer religião no País.” Tal foi o compromisso que a
então candidata Dilma Rousseff publicou em carta aberta em
outubro de 2010. A intenção era buscar a valiosa aliança dos
setores mais conservadores da sociedade, compreendidos pe-
las lideranças católicas e evangélicas do país, que temiam as
ideias excessivamente avant-garde de uma possível presidente
ex-guerrilheira, militante de esquerda e feminista.
Segundo declarações na época da então candidata, a carta trados na família, como o Bolsa Família, “se Deus” quisesse que
“veio pôr um fim definitivo à campanha de denúncias e boatos ela fosse eleita. O pacto funcionou, a vontade divina sorriu e a
espalhados por meus adversários”. Ela ainda complementava promessa foi cumprida. Quase um ano após tomar posse, nada
que seguiria com os programas sociais do governo anterior cen- foi mudado na legislação com relação às leis sobre o aborto.

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e querer manter a todo custo a gestação. Países que leis e normas. Na maioria dos países democráticos e
ainda proíbem legalmente o aborto são, em geral, to- desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá, Reino
lerantes com a interrupção da gestação quando ocorre Unido, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Japão, e mes-
esse tipo de anomalia, e é importante lembrar que em mo na França, Itália e Portugal, que são países com
muitos lugares, quando as leis contra o aborto foram forte tradição religiosa católica, por exemplo, as mu-
determinadas, não havia a tecnologia atual para diag- lheres têm o direito de interromper a gestação, ao me-
nosticar esse tipo de problema fetal. nos nos primeiros meses da gestação (aborto precoce).
Este poderia muito bem ser o caso do Brasil.
Crime e castigo Atualmente a legislação exime de punição apenas o
Assim, se o aborto fosse errado, neste caso em es- aborto terapêutico (feito quando a mãe corre risco de
pecial faltariam provavelmente as principais razões morte) e o aborto em caso de estupro. Seguindo o caso
que justificam condená-lo fortemente e proibi-lo por dos países citados, o aborto poderia ser aceito nos pri-
lei. Bastaria, aliás, aceitar o diagnóstico de que esta é meiros meses da gestação (até 20 semanas, por exem-
uma gestação de risco para a mulher, e que o melhor plo), se houver o pedido esclarecido da mulher, e, após
prognóstico médico, do ponto de vista da saúde da este período, se existirem razões importantes ligadas
mulher, física e psíquica, é o fim da gestação. Os pais, à saúde da mãe ou do bebê.
e em especial a mãe, têm na gestação de um filho um Essa pode ser vista como uma solução de compro-
dos momentos mais especiais de sua vida: se uma tra- misso entre os que são totalmente contra o aborto,
gédia como a anencefalia ocorre, obrigá-los a manter desde a concepção, e levantam a bandeira pró-vida,
a gestação até o fim é similar à crueldade e tortura. e os que são totalmente a favor, em qualquer período
Terminar antecipadamente tal gestação nunca deveria da gestação, e defendem a bandeira pró-escolha: um
ser proibido nesses casos. meio termo entre a concepção e o nascimento, e que
Vamos, por último, aceitar as premissas e a con- é, por causa da recente compreensão científica da vida
clusão: é errado abortar um feto humano. Ainda as- fetal, exatamente o meio da gestação.
sim podemos recusar a criminalização do aborto e a
imposição estatal da gestação às mulheres que não
desejam mantê-la. Isso seria causar um mal maior,
BLACKBURN, S., 2001. Being good. Oxford: Oxford University Press.
ou usar um remédio desproporcional para o erro de
referências

BONELLA, A. E., 2003. Notas sobre como tomar decisões racionais em


terminar a gestação. Mesmo que seja moralmente er- ética. In: DI NAPOLI, Ricardo Bins et al. (Org.). Ética e Justiça. 1a ed.
Santa Maria, v. 1.
rado abortar, este erro, dada a relação biológica espe- ______., 2007. Anencefalia e o valor da vida humana. In: Anais do V
cial da gestação, todo o seu ônus, e a vontade da mu- Simpósio Internacional Principia. Florianópolis: NEL/UFSC, v. 9.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARGUIÇÃO DE
lher, não deveria ser criminalizado e tratado como DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 54
questão de polícia e condenação prisional. (disponível em www.stf.gov.br. Acessado em: 5/8/2007).
DeGRAZIA, D., 2005. Human identity and Bioethics. Cambridge:
Há, por exemplo, as consequências sociais nocivas Cambridge University Press.
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GLOVER, V. & FISK, N., 1999. “Fetal pain: implications for research
incoerência entre o meio (a criminalização) e o fim and practice”. British Journal of Obstetrics and Gynaecology, 106, p.
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KLUGE, E., 2001. Severely disabled newborns. In: KUSHE, H. &
res não deixarão de praticar aborto clandestinamente SINGER, P. (Ed.) A companion to Bioethics. Oxford: Blackwell.
apenas por causa da lei, e que outras tantas deixarão KOREIN, J., 1997. “Ontogenesis of the brain in the human organism:
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isso num certo período. MARQUIS, D., 1989. “Why abortion is immoral¿”. Journal of
imagem: shutterstock

Philosophy 86, p. 183-203.


As leis devem ser razoáveis não só quanto aos as- McMAHAN, J., 2002. The Ethics of killing. Oxford: Oxford University
pectos morais envolvidos, mas também quanto ao seu Press. (Há uma tradução portuguesa pela editora Artmed.)
SINGER, P., 2002. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes.
custo-benefício, eficiência em atingir seus fins, con- THOMSON, J., 1971. “A defense of abortion”. Philosophy and Public
sequências sociais dissipadas e coerência com outras Affair I, p. 47-66.

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