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O Nômade

“Não... eu o amo... meu irmão...” – Mais uma vez, a voz onipresente ecoa em
minha mente, ou talvez fora dela. Já não sei mais. Há dias vagando pelo deserto, assolado
por essa tempestade de areia, as únicas coisas que porto comigo são esses trajes, que
deixam tão somente meus olhos à mostra, e esse cajado, que sempre carrego comigo, e que
conserva a firmeza de cada decisão e passo que dou. E, claro, desde que fui banido de
minha aldeia, carrego os “escorpiões”. Eventualmente eles me açoitam com suas ferroadas,
e nessas horas eu tombo em meio à areia infindável, tombo ante minhas memórias
irreparáveis, irreconciliáveis com o mundo, memórias inescapáveis, e agonizo com a dor
mais profunda que qualquer ser vivente já se deparou.
Mas não posso pensar nisso agora. Devo caminhar, firmar o cajado, procurando
firmeza no chão arenoso, passo a passo, caminhando rumo a... não sei para onde. Diante de
mim há um caminho; aliás, muitos caminhos. Há um horizonte ilimitado para onde posso
prosseguir, mas não há um destino. Não mais. Pois um homem sem aldeia, sem terra, é um
homem sem identidade, sem tradições que lhe digam quem ele é, ou como deve ser. Um
homem sem terra é um homem sem valor. Porém, ainda que sem destino pré-determinado,
eu caminho, buscando, ao menos, escapar dos “escorpiões”. Não consigo identificar de
onde eles vêm, mas sempre aparecem subitamente, e quando vejo não é mais possível evitá-
los. Às vezes aparecem em conjunto, às vezes como pequenos indivíduos, mas nunca é
possível escapar às suas ferroadas quando aparecem, e nunca se consegue saber quando elas
doerão e debilitarão mais. A última foi apenas um “escorpiãozinho”, mas seu veneno agitou
os ventos, fez a areia sob meus pés tornar-se movediça, me causou náuseas terríveis e me
trouxe a voz, doce, meiga, abafada e odiosa, na mesma medida em que, acusadora, me
lançava ao chão repleto de dores e dilacerações.
Mas o que é aquilo saindo daquele pequeno banco de areia? Mais escorpiões?
Sim, negros e rápidos, em número de seis. Não posso bloqueá-los. Sinto suas ferroadas, e
afundo meu rosto na areia, enquanto sinto um vento forte e carregado sobre minha cabeça,
como uma bota me pisando e me afundando mais no solo...

“É nossa fé! Desde que fizemos aquilo, desde que o tempo nos envenenou, e nos
fez esquecer de nossa felicidade, trazendo a ambição para nosso lar, desde essa época,
temos e cultivamos nossa fé. Se você é um de nós, se faz parte de nossa aldeia, deve
cultivar a mesma crença que nós. Deve fazer suas ofertas e pedir perdão, constantemente!”
– A voz da matriarca ecoa pelo deserto, esvoaça com minhas forças enquanto se manifesta
onipotente em minha mente. Mais ferroadas, e não posso impedí-las, nem ao fluxo da
memória... Perdão, ela dizia. Perdão, todos diziam. Mas pelo quê? Pelos pecados de nossos
pais? Nosso culto ao Absoluto sempre foi um culto de remorso, de arrependimento e de
culpa. Todos sentiam culpa, tinham de sentir para perpetuamente expiar o passado. Mas,
tanto mais prolongávamos os cultos, mais o passado era reavivado como uma carcaça morta
arrastada em nossas costas, fedendo sob o sol do Eterno.

“Ofertas, meu filho! Devemos ofertar ao Eterno o melhor daquilo que extraímos
da terra. É com dor e com sofrimento que retiramos da terra nosso alimento. Com dor,
porque por nossos pecados a terra sofre. Por nosso ato de ambição, e soberba, condenamos
tudo o que vive, e agora devemos mostrar nossa gratidão a Ele, e pedir para que sempre
continue nos abençoando com mais. Mas sempre devemos nos arrepender. Não se deve ser
tão orgulhoso ou altivo, pois não temos do que nos orgulhar” – Cale-se, calem-se todos!
Meu pai, não pense que eu vou me resignar e me envergonhar de mim mesmo,
simplesmente por existir. A existência tem sido um fardo em nossa aldeia toda, mas não é
minha culpa se o Eterno não mais nos visita. Foram vocês que fizeram sua escolha. Se dela
se arrependem, não exijam que eu me arrependa com vocês. Mas chega disso! Quanto mais
discuto com esse veneno chamado lembrança, mais fraco fico, mais afogado no deserto eu
me encontro. Eu não me submeto a vocês, “escorpiões”, a nenhum de vocês! Vocês me
ferroam, mas logo depois morrem por sua própria ferroada. Essa é a verdade sobre vocês. E
sobre mim, eu me levanto novamente, e caminho. Não temerei a vocês, e continuarei minha
jornada, como o errante que estou condenado a ser, vagando pelas terras ermas de Nod.

***

Já não sei quanto tempo caminho, sem comida nem bebida. Mal consigo distinguir
o real da alucinação. Antes via claramente a memória e o peso delas me assolava, mas
agora já não as sinto apenas dentro de mim. Caminho em terras estrangeiras, e sou
esmagado também por elas, como se tudo o que não é minha terra me condenasse.
Condenasse-me por ter sido maldito em minha própria terra.
Maldito! Sim, eu sou um maldito! Maldito desde aquele dia. Meu irmão, meu
adorado e amado irmão, tão obediente e tão servil, reproduzindo com tamanha entrega e
fidelidade a crença e a religião do remorso criada por nossos pais. Como queria livrá-lo
daquilo. E ao mesmo tempo, como queria ser igual a ele, ofertar os produtos da terra como
você ofertava o melhor de suas ovelhas. Mas eu não podia simplesmente me entregar a isso.
Algo em mim dizia um sonoro “Não” a toda essa existência inventada.

“O Eterno não aceitou sua oferta – pronunciou o Patriarca, publicamente – Ele


aceitou a oferta de seu irmão. Você foi rejeitado pelo Absoluto, filho. Se envergonhe, se
arrependa, pois mesmo para nós, os piores, houve aceitação na medida em que nos
arrependemos. Se envergonhe, meu filho, procure ser como seu irmão, e talvez haja
aceitação para ti”. – Aceitação... Eu fui rejeitado pelo Ser, pelo Absoluto inominável! Que
aceitação pode haver para mim?

“Meu amado irmão, como quero ser como você, como quero ser aceito”.– foram
os meus pensamentos. Mas esses pensamentos me traziam angústia. Eu amava meu irmão,
mas não queria ser como ele. Eu sou eu! Mas precisava ser aceito. Se não sou aceito por
nosso Deus, como posso ser aceito por minha aldeia? Como posso ter minha terra se não
pertenço à minha pátria? Mas, para ser aceito, tenho que representar um papel que não é
meu, e sim o do meu irmão. Meu irmão! Meu amado irmão, cuja sombra de pureza e
sinceridade me enoja, me causa repugnância. Ele é livre, é feliz em sua liberdade servil. É
feliz em seu dever. Mas eu não sou livre, vivendo à sua sombra, sendo rejeitado pelo que há
de mais elevado em nome da servidão mais torpe, que só se afirma na medida em que se
envergonha. Não, meus pais! Não, minha terra! Para vocês eu digo Não!
Tontura. Essas últimas alucinações foram demais para minhas forças. Não vejo
nada, exceto escuridão e areias negras sendo lançadas em meu rosto, penetrando por meu
turbante, furando meus olhos. Vertigem, eu caio... mas não me entrego...

***

Delírio. Absoluto delírio. Abro os olhos, enquanto a garganta seca denuncia um


esmagamento terrível. Encontro-me enrolado em uma serpente negra de três cabeças. Elas
olham para mim, me esmagam com seu abraço terrível, enquanto as areias rodopiam ao
redor dela como anjos infernais. Da boca da serpente sai outro veneno do qual já tivera
contato antes:

“Por que você está enfurecido e anda de cabeça baixa? Se você agisse bem,
andaria com a cabeça erguida; mas, se você não age bem, o pecado está junto à porta, como
fera acuada, espreitando você. Por acaso, será que você pode dominá-la?”.

Não me diga, serpente, o que devo eu fazer! Agir bem! Para mim, é impossível
agir bem, pois agir bem significa agir conforme uma vontade que não é a minha. Agir mal
significa, para mim, simplesmente existir. Se fingir que sou outra pessoa, estou agindo bem,
mas se mostrar meus pensamentos e meu estado de espírito, estou agindo mal, se finjo um
arrependimento que não sinto, estou agindo bem, mas se sinto orgulho por mim mesmo,
estou agindo mal. “O pecado está junto à porta”, você diz. Sim, estava. Escolher a liberdade
sempre implica em um pecado. Sempre!

“Assassino! – Assassino!. A terra clama por vingança, assassino. Um corpo


inocente foi lançado no seio da terra. Você o lançou!” – rosnam as serpentes, e o abraço se
torna insuportável.

Chame-me do que quiser. Eu livrei meu irmão de uma existência imprópria, falsa.
Eu o salvei de você.
“Mentira – Mentira – Mentira! Você não pensou em salvar a ninguém. Em você
só há o ódio”.

Não. Há também amor. Mas a única forma de superar o ódio era transgredir a
vida. Meu irmão era um arremedo de existência, fingindo e se escondendo em um poço
muito fundo de bondade. Eu não sou ele. A rejeição que sofri apenas indicou o óbvio. Eu
não sou como ele, tampouco sou como meus pais. Eu não sou como ninguém. Não há
mandamento ou ordens que possam dizer quem eu sou. Isso porque é muito fácil para todos
dizerem quem são, e se comportarem de acordo com isso. É muito simples convencer-se de
que se á alguma coisa, pois assim não se precisa decidir sobre nada. Mas eu não sou uma
coisa, coisa alguma. Pode me esmagar. Pode destruir meus ossos, serpente triuna. No
entanto, eu rejeito seus títulos. “Assassino” é um termo que só vale no horizonte estreito de
minha aldeia. Mas eu fui banido dela. Não aceito seu título.

“Então, caminhe pelo deserto, ‘sem-nome’, caminhe. Essa é sua marca. Você é
horrível, pois não é ninguém. É um homem sem rosto, sem traços, sem destino, sem futuro
e sem passado. Essa é sua escolha. Caminhe pelo deserto que é você!” – sibilam as
serpentes, enquanto abandonam meu corpo nas areias e mergulham em um túnel que
desmorona diante de mim.
***

Existência, existência, não há para onde correr de ti. Não há onde possa me
esconder. Vozes, por toda parte. As areias parecem zombar de mim. Maldita terra de Nod,
que me consome a alma a cada passo. Quero a solidão, quero poder ouvir apenas a
estertorante lufada de areia silvando em minha face. É melhor do que as vociferações
sobressaltadas que vêm, horripilantes, de todos os cantos do deserto:

“Assassino” – “Não me mate, eu te amo, meu irmão” – "Você foi rejeitado, meu
filho ”. – “Se arrependa, sinta remorso” – “O pecado está junto à porta, como fera acuada,
espreitando você. Por acaso, será que você pode dominá-la?” – “Hahaha, você pode
dominá-la?” – “Ele não pode”.
Em desespero eu grito com as vozes, berro para que cessem a tortura sem fim,
sem esperança de ser atendido. Apenas caminho, vagando passo a passo, me apoiando no
cajado vacilante. A boca está seca, meus olhos não lacrimejam mais. Preciso de água ou
vou morrer aqui nesse deserto. Súbito, as vozes se calam, e as areias negras pairam sobre
mim, como que paralisadas em pleno ar. É como se o tempo tivesse parado ao meu redor.
Apenas eu continuo caminhando. Não há o menor som, fora meus próprios passos.
Antes que eu possa imaginar que horror me espreita adiante, da terra emergem
mãos que agarram minhas pernas, rasgando com as unhas, de modo frenético, minha túnica
e minhas pernas. O grito que escapa de minha boca é inevitável, enquanto tento me
desvencilhar daquilo. Enquanto me afasto ensangüentado, das areias do deserto, ele se
levanta, cadavérico, com poucos cabelos, os olhos acusadores, em prantos, olhando para
mim ainda com espanto. A cabeça cambaleia, com a marca da paulada e com o sangue não
coagulado ao redor do cérebro descarnado. Meu irmão...

“Por quê? O que lhe fiz? Se arrependa, irmão, pois nós dois já transcendemos o
tempo. Somos mortos! Eu transcendi o tempo, pois você ceifou minha vida e minha
existência. E tu, transcendeste o tempo quando perdeu sua aldeia, sua terra, quando se
tornou um ‘sem-nome’. Sem passado e sem futuro, você é apenas cada instante, que jamais
pode ser capturado, jamais pode ser observado. Não há uma tradição para você, não há
ancestrais, não há lição possível para ti, exceto o remorso, meu irmão. Eu estou
eternamente jazendo sob a terra, e você ficará eternamente jazendo sobre ela, se arrastando
pelo deserto. Para ti não há mais projeto. Não criará nada!”

Cale-se, cale-se! Você está morto, não existe. Não mais! Não diga que não há
projeto para mim, nem que somos iguais. Você está morto, eu não!

“Será? Não se lembra da maldição de nosso Deus? Você vagará pela terra, os
frutos do solo fugirão de ti, e os homens não lhe matarão, pois sobre ti foi posto um sinal!
Está condenado a vagar, irmão. Simplesmente vagar, um errante eterno pela terra, porém
sempre sem terra, porque nunca terá uma aldeia. Todos fugirão de ti quando te virem, o
Assassino. E eu, sempre vagando sob a terra, nesse reino insone dos mortos, clamando por
justiça.”

Você está errado. Errado! Você me manda escolher o remorso, nossos pais me
mandavam escolher o remorso. Mesmo Deus me mandou escolher o remorso. Mas eu não
escolho o remorso. Eu sei qual foi a marca que Deus talhou em minha fronte. É a languidez
do homem que é livre, que não possui identidade determinada por nenhum ideal superior.
Eu não sou celeste e nem brilha em minha face o fulgor cego da ilusão por um além
prometido. Em mim ardem as duras marcas da minha própria ação, pois eu faço a mim
mesmo.
Abel, eu não sou como você. Não somos iguais!

Eu sou Caim! Filho de Adão e Eva, e banido de meu lar, banido por Deus, por ter
assassinado seu irmão mais novo, Abel. Eu sou inescusável. E sou imperdoável. Porém,
entre o remorso e a responsabilidade, eu escolho a segunda. Sempre carregarei comigo o
fardo irreparável do fato, do meu passado já feito, do meu “Não” para uma existência já
feita e preparada para mim. Eu sou horrível, eu sou um “sem-nome”, porque eu sou livre.
Eu sou minha liberdade, e por isso mesmo eu me aproprio do meu passado, não para cair
em remorso, mas para construir meu futuro. Eu terei minha aldeia, terei minha terra, terei
minha identidade, meu próprio valor, mas não por tuas mãos, ó fatalidade. O que terei será
por minhas mãos, por minha liberdade, por minha responsabilidade. Eu sou meu “Não” à
Lei, mesmo sendo esse não um ato horrível. Eu te amo, meu irmão. Eu lhe matei porque
queria ser livre. Sua morte é meu peso e minha marca. Mas ela não me paralisará nem entre
escorpiões, nem entre serpentes. Eu te amo e sempre te amarei, e seu cadáver não irá me
assombrar.

Tendo dito isso, a terra o traga, o próprio tempo é restaurado e a tempestade de


areia enfim termina. Diante de mim há um oásis. Caminho até ele e mato minha sede. O
deserto terminou, a caminhada infernal é transposta. À minha frente há uma aldeia, pequena
e cheia de vida. Alguns pastores de ovelhas me vêem e me saúdam. Eles me acolhem e eu
lhes acolherei. Dessa aldeia criarei uma cidade, e me casarei, terei filhos e engendrarei toda
uma geração de cainitas. Minha aldeia, minha terra. Eu sou Caim, eu sei quem sou!

Fim!

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