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FUNCIONO, LOGO EXISTO?

- A DEFICIÊNCIA COMO FICÇÃO

Marco Antônio Gavério 1

Resumo: Desde meados do século XX, movimentos políticos e teóricos passaram a gestar outros
sentidos identitários para o conceito de deficiência para além daqueles que indicavam falhas e
defeitos organicamente delimitados exclusivamente nos corpos dos indivíduos. Tais mobilizações
políticas em torno da redefinição da deficiência como um construto social operou,
fundamentalmente, no nível comunitariamente imaginado das relações e interações sociais e
corporais. Assim, a ideia de deficiência que vem sendo produzida contemporaneamente não está
isenta de materializações e nomeações controversas. Neste trabalho proponho uma incursão em
algumas semânticas teóricas do termo 'ficção' para explorar como a deficiência pode ser pensada e
produzida para além de um processo dicotômico entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade.
Como argumento para análise focalizo determinados discursos que se referem à corporalidade e
comportamentos de pessoas 'normais' que buscam transformar-se voluntariamente em deficientes.
Para explorar essas questões parto de uma análise cultural aleijada da obra de ficção científica de
Max Barry chamada Homem-Maquina que narra a transformação voluntária de um cientista em um
híbrido organo- mecânico. A leitura desta obra sob uma perspectiva criticamente deficiente
possibilita extrapolar certas rigidezes do debate socioantropológico sobre realidade
fundamentalmente orgânica e funcional em torno dos corpos humanos.
Palavras-chave: disability studies; teoria crip; ficção; corporalidades dissidentes

1 – A nova biônica e a possibilidade de um mundo livre de deficientes


Em 2014, o professor de biomecatrônica da Harvard-MIT, Hugh Herr, causou frisson na
comunidade científica e tecnológica internacional ao apresentar e demonstrar o uso de sua nova
invenção. Em sua palestra ao TED Talk 2 , Herr, ele mesmo um amputado duplo, aparece utilizando
as mais novas próteses biônicas com ligação neurológica inventadas por ele e sua equipe do
Biomechatronics Group 3 .
Nessa apresentação, o pesquisador surpreende sua plateia ao andar de um lado para o outro
sob suas novas próteses. Em cada uma de suas pernas, logo abaixo do joelho, as peças se
encaixavam e formavam uma figura extremamente híbrida. As próteses em cinza grafite possuíam
um desenho futurístico onde os “pés” se apresentavam com plataformas articuladas que
sustentavam e davam movimento ao usuário. A surpresa dos espectadores parecia ser exatamente o

1
Doutorando pelo Programa de Pós -Graduação em Sociologia da UFSCar.
2
A palestra intitulada ‘A nova biônica que nos permite, correr, escalar e dançar’ pode ser acessada aqui: <
https://www.ted.com/talks/hugh_herr_the_new_bionics_that_let_us_run_climb_and_dance >
3
The Biomechatronics Group é um dos 20 grupos de pesquisa constituintes do MIT Media Lab. Para mais informações,
acessar o site < http://biomech.media.mit.edu/#/about/ >

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efeito esperado por Herr e tem como causa o fato das novas próteses neurobiônicas emularem
perfeitamente o andar humano organicamente bípede.
Embasando sua fala em um viés de completa integração futura entre o corpo humano e as
tecnologias biônicas, a proposta de Herr se resume na eliminação da incapacidade [disability]. Hugh
Herr relembra como a “biônica redefiniu sua corporalidade (phisicality)” após ter amputado, em
1982, suas duas pernas devido ao efeito de um acidente de alpinismo. O cientista conta um pouco
de sua história para dar sentido ao seu projeto de inovações biomecânicas:
A tecnologia havia eliminado minha deficiência e me permitido uma nova
proeza em escaladas. Como jovem, imaginei o mundo futuro onde tanto
avanço tecnológico pudesse livrar o mundo da deficiência, um mundo onde
implantes neurais permitiriam ao cego enxergar, um mundo no qual o
paralítico pudesse andar através dos exoesqueletos do corpo. Infelizmente,
devido às deficiências na tecnologia, há um excesso de deficientes no
mundo.

De fato, o fim das deficiências, ou incapacidades, parece ser o mote que produz iniciativas
especializadas como as de Hugh Herr e sua equipe de bioengenharia. Herr relembra de sua
impotência enquanto um jovem amputado para exaltar como a tecnologia eliminou sua deficiência
através de modificações diretamente corporais. Implantes internos e externos acoplados no corpo
humano seriam a própria possibilidade de potência humana, a própria possibilidade de eliminar as
nossas limitações.
A fala de Herr nos deixa muitas dúvidas sobre o que exatamente ele chama de deficiência. Em
certos momentos a deficiência aparece como algo inerente a todos os seres humanos, e nesse
sentido o corpo orgânico é o que constitui nossa humanidade devido à partilha de uma fragilidade
natural. Em outros pontos, existem brechas para um entendimento de que as deficiências são efeitos
do próprio mundo sem tecnologias o bastante, ou com tecnologias precárias, para complementar a
natureza humana.
Propostas como a mencionada aqui não são raras quanto ao sentido, quase literal, de
eliminação das deficiências\incapacidades humanas 4 . Ao mesmo tempo em que delimitam um ponto
ótimo, ou seja, a busca pela total funcionalidade dos corpos humanos em sua relação com o mundo,
esses discursos e práticas tecnocientíficas propõe uma hibridação entre humanidade e artificialidade

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Alison Kafer, em seu livro Feminist, Queer, Crip (2013), faz uma boa discussão sobre os usos das tecnologias
biomédicas e informáticas com relação aos corpos deficientes. Basicamente a autora argu menta que os manejos
dessas tecnologias propõem a superação\eliminação das deficiências humanas. Contudo, paradoxalmente, esta
eliminação, ou esse upgrade, como diz Paula Sibila (2005), não se dá fora dos próprios parâmetros que conformam
essas tecnologias que visam melhorar ou superar a humanidade. Nesse sentido, para uma boa discussão sobre o
impacto subjetivo e político de sempre querer estar “bem”, ver PUAR, 2011.

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que estremece a própria ideia do que é humano, inumano ou subhumano (SIBILIA, 2005). Assim
como estremece as próprias considerações do que é tecnológico e artificial.
A inovação da tecnologia criada sobre a liderança científica e moral de Hugh Herr está
exatamente na ideia de escamotear as possíveis debilidade humanas, traduzidas e metaforizadas no
não enxergar ou andar, através da intervenção biônica no corpo. Dessa forma, o que essa tecnologia
garante não é uma simples substituição da mecânica dos movimentos orgânicos humanos por uma
mecânica artificial de mobilidade.
O que efetivamente a tecnologia do Biomechatronics Group garante é a própria naturalidade
da biomecânica orgânica humana através de próteses capazes de emular, exatamente, essas funções
(AARON, et al 2006). Em suma, a proposta de Herr é equalizar o desejo do indivíduo de ultrapassar
determinados limites corporais com as reais possibilidades para tal, acoplando de maneira natural
dispositivos biônicos nesse processo. Nas palavras de Herr: "A biônica não se trata só de tornar as
pessoas mais fortes e rápidas. Nossa expressão e nossa humanidade podem ser incorporadas à
eletromecânica".

2 – A ficção, a ciência e o corpo humano como obstáculo


No livro Homem-Máquina (2011), do autor norte americano Max Barry, encontramos uma
interessante ficção científica a respeito da obsolescência do corpo humano e suas emoções. Na
verdade, a trama do romance ficcional cientifico versa sobre o quanto podemos nos desvencilhar de
nosso organismo e o quanto isso custa àqueles que buscam, ou necessitam de, um corpo para além
de sua própria natureza.
A figura central do livro é a personagem Charles Neumann. Um cientista e engenheiro
mecatrônico com sérios problemas de sociabilidade e extremamente dependente das tecnologias
digitais. Neumann é chefe do laboratório de inovações tecnológicas da empresa privada "Futuro
Melhor" e coordena um grupo de estagiários em projetos científicos da companhia. Neumann
sempre se sentiu deslocado em seu ambiente de trabalho justamente por considerar que seus
conhecimentos em tecnologias mecânicas, eletrônicas e digitais nunca fora exatamente absorvido
pela empresa, aliás, Neumann, demorou a entender o que a própria companhia fazia. Ao longo do
livro vamos percebendo que a Futuro Melhor é um complexo empresarial e que suas estruturas e
aspirações nunca são totalmente conhecidas e estáveis. O próprio Neumann passou muito tempo
sem conhecer a estrutura total da empresa ou falar com seus superiores, "a turma da gerência".

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As coisas mudam radicalmente na vida de Charles Neumann quando ele, após um descuido
enquanto estava preocupado em achar seu celular, acaba se envolvendo em um incidente em um dos
laboratórios da Futuro Melhor. Neumann ficou tão extasiado ao ter encontrado seu celular em uma
sala de experimentos, desaparecido durante todo um dia, que não percebeu ter deixado sua perna no
espaço de um grampo mecânico que fazia cortes em grandes pedaços de metal. Quando conseguiu
pegar seu celular, Neumann acionou a máquina sem querer e o grampo se pôs a funcionar. Tudo
acontece muito rápido, os assistentes não conseguem interromper o processo externamente, muito
menos Neumann. Charles acorda em um hospital. Havia recuperado seu celular, mas havia
decepado quase completamente uma de suas pernas.
É a partir desse incidente que há uma mudança radical na vida da personagem central e onde,
na trama, conhecemos outras personagens fundamentais a todo enredo do livro. É o caso da
especialista em prótese Lola Shanks, por quem Neumann se apaixona, e da mediadora de riscos e
conflitos da Futuro Melhor, Cassandra Cautery. É interessante notar certos neologismos usados pelo
autor na construção dos nomes de algumas personagens, como no caso de Charles e de Cassandra.
Charles Neumann vem de "new man" (novo homem) e Cassandra Cautery de "cauterizar". Esses
neologismos vão ficando mais nítidos em significância conforme vamos adentrando em pontos
específicos da narrativa literária e conhecendo melhor as posições das personagens na história.
Após seu acidente, Neumann passa alguns dias no hospital para se recuperar da amputação
involuntária. Uma rede de cuidados se estabelece perante a personagem: as enfermeiras atenciosas,
o fisioterapeuta 'motivador', a médica preocupada e inflexível, a gerente de riscos de sua empresa e
a especialista em próteses 'atrapalhada'.
Neumann é apresentado às possibilidades protéticas trazidas por Lola Shanks para substituir
sua perna perdida. Neumann se impressiona com a simplicidade das próteses. Elas não pareciam
nada funcionais se comparadas às possibilidades tecnológicas dominadas por seu conhecimento
mecatrônico. Então, quando Neumann volta ao trabalho na Futuro Melhor, ele tem a ideia de
construir uma nova prótese utilizando a tecnologia da empresa.
Dotando de pistões, GPS e Wi-Fi, a intenção de Charles é construir uma perna biônica
autossuficiente, se baseando em uma ideia de que se nossos membros soubessem exatamente o que
fazer, através de uma simbiose químico-neural, gastaríamos menos energia e a utilizaríamos em
outras atividades. É com essa experiência que Charles Neumann começa a ver seu corpo orgânico
como obsoleto, como um obstáculo. Em um momento, diz a personagem: "olhei para minha perna,
a boa. Quer dizer. Não exatamente "boa". Aquela que eu tinha desde o nascimento. Levantei a calça

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e virei a perna para um lado e para o outro. Era gorda, fraca e comum. Quanto mais eu olhava para
ela, mais me incomodava" (BARRY, 2011, p. 41).
É no decorrer de suas pesquisas para construir sua prótese biônica inteligente que Neumann,
voluntariamente, decepa a perna que lhe restara e se livra do obstáculo que o proibia de continuar
seu desejo pelo upgrade de seu corpo. Charles é tratado como louco, colocado sob observação
psiquiátrica e fica isolado durante um tempo no hospital enquanto se recuperava de sua segunda
amputação. Entretanto, é a Gerente de Crises da Futuro Melhor, Cassandra Cautery, que oferece a
proteção da empresa para Charles. Desde que ele continuasse a desenvolver mais tecnologias
biônicas em sigilo na companhia, Neumann poderia continuar no papel de cientista excêntrico que
serve de cobaia para si mesmo. Com o aval da empresa e protegido nas instalações da companhia do
mundo que o considerava louco, Neumann conclui a construção de seu par de pernas biônicas e
inteligentes, as Contornos.
O desejo de experimentação tecnológica só aumentou em Charles Neumann. Suas equipes
trabalhavam livremente no desenvolvimento de Óculos e Lentes Z, que ampliavam a resolução e a
captura de detalhes dos olhos humanos. Mas Neumann só pensava em criar partes biônicas para seu
corpo. Um braço começou a ser esboçado pelo cientista. Essa obsessão começou a preocupar
Cassandra Cautery, temendo que Neumann armasse outra situação para cortar voluntariamente mais
uma parte de si. Ao mesmo tempo, a possibilidade de Charles se auto modificar era o que lhe
motivava a produzir tecnologias que poderiam virar produtos comerciais patenteados pela Futuro
Melhor. Cautery sabia disso. Era seu papel transformar as inovações de Neumann e suas equipes em
melhorias corporais que pudessem ser colocadas no mercado. Que principalmente pudessem ser
comercializadas como inovações ao mundo bélico das defesas nacionais e das empresas de
segurança. É nesse ponto que a deficiência de Lola Shanks entra como forma de Cautery fazer
Neumann seguir as normas da empresa como deveria qualquer funcionário.
Charles e Lola se apaixonam ao longo da trama Homem-Máquina. Contudo, é uma relação
que acontece em meio a muitas perturbações corporais. Em um teste com as Contornos, Neumann
entrou em curto-circuito eletroquímico com as próteses inteligentes interconectadas com seu corpo.
As Contornos faziam o que queriam e levaram Charles aonde estava Lola, que nesse momento
estava proibida de falar com o cientista. Cautery ac ionou a segurança da Futuro Melhor temendo
que Neumann estivesse fugindo com as próteses da empresa. Em um conflito muito bagunçado
entre Charles sob as Contornos descontroladas e a segurança da companhia, Lola é atingida no peito
por um projetil de choque não letal vindo do grupo de seguranças que tentavam conter Neumann.

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É nesse momento que descobrimos que Shanks também é uma ciborgue (HARAWAY, 1985).
Charles pensara que Lola morrera no conflito. Ao chegar na Futuro Melhor, Neumann descobre que
Lola está sob os cuidados da empresa e recebe de Cautery a notícia de que Shanks possui um
coração artificial feito de aço. Lola nasceu com um defeito congênito em seu coração e por isso seus
pais faliram por bancarem seu tratamento. O próprio pai de Lola, como forma de juntar dinheiro
para um novo coração para a filha, passou a mutilar voluntariamente partes de si como se fossem
‘acidentes de trabalho’. As partes perdidas rendiam indenizações e iam para uma poupança que só
seu pai e Lola sabiam. A história de Shanks acaba com a morte de seu pai e com ela juntando suas
economias em busca de um novo coração, o coração de aço agora comprometido pelo tiro.
Assim, a história de Homem-Máquina parte para seu desfecho. Cautery, chantageando
Neumann com a própria condição debilitada de sua amada Shanks, o obriga a continuar criando
peças e partes do corpo Melhores para a própria Futuro Melhor, sob a ameaça dele não ser mais
permitido de continuar construindo um novo coração para Lola. Em meio a algumas reviravoltas,
Neumann acaba tendo todo seu corpo transformado em uma máquina biônica de guerra. Tendo
somente seu cérebro preservado, todas as funções corporais de Neumann eram controladas pelos
seus estagiários sob o comando de Cassandra Cautery. Após o confronto com um dos seguranças
modificados pela Futuro Melhor, que supostamente havia sequestrado Lola Shanks, Charles
Neumann tem todo seu corpo biônico destruído, tendo somente seu cérebro-consciência
preservados.

3 – O Paradoxo dos Desejos pela Deficiência


O livro Homem-Máquina chamou minha atenção exatamente no ponto em que Charles
Neumann decide amputar sua perna saudável visando se livrar completamente de um obstáculo ao
desenvolvimento tecnológico. Quando li o livro de Barry estava submerso em um universo de
pesquisa que abordava exatamente a busca voluntária de pessoas por mudanças corporais
consideradas deficiências. Indivíduos que buscam amputar uma parte de si mesmo, que buscam
perder um de seus sentidos ou paralisar-se atualmente são concebidos por certa literatura científica
como pessoas que estão em discordância com sua própria identidade corporal.
Tais indivíduos não se sentem bem consigo mesmos a partir de como se percebem na
estrutura de seus corpos. Na verdade, eles almejam ter uma estrutura corporal correspondente com
sua identidade física e sensorial, isto é, eles buscam se sentir completos, ou íntegros, a partir da
incompletude ou desintegração de sua totalidade corporal. Não necessariamente esses indivíduos se

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reconhecem sob a insígnia do termo 'pessoa com deficiência' somente por buscarem uma amputação
ou formas de usarem legitimamente uma cadeira de rodas. Entretanto, muitos deles se reconhecem
como pessoas com um tipo específico de transtorno psicossomático, chamado Transtorno Da
Identidade Da Integridade Corporal, TIIC (Bodily Identity Integrity Disorder, BIID). Efetivamente,
os indivíduos que se reconhecem sob esse transtorno não têm como objetivo emular uma
corporalidade ou uma identidade politicamente deficiente. A vontade de retirar voluntariamente
uma parte de seu próprio corpo acaba sendo um fim em si mesmo para essas pessoas, uma vez que
se sentir incompleto em um corpo completo se torna um grande sofrimento e a transformação
corporal uma grande obsessão.
Por outro lado, em confluência com essa categoria clínica, existe uma outra categoria q ue
identifica indivíduos que também buscam romper com a integralidade de seus corpos e funções
corporais. Esses indivíduos se denominam Transableds ou, em uma tradução livre, Transficientes e
se distinguem dos indivíduos com TIIC em dois pontos. Os Transficientes não se reconhecem como
possuindo um transtorno, ou quadro patológico psicossomático e efetivamente tem como objetivo a
transição corporal para um estado deficiente (disabled). O termo Transabled significa propriamente
o processo de transição de um indivíduo que se reconhece com um corpo abled (apto, capaz, válido)
para um disabled (inapto, incapaz, inválido). A ideia de transição corporal como um processo de
adequação entre o self, o eu, e o corpo do indivíduo é nitidamente trazida pelos Transficientes como
análoga aos processos reconhecidos como transexualização. Portanto, para os Transficientes,
amputar uma perna em um processo cirúrgico não é considerado como um tratamento ao
sofrimento, como advogado no caso das pessoas que se identificam sob a ideia de um transtorno
psicossomático da integridade corporal; para os Transficientes o que importa é, através de uma
intervenção cirúrgica, produzir uma nova identidade demarcada pelo próprio processo de transição
corporal.
Algo muito interessante de ter percebido ao longo de minha pesquisa de mestrado
(GAVÉRIO, 2017) foram os modos com que certo 'discurso sobre deficiência' se acoplam a
determinadas materialidades ou construções corporais, sem exatamente produzir uma ponderação
político- identitária deficiente, digamos assim. Como mencionei, a literatura médico-científica é
dominante na produção autorizada sobre o desejo das pessoas em retirar ou danificar partes
saudáveis de seus corpos. Se posso generalizar com fins demonstrativos aqui nesse ensaio, na
epistemologia biomédica, um indivíduo incapaz (disabled) é aquele que possui a união de um corpo
com alguma lesão (impairment) e questões disfuncionais no ambiente em que se encontra.

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Entretanto, nessa mesma epistemologia, a lesão pode muito bem ser considerada ela mesma a
própria deficiência/incapacidade (disability) do indivíduo. Em suma, para as pesquisas biomédicas
sobre deficiência, o corpo orgânico, biológico, é o vetor em que as
incapacidades/deficiências/lesões podem ser observadas como desvios do modo em que os corpos
devem aparentar-se, se comportar e funcionar. Assim, a desvantagem social (handicap) do
indivíduo está em seu próprio corpo que necessita de alguma forma tecnológica de intervenção para
atingir um estado de funcionalidade (normalidade).
Segundo Lennard J. Davis (1995), 'discurso sobre deficiência' não é um discurso que exalta
especificamente discussões críticas sobre a ontologia e as epistemologias científicas que
historicamente constituíram as semânticas modernas e contemporâneas sobre deficiência. São
exatamente as múltiplas possibilidades constitutivas que vieram historicamente modulando os usos
e disputas políticas em torno da noção de deficiência que formaram a própria ideia de um 'discurso'
sobre ela. É com essa categoria analítica que conseguimos aglutinar, na ideia teórica de um 'desejo
pela deficiência', indivíduos que possuem as mesmas vontades de modificação corporal, porém com
motivações distintas e até mesmo conflitante com as propostas identitárias dos movimentos de
reconhecimento das pessoas com deficiência.
Assim, o que chamou muito a atenção de médicos, psicólogos e psiquiatras durante um bom
tempo foi a vontade muito comum observada em alguns indivíduos em amputar partes, ou
completamente, os membros inferiores. Desde a primeira publicação científica, em 1977, sobre
pessoas que desejavam a deficiência, até a literatura produzida no início dos anos 2000, havia um
aparente consenso em equalizar a ideia desse desejo a uma única e exclusiva vontade de se amputar
membros considerados saudáveis. Nesse sentido, dentro da literatura científica que analisei na
pesquisa de mestrado, a figura física da pessoa deficiente devido a uma amputação foi duplamente
incitada como 1) representação material e discursiva de um corpo legitimamente deficiente e
incapaz e 2) como a única fonte de desejo e projeção identitária daqueles que desejavam se tornar
deficientes. Em resumo, os indivíduos que buscavam uma amputação voluntária foram tratados com
desconfiança sobre sua sanidade, na literatura científica, exatamente por quê se considerou que
esses indivíduos almejavam somente a resolução narcisista e cruel de um desejo baseado em uma
figura incapaz e impotente, pois incompleta: a pessoa amputada.
Se, a partir disso, voltarmos à história do pesquisador Hugh Herr e da personagem de Max
Barry, Charles Neumann, temos a mesma noção de representação das deficiências humanas a partir
da figura física do amputado. Essa figura traz nitidamente a percepção de um corpo em que se falta

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algo. A diferença dessas duas histórias de transformações corporais tecnocientíficas com as
histórias de transição corporal que me deparei ao longo do mestrado é que as primeiras, cada qual a
sua maneira, buscam a eliminação ou a superação das deficiências humanas através do uso
intensivo de próteses e implantes tecnológicos. Já as transformações corporais que podem ser
definidas como conduzidas por um desejo pela deficiência operam na exata produção de corpos
‘incapazes’.
Entretanto, a deficiência, a incapacidade ou a disfunção são necessárias à própria produção de
corporalidades mais capazes e mais eficientes funcionalmente falando. Herr utilizou seus
conhecimentos e passou a investir em inovações biônicas em próteses após ter se tornado um
amputado por acidente. Já Charles Neumann viu exatamente na deficiência, na falta de suas pernas,
uma etapa de transição à uma vida sem obstáculo, isto é, sem um corpo orgânico flácido e composto
por fluidos. Em poucas palavras, esses exemplos deixam mais explicita que a condição de
visibilidade da deficiência, ou daquilo que se considera falho, muitas vezes, é seu próprio
‘desaparecimento’. Nesse sentido, a deficiência serve como metáfora propulsora da superação
tecnocientífica dos limites humanos.

4 – Desintegrar e Reacoplar
Um dos maiores paradoxos para uma estreita noção do que é o debate sociocult ural em torno
da deficiência, é quando confrontamos o seguinte eixo de questões: de um lado a inevitável finitude
do ser humano e sua decadência anatomofisiológica; de outro a possibilidade de expandir nosso
período de vigor físico, cognitivo e sensorial com auxílio das novas tecnologias médicas e
informáticas.
O Sociólogo britânico Alan Roulstone (2016) chama a atenção para um jogo de forças típico
das teorizações entre deficiência e tecnologia. Por um lado se considera que a tecnologia aplicada é
a grande solução para todas as disfuncionalidades corporais humanas, o que proveria de imediato a
possibilidade de igualdade social para pessoas deficientes; por outro lado as soluções tecnológicas
são vistas como formas de esconder as reais causas da deficiência, as estruturas sociais, colocando
ênfase no conserto individual como forma de 'inclusão' e, assim, fazendo desaparecer a própria
deficiência.
Conforme Roulstone (2016), ambas visões são espectros opostos de uma discussão que, na
verdade, possui inúmeras nuances. Inclusive podemos partir da questão: onde começa o
naturalmente humano e onde acaba o naturalmente tecnológico? Donna Haraway nos lembra que

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what counts as human and as nonhuman is not given by definition, but
only by relation, by engagement in situated, worldly encounters, where
boundaries take shape and categories sediment. If feminist, antiracist,
multicultural science studies - not to mention technoscience - have
taught us anything, it is that what counts as human is not, and should
not be, self-evident. The same thing should be true of machines, and
of nonmachine, nonhuman entities in general, whatever they are.
(HARAWAY, 1994, p. 64) 5

Paula Sibilia, em O Homem Pós-Orgânico (2005), discute a emergência histórica da


concepção de que a tecnologia é concebida como forma de contraponto à obsolescência constitutiva
do organismo humano. Sem conseguir adentrar em detalhes à obra da pesquisadora, Sibilia mostra
que ao longo do século XVIII a dimensão ‘Homem-Máquina’ dava sentido a todas as
transformações capitalistas da sociedade europeia pré- industrial. Nesta dimensão o orgânico e o
tecnológico se relacionam através de determinados limites, onde um pode, em extremos, anular o
outro. Sibilia correlaciona essa dimensão à figura do Titan Prometeu. Já a partir do fim do século
XIX, com extensão ao longo do século XX, a figura de prometeu entrará em disputa com a metáfora
Fáustica, em que o organismo humano se vê po ssibilitado de superar seus próprios limites físicos,
sensoriais e vitais com as evoluções e desenvolvimentos tecnológicos; não só o corpo pode se
acoplar as máquinas, mas o próprio organismo se torna substituível pela própria possibilidade de se
tornar tecnologia e informação.
O romance Homem-Máquina está nessa interação entre o desejo de se tornar máquina até o
ponto em que isso tragicamente acontece. Após ter perdido completamente seu corpo biônico e
quase ter sido considerado morto, os antigos estagiários de Charles Neumann conseguem preservar
seu cérebro e mantê-lo vivo artificialmente. Seis anos após o incidente com a F uturo Melhor,
Neumann acorda e descobre inacreditavelmente que Lola estava viva e que nada mais restava dele
além de sua consciência digitalizada em uma caixa preta com uma câmera no lugar de olhos.
Neumann demora a entender sua situação e só se conforta quando Lola lhe explica que a caixa pode
ser acoplada com outras tecnologias e mantida em completa atualização. O romance termina com
Lola Shanks dando um braço novo de presente para Charles Neumann.
Esse arremate da história ressoa o seu exato início. Em uma espécie de recordação do
narrador onisciente, que está em um aparente futuro com relação ao tempo da história, Neumann

5
Citado por SHILDRICK, 1996, p. 5-6. Entretanto, esta autora extrapola a fala de Haraway ao considerer que “those
boundaries are never finally secured, not because the claims of the excl uded may become too insi stent to resist, but
because exclusion itself is incomplete. As Derrida has shown, the uncontested belief in full self-presence at the heart
of the logos, cannot be maintened even by the violent hierarchy of the binary […] The monster is always within” (p.6).

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declara sua completa admiração por máquinas desde a infância: “Quando criança, eu queria ser um
trem. Não percebia que isso era incomum [...] O que eu gostava era de fingir que meu corpo era
composto por 200 toneladas de aço, impossível de ser parado. De imaginar que eu era feito de
pistões, válvulas e compressores hidráulicos” (BARRY, 2011, p, 8).
Dessa forma, acredito muito que o romance tangencia tanto as discussões de uma fusão entre
corpos orgânicos e maquínicos quanto a total projeção de que nossa consciência/existência possa
ser completamente digitalizada. Assim, podemos pensar no tema da consciência/inteligência ser
comparada a um software. Segundo Sibilia (2005), o teste de Turing, para definir se uma
inteligência artificial é 'verdadeira', depende da falha em identificar a origem não humana do
pensamento. Somente quando o homem supostamente falha em identificar o limite da máquina com
o humano é que, paradoxalmente, a máquina pode ser considerada, em essência (inteligência),
humana. Em outras palavras, o teste é bem-sucedido quando a variável controle, os humanos,
falham em reconhecer a origem de sua própria essência. O argumento de Turing é que a inteligência
não depende somente de bases materiais orgânicas.
Essa dimensão da inteligência artificial ou da transformação da consciência humana em algo
digital e independente de uma base orgânica para seu desenvolvimento tem emergido fortemente no
cinema dos últimos anos. Filmes como Avatar (2009), Transcendence: A Revolução (2014),
Ex_Machina: Instinto Artificial (2015) e Chappie (2015) modulam exatamente essa tensão: quais os
limites do reconhecimento de uma consciência autêntica e autônoma? Em todos esses filmes o
corpo orgânico é o limite em que as consciências se sobrepõe. Neles também encontramos a
confusão entre organismo biológico e mecânico/digital e a possibilidade de supera- la através da
captura da consciência e capacidade de transferi- la caso seu recipiente se ‘quebre’. A
existência/consciência nesses filmes se transforma em informações codific adas capazes de interação
e comunicação mediada. Algo semelhante ao que acontece com Neumann e suas pernas biônicas
inteligentes, as Contornos.
Penso que a questão não seja o ponto em que o ser humano é considerado limitado. A
deficiência pode ser interpretada como uma metáfora central que sintetiza toda uma suposta
realidade dos impedimentos físicos, cognitivos e sensoriais humanos. Um dos problemas é que
somente determinados modos de existir ou de viver são considerados a base material em que
supostamente a metáfora da limitação humana se assentaria. O que penso mais interessante de se
questionar agora são os modos em que estamos tentando superar essas limitações. Ou seja, o modo

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
como usamos determinadas projeções de futuro onde a falta de limites do ser humano depende de
determinadas contenções de vidas indesejáveis que já existem no presente.
Então, o problema não é somente o modo como pessoas que possuem deficiências são
oprimidas por um discurso metafórico que homogeniza as diferenças corporais que caracterizam o
lastro material em que se assenta a representação identitária, mas também o modo em que essa
opressão depende da própria ideia de que a deficiência é algo a ser extinguido. Talvez seja mais
interessante problematizar e analisar os modos em que propomos fazer o ser humano ilimitado.

Referências
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I Function Therefore Am I? - Disability As A Fiction
Abstract: From the middle of the twentieth century, political and theoretical movements began to
generate other identitarian meanings for the concept of disability in objection to those indicating
defects organically delimited exclusively in the individual bodies. Such political mobilizations
around the redefinition of disability as a social construct operate, fundamentally, at the community
level imagined of social and bodily relations and interactions. Thus, the idea of disability that is
being produced contemporaneously is not exempt from controversial materializations and
designation. In this work I propose an incursion into some theoretical semantics of the term 'fiction'
to explore how disability can be thought and produced in addition to a dichotomo us process
between nature and culture, individual and society. As an argument for analysis, I focus on certain
discourses that refer to the corporeality and behaviors of 'normal' people who seek to voluntarily
become disabled. To explore these issues I start with a cultural analysis of Max Barry's sci- fi work
called Machine-Man which chronicles the voluntary transformation of a scientist into an organo-
mechanical hybrid. Reading this work from a critically disabled perspective makes it possible to
extrapolate certain rigidities of the socio-anthropological debate about fundamentally organic and
functional reality around human bodies.
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Keywords : disability studies; crip theory; fiction; dissident corporealities

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