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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)


Grupo de Trabalho: GT 45 - Entidades religiosas: agenciamentos, materialidades,
fluxos e diásporas
Título do Trabalho: Territórios dos orixás: encruzilhadas multidimensionais
Autores: MSc. Jean Filipe Favaro; Prof. Dra. Hieda Maria Pagliosa Corona
Instituição: Universidade Tecnológica Federal do Paraná campus Pato Branco
RESUMO

No espiritismo afro-brasileiro, os pontos de força – encruzilhadas, cemitérios, praias,


matas, rios, cachoeiras, campinas, etc. – são territórios permeados por complexas e
concentradas relações ecológicas e cosmológicas, onde os deuses e espíritos
habitam e agem. Nestes lugares, actantes humanos se deslocam e acionam
operações cosmopolíticas que promovem conexões e fluxos entre seus anseios,
percepções e sentidos, com os elementos da natureza (minerais, animais, vegetais) e
potências sobrenaturais (orixás) que ali exercem ofícios de jurisdição divina, e
coletivamente, constituem uma orientação religiosa, política e epistêmica destacada
por uma lógica de multiplicidade, na qual não há espaço para separação ontológica
entre sujeito e objeto. Estes territórios são elementares para que religiosos afro-
brasileiros reproduzam e reinventem suas identidades, culturas, cognições,
historicidades, conhecimentos, cosmovisões, práticas e relações de poder. Assim, a
partir de uma etnografia junto ao terreiro Abaça de Oxalá no município de Pato Branco-
PR, seguindo seus actantes porta-vozes, foi efetuada uma cartografia socio-cósmica,
com o objetivo de desvelar a lógica êmica concernente ao complexo de relações
sociais, ecológicas e cosmológicas existentes nos territórios acionados pelos
actantes. Este debate valoriza suas subjetividades e relações de poder em simetria
com as concepções de poder e saber hegemônicas (ANJOS, 2006; LATOUR, 2012).

1.INTRODUÇÃO

Nas religiosidades afro-brasileiras, os pontos de força – encruzilhadas,


estradas, cruzeiros, calungas (cemitérios), calungas grandes (praias), matas (florestas
e bosques), rios, cachoeiras, campinas, mangues, etc. – são territórios permeados por
complexas e concentradas relações ecológicas e cosmológicas, onde actantes1 de
ordem espiritual existem e agem. Estes lugares atuam como grandes metabolismos
sócio-cósmicos, elementares para que religiosos afro-brasileiros reproduzam e
reinventem suas identidades, culturas, cognições, historicidades, conhecimentos,
cosmovisões, práticas e relações de poder (ESCOBAR, 2005).
O território na religiosidade afro-brasileira perpassa desde aspectos
atomizados da sociedade e natureza, tal como o corpo humano, um corpo vegetal (ou
sua parte) ou corpo mineral, bem como, aspectos que envolvem a ecologia destes
corpos em relação com uma diversidade sóciocosmológica, tal como um ponto-de-
força, por exemplo. Em razão da complexidade que envolve cada nível de realidade

1
Termo emprestado da semi-ótica por Latour (2004; 2012), que o emprega como uma denominação
neutra para atores sociais, que são tanto humanos quanto não-humanos (deuses, minerais, máquinas,
animais, vegetais, e diversos seres e coisas que interagem com a sociedade), que nos permite
aceitarmos “como atores completos, entidades que foram explicitamente banidas da existência coletiva
por mais de um século de explicações sociais” (LATOUR, 2012, p.105).
em que o território pode ser analisado, nos detemos neste artigo à análise e discussão
dos territórios pontos-de-força.
Os territórios pontos-de-força são acionados para os adeptos se conectarem
com os orixás e entes espirituais, e são muitos os dispositivos cosmopolíticos2 que
lhes articulam. Os iniciados se deslocam até um ponto-de-força para efetivar trabalhos
diversos, preces, incorporações, oferendas, ebós e coletar materiais litúrgicos (folhas,
raízes, cascas de árvores, flores, pedras, punhados de terras, sementes, água, penas,
etc.). Estes territórios também são acionados pelo nome composto de muitas
divindades (ex. Caboclo Sete Encruzilhadas, Exu dos Rios, Pomba-gira Maria
Molambo da Calunga, Ogum Rompe-Matas, etc.) que guardam os sentidos de
atuações das mesmas, pelos pontos cantados, pontos riscados e preces diversas.
Existe uma rede fundamentada na lógica de uma territorialidade que promove
conexões e fluxos entre humanos, elementos da natureza (minerais, animais,
vegetais) e divindades que são híbridas e exercem ofícios de jurisdição divina, e
assim, coletivamente, constituem uma orientação religiosa, política e epistêmica
alicerçada nas relações da sociedade com o mundo espiritual na qual a natureza é
mediadora e veículo (RAMOS, 2015).
Nos pontos-de-força se aglutinam ricos mananciais de axés, que são os
poderes dos Orixás presentes em todos os componentes tangíveis e intangíveis do
cosmos, cujo modus operandi conecta o mundo biofísico com o espiritual, vivificando
e valorizando todos os actantes acionados pelos religiosos afro-brasileiros (AUGRAS,
1983). Os axés são condensados nos pontos de força de modo estendido em todos
os elementos ali presentes, pelos quais agem como portais onde se pode acessar
com facilidade as esferas espirituais de existência, que recriam o mundo concreto.

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Entendemos a cosmopolítica como as relações entre humanos e não-humanos (espíritos, vegetais,
animais, elementos diversos) configurados num cosmos que “não tem nada a ver com o universo do
qual é feito um objeto da ciência”, a partir das relações entre diferentes e diversos seres, potências
sobrenaturais e mundos, que se conectam e articulam regidas por normativas e jurisdições êmicas,
incitando transformações concretas sobre a realidade em diversos sentidos e direções, multiplicando
diferenças (LATOUR, 2012; STENGERS, 2005).
Assim, a partir da etnografia num terreiro de umbanda trançada e quimbanda
localizado em Pato Branco3-PR, – Abaça de Oxalá4 –, seguimos os actantes porta-
vozes5 desta rede, registrando o que falam e fazem, através da observação
participante, com o objetivo de efetuar uma cartografia socio-cósmica para desvelar a
lógica êmica concernente ao complexo de relações sociais, ecológicas e
cosmológicas existentes nos territórios pontos-de-força acionados pelos actantes.
A Teoria Ator-Rede é empregada como ferramenta teórico-metodológica na
qual é possível descrever a pluralidade de relações ocorrentes nos territórios de um
modo fidedigno aos relatos dos porta-vozes da pesquisa, que foram seguidos pelo
pesquisador, revelando a potência da cosmopolítica afro-brasileira na academia. Os
actantes humanos e não-humanos foram rastreados a partir do contato com o porta-
voz Pai Aldacir no tempo a partir de março de 2016, que permitiu a elaboração de uma
etnografia no local, cujo banco de informações é nutrido até os dias atuais por meio
de diário de campo, conversas informais, notas e fotografias, que foram analisados a
partir da análise de conteúdo seguindo o objetivo visado para engendrar este escrito 6.

3
Atualmente, o município possui 539,029 km² e uma distância de 433,53 km da capital Curitiba, faz
limite com oito municípios: Bom Sucesso do Sul, Clevelândia, Coronel Vivida, Honório Serpa, Itapejara
D´Oeste, Mariópolis, Renascença e Vitorino. Pato Branco possui uma população estimada de 80.710
habitantes, na qual 55.352 se declaram da cor branca, 1.395 se declaram da cor preta, 15.199 se
declaram da cor parda, 348 se declaram da cor amarela e 76 se declaram indígenas. 56.830 indivíduos
que se declaram católicos apostólicos romanos, 12.584 se declaram cristãos protestantes e 478 que
se declaram espíritas kardecistas (IBGE, 2010). Foram identificados um total de 15 templos de
religiosidade afro-brasileira ativos no município, que se identificam como centros espíritas de umbanda,
candomblé e batuque, entre os quais, o Abaça de Oxalá, local onde o presente estudo foi conduzido e
elaborado
4 Foi efetuada uma etnografia no Abaça de Oxalá, que teve seu início em maio de 2016, a partir do

momento em que o pai-de-santo Aldacir, representante do terreiro, confirmou a disponibilidade para


que o templo pelo qual zela, fosse foco de um estudo etnográfico. Este contato se tratou de um segundo
contato, pois tal pai-de-santo já havia sido mobilizado para efetuar o estudo etnobotânico de Favaro
(2015). Deste modo, já haviam arquivos com informações prévias sobre o sacerdote, a estrutura de
seu terreiro, suas práticas religiosas e actantes associados às mesmas.
5 Para que os actantes de determinado grupo e suas inter-relações sejam mapeadas, é necessário que

existam porta-vozes do grupo em questão. Os porta-vozes também são mediadores da rede, que
segundo Latour (2012) “o que entra deles, não define o que sai, mediadores transformam, traduzem,
distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam” (LATOUR, 2012,
p.65).
6 Também são porta-vozes desta pesquisa todos os humanos vinculados à corrente do terreiro (corpo

de membros), que conta com três cambones e seis médiuns de incorporação. Os Orixás do pai-de-
santo e dos médiuns de incorporação enquanto montados em seus cavalos (termo êmico para designar
o médium incorporado) também são concebidos como porta-vozes plenos e reais como afirmam e
fazem ser. Vale ressaltar que foram empregados nomes fictícios para identificação dos actantes
humanos que emergem no decorrer do texto, com excessão do Pai Aldacir e Cambone Iva, pelo fato
de serem representantes no local perante a sociedade civil. Os materiais bibliográficos produzidos por
adeptos da religiosidade afro-brasileira, tal como o autor umbandista Rubens Saraceni (2013) e o autor
quimbandeiro Danilo Coppini (2015) também foram considerados actantes porta-vozes para esta
investigação.
Além desta introdução este artigo é composto por mais cinco seções. As
seções intituladas “O povo da encruzilhada e o deslocamento do axé”, “Calunga: a
encruzilhada da vida e da morte”, “as grandes mães das águas que cruzam o cosmos”
e “Os habitantes das matas”, descrevem as autoridades cósmicas e povos astrais
correlacionados aos territórios das encruzilhadas, calungas (cemitérios), das águas e
das florestas, cada qual com suas singularidades. Nas considerações finais são
mobilizadas reflexões concernentes à rede deslocada nos pontos-de-força, à lógica
das encruzilhadas, sobre os Orixás e pontos-de-força não aprofundados nas
descrições, cruzamentos, qualidades dos Orixás e intolerância religiosa, que são
questões que perpassam o agenciamento territorial dos pontos-de-força.

2.O POVO DA ENCRUZILHADA E O DESLOCAMENTO DO AXÉ

“Ele é capitão da encruzilhada, ele é da ordenança de Ogum! Sua justiça


quem lhe deu foi Omulu, sua coroa quem lhe deu foi Oxalá! Salve o sol, salve
estrela e salve a lua! Saravá Seu Tranca-Ruas, que é dono da gira no meio
da rua”. (Ponto Cantado de Exu Tranca-Ruas)

A encruzilhada é um ponto-de-força que é caracterizado como um espaço físico


onde se cruzam caminhos e estradas, onde habitam e percorrem espíritos de toda
característica. De modo geral, é primordialmente conectada aos mistérios e atuações
de Exu (quando na linha de esquerda/quimbanda) e Ogum (quando na linha de
direita/umbanda). Na mitologia nagô, Exu e Ogum são apresentados trabalhando em
conjunto para que os caminhos sejam abertos em meio às florestas, realçando
também a conexão destes dois Orixás com o ambiente das matas e das encruzilhadas
(AUGRAS, 1983). Pai Aldacir corrobora com esta narrativa em suas liturgias, onde
alega que “onde tem um Exu ou Pomba-gira trabalhando, tem um Ogum fiscalizando.
Por isso que sempre quando arriar trabalhos para a esquerda, tem que firmar Ogum
junto. Ogum é da direita, mas é o general de toda linha de esquerda”. Na relação entre
estes dois Orixás das encruzilhadas, Anjos (2006) afirma que:

Ogum é o começo da intensidade territorial, Exu é o processo que cruza e


constitui esse começo. Se a encruzilhada é um ponto ambíguo na
religiosidade afro-brasileira é certamente porque ali tanto pode ser o começo,
a abertura de um fluxo, quanto o fim de um território existencial (ANJOS,
2006, p.16).
À Exu é destinada a primazia de todos os trabalhos mágico-religiosos, a partir
da agência de Exu em suas relações com a encruzilhada se busca abertura dos
caminhos amorosos, financeiros, e quaisquer realizações subjetivas, tal como afirma
Anjos (2006):

Conseguir um bom emprego ou fazer com que alguém o perca, realizar um


bom casamento, ou mesmo realizar um ritual religioso, tudo pode ser
facilitado se garantir a boa vontade do povo da rua – o Exu –, e o lugar do
Exu são as encruzilhadas (...) Qual é a relação entre o Exu e a intensidade
territorial que caracteriza o cruzamento de avenidas? Nessa cosmologia, o
Exu situa-se no começo de todo processo de agenciamento da subjetividade
afro-brasileira. Qualquer ritual afro-brasileiro tem seu início com um pedido
para que Exu abra os caminhos. Exu é o trickster, é o transportador da
energia vital, aquele que faz a intermediação entre as divindades e os
homens” (ANJOS, 2006, p.17).

A categoria das entidades que carregam a nomenclatura Exu (na qual se inclui
a categoria Pomba-gira como análoga à Exu-mulher) são potências cósmicas
conectadas ao movimento do axé (energia ou força vital), mediadores entre o mundo
social e o mundo cósmico-mítico, estabelecendo conexões entre diferentes caminhos,
lógicas, informações, que independente de quão distante ou assimilares sejam, ao se
encontrarem nas suas encruzilhadas, se cruzam e hibridizam seguindo como
pluralidades de complexas relações (ANJOS, 2006). Sua data votiva é 13 de junho,
seus dias da semana são segunda e sexta-feira, e suas saudações são “Laroyê
Exu/Laroyê Pomba-gira!”, “Exu/Pomba-gira é mojubá!”, “Cobá Exu!”. Suas cores são
o vermelho e preto.
Na tradição seguida no Abaça de Oxalá, o Exu assentado, o Bará da casa, que
por definição significa “O Senhor dos Caminhos”, independente do seu ponto-de-força
matriz7, deve estar conectado às encruzilhadas a partir de sete punhados de terras e
determinados otás (pedras) coletadas na encruzilhada, pois ele deve percorrer todos
os caminhos para trazer ao mundo físico as incumbências que lhe são destinadas,
além de resguardar o local do caminho de todo espírito sem deliberação para se
adentrar os espaços do terreiro. Vale ressaltar que seu assentamento é constituído
de elementos coletados em todos os pontos-de-força acessíveis.

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Por exemplo, se um Exu Caveira, que pertence ao povo da calunga, estiver assentado no terreiro, seu
assentamento deve estar conectado às encruzilhadas, por onde irá agir para efetuar a abertura e fechamento de
fluxos que permeiam o lugar. O mesmo raciocínio segue para todas as entidades espirituais que estiverem
enquadrados na categoria de Exu.
De acordo com Coppini (2015) em sua tradição de quimbanda, existe o reino
das encruzilhadas, que é subdividido em diversos povos que são conectados à tal
território, que são alocados em diferentes tipos de encruzilhadas, que também cruzam
com outros territórios, os quais são: povo da encruzilhada da rua, povo da
encruzilhada de lira, povo da encruzilhada de lomba, povo da encruzilhada dos trilhos,
povo da encruzilhada da mata, povo da encruzilhada da calunga, povo da
encruzilhada da praça, povo da encruzilhada do espaço, povo da encruzilhada da
praia.
Apesar de todos os Exus estarem conectados de modo ou outro às
encruzilhadas, muitos possuem desdobramentos em outros territórios, contudo,
existem diversos Exus que atuam diretamente e especificamente neste ponto-de-
força, muitos são aqueles cujo nome é acompanhado da alcunha de “sete
encruzilhadas”, “encruzilhada”, “estradas”, etc. Assim, temos Exu Rei das Sete
Encruzilhadas e Pomba-gira Rainha das Sete Encruzilhadas, Exu Sete Encruzilhadas
e Pomba-gira das Sete Encruzilhadas, Exu Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas e
Pomba-gira Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, Exu Tranca-tudo, Exu Tranca-gira,
Exu Destranca-ruas, Exu Destranca-tudo, Exu Tiriri das Sete Encruzilhadas, Pomba-
gira Cigana da Estrada, Pomba-gira Cigana da Encruzilhada, Exu Mirim Tranquinha,
Exu Mirim das Sete Encruzilhadas, etc.
Os interlocutores do campo de estudo afirmam que quando uma encruzilhada
é em forma de X, ela pertence aos domínios de Exu, quando é em formato de T, ela
pertence aos domínios de Pomba-gira. Quando um trabalho é efetivado no território
da encruzilhada deve-se pedir licença para os chefes do local, que de acordo com Pai
Aldacir são Ogum, Exu Tranca-Ruas e Pomba-gira Maria Padilha. O quimbandeiro
Danilo Coppini (2015a) alega que os diferentes pontos cardeais de uma encruzilhada
também pertencem à Exus e Pomba-giras específicos, sendo que as encruzilhadas
em X possuem a regência de Exu Rei das Sete Encruzilhadas ao sul, Exu Tiriri ao
norte, Exu Tranca-Ruas à oeste e Exu Destranca-Ruas à leste. Nas encruzilhadas em
T, ao sul pertencem à Pomba-gira Rainha das Sete Encruzilhadas, ao norte Pomba-
gira Maria Molambo, à Oeste Pomba-gira Maria Padilha e à leste Pomba-gira Sete
Saias.
Na linha de direita/umbanda, Ogum singularizado na qualidade de Ogum São
Jorge é expresso como autoridade máxima de toda a encruzilhada. Ogum é sempre
acionado para trabalhar ao lado de Exu, abrindo os caminhos, trazendo segurança
nos rituais e combatendo as demandas (trabalhos de magias destrutivas). Ogum São
Jorge não incorpora nos adeptos, contudo, seus representantes espirituais, soldados
de Ogum, incorporam e tecem relações junto à coroa (cabeça) dos médiuns. Tal como
São Jorge, os soldados de Ogum são retratados iconograficamente pela figura de
soldados romanos. Além de senhor das encruzilhadas, Ogum é concebido como o
senhor do ferro, das armas, da agricultura e da guerra. Sua saudação é “Patacori
Ogum” ou “Ogunhê”, sua data votiva é 23 de Abril, dia de São Jorge, seus dias da
semana são terça e quinta-feira. Suas cores são o vermelho, azul-escuro e branco.
Ogum possui desdobramentos/cruzamentos em todas as territorialidades, onde
seus soldados emergem com variados nomes e com seus cruzamentos também
mantém conexões nas encruzilhadas, contudo, de acordo com os registros
etnográficos, aqueles que são conectados diretamente às encruzilhadas são Ogum
São Jorge, Ogum Matinata, Ogum de Ronda, Ogum Xeroquê (que é um Ogum
cruzado com Exu) e Ogum das Sete Encruzilhadas. Tal como em toda territorialidade
da religiosidade afro-brasileira, também existem Pretos-velhos, Caboclos, Baianos, e
Ciganos que habitam a encruzilhada. Vale ressaltar que a religião de Umbanda foi
institucionalizada oficialmente por ordens do Caboclo das Sete Encruzilhadas por
meio do médium Zélio Fernandinho de Morais dia 15 de novembro de 1908, fato que
reitera a característica da encruzilhada como o início de todo percurso na lógica êmica
da religiosidade afro-brasileira.
É pertinente realçar que os Orixás da categoria Exu e Ogum, sempre estarão
conectados à encruzilhada, mesmo que cruzados noutros territórios, por exemplo,
entidades da calunga como Exus Tranca-ruas das Almas, Maria Padilha das Sete
Catacumbas e Ogum Megê, possuem vínculos com a encruzilhada mas cruzados no
território da calunga (cemitério) onde atuam. Já o Caboclo das Sete Encruzilhadas,
possui vínculos com as matas, mas cruzado no território da encruzilhada onde atua.
Estes cruzamentos de entidades espirituais e territórios se tratam de um dispositivo
que demonstra a lógica pela qual se processa a religiosidade afro-brasileira, a qual
Anjos (2006) nomina como categoria de encruzilhada, que opera de modo similar às
categorias de sincretismo religioso (FERRETTI, 2013) e rizoma (DELEUZE, 1988),
onde os caminhos diferentes se conectam e seguem em pluralidade sem se reduzirem
em unidade. Nesta lógica da encruzilhada, que começa e se cruza com atuação
conjunta de Exu e Ogum, com a flexibilidade que a mesma possibilita, os demais
territórios serão explicitados. É no modelo da encruzilhada que a lógica afro-brasileira
pode ser interpretada (ANJOS, 2006).

3.CALUNGA: A ENCRUZILHADA DA VIDA E DA MORTE

A calunga se trata de um ponto-de-força muito estimado pelos Orixás do Pai


Aldacir, no qual os consulentes e filhos-de-santo efetuam trabalhos quando
ensinados, de acordo com os interlocutores, o local apesar do imaginário horrendo
que evoca, para os integrantes da religião é um dos pontos-de-força mais importantes
e potentes para que as práticas mágico-religiosas sejam consolidadas. O território da
calunga é uma encruzilhada entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, nele se
encontra uma poderosa força da natureza, que é a força da própria morte, que é
retroalimentada pelos pensamentos, preces e libações das pessoas das mais diversas
cosmovisões, religiosidades e tradições que nele buscam a continuidade entre o
mundo físico com outros tempos e espaços de dimensões sobrenaturais. Quando a
força da morte é acionada pelos feiticeiros afro-brasileiros no ponto de força da
calunga, ela pode ser manejada para objetivos benéficos ou maléficos, de acordo com
os baluartes morais que dirigem o operador mágico-religioso, tal como afirma Pai
Aldacir:

A calunga para nós da religião é um ponto de força que pode ser usado tanto
para o bem quanto para o mal, o que vale é que vai buscar. Mas lá tudo se
termina, depende do ponto de vista, nós espiritualistas vemos nela um ponto
de força muito grande, mas vai depender do que você quer, lá tem te
esperando o bem e mal, vai muito do seu pensamento, do que você vai buscar
(Pai Aldacir, 2017).

Entretanto, no período de 2018 até metade de 2019, a utilização deste ponto-


de-força tem sido cada vez mais cautelosa e substituída pelo território das matas, pelo
fato de que membros do terreiro e o próprio sacerdote serem intimidados e agredidos
pelos coveiros e população adjacente do município que se sentem ameaçados pelas
práticas religiosas afro-brasileiras. Apesar destes eventos e as medidas de precaução,
que muitas vezes culminam na substituição do território da calunga pelo território das
matas, a resistência se mantém, e a calunga não deixa de ser utilizada, contudo, é
recomendado que os rituais sejam elaborados em acompanhamento de outros
adeptos, em horários onde os coveiros não estejam em jornada de trabalho, evitando
acender velas à vista de qualquer público.
No cemitério habita todo o povo da calunga, também chamados de linha das
almas e do cruzeiro das almas no Abaça de Oxalá. De acordo com Coppini (2015), os
povos que constituem o reino da calunga na linha de quimbanda como um todo são:
povo das portas da calunga, povo das catacumbas, povo das catacumbas, povo do
forno, povo das caveiras, povo da calunga das matas, povo da lomba e povo das
covas.
Dentre as características que realçam os aspectos genéricos deste povo, é que
se mostram como exímios curandeiros, que atuam para remoção de toda sorte de
enfermidades que abatem os seres humanos. De acordo com o Pai Aldacir, para
efetuar trabalhos no território da calunga se deve pedir licença à Exu Caveira e
Obaluaê ao adentrar o local, que são autoridades máximas do território. Entre os
Orixás que constituem o território calunga, na linha de umbanda foram registrados
Obaluaê/Omulu, Ogum Megê, Iansã de Balé, e toda a linha de Preto-velho (Pai
Benedito das Almas, Pai Cipriano das Almas, Pai Guiné, Vovó Maria Conga, Vovó
Maria, etc.), e na linha de quimbanda estão presentes Exu Rei Omulu, Exu Caveira,
Exu Tatá Caveira, Exu João Caveira, Exu Sete Catacumbas, Exu Sete Cruzes, Exu
Capa Preta das Almas, Exu Tranca-Rua das Almas, Exu Sete Covas (geralmente
quando este Exu é mobilizado, também é solicitado que trabalhe em conjunto com os
nove anjos da solidão), Exu Sete Mortuários, Exu Corcunda, Exu Calunga, Pomba-
gira Rainha da Calunga, Pomba-gira Rosa-Caveira, Pomba-gira Maria Padilha (das
Almas, do Cruzeiro e das Sete Catacumbas), Pomba-gira Maria Molambo (das Almas
e das Sete Catacumbas), Pomba-gira Sete Sepulturas, Exu Mirim Caveirinha, Exu
Mirim Calunguinha, Pomba-gira Mirim Rosinha-caveira. Também são cultuados os
Eguns ou Almas, que podem possuir nomes coletivos ou individuais, tais como Almas
Sabidas e Entendidas, Almas Ricas e Milionárias (ou Eguns de riqueza), Almas Santas
e Benditas, Almas Sedentas e Famintas, Treze Almas Aflitas, Maria Bueno, Menina
Milagrosa, dentre outras.
No Abaça de Oxalá Obaluaê e Omulu são concebidos como desdobramentos
diferentes do mesmo Orixá, sendo que Obaluaê rege o território de trás do cruzeiro
das almas na calunga e Omulu rege o território da frente do cruzeiro das almas na
calunga. De todo o modo, é o Orixá de mais alta hierarquia na linha das almas/da
calunga/do cruzeiro, e temido e respeitado por humanos e Orixás. Os búzios são
associados por excelência à Obaluaê e sua mãe Nanã Buruque, e se encontram em
proporções abundantes dentro de seu assentamento, pois, de acordo com a
cosmologia nagô estes objetos são relacionados à morte (por estarem vazios) e à vida
(por se assimilarem à genitália feminina), que são atributos de ambos os Orixás
(AUGRAS, 1983). Suas cores são principalmente o branco e o preto em conjunto, que
segundo Augras (1983) também conectam a dicotomia vida e morte, porém também
é cultuado com o amarelo e roxo em razão da sua atuação na linha das Almas.
Quando acionado em trabalhos de defesa é cultuado com as cores vermelhas,
ou vermelhas e pretas em conjunto, em razão de seu vínculo com a linha da esquerda.
É dito que é filho de Nanã Buruquê e foi rejeitado e abandonado pela mãe em razão
das chagas que continha em sua pele, posteriormente, foi adotado e criado por
Yemanjá8. Em razão deste acontecimento, Obaluaê age com proficiência tanto no
ponto de força da calunga pequena (cemitério) quanto na calunga grande (praia e
mar), assim, seu alimento predileto, as pipocas, devem ser estouradas em conjunto à
uma pequena porção de areia da praia.
Uma consulente que frequenta habitualmente as giras abertas, estava com
alguns problemas relacionados à saúde física, em certa data informou ao Exu Caveira
do Pai Aldacir que havia sonhado que estava numa praia com água suja, cujo nível
da água subia constantemente até ela se afogar naquela água pútrida, então uma
força lhe empunhou à superfície, e enxergava alguns metros diante de si um homem
velho, branco, de barbas longas, e com semblante extremamente sério, com um
manto e capuz das cores roxas, e lhe disse que era Omulu. Exu Caveira explicitou
que Omolu estava solicitando um ritual de “grande limpeza” na praia, acionando a
força de Omulu, Yemanjá, Exu do Lodo e todo o povo do mar. O fato do Orixá se
manifestar como um homem branco com longas barbas se deu porque “Omulu
também é São Lazaro [...] o Orixá se apresenta da forma que ele quiser” (Exu Caveira
do Pai Aldacir, 2016). Após o relato, foram receitados alguns trabalhos para a
consulente efetivar mobilizando este Orixá até a oportunidade de adentrar o território
da calunga grande.
A categoria de espíritos nominados genericamente enquanto Almas, são
agrupamentos de espíritos intercessores e dinâmicos que atuam com identidade
coletiva (AUGRAS, 2012). São concebidos como mediadores altamente eficazes e

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Narrativas similares também são retratadas por Augras (1981) e Verger (1981).
rápidos para concretização de atividades mágicas e são imprescindíveis no processo
de limpeza energética dos consulentes e dos filhos-de-santo. Tais espíritos são
regidos por Baba-egun, seu dia de culto é na segunda-feira. As Almas que foram
possíveis de observar em mobilização durante os discursos dos Exus do Pai Aldacir
solicitando aos indivíduos que “devem pagar as Almas”, ou, “despachar as Almas”.
Tal como os Orixás, as Almas atuam mediante um regime de permutas, maioria das
libações às Almas receitadas pelos Exus do Pai Aldacir devem ser realizadas no
cruzeiro das Almas da calunga, ou nas matas, de preferência junto à uma árvore seca,
pois, árvores secas, assim como os limoeiros e figueiras, são pontos-de-força para
ativar o poder dos mortos. Também há vezes em que é solicitado ao consulente em
efetuar a libação em árvores secas existentes nas calungas. Quando o consulente é
informado que deve “despachar as Almas”, significa que alguma categoria destes
espíritos, ou algum agrupamento de eguns sem identidades, está perturbando este
ser humano em alguma dimensão de sua vida.
Quando o egun é mal-intencionado de modo consciente e premeditado, ele é
categorizado como uma kiumba, isto é, um espírito maligno, alma maldita, ou como
pronunciado muitas vezes, um espírito “obsessor”. Estas duas categorias de espíritos
são interpretados como entes perigosos que podem danificar a vida dos médiuns
descuidados. O mundo espiritual é concebido como um território repleto de perigos,
com o qual os iniciados estão constantemente vinculados, destarte, um médium
umbandista deve estar constantemente zelando com regularidade de suas proteções
espirituais por meio das atividades requeridas pelas normativas religiosas, tais como,
a agencia de ervas para banhos e defumações e libações para seus próprios Orixás
e para o Exu Tranca-Ruas das Almas, Exu Caveira, Exu Sete Catacumbas, Ogum
Megê, Obaluaê e Iansã de Balé, que são Orixás de grande autoridade do povo da
calunga. Vale ressaltar que os interlocutores relatam que todos os Exus e Pombo-
giras da calunga comandam legiões de Eguns, que são incumbidos pelos Exus para
efetuarem as tarefas que necessitam.

4.AS GRANDES MÃES DAS ÁGUAS QUE PERCORREM O COSMOS

De acordo com os registros dos diários de campo, foi percebido que o povo das
Águas é composto por espíritos que atuam na esfera emocional dos seres humanos
em suas diferentes polaridades, é regida por Yemanjá, a mãe de todos os Orixás. Os
pontos-de-força onde este povo se agrega são todos aqueles onde existe água em
seu modo natural de manifestação, tais como os mares, os rios, os mangues, as
fontes, os lagos, os pântanos, os aquíferos, dentre outros. São três as Orixás que são
expressivas neste povo, que são as Iabás, que se conectam à água disposta em
diferentes territórios ou estados, as quais são Yemanjá (regente dos mares e
oceanos), Oxum (regente dos rios e cachoeiras) e Nanã Buruquê (regente das águas
lodosas, pantanosas e subterrâneas). Os demais Orixás que compõem o povo das
Águas sempre estão submetidos as deliberações destas quatro grandes mães.
O território de praia, de Yemanjá, se trata de uma calunga grande, e assim, a
linha das Almas pode ser acionada com eficácia em seus domínios. Vale ressaltar que
Nanã Buruquê e entidades do povo do lodo também atuam no território da calunga
por possuírem estreitas ligações com as almas desencarnadas e com a própria morte.
Yemanjá é concebida como esposa de Oxalá e mãe de todos os Orixás, mares
e oceanos. É correlacionada à graciosidade, maternidade, bem-estar mental e
prosperidade. Tal como Oxum, é cultuada com pentes, espelhos e adornos diversos
(BERKENBROCK, 1997). Suas cores são o azul-claro, branco e rosa. Sua saudação
é Odoyá (Odò Ìyá) que significa “Mãe do rio”. Sua data votiva é 02 de fevereiro.
Apresenta fortes associações com as outras Iabás, Ogum e Oxalá.
Oxum absorve quase todas as características de Yemanjá, é concebida como
a mãe de todos os rios, cachoeiras, da fertilidade e da riqueza, pois é dos rios que
emerge o ouro. É muito requisitada em trabalhos mágico-religiosos de dimensão
amorosa e abertura de caminhos nas finanças. É cultuada com cores brancas, azuis-
clara, amarela e rosa. Sua saudação é “Ora iê iê o”. Tal como Yemanjá, Oxum também
rainha e símbolo do feminino e do poder gerador. Ela é regente da gravidez, destarte,
também é conectada ao sangue menstrual. Todos os metais amarelos pertencem a
ela, principalmente o ouro e o cobre. Todas as mulheres durante o tempo de
fecundidade estão sob a regência de Oxum, assim como as mulheres grávidas,
crianças e pássaros e peixes (BERCKENBROCK, 1997; CARNEIRO, 2008; SANTOS,
2017).
Nanã Buruquê é a Orixá das águas lodosas, pantanosas, subterrâneas e
abissais, sempre onde há lama, existe a associação com Nanã, também é identificada
com os dias chuvosos. Recebe os títulos de avó de todos os Orixás e Orixá mais
velha. É mãe de Omulu/Obaluaê e possui indissociáveis vínculos com os processos
do nascimento e da morte, destarte, seus domínios se estendem dubiamente com
proficiência nas linhas da direita e da esquerda na linha das Almas e das Águas. Atua
em conjunto com as demais Iabás, com Oxalá e Omulu/Obaluaê e com os Pretos-
velhos em geral. As cores de seus adornos e velas são brancas, azuis-clara e o roxas.
Sua data votiva é 26 de julho e sua saudação é “Saluba!”.
Além das Iabás e entidades supracitadas, os habitantes das águas que foram
mobilizados no terreiro investigado na linha de direita/umbanda foram Ogum Beira-
mar, Ogum Iara, Cabocla Iara e Ogum Sete Ondas, Xangô das Sete Cachoeiras,
Oxumarê e Obá. Na linha de esquerda/quimbanda foram Exu Maré, Exu dos Rios,
Pomba-gira dos Rios, Exu do Lodo, Exu do Lodo do Inferno, Pomba-gira do Lodo,
Pomba-gira Maria Molambo do Lodo, Exu Tranca-Ruas do Lodo, Exu Tranca-Ruas da
Beira-mar e Exu Mirim Lodinho.
De acordo com Coppini (2015) os Exus e Pomba-giras que atuam no que
identificamos como povo das águas pertencem ao reino da praia/calunga grande, que
está subdividido em: povo dos rios, povo das cachoeiras, povo das pedras costeiras,
povo dos marinheiros, povo dos piratas, povo do lodo, povo do mar, povo da ilha, povo
das ondas, povo dos ventos e povo das profundezas. Os Exus do Pai Aldacir em
diferentes momentos alegaram que em cada lugar e nível das praias e dos oceanos,
tem um desdobramento de Yemanjá que lhe rege (praia, beira-mar, sete ondas, e nos
diferentes estratos oceânicos). As explanações cosmológicas e doutrinárias elucidam
que conforme o nível do mar se mostra mais profundo, as qualidades de Yemanjá
também modificam conforme o lugar em questão e, é dito, que nas profundidades
abissais do oceano habitam as Yemanjás que são “mais rabugentas” e idosas, com
quais se deve ter muito cuidado em acionar suas forças, pois são “feiticeiras da
pesada”. Estas Yemanjás feiticeiras trabalham em conjunto com Nanã Buruquê
(desdobrada na linha de esquerda) e Exu do Lodo.
Todos os Orixás do povo das Águas, podem ser mobilizados em beiras de rios,
praias e cachoeiras, que são os pontos de força mais acessíveis para lhes acionar.
Muitos materiais que são carregados de energias indesejáveis são lançados nas
águas correntes para que seja dissipada a negatividade. Eliade (1992) ao discutir o
simbolismo aquático nas diversas cosmologias, aponta um caráter purificador e
regenerador, no local investigado se observa estas características no que diz respeito
aos trabalhos mágico-religiosos efetuados com utilização das águas. Destarte, é
comum que Pai Aldacir tenha seus reservatórios de águas de rios, fontes e de mares
para abastecer semanalmente as quartinhas das Iabás e também para efetuar
trabalhos de limpeza com os consulentes, nos quais, estas águas são despejadas
sobre a cabeça e corpo do indivíduo para desmanchar os fluídos energéticos
negativos que condensam em sua aura (espécie de corpo energético), em conjunto
com baforadas de charuto, rezas e folhas (algumas vezes). Entre as demais atuações
genéricas destes espíritos, eles se mostram salientes para resolução de situações
amorosas e distúrbios emocionais.

5.NOS DOMÍNIOS DE OXÓSSI

A linha das Matas é associada aos domínios do Caboclo Oxóssi, nela todos os
Caboclos estão conectados (apesar dos entrecruzamentos que podem apresentar).
As matas não estão circunscritas aos Orixás da linha das Matas, pois elas também
são concebidas como calungas, ou “calunguinha” tal como já mencionou o Exu
Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas do Pai Aldacir. Destarte, o povo da calunga pode
ser acionado com eficácia neste ponto-de-força. Algumas vezes o território das matas
é preferível que o território da calunga para acionar as forças calunga, pois se trata de
um lugar reservado da exposição pública, sem riscos de constrangimentos e quizilas.
Coppini (2015a) corrobora com a afirmação do Exu Tranca-Ruas do Pai Aldacir,
alegando que as matas também são cemitérios/calungas, pois nelas o processo de
morte e decomposição de diversos elementos, animais e até mesmo seres humanos
(tais como os variados cemitérios indígenas que já existiram e existem em meio às
matas densas) é constante (COPPINI, 2015). Tal como as encruzilhadas, cemitérios
e cruzeiros, as matas são pontos onde caminhos se cruzam e, nelas, as vias da vida
e da morte são retroalimentadas por interações complexas e multiformes (ANJOS,
2006).
O autor umbandista Rubens Saraceni (2013, p.214) alega que “um culto
realizado nas matas fecha aberturas na aura, sutiliza o magnetismo mental e purifica
os órgãos etéricos do corpo energético (espírito) das pessoas, expandindo seu campo
áurico”. Neste sentido, entre as habilidades dos Orixás das linhas das matas que são
mais realçadas, são suas faculdades medicinais, pois são exímios curandeiros e
também suas facilidades para emergirem prosperidade financeira na vida de quem
solicita. São conhecedores da medicina mágica, dos poderes das plantas, das rezas
e dos segredos da floresta, são indígenas valentes, ágeis e espertos, retratam os
“legítimos donos da terra”. (CARNEIRO, 2008). Para Coppini (2015), na linha de
quimbanda o reino das matas está subdividido em: povo das árvores, povo dos
parques, povo da mata da praia, povo das campinas, povo das serranias, povo das
minas, povo das cobras, povo das panteras, povo das flores e povo das raízes.
Oxóssi é o Caboclo de mais alta hierarquia dentro do panteão umbandista
investigado e democratiza suas qualidades e atributos com sua falange. Muito
requisitado para trabalhos que envolvem prosperidade financeira e abertura de
caminhos em geral. Suas cores são o azul-claro, o verde e o branco. Oxóssi é o Orixá
Rei da Floresta (Oba Igbó), Senhor da Caça (Olode), Rei de Kêtu (Alákétu) e Orixá
padroeiro de todos os caçadores. Sua saudação é “Oke Aro!”. Este Orixá aprendeu
todos os segredos das plantas com Ossaim, vivendo junto a ele nas matas por conta
de um feitiço de Ossaim do qual foi vítima, destarte, Oxóssi se tornou conhecedor do
poder vegetal em simetria com Ossaim, característica que conduz à concepção de
que ele é o guardião das florestas, salvaguarda o acesso a elas, como guardião,
dificulta a entrada dos incautos neste ambiente. Diante de tal associação estreita com
o reino vegetal, alguns adeptos afirmam que as plantas de Oxóssi são compatíveis
com todos os demais Orixás (AUGRAS 1983; VERGER, 1981).
Na mitologia nagô, Exu, Ogum e Oxóssi são filhos de Yemanjá, os três
possuem vínculos indissociáveis com o reino das matas, pois as narrativas
demonstram que enquanto Ogum e Exu abrem os caminhos em meio às florestas
fechadas, Oxóssi, com grande estratégia, paciência e agilidade caça o alimento para
garantir subsistência a toda comunidade (AUGRAS, 1983). Pode-se dizer que Exu e
Ogum são aqueles que desbravam os caminhos dos adeptos, cortando as demandas
e superando os obstáculos, e Oxóssi nutre o sentido dos que transitam nos caminhos
da rede da umbanda, por isto também é associado à prosperidade.
As Caboclas e Caboclos em geral são concebidos como espíritos de ancestrais
indígenas ou indígenas mestiços (tais como os Caboclos Boiadeiros). Estes entes
espirituais já eram cultuados em Candomblés de Caboclo, Catimbós Juremeiros e nas
Macumbas cariocas antes da difusão do culto umbandista. Suas presenças são
identificadas nas mais variadas morfologias de cultos afro-brasileiros, contudo, para a
religião umbandista são actantes fundamentais para a existência do culto. No Abaça
de Oxalá sazonalmente os Caboclos incorporam nas giras, ao início das mesmas,
durante as “gira de direita”, que ocorrem antes das “giras de esquerda”. Suas
linguagens expressam um português arcaico e supostos termos tupis-guaranis.
Recebem em suas oferendas toda variedade de frutas e flores. São saudados com a
saudação “Okê Caboclo”, que significa “Salve o Caboclo que grita” (CARNEIRO,
2008;). De todo o modo, sempre são estimados mentores para os terreiros
umbandistas em geral, sendo que muitas vezes, é um Caboclo o guia espiritual
patrono do local de culto (CUMINO, 2010).
As entidades espirituais fortemente vinculadas ao reino das matas observadas
em movimento além dos Orixás supracitados, são: Caboclo Guaraci, Caboclo Sete
Flechas, Caboclo Pena Branca, Cabocla Jurema, Ogum Rompe-Matas na linha de
direita/umbanda. Exu Cobra-Coral, Exu Cobra, Exu Pantera-negra, Pomba-gira Maria
das Cobras, Exu Marabô das Matas, Exu Pantera Negra, Exu das Matas e Pomba-
gira das Matas na linha de esquerda/quimbanda, muitas vezes nominados de
Caboclos Quimbandeiros.
Os terreiros de nação jêje-nagô que resistiram com seus espaços de florestas
selvagens, ou que possuem poderes aquisitivos para desfrutarem de um local deste
porte, organizam seus espaços em duas estruturas distintas e inter-relacionadas: um
espaço civilizado e de ordem, e um espaço selvagem, que integra em si uma
atmosfera de mistério e temor, que significa a origem e o destino de todas as coisas,
nos constantes processos de vida e morte dinamizados na variedade biológica que
compõe estes espaços, habitados por uma diversidade de espécies botânicas, que
podem ser coletadas para procedimentos rituais. Tal espaço é consagrado aos Orixás
que possuem vínculo com o ambiente florestal: Exu, Ossaim, Ogum, Oxóssi e Iroko
(BERKENBROCK, 1997). Segundo Serra et al. (2002), tal característica tem auxiliado
na conservação de recursos florísticos e riqueza paisagística de algumas cidades
onde pesquisas etnodirigidas foram efetuadas, como por exemplo, em Salvador e
Região Metropolitana, pelo fato de que os espaços sagrados, ligados a seres
supernaturais, não são rendidos à lógica de aceleração e ocupação irresponsável do
território, requerida pela racionalidade dominante.

6.CONSIDERAÇÕES FINAIS

As descrições das relações entre Orixá e território ponto-de-força possibilitam


mobilizar sentidos, imaginário, saberes, liturgias, tempos (calendários votivos
semanais, anuais ou lunares), cores, populações espirituais de especialidades de
atuações, a linha de quimbanda, a linha de umbanda, elementos da natureza, dentre
outros. Muitos são os interessamentos que conduzem a reunião dos actantes para
participarem da existência junto ao ponto-de-força. A religiosidade afro-brasileira
analisada se mostra como uma rede que é manifesta como um organismo de
associações onde os diferentes territórios pontos-de-força, seus actantes e elementos
litúrgicos “estão ligados direta ou indiretamente ao funcionamento de todo” (SANTOS,
2017, p.13). Assim, a ilustração das potências cósmicas (Orixás, povos, linhas, eguns)
agregadas aos territórios enunciados tomou o centro das observações concernentes
à toda rede de política cósmica acionada pelos atores-rede. Os reinos, linhas, povos,
cruzamentos, assentamentos, etc., são partes de noções êmicas onde os religiosos
afro-brasileiros constroem (junto aos seus deuses) uma cartografia sociocósmica,
desvelando também aspectos de suas lideranças e governanças de nível cósmico e
modos de conexões que são tecidos com os mesmos (ANJOS, 2006).
A partir da encruzilhada como modelo no qual se cruzam diferentes caminhos
(caminhos amorosos, financeiros, da saúde, caminhos da vida em geral), divindades,
lógicas, formas (divindades com devires animais, vegetais, minerais, territoriais,
dentre outros, como Exu Morcego, Pomba-gira do Lodo, Exu Sete Encruzilhadas, por
exemplo), dentre outras dimensões, que “não se fundem numa unidade, mas seguem
como pluralidades” (ANJOS, 2006, p.21), se torna possível identificar a lógica êmica
associada aos territórios pontos-de-força, pois, todos eles, cada qual com sua
idiossincrasia, são encruzilhadas multidimensionais, onde agem cruzamentos das
mais diversas formas e características, singulares aos intentos subjetivos daquele que
está buscando ação dos espíritos neles.
Existem pontos-de-força muito utilizados pelos mais diversos religiosos afro-
brasileiros que não foram enfatizados, tais como os jardins floridos, as pedreiras, as
montanhas, as campinas, as cavernas, dentre outros, pelo fato de não se tratarem de
locais de acesso frequente pelos porta-vozes seguidos. Deste modo, alguns Orixás
muito cultuados associados a tais pontos-de-força não foram descritos, tal como
Xangô e Iansã, cultuados geralmente em montanhas, pedreiras, praias, cachoeiras e
matas, Oxalá e os Ibeji, cultuados nas campinas e jardins floridos. Assim, é pertinente
salientar que apesar de não descritos na mesma profundidade de outras potências
cósmicas associadas aos pontos-de-força apresentados, estas divindades são
basilares para manutenção do culto no Abaça de Oxalá. Também vale ressaltar que
existem muitas entidades e categorias de entidades que permeiam os territórios
averiguados que não foram mencionados, em razão da grande diversidade
inexprimível.
É interessante a perspectiva de que cada extrato de determinado ponto-de-
força, tal como as praias e seus espaços (praia, mar, ondas, lodo, etc.), por exemplo,
detém regências cósmicas diferenciadas, que podem ser as mesmas, porém noutra
qualidade/desdobramento, também chamados algumas vezes de cruzamentos ou
passagens. A questão das qualidades de um mesmo Orixá associadas a diversos
pontos-de-força ou situações concomitantemente é deveras complexa e requer
descrições e análises mais amplas para além das breves explanações possíveis de
evocar neste artigo.
O fato de existirem eventos de intolerância religiosa no agenciamento de
territórios como as encruzilhadas e calungas revela o embate entre uma cosmovisão
dominante e hegemônica com a (r)existência dos Orixás, os quais também governam
estes lugares. Descrever a cosmologia atrelada aos pontos-de-força visibiliza as
lideranças ocultas no astral, elucidando suas participações junto à sociedade e
natureza, que permite maior valorização, compreensão e respeito para esta magnífica
forma de ser e operar no cosmos.

Referências Bibliográficas

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