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Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus - Migalhas Contratuais 29/03/2020 19:41

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! / COLUNA / MIGALHAS CONTRATUAIS

Resolução contratual nos tempos do novo


coronavírus
COORDENAÇÃO
A N D E R S O N S C H R E I B E R , EVE R I L DA B R A N DÃO, F L ÁVI O TA RTU C E , G U STAVO H E N R I Q U E
B A PT I STA A N D R A D E , PA B LO M A L H E I R O S DA CU N H A F R OTA

Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus.

QUARTA-FEIRA, 25/3/2020

%6 ! " # $ "

Texto de autoria de Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia Silva

As alarmantes proporções da pandemia da COVID-19, causada pelo novo coronavírus


(variante SARS-CoV-2), seguem assustando a sociedade mundial e impõem desafios
crescentes aos instrumentos disponíveis nos mais diversos setores sociais para lidar
com a crise. Contribuíram para a ampla conscientização acerca da gravidade das
circunstâncias os anúncios da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto à
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII, o mais alto nível
de alerta da OMS), em 30 de janeiro de 2020, e quanto à classificação da COVID-19
como pandemia, em 11 de março de 2020, bem como os sucessivos atos normativos,
mundo afora, que instituíram restrições das mais diversas ordens.

Em boa hora, o saber científico volta a ser valorizado, enquanto as atenções de todo
o mundo se voltam aos esforços da comunidade acadêmica, nos mais diversos
campos do conhecimento humano, em prol do desenvolvimento de instrumentos
para administrar os impactos da pandemia. Esse imprescindível empenho não se
limita às ciências da natureza, estendendo-se, sem dúvida, também às
humanidades. Particularmente na esfera jurídica, entram em pauta discussões
prementes, que convidam o intérprete a revisitar os fundamentos dos mais
tradicionais setores. Em matéria contratual, por exemplo, debatem-se temas da

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ordem do dia, como a repressão à elevação abusiva de preços por produtos


essenciais cuja procura disparou diante da crise atual1, os dilemas que ameaçam a
atividade empresarial de lojistas (em particular, os locatários de pontos comerciais
em shopping centers)2, bem como a busca pela manutenção do equilíbrio atuarial
dos seguros de saúde em cotejo com a cobertura de novos exames e novos
tratamentos em benefício dos segurados3.

Como sói acontecer diante de um evento fático dessa magnitude, com tantos
impactos na vida quotidiana, uma das reações mais imediatas da doutrina costuma
ser a de propor possíveis qualificações jurídicas para a crise, de modo a atrair a
incidência da normativa que parece ser mais adequada a administrá-la. O empenho
subjacente à pluralidade de proposições pode, contudo, ser prejudicial (em vez de
benéfico), caso não seja acompanhado do devido respeito aos fundamentos e
requisitos próprios de cada instituto. Sem dúvida, o novo coronavírus representa
uma novidade fática, porém não inovou na ordem jurídica: as categorias normativas
continuam sendo as mesmas de sempre – e, ao menos no campo estrito do direito
privado, não parece conveniente a edição de leis de afogadilho, fomentadas pela
incerteza e pela ansiedade generalizadas causadas pela pandemia. Cabe ao
intérprete, assim, à semelhança do criterioso trabalho desempenhado pelos
cientistas de outras áreas, manejar os instrumentos jurídicos com técnica e
segurança, sempre com vistas a promover estabilidade (e não a agravar as
incertezas ínsitas ao momento).

Nesse cenário, uma discussão da maior relevância para o momento atual (e que
despertou a imediata atenção da doutrina) diz respeito às possíveis repercussões da
pandemia sobre as hipóteses de resolução contratual. Com efeito, o impacto da
COVID-19 sobre os negócios em todo o mundo rapidamente remete a categorias
clássicas do direito civil voltadas a flexibilizar a força vinculante dos pactos diante de
bruscas alterações das circunstâncias, motivadas for fatores imprevisíveis e, ao
menos no curto prazo, insuperáveis. É preciso, porém, proceder com cautela, de
modo a se evitarem soluções que, no ímpeto de responderem à crise, forcem a
subsunção da pandemia a modelos normativos que não a comportam
efetivamente4. A enunciação de alguns exemplos práticos (em particular, de
contratos de execução diferida ou a trato sucessivo, naturalmente mais suscetíveis
às mudanças de cenário global) permitirá, nessa direção, ponderar quando e em que
medida o recurso a institutos autorizadores da resolução contratual mostra-se
tecnicamente adequado.

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Em um primeiro grupo de hipóteses fáticas, pense-se nas numerosas situações em


que atos normativos formais estabelecem a suspensão temporária da prática de
certas atividades. Assim tem ocorrido, por exemplo, com os cinemas, teatros, casas
de espetáculos, estádios, todos eles impedidos de abrirem as portas por diversos
entes federativos, no intuito de se evitar a formação de aglomerações e, com isso,
conter-se a difusão do novo coronavírus. A dúvida, nesse caso, acerca da solução a
ser oferecida aos bilhetes comprados com antecedência é inevitável. Situação
semelhante se verifica nos meios de transporte cuja operação tenha sido suspensa,
como ocorreu, a título puramente ilustrativo, na recente proibição da circulação de
carros de aplicativos e de ônibus de linhas intermunicipais entre a cidade do Rio de
Janeiro e o restante da Região Metropolitana do Estado. Essas hipóteses têm uma
relevante circunstância em comum: um ato estatal inviabilizou o cumprimento da
prestação a cargo de algum dos contratantes – o cinema não pode reproduzir o
filme, a arena não pode abrigar o show, o transportador não pode conduzir o
passageiro e assim por diante.

Em um segundo grupo de hipóteses fáticas, pense-se nas também numerosas


situações em que, a despeito da ausência de norma ou de ato estatal que inviabilize
a execução do contrato, um dos contratantes perde por completo o interesse
originário na prestação que incumbia à contraparte, em razão dos riscos suscitados
pela difusão da COVID-19. Essa é, por exemplo, a situação dos passageiros de
transporte aéreo (doméstico ou internacional) que, por imperativo de segurança,
optam por não realizar as viagens, a despeito de o embarque não ter sido proibido e
de as fronteiras do local de destino não terem sido formalmente fechadas pelas
autoridades públicas competentes. Em situação similar estão os consumidores que
haviam reservado hospedagem em hotéis ou contratado pacotes turísticos e que,
com a disseminação da doença, acabaram decidindo por não desfrutar de tais
serviços, visando à prevenção contra uma possível contaminação pelo novo
coronavírus. Tais hipóteses apresentam, em comum, a circunstância de o contexto
fático de difusão da pandemia (e não um óbice jurídico criado pelo Poder Público)
inviabilizar que a prestação a cargo de algum dos contratantes produza a utilidade
que originariamente dela se esperava.

Por fim, em um terceiro grupo, cogite-se do agravamento do sacrifício econômico


originalmente imposto pelo contrato a um dos contratantes, diante do cenário de
difusão da COVID-19. Aqui, o óbice à execução do acordo não vem nem da atuação
estatal, nem da perda de interesse na prestação, mas sim de um grave desequilíbrio
do sinalagma originário, de modo que a contraprestação a que fazia jus um dos
contratantes não mais compensa, economicamente, a prestação a que ele próprio

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se obrigou. Pensando-se na situação das companhias aéreas, por exemplo, inúmeras


razões podem levar ao agravamento do sacrifício econômico decorrente do
cumprimento dos contratos de transporte já firmados antes do advento da crise: o
aumento global dos custos a fim de atender às mais atuais demandas de
higienização e prevenção à disseminação do novo coronavírus; o agravamento do
equilíbrio global projetado pela companhia, na medida em que o desfazimento do
contrato por variados passageiros finda por impor à transportadora a realização dos
custos globais sem a contrapartida que adviria da quantidade inicialmente esperada
de passageiros; e assim por diante.

Apesar da diversidade subjacente a esses grupos de hipóteses fáticas, verifica-se


uma forte tendência doutrinária a centralizar o debate em torno de uma alegada
ausência de responsabilidade do devedor em razão da configuração de caso fortuito
ou força maior. Embora compreensível, diante da tradicional conceituação de tais
figuras (associadas a eventos imprevisíveis e inevitáveis, dos quais a pandemia logo
se afigura como um provável bom exemplo), essa tendência ignora que, em rigor
conceitual, a categoria do caso fortuito não traduz uma hipótese autorizadora da
resolução (e muito menos da revisão) do contrato, mas sim um caso de exclusão da
responsabilidade civil em decorrência da interrupção do nexo causal. Em outros
termos, se o próprio devedor que pretende isentar-se de cumprir o contrato alega a
ocorrência de caso fortuito, ele está, ainda que involuntariamente, deslocando o foco
da discussão para a responsabilidade civil – e, como o dever de arcar com perdas e
danos pressupõe o inadimplemento (absoluto ou relativo), poder-se-ia concluir que
esse devedor está, implicitamente, afirmando seu próprio ilícito contratual, o que, no
mais das vezes, não corresponde ao seu verdadeiro anseio.

Trata-se, portanto, de uma alegação possível em via de defesa no âmbito de uma


ação indenizatória, mas não de um argumento voltado a legitimar um pleito de
resolução contratual. E nem se suponha que o recurso às categorias do caso fortuito
ou da força maior (aqui tratadas indistintamente, diante do amplo reconhecimento
da irrelevância da sua diferenciação no direito brasileiro)5 poderia servir
automaticamente como argumento para evidenciar a ausência de "fato ou omissão
imputável ao devedor" (e, assim, impedir a configuração de inadimplemento, a teor
do art. 396 do Código Civil). Com efeito, não se ignora que o inadimplemento
contratual depende de um elemento culposo por parte do devedor, índice de sua
imputabilidade. O caso fortuito, porém, como afirmado acima, insere-se na esfera de
aferição da causalidade na responsabilidade civil, e não da culpa6. Por evidente, não
se está a afirmar que a pandemia não possa configurar, para os fins pertinentes, um

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caso fortuito. No entanto, enquanto o debate permanecer restrito ao caráter fortuito


da pandemia, a discussão permanece circunscrita, no mais das vezes, à definição da
eventual responsabilidade civil do devedor por perdas e danos, sem particular
preocupação com a investigação do cabimento da resolução contratual. Para este
último fim, é preciso aferir os requisitos de outros institutos.

No desenvolvimento da reflexão sobre o cabimento ou não da resolução contratual


diante das vicissitudes suscitadas pela pandemia da COVID-19, incumbe ao
intérprete buscar na dogmática geral do direito civil os subsídios para o
equacionamento dos casos. No que tange ao primeiro grupo de hipóteses fáticas
acima descritas (a saber, os casos em que a atuação estatal inviabiliza o
cumprimento do contrato), outra solução que costuma vir à mente dos operadores
do direito é a invocação da teoria da excessiva onerosidade. Aqui, mais uma vez, a
qualificação parece prejudicada pela enorme proximidade do cenário fático com as
noções de imprevisibilidade e extraordinariedade. Aduz-se, nessa linha de raciocínio,
que as repercussões do novo coronavírus poderiam ser entendidas como
circunstâncias supervenientes e imprevisíveis, a corresponder a alguns dos
requisitos elencados pelo art. 478 do Código Civil para a resolução por onerosidade
excessiva (em especial, na passagem "em virtude de acontecimentos extraordinários
e imprevisíveis")7.

A alegação de onerosidade excessiva não parece, contudo, o fundamento mais


apurado para o pleito de resolução contratual a ser porventura movido pelos
credores nas diversas situações relatadas (os adquirente dos ingressos para certo
show ou peça teatral, por exemplo). Nelas, como visto, não se está diante de um
agravamento do sacrifício econômico a cargo do credor – o que inviabiliza, de
pronto, a invocação da teoria da excessiva onerosidade. O que se verifica naquelas
hipóteses fáticas parece se qualificar mais propriamente, em realidade, como uma
clássica ocorrência de impossibilidade jurídica superveniente do objeto do contrato,
o que poderia vir a justificar, a depender de cada caso concreto, o pedido de
resolução. Trata-se de solução amplamente consagrada pelo Código Civil brasileiro,
como se verifica, por exemplo, no tratamento dispensado à impossibilidade
superveniente da prestação no âmbito da disciplina geral das obrigações de dar
coisa certa (art. 234), de fazer (art. 248) e de não fazer (art. 250), bem como na seara
do regramento específico do contrato de prestação de serviço (art. 607).

Semelhante conclusão – embora a partir de fundamentação diferenciada – se


alcança no segundo grupo de hipóteses fáticas (a saber, aquelas em que uma das
partes não mais encontra interesse útil na prestação a que faria jus). Em tais

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situações, a conjuntura atual (composta pelos graves riscos associados, nos


exemplos descritos, à circulação e à aglomeração de pessoas) inviabiliza a
concretização das finalidades que as partes originariamente almejaram ao
entabular as prestações a cargo de cada uma delas8. Essa impossibilidade se
associa, assim, à figura que, em decorrência de certa contaminação pela experiência
da common law, por vezes se denomina frustração do fim do contrato – expressão
com a qual se busca tão somente aludir à impossibilidade de concretização do
programa contratual originário, isto é, da concretização da síntese de interesses que
as partes objetivamente inseriram na avença (informada pela noção de causa
contratual em concreto)9. Em suma, a peculiaridade dessas hipóteses fáticas, que
não deixam de representar uma impossibilidade superveniente, reside na
circunstância de que tal impossibilidade somente se percebe no plano funcional
(não já no plano estrutural, como aquela decorrente de simples norma proibitiva da
execução do contrato). Em outros termos, sua identificação se dá a partir da
constatação de que a prestação a cargo do devedor não mais se revela idônea a
promover a síntese de interesses insculpidos no contrato. Exige-se, assim, do
intérprete uma análise mais sofisticada, atenta à dinâmica contratual, porém ainda
atrelada ao tradicional instituto da impossibilidade.

Por certo, as circunstâncias do novo coronavírus não podem ser interpretadas como
evidência, ipso facto, da impossibilidade superveniente de concretização de todo e
qualquer programa contratual. A análise, como sempre (e, particularmente, quanto
mais demarcada for a relevância de um olhar funcional sobre o contrato), dependerá
das peculiaridades de cada caso concreto. Em linhas gerais, parece razoável supor
que, para a generalidade dos passageiros em voos aéreos, por exemplo, o risco de
contaminação (seja no próprio voo, seja no local de destino), em se tratando de
enfermidade com a virulência e o índice de letalidade da COVID-19, há efetiva
impossibilidade de obtenção dos fins originalmente previstos pelo contrato. A
solução, porém, poderia ser diferente, a depender de inúmeras variáveis. A
contratação se deu depois de divulgadas as primeiras notícias sobre a pandemia? A
finalidade (turística, profissional etc.) da viagem foi informada no âmbito da
negociação? Essa finalidade foi efetivamente prejudicada com a disseminação da
doença? E assim por diante.

Chega-se ao terceiro grupo de hipóteses fáticas, a saber, aquelas em que uma das
partes passa a sofrer sacrifício patrimonial muito superior ao originalmente previsto.
É precisamente nestas que parece mais razoável cogitar da configuração da
onerosidade excessiva, o que torna ainda mais curiosa a circunstância de esse grupo

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de hipóteses fáticas raramente ser suscitado nos estudos que invocam a teoria em
comento. De qualquer modo, é nas situações deste grupo que parece mais
embasada, ao menos em tese, a alegação de excessiva onerosidade, em razão do
possível agravamento do sacrifício econômico a ser suportado pelo devedor. Não se
olvide que a resolução dependerá, em todo caso, de o devedor lograr demonstrar
tanto a efetiva configuração de excessiva onerosidade, com manifesta vantagem
para a outra parte, quanto o preenchimento dos demais requisitos previstos em lei.

Em qualquer caso, a resolução, seja em decorrência da impossibilidade


superveniente, seja em decorrência da onerosidade excessiva, além de resultar na
extinção das obrigações decorrentes do contrato, poderá dar azo à deflagração do
dever de restituir (caso um dos contratantes tenha recebido uma prestação sem ter
ele próprio prestado a devida contrapartida)10. A extinção contratual, solução radical
que é, acarreta, em regra, consequências drásticas, motivo pelo qual se impõe
cautela na modulação de seus efeitos retroativos, sobretudo quando se pretende dar
fim a relações contratuais de longa duração11. Justamente por isso, supera-se, cada
vez mais, a antiga concepção segundo a qual a resolução do contrato seria menos
atentatória à autonomia privada do que a sua revisão12. Nesse sentido, sempre que
possível, o reequilíbrio do contrato por meio de sua revisão deve ser visto como
remédio preferencial ao pleito resolutório13. E, de todo modo, tanto a resolução
quanto a revisão devem observar cuidadosamente os requisitos legalmente
previstos.

Mais do que isso, devem-se prestigiar sempre as soluções consensuais que possam
ser alcançadas em cada setor econômico, sobretudo em um momento excepcional
como o presente. Assim, por exemplo, a Abrasce, associação de empresas de
shopping center, e a Alshop, entidade representante dos lojistas, firmaram
entendimento em relação à isenção dos aluguéis devidos pelos lojistas durante o
período em que seus estabelecimentos permanecerem fechados14. Do mesmo
modo, algumas produtoras de eventos musicais adiados em decorrência das
medidas de contenção da COVID-19 transferiram automaticamente os ingressos já
vendidos para novas datas, aparentemente sem prejuízo ao interesse da média dos
espectadores, ao mesmo tempo em que facultaram aos adquirentes a possibilidade
de reembolso se assim preferirem15. Tais soluções são louváveis, na medida em que
evitam a judicialização desnecessária dessas questões.

A responsabilidade do jurista em tempos de crise, como se afirmou, é a de zelar pela


garantia dos valores do ordenamento e, em meio à incerteza sentida no meio social,

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promover estabilidade e segurança nas relações jurídicas. Antes, portanto, de ceder


ao impulso de qualificações jurídicas precipitadas, incumbe-lhe indagar se estão
presentes os elementos caracterizadores das hipóteses normativas, frutos de juízos
de valor previamente realizados pelo legislador, dos quais não pode abrir mão.
Particularmente em matéria contratual, deve, ainda, perquirir se e em que medida
as circunstâncias da disseminação da COVID-19, sem dúvida alarmantes,
efetivamente comprometeram o originário equilíbrio de interesses de cada contrato
concretamente considerado. A rigor, este será, ainda e sempre, o critério balizador,
seja dos institutos autorizadores da resolução contratual, seja de eventuais pedidos
revisionais16.

Eduardo Nunes de Souza é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor
Adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

Rodrigo da Guia Silva é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Membro
do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado.

__________

1 V., por todos, MUCELIN, Guilherme; D’AQUINO, Lúcia Souza. O papel do Direito do Consumidor para o
bem-estar da população brasileira e o enfrentamento à pandemia de COVID-19. Revista de Direito do
Consumidor, vol. 129, maio/jun. 2020, item 1.

2 V., ao propósito, TERRA, Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em


shopping center. Migalhas, 20/03/2020.

3 Registre-se, por oportuno, que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS),


por meio da Resolução Normativa n. 453, de 12 de março de 2020, estabeleceu a
cobertura obrigatória e a utilização de testes diagnósticos para infecção pelo
Coronavírus no âmbito da saúde suplementar.

4 Da maior relevância, nesse sentido, é a advertência feita por Anderson Schreiber sobre o momento atual,
que alerta a respeito de “um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro:
classificar os acontecimentos em abstrato como ‘inevitáveis’, ‘imprevisíveis’, ‘extraordinários’ para, a partir
daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração.
O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade” (SCHREIBER,
Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do
dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional.
Migalhas, 23/03/2020).

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5 A respeito, v., por todos, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: GZ, 2011, p.
398-399.

6 Sobre o equívoco na confusão entre causalidade e as noções de culpa e imputabilidade, cf. SOUZA,
Eduardo Nunes de. Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma
necessária distinção conceitual. Civilistica.com, a. 7, n. 3, 2018, passim.

7 Para o desenvolvimento da análise dos requisitos previstos pelo art. 478 do Código Civil, v. TARTUCE,
Flávio. Manual de direito civil. Volume único. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 603
e ss.

8 Em sentido semelhante, v. MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas


repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, vol. 1015, maio 2020, item
“Impossibilidade de cumprimento”; e OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra
antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade
presumível. Migalhas, 17/03/2020.

9 Sobre a utilidade da noção de causa em concreto para o melhor tratamento dessa figura, bem como a
possibilidade de enquadramento da frustração do fim do contrato como uma hipótese de impossibilidade
superveniente, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da
função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato.
Civilistica.com, a. 8, n. 2, 2019, item 5.

10 Ao propósito da deflagração do dever de restituir no âmbito da relação de liquidação instaurada pela


resolução contratual, em hipótese de ausência superveniente de causa para a atribuição patrimonial (art. 885
do Código Civil), seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações
restitutórias no direito civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 274 e ss.

11 Para um desenvolvimento da análise, v. SILV, Rodrigo da Guia. Cláusulas de não restituir versus cláusulas
de não indenizar: perspectivas de delimitação dogmática a partir de uma análise funcional dos efeitos da
resolução contratual. Revista IBERC, v. 2, n. 1, jan./abr. 2019, item 3.

12 A destacar o prestígio contemporâneo da revisão contratual, v. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER,


Anderson. Fundamentos do direito civil. Volume 2: Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 225. V.,
ainda, TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. In: Fundamentos do direito civil. Volume 3: Contratos.
Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 140.

13 No mesmo sentido, v. SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e


contratos, cit.

14
14Shoppings e lojistas orientam isenção de aluguel de lojas fechadas. Valor

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Econômico, 23/03/2020.

15
15Saiba tudo que já foi cancelado na cultura por causa do coronavírus. Folha de São
Paulo, 12/03/2020.

16 Nesse sentido, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual, cit., item 5.

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MIGALHAS DOS LEITORES

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Gustavo Pereira de Oliveira


25/03 /2020 1 3 : 3 4 : 1 0

Ótimo artigo e que mantêm atentos os casos em que vivemos, contudo, importante destacar
um ponto que muito me traz dúvidas. Descrevem os autores do presente artigo para que não se
faça qualificações jurídicas precipitadas. Contudo, pelo próprio artigo não se chega a uma
unanimidade quanto à forma de se solucionar cada caso em virtude da particularidade que se
encontra cada demanda. Sendo assim, a meu ver, a interpretação levada pelo causídico no
patrocínio do seu cliente não pode ser levada como precipitada, já que, como podemos ver do
artigo, sequer há consenso em que medida tomar. Resolução, revisão, caso fortuito (matéria de
defesa), circunstâncias supervenientes e imprevisíveis, que lado se socorrer??? De fato podemos
citar como exemplo, na locação comercial, que ao analisarmos a Lei do Inquilinato nela não se
faz menção de como agir em casos em que vivemos devido ao Covid-19, ou seja, apenas se
assemelha ao caso concreto o breve apontamento da retomada do imóvel por parte do locador
em casos em que o Poder Público exige obras de reparo. Contudo, ao analisarmos a omissão da
referida Lei ela nos aponta ao socorro do Código Civil. Eis a questão, por exemplo, um cliente
empresário que utiliza da locação comercial te procura para dar um parecer, já que está com sua
empresa paralisada, ou seja, não auferindo lucro e renda para a permanência do pagamento do
aluguel, arcando com os compromissos trabalhistas, enfim, o que dizer? Se me questionado
como agir, faria sugestão de uma proposta de acordo para a suspensão dos alugueis, contudo, se
este não for aceita pelo locador nos resta aguardar ser demandado em ação de cobrança de
aluguel ou despejo e, sim, em matéria de defesa alegaria o caso fortuito, em que pese o aludido
no artigo quanto à matéria ser de responsabilidade civil, já que, uma suposta revisional como
sugerido (mesmo que no artigo fale da revisão, não necessariamente no caso de locação) estaria
condicionada em alguns requisitos que a própria Lei do Inquilinato nos traz. Questiona-se, como
requerer uma revisão sem os requisitos legais elencados na Lei do Inquilinato, tais como, o lapso

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temporal para que o locatário requeira em juízo?? Ou pior, se descrito no contrato a renúncia
quanto a este ponto??? Se o empreendedor está no imóvel em curto período?? Ora, teria o
patrono na causa de utilizar das ferramentas que lhe são permitidas, não podendo ser
interpretado sua atuação como uma qualificação jurídica precipitada, já que a Lei do Inquilinato
não é omissa quanto à revisão, não podendo utilizar-se de outro diploma legal para se salvar. Ao
alegar o locatário a condição de paralisação dos seus lucros como circunstância superveniente e
imprevisível a ensejar uma revisional sem que se tenham os requisitos para a revisional, razão
não teria a ingressar com tal pleito. Em outro turno, a rescisão contratual seria prejudicial, diante
o que se possa imaginar, perda de clientes, investimento realizado, ou seja, no fim das contas, o
que se espera que tal crise vá passar e uma rescisão não seria a melhor solução. Vejamos,
ficamos em um impasse, revisional sem requisitos legais não se poderiam alegar as
circunstâncias supervenientes e imprevisíveis, rescisão seria demais prejudicial ao locatário, ou
seja, sendo infrutífera proposta de acordo caberia tão somente aguardar ser demandado e em
matéria de defesa alegar o caso fortuito, ainda que explanado a condição de matéria de
responsabilidade civil, não podendo tal argumentação levantada pelo patrono da causa como
precipitada e, sim, forma de usar as ferramentas que tinha à disposição.

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Anderson Schreiber, é professor titular de Direito Civil da UERJ. Professor


permanente do programa de pós-graduação em Direito (mestrado e
doutorado) da UERJ. Doutor em Direito Privado Comparado pela Università
degli studi del Molise (Itália). Mestre em Direito Civil pela UERJ. Pesquisador Visitante
do Max Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Alemanha).
Membro da Academia Internacional de Direito Comparado. Membro do Comitê
Brasileiro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française.
Colunista do jornal Carta Forense. Procurador do Estado do RJ. Sócio fundador do
escritório Schreiber Advogados. Autor de livros.
Everilda Brandão, é advogada. Mestre e doutora em Direito Civil pela UFPE.
Professora de pós-graduação lato sensu da UFPE. Membro do Grupo de
Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas - CONREP. Autora de
livros.
Flávio Tartuce, é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre
em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e
coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e
coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD.
Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito

https://m.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-novo-coronavirus Página 11 de 12
Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus - Migalhas Contratuais 29/03/2020 19:41

Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em


São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Gustavo Henrique Baptista Andrade, tem pós-doutorado em Direito Civil
pela UERJ. Mestrado e doutorado em Direito Civil pela UFPE. Procurador
Judicial do município do Recife. Pesquisador visitante do Max-Planck-
Institut für Ausländisches und Internationales Privatrecht (MPIPRIV), Hamburgo,
Alemanha. Pesquisador do Grupo Constitucionalização das Relações Privadas
(CONREP-UFPE). Pesquisador do Grupo Historicidade e Relatividade do Direito Civil
da UERJ. Diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Pernambuco
(IBDFAM-PE).
Pablo Malheiros da Cunha Frota, é doutor em Direito pela UFPR. Professor
de Direito Civil e de Processo Civil na graduação e, colaborador, no mestrado
em Direito Agrário na UFG. Diretor do IBDCONT, IBDFAM-DF e BRASILCON.
Advogado no DF.

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