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resenha

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009 (483p.)

A principal questão sociológica do Brasil


Carlos Sávio Teixeira*

Fato recorrente a cada período eleitoral “economicismo” liberal dominante, que


no Brasil, os quatro pré- reproduz o reducionismo marxista
candidadtos à Presidência da (classe como lugar na produção
República já fizeram as econômica), ao associar
protocolares declarações a desigualdade social ao nível de renda
favor do combate à exclusão econômica, esconde todos os fatores
social. E cada um esforçando- emocionais, morais e afetivos que
se por parecer o mais constroem as diferenças sociais, das
preocupado com o “social”. quais um dos efeitos – e não a causa
Por suspeitar que nossos pré- – é a renda diferencial. Nesse livro,
candidatos compartilham da ao contrário, as classes sociais se
ignorância generalizada do país constroem através de heranças
sobre o seu principal problema, não familiares emocionais e afetivas – que
tenho dúvidas que a leitura do livro "A passam de pais para filhos por meio de
Ralé Brasileira" é exercício indispensável sinais na sua maior parte invisíveis posto
a todos eles. O argumento principal do que transmitidos no universo “privado”
livro do sociólogo Jessé Souza é o de que familiar – que criam classes de
a singularidade do Brasil contemporâneo “vencedores” (a classe alta que detém
e o seu desafio político central não é o prioritariamente capital econômico e a
jeitinho brasileiro – que pressupõe uma classe média que detém prioritariamente
compreensão anacrônica do Brasil como capital cultural) de um lado, e classes de
uma sociedade pré-moderna baseada em “perdedores”, como a classe chamada no
relações pessoais, cuja contrapartida livro provocativamente de “ralé”, de
institucional é o patrimonialismo e a outro. Afinal, é a existência de
corrupção – mas a reprodução histórica pressupostos como disciplina,
de uma classe social de desclassificados autocontrole e capacidade de
sociais que perfaz 1/3 da população concentração (valores incorporados
brasileira. Essa classe é “moderna” e não diferencialmente que o senso comum
mera continuidade de um passado imagina serem “universais”) que decidirá
distante, porque o que a faz destituída, sobre o sucesso tanto na escola quanto no
oprimida e humilhada é a ausência de mercado de trabalho mais tarde.
recursos como o capital econômico e o A pesquisa empírica que sustenta o livro,
capital cultural. realizada ao longo de quatro anos
A tese desse grande estudo, candidato a pretendeu mostrar o drama existencial e
clássico de nossa ciência social, é a de social dos tipos sociais mais
que as classes sociais – indivíduos que representativos da “ralé” de
compartilham de uma origem e de um “fracassados” ao surpreendê-los
destino comum – não são perceptíveis enquanto formação de uma classe de
enquanto tais no senso comum. O perdedores vítimas do abandono político

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da sociedade e dos governos. Como o origem e esse destino comuns representa
abandono social e político não é compreender problemas sociais e seus
percebido – por razões que o livro desafios de outro modo, possibilitando o
explica – o sentimento de impotência é nosso debate público sair da
tornado “culpa” individual – permitindo adolescência.
quebrar a fonte de toda resistência
Nesse sentido, o livro também critica o
política – e substituído por “auto- caráter unificador e escamoteador de
legitimações” que impedem toda crítica
conflitos de um mito nacional que logrou
social e toda autocrítica individual, o que inclusive ser o fundamento da ciência
possibilita reconstruir toda a trama da
social dominante do Brasil moderno e de
reprodução continuada do abandono
sua influência sobre os nossos principais
como o vemos hoje. Chegar a esse
partidos políticos como o PSDB e o PT.
universo recôndito, que explica como o
Assim, tanto as teorias liberais quanto as
dominado internaliza cotidianamente a
abordagens politicamente corretas são
dominação e o torna vítima passiva de
criticadas por compartilharem de uma
seus efeitos, foi o ponto principal do
mesma visão anacrônica e conservadora
trabalho. Como aqui a pesquisa
do Brasil contemporâneo cujo leitmotiv é
meramente quantitativa – muito útil para
o desconhecimento do mundo de classes
descobrir sem problemas o candidato em como a “ralé”. Assim, perceber a “ralé”
que se quer votar ou o sabonete que se
como “ralé”, ou seja, como conjunto de
quer usar – ajuda muito pouco, o livro
famílias e de indivíduos assolados pela
faz uso inovador do método qualitativo
desestruturação familiar, pela
desenvolvido por especialistas em
naturalização do abuso sexual em todos
pesquisas internacionais.
os níveis, pela não incorporação
O esforço de acompanhar a trajetória sistemática dos pressupostos do trabalho
social dos principais tipos sociais da produtivo moderno altamente
“ralé” como empregada doméstica, especializado, pelo uso instrumental de
catadores de lixo, traficantes de drogas, todos contra todos, pode ter um efeito
prostitutas, trabalhadores braçais crítico, de conhecimento daquilo que
desqualificados, mostra, sem anestesia, todos evitamos saber, extraordinário.
que todos esses tipos perfazem uma Portanto, a leitura de um trabalho com
origem e um destino comum apesar da este compõe instrumento indispensável
eventual multiplicidade de destinos para iniciar a elevação do debate público
individuais. Como a percepção dessa no país ao tratar sem rodeios de nosso
classe social na mídia, no governo e na maior problema – a chocante
academia brasileira é fragmentária – fala- desigualdade social que criou entre nós
se de violência pública, insegurança, duas classes de pessoas, as que são
assistencialismo, analfabetismo consideradas como tal e as que não são –
funcional, má formação de mão de obra e pôr fim às ilusões que caracterizam a
etc., como se não houvesse um vínculo formulação de muitas de nossas políticas
interno ligando todas essas questões a um públicas.
núcleo social comum – mostrar essa

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CARLOS SÁVIO TEIXEIRA é Doutor em Ciência Política pela USP e professor pesquisador do
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFF

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