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Escola do samba: sobre a coletividade do conhecimento rítmico

Davi Claro

Cada ensaio começa antes do apito do mestre, antes das afinações e preparações mais técnicas —
antes mesmo da própria bateria existir.

Taxadas como balbúrdia pelos ouvidos desavisados, as baterias universitárias


experimentam hoje o papel um dia assumido pelo próprio samba: barulho, desserviço,
sintetizados em uma espécie de ​não-cultura​.
Num primeiro momento, a formação de uma bateria é, de fato, simples e direta.
Seis-sete-oito naipes juntos, misturando sons e timbres importados de grandes escolas de
samba, funções e propósitos bem definidos. O repique chama, preenche, as caixas dão corpo,
os surdos desenham o andamento, tamborins, agogôs e chocalhos na linha de frente,
arquitetando interações harmônicas com todos componentes. O tempo mestre regendo tudo.
Contudo, basta ouvir um par de levadas — unidades do samba — para notar sua
pluralidade. A primeira distinção se dá na forma como cada agremiação encara seus
fundamentos. Enquanto as equivalentes universitárias partem da torcida, da competitividade,
uma bateria tradicional nasce na comunidade, na reunião de pessoas ao redor de um pavilhão,
de um bairro e todas realidades que o formam. Apesar da centralidade diferente, o senso de
coletividade abraça velha guarda e comunicadores em formação de forma muito semelhante.
Cada bateria é costurada por um fio de história compartilhado entre culturas que se
mesclaram há muito, confrontando o apagamento. Não mais em quilombos e localidades
atópicas, o batuque ocupa avenidas e espaços públicos, reunindo indivíduos pelos ritmos e
arranjos, mas também pelo anseio por pertencimento inerente aos agrupamentos sociais.
Em algum ponto, a música tida como culta ganha um rótulo elaborado, subjugando
construções coletivas a um viés estético tão elevado quanto distante das raízes populares.
Foge da ginga, tão mais nossa que as estações de Vivaldi.
Uma vez ao ano, os olhos se voltam às margens. Fevereiro acende um pavio curto que
valida esses fragmentos de cultura — ainda que por dias de menos. O carnaval é mais uma
das misturas de longa data que, pelas vias da diversidade, do sincretismo e da miscigenação,
constituem um quê de brasilidade.
Depois das Cinzas, todavia, música volta a ser música quando composta e tocada em
câmaras, vinis e afins, quando escrita por e sobre reminiscências do clássico. Transposta ao
samba universitário, assume notas de cacofonia, tempo perdido e desvio. Quanto mais de
perto se vê, mais fácil é enxergar os tijolos de preconceito que separam suas manifestações.
Ao juntar uma porção de universitários em roda tocando samba, batucando arranjos
de rock, de pop e até mesmo sinfonias, por conseguinte, a bateria produz cultura, evocando
ancestralidades e modernismos. A mesclagem é que recobra sua identidade.
A música acaba figurando uma tríade; parte popular, parte culta, parte acadêmica.
Primeiro por beber dos saberes coletivos, dos ritmos ecoados de norte a sul, mas também por
recobrar elementos do clássico, desdobrar compassos e trejeitos orquestrados. A construção
de narrativas que se sucede caminha lado a lado às significações apreendidas nos corredores
da academia.
A universidade pública parte de um pressuposto fundamental: o tempo empreendido
em sala, pautando técnicas e teóricos, é revertido em saberes e princípios internalizados pelo
estudante, constituindo etapas maduras de socialização — moldadas a um propósito
específico. Isso figura os manuais há muito.
O que foge do consenso é a validade das ramificações de conhecimento, as formas
não convencionais de construção cognitiva, dentre as quais critérios emocionais e subjetivos
tomam graus de valor superiores à rigidez tradicional.
O fazer parte da bateria demanda tempo, dedicado ao desenvolvimento rítmico, mas
também a uma construção individual paralela. Os rudimentos ensinados se apropriam de
canais visuais e auditivos, das vias cinestésicas, moldando o aprendizado a cada ritmista.
Busca-se comunicar, multiplicar saberes próprios do grupo, elementos de história a serem
herdados pela próxima geração.
No decorrer dessa relação, quem ensina, tanto quanto quem aprende, desenvolve um
leque de habilidades comportamentais — as ​soft skills que tomaram o glossário corporativo.
Para aprender uma bossa, uma intervenção rítmica coordenada, a paciência é a primeira nota;
ao criar novos elementos, o ritmista lança mão do pensamento criativo, ao longo dos
encontros, cultiva flexibilidade, confiança, comprometimento e, sobretudo, trabalho em
equipe. Habilidades essas essenciais à atuação de futuros relações-públicas nas complexas
ecologias organizacionais, por exemplo.
Os ensaios de bateria desenvolvem potencialidades, formam ritmistas. Mais que isso,
formam um campo, no sentido bourdiano mesmo, com uma rede de interações mediadas pela
vivência social nos espaços que delimitam. Cada ensaio começa antes do apito do mestre,
antes das afinações e preparações mais técnicas — antes mesmo da própria bateria existir. Ser
batuqueiro acaba por ser músico, sambista e, irremediavelmente, brasileiro.

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