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REV. DOR 2008 - Jul/Ago/Set - 9 (3): 1297-1304 Artigo de Revisão

AVALIAÇÃO DA DOR E DA QUALIDADE DE VIDA EM CÃES COM CÂNCER

PAIN AND QUALITY-OF-LIFE EVALUATION IN DOGS WITH CANCER

Karina Velloso Braga Yazbek1

RESUMO
O câncer é a maior causa de morbidade e mortalidade em animais idosos de companhia. Vários estudos em
relação à dor aguda foram publicados na literatura médica veterinária nos últimos anos, porém em relação à dor
crônica, mais especificamente relacionada ao câncer isso não aconteceu. Muitos conceitos relacionados à dor
oncológica em cães foram baseados na literatura médica humana e adaptados aos animais. Objetivou-se neste artigo
enfatizar a importância da avaliação da dor e da qualidade de vida em cães com câncer a fim de se estabelecer
adequada analgesia.

Unitermos: Dor, câncer, qualidade de vida, cão.

ABSTRACT
Cancer is the major cause of morbidity and mortality in older pets. Many studies about acute pain in animals have
been published in the literature but not related to cancer pain. Most of the information about cancer pain is based on
human’s studies and adjusts to animals. The aim of this paper is to emphasize the importance of pain and quality-of-
life evaluation in dogs with cancer to establish adequate analgesia.

Keywords: Cancer, pain, quality-of-life, dog.

INTRODUÇÃO cessariamente. O conceito de que os animais não


Vários estudos em relação à dor aguda foram pu- sentem dor, atrasou muito a veterinária em relação
blicados na literatura médica veterinária nos últimos ao desenvolvimento de escalas de avaliação, pro-
anos, porém em relação à dor crônica, mais especi- tocolos e fármacos analgésicos. A literatura veteri-
ficamente relacionada ao câncer, a literatura é qua- nária ainda é escassa em relação à dor principal-
se inexistente1. mente, no que se refere à dor crônica. Muitos con-
Durante a última década, houve um grande ceitos, formas de avaliação e os protocolos farma-
avanço na compreensão e no tratamento da dor em cológicos foram trazidos da literatura médica e
animais, porém muitos deles ainda sofrem desne- adaptados aos animais.

1 - Médica Veterinária, Doutora pelo Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo
(FMVZ-USP). Professora de Anestesiologia do Curso de Medicina Veterinária da Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Responsável pelo
Ambulatório de dor e cuidados paliativos do PROVET. Certificada em Dor pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED).

Endereço para correspondência:


Karina Velloso Braga Yazbek
E-mail: kayazbek@yahoo.com.br

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Em 1998, o Colégio Americano dos Anestesiologis- cães por ano, sendo proporcional ao aumento da ida-
tas Veterinários (ACVA) publicou a sua posição em re- de. Neste mesmo estudo, os tumores de pele e de te-
lação ao tratamento da dor em animais, na qual deter- cidos moles foram os de maior incidência
minou que a dor é uma condição clínica importante (1.437/100.000 cães), seguido das neoplasias do trato
que prejudica a qualidade de vida, devendo ser obriga- gastrintestinal (210/100.000 cães), glândula mamária
toriamente prevenida e tratada para que o animal man- (205/100.000 cães), trato urogenital (139/100.000 cães),
tenha atividades diárias normais, como sono, lazer, ali- sistema linfóide (134/100.000 cães), endócrino
mentação e higiene adequadas e também interação (113/100.000 cães) e de orofaringe (112/100.000 cães)7.
com o proprietário2. Nesta mesma publicação, o ACVA Um recente estudo epidemiológico realizado pelo De-
estipulou que um estímulo considerado doloroso no partamento de Patologia da FMVZ-USP na cidade de
homem também deve ser considerado doloroso em São Paulo mostrou que no Serviço de Cirurgia de Pe-
animais e que a inabilidade de comunicação verbal em quenos Animais do Hospital Veterinário da Faculdade
nenhum momento impossibilita a expressão da sensa- de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de
ção álgica2. Desde então muitos centros de pesquisa São Paulo (FMVZ-USP), durante os anos de 2002 e
dedicam-se ao estudo da dor em cães e gatos princi- 2003, dos 3.620 casos novos de animais atendidos,
palmente nos geriátricos com doenças crônicas. Este 716 foram de cães e gatos com neoplasias (663 em
artigo objetivou enfatizar e revisar informações sobre a cães e 53 em gatos), ou seja, 19,8% dos casos8.
importância da adequada avaliação da dor e da quali- No Brasil, o tratamento curativo do câncer em pe-
dade de vida em cães com câncer e dor. quenos animais ainda está longe do ideal. A radiote-
rapia ainda não é utilizada de rotina e o custo da qui-
CÂNCER EM CÃES E GATOS mioterapia é inviável para muitos proprietários. Além
O avanço no diagnóstico e tratamento de doen- disso, muitos animais são considerados membros da
ças, associado ao adequado manejo nutricional e família e tratados como tal e, cada vez mais, a melho-
profilático, aumentou a expectativa de vida dos cães ra ou pelo menos a manutenção da qualidade de vi-
e gatos e conseqüentemente a incidência de doen- da tem sido uma exigência freqüente dos proprietá-
ças relacionadas à idade avançada, como por exem- rios9. Em decorrência desta situação, a eutanásia tem
plo, o câncer e osteoartrose3. Atualmente, o câncer é sido cada vez mais questionada e evitada pelos pro-
a maior causa de morbidade e mortalidade em ani- prietários. Cães e gatos com câncer, na grande maio-
mais idosos de companhia4. Um estudo sobre mor- ria das vezes, apresentam-se fora da possibilidade
talidade em cães na Dinamarca apontou o câncer de cura e com dor de intensidade moderada a inten-
como a segunda maior causa de morte (14,5%), per- sa, necessitando de analgesia contínua para mantê-
dendo apenas para o óbito por idade avançada los com qualidade de vida10. Atualmente, um dos
(20,8%)5. Um levantamento de 2.000 casos de ne- maiores desafios da medicina veterinária é o desen-
cropsia em cães mostrou que 45% dos animais com volvimento de protocolos analgésicos e de cuidados
10 anos de idade ou mais, morreram de câncer6. paliativos eficazes para diminuir a realização da euta-
Segundo Dobson et al. (2002), a incidência estima- násia precoce em animais fora da possibilidade de
da de desenvolvimento de neoplasias em cães do Rei- cura. A adequada avaliação e o diagnóstico precoce
no Unido é de 1.948 novos casos para cada 100.000 da dor crônica são fundamentais para o sucesso do

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tratamento e a conseqüente manutenção da qualida- mioterápico e radioterápico ou até mesmo por cau-
de de vida10. Estas informações demonstram e enfa- sas não relacionadas à doença4,11,13,14. O reconheci-
tizam a importância do preparo do médico veteriná- mento do tipo de síndrome é essencial para o ade-
rio para o diagnóstico e tratamento da dor oncológi- quado manejo da dor oncológica11.
ca em cães e gatos e do desenvolvimento de proje- A dor secundária ao câncer também pode ser
tos de pesquisa sobre o assunto. classificada como somática, visceral ou neuropática
na sua origem4,11,14,15. A dor mista é o tipo mais fre-
CÂNCER E SÍNDROMES DOLOROSAS qüente, pois o tumor, dependendo da sua localiza-
EM CÃES E GATOS ção, pode infiltrar vários tecidos ao mesmo tempo16.
No homem, a dor oncológica atinge 50% dos pa- A dor somática pode ser causada pela invasão do
cientes durante todo o curso da doença. Ao avaliar tumor nos ossos, músculos e pele4,16,17. A presença
somente os pacientes na fase avançada, a incidência do tumor produz e estimula a produção local de me-
de dor pode chegar aos 75%11. Um estudo realizado diadores inflamatórios, causando ativação direta
com 70 cães com câncer mostrou que 83% dos ani- dos nociceptores periféricos15. Esse tipo de dor é
mais apresentavam dor de intensidade moderada de comumente associado a neoplasias e metástases
acordo com a opinião do proprietário12. O alívio da ósseas, fraturas patológicas, dor pós-operatória e
dor é essencial antes, durante e após o tratamento síndromes pós-radio e quimioterapia. A dor somáti-
oncológico, principalmente quando a doença se en- ca é descrita como contínua bem localizada, e que
contra em fase avançada10. Para a instituição do tra- piora ao movimento4,15. Nem toda metástase óssea
tamento adequado, é necessária a identificação do é dolorosa e a magnitude da dor pode não ser pro-
tipo de dor, a localização correta, o estado físico que porcional a imagem radiográfica15,17. Os nocicepto-
o paciente se encontra, a fase do tratamento, as limi- res aferentes estão em maior número no periósteo,
tações e os riscos dos procedimentos10. sendo a medula óssea e a porção cortical do osso
A classificação da dor nos animais de companhia menos sensíveis a dor, portanto os principais meca-
baseia-se na classificação utilizada no homem. A dor nismos que contribuem para a dor óssea incluem a
é classificada em aguda ou crônica de acordo com a distensão do periósteo pela expansão tumoral, mi-
sua disposição temporal; em leve, moderada e inten- crofraturas locais e liberação local de substâncias
sa de acordo com a sua intensidade; em nocicepti- algogênicas pela medula óssea15. Na doença me-
va, quando for resultante da ativação de nocicepto- tastática, a atividade osteoclástica é a principal res-
res e em neuropática quando houver alteração ou le- ponsável pela dor óssea15.
são do sistema nervoso central e/ou periférico11. O A dor visceral possui características clínicas pe-
câncer pode causar dor em qualquer fase da doen- culiares. Alguns órgãos menos sensíveis a dor, como
ça, mas a freqüência e a intensidade da dor tendem o pulmão, fígado e parênquima renal, só se tornam
a aumentar nos estágios mais avançados11. dolorosos quando há distensão da cápsula ou com-
No câncer, os pacientes podem ter múltiplas prometimento de estruturas adjacentes15. Em vísce-
causas de dor podendo ser causadas pelo próprio ras ocas, a dor está relacionada à torção, tração,
tumor, por metástases, por síndromes paraneoplási- contração, obstrução, isquemia e irritação da muco-
cas, em decorrência do tratamento cirúrgico, qui- sa, sendo usualmente mal localizada e associada

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com náusea e vômitos11. Em vísceras sólidas, a dor local da lesão, como a manifestação clínica mais
ocorre por estiramento, distensão da cápsula e ne- sugestiva de dor neuropática.
crose do tumor4,11,15. Estudos recentes mostraram
que existem duas classes de nociceptores nas vís- AVALIAÇÃO DA DOR
ceras. A primeira classe é composta pelos recepto- Uma das maiores dificuldades na medicina veteri-
res de alto limiar, localizados no coração, pulmões, nária é a quantificação e o reconhecimento da dor
trato gastrintestinal, ureteres e bexiga e a segunda crônica. A dor, por ser uma experiência individual, é
classe é composta pelos receptores de baixo limiar. muito difícil de ser observada e quantificada. Somen-
Ambos os receptores estão envolvidos com a detec- te o homem tem a habilidade de expressar e quanti-
ção de estímulos mecânicos, como tração e torção ficar verbalmente a dor, já em animais o reconheci-
e de qualquer estímulo nocivo. Estudos experimen- mento é subjetivo e baseado principalmente nas alte-
tais também demonstram a presença de nocicepto- rações comportamentais. A mesma dificuldade en-
res aferentes silenciosos viscerais, que na presença contrada pelos médicos veterinários para a avaliação
de inflamação, isquemia, hipóxia ou qualquer injúria da dor nos animais é enfrentada pelos pediatras, en-
tecidual tornar-se-iam sensibilizados11,18. fermeiras e anestesistas durante a avaliação da dor
A lesão do sistema nervoso central ou periférico em crianças de zero a 2 anos ou adultos impossibili-
causada por infiltração tumoral, compressão direta tados de comunicação verbal. Nestes casos, a ava-
pelo tumor, ou lesão por quimioterapia e radiotera- liação do comportamento por familiares e enfermei-
pia, lesão durante a amputação, pode induzir o ras treinadas ainda é a forma mais eficaz de avaliação
aparecimento de dor neuropática, que se caracte- de dor21. Na clínica de pequenos animais, o veteriná-
riza por hiperatividade patológica de membranas rio tem o proprietário e/ou cuidador do animal como
excitáveis, resultando em descargas de potencias um grande aliado na avaliação das alterações com-
de ação ectópicos11,15. As alterações periféricas in- portamentais já que as alterações podem ser gra-
cluem descargas ectópicas e espontâneas, altera- duais e somente perceptíveis a pessoas familiariza-
ção na expressão dos canais de sódio, recruta- das com o comportamento normal do animal22,23.
mento de nociceptores colaterais e neurônios afe- As respostas frente à dor são, na maioria das ve-
rentes primários e sensibilização de nociceptores. zes, espécies específicas, sendo essencial que o
Mecanismos centrais incluem sensibilização cen- pesquisador seja familiarizado com o comporta-
tral, reorganização do corno dorsal e cortical, alte- mento normal da espécie estudada a fim de detec-
rações na modulação descendente inibitória e ex- tar as possíveis alterações comportamentais2. As
pansão do campo receptivo11,19. Este tipo de dor é principais alterações comportamentais encontradas
descrita por humanos como em queimação, lanci- em cães e gatos com dor são: alterações de perso-
nante e em formigamento, e se caracteriza pela nalidade ou atitude, onde o animal dócil torna-se
presença de déficits sensitivos (alodinia e hiperal- extremamente agressivo frente a estímulos doloro-
gesia), motores e autonômicos na área comprome- sos ou vice-versa; vocalização especialmente quan-
tida14,15,20. Nos animais, podemos considerar a lam- do manipulado na região dolorida; automutilação;
bedura excessiva, a automutilação, o mordisca- alterações na aparência principalmente na higiene
mento e a presença de alodinia e hiperalgesia no do pelame; alterações na postura e deambulação;

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piloereção; relutância em se movimentar; proteção com câncer e dor as alterações comportamentais


da área dolorida; diminuição do apetite e conse- são semelhantes10. Nos gatos, o isolamento, a redu-
qüente perda de peso; alteração da expressão facial ção do apetite e da “auto-higiene” são as alterações
dentre outras2. As alterações comportamentais cau- comportamentais mais evidentes. As alterações
sadas pela dor, citadas previamente, contribuem comportamentais causadas pela dor, citadas pre-
muito para a mensuração da dor crônica em ani- viamente, contribuem muito para a mensuração da
mais de companhia4,13,24. dor crônica em animais de companhia. Além das al-
Infelizmente em relação à avaliação da dor crôni- terações deletérias que a dor pode provocar no or-
ca a literatura veterinária ainda é escassa. Entretan- ganismo, deve-se ter em mente que a dor crônica é
to, várias escalas utilizadas para a mensuração de a causa mais freqüente de sofrimento e incapacida-
dor crônica no homem podem ser adaptadas para de que prejudica a qualidade de vida16,27. A qualida-
animais4,10. A Escala Visual Analógica (EVA), ampla- de de vida tem se tornado uma relevante medida da
mente utilizada, é uma linha com 10 cm de compri- eficácia terapêutica nos estudos clínicos27.
mento, que apresenta em uma extremidade o con-
ceito “ausência de dor” (zero) e na outra “pior dor DOR E QUALIDADE DE VIDA
imaginável” (dez)4,13,25,26. O proprietário ou o cuidador A Associação Americana de Medicina Veterinária
marca com uma caneta a localização da dor. Esta (AVMA) acredita que a dor é de grande importância
escala pode ser fornecida ao proprietário do animal clínica resultando em sofrimento e redução da qua-
ou pode ser utilizada por médicos veterinários para lidade de vida do animal28,29. Após décadas sendo
monitorar a terapia analgésica. Outro tipo de escala subtratada, subestimada e muitas vezes ignorada, a
utilizada no homem é a Escala Numérica, onde são dor atualmente é considerada um fator de grande
colocados números de 1 a 10 para que o paciente importância em relação à qualidade de vida tanto no
marque a intensidade da sua dor. Utiliza-se também homem quanto nos animais30.
a Escala Numérica Verbal, onde o paciente dá uma O conceito de qualidade de vida está começando
nota de zero (ausência de dor) a dez (pior dor ima- a surgir na literatura médica veterinária, porém a sua
ginável), e a Escala Descritiva Verbal onde a dor é definição para os animais ainda gera muita discussão
classificada em ausente, leve, moderada e inten- e os critérios e questionários de avaliação ainda são
sa10,12,25. Atualmente a escala mais utilizada e eficaz escassos na literatura9,28. O conceito de qualidade de
para a avaliação da dor crônica em cães e gatos é a vida é complexo, subjetivo e várias definições na lite-
Escala Numérica Verbal4,10,12. ratura médica e médica veterinária são encontradas.
Segundo Wiseman et al. (2004), a dor pode cau- Mas, na visão da maioria dos autores, a escolha dos
sar alterações comportamentais importantes em fatores que compõem a definição de qualidade de vi-
cães com dor crônica secundária a doença articular da tem como base o conceito de saúde: saúde é o
degenerativa como redução da mobilidade, ativida- completo bem-estar físico, mental e social e não me-
de, apetite, curiosidade, sociabilidade e disposição ramente a ausência da enfermidade. McMillan (2000)
para brincadeiras e aumento da dependência, tenta definir o conceito de qualidade de vida para ani-
agressividade, ansiedade, comportamentos com- mais como a ausência ou a presença mínima de des-
pulsivos, medo, vocalização e mobilidade. Em cães confortos físicos (p.ex. náusea, retenção urinária,

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prurido, dor, tosse, dispnéia), e emocionais (p.ex. me- Em 2005, Yazbek e Fantoni (Tabela 1) validaram
do, ansiedade, solidão, frustrações)31. a primeira escala de avaliação da qualidade de vi-
Em Oncologia, a medida da qualidade de vida da relacionada à saúde em cães com dor crônica
tem sido sugerida para demonstrar diferenças de secundária ao câncer. O questionário é composto
resposta dos pacientes frente a tipos específicos de de 12 questões com 4 alternativas possíveis de
câncer, avaliar o alívio dos sintomas e comparar a resposta. Cada questão vale de zero a 3, alcançan-
resposta aos tratamentos32. Um recente estudo em do um total de 36 pontos. Zero é considerado a
relação à expectativa de proprietários de cães e ga- pior qualidade de vida e 36 a melhor. As questões
tos com câncer em relação ao tratamento mostrou abrangem informações sobre comportamento, in-
que: 52,5% dos proprietários esperavam a redução teração com o proprietário e avaliação da dor, ape-
do tamanho do tumor, 44,1% desejavam o alívio tite, cansaço, distúrbios do sono, problemas gás-
dos sintomas e 42% a manutenção ou melhora da tricos e intestinais, defecação e micção. Para vali-
qualidade de vida e bem estar do animal33. dação a escala foi submetida a proprietários vete-
Alguns trabalhos tentaram avaliar a qualidade de vi- rinários e não veterinários (leigos) de cães saudá-
da do animal questionando o proprietário de forma veis, cães com doenças dermatológicas e cães
subjetiva28. Mellanby, Herrtage e Dobson (2003), em com câncer e dor. Cães com câncer e dor (mode-
estudo retrospectivo, avaliaram a qualidade de vida de rada) apresentaram escore de qualidade de vida
25 cães com linfoma durante a quimioterapia. A avalia- 20,7; os cães com doença dermatológica obtive-
ção foi realizada pelo telefone e os proprietários pode- ram escore 30,6 e os cães saudáveis 34,0 sendo a
riam avaliar a qualidade de vida do animal por meio de diferença entre os grupos estatisticamente signifi-
três opções: boa, não tão boa quanto antes da doen- cativa (p<0,001). Este resultado demonstra a baixa
ça e ruim. O autor enfatiza a subjetividade da forma de qualidade de vida de cães com dor oncológica
avaliação e sugere o desenvolvimento de questionário moderada em comparação aos outros animais e
menos subjetivo9. Em outro estudo sobre a Síndrome enfatiza a importância da constante avaliação du-
de Fanconi, a avaliação da qualidade de vida foi reali- rante o tratamento25. Esta escala tem sido utiliza-
zada sem questionário, também de forma subjetiva34. da como método complementar e auxiliar na ava-
Infelizmente, a presença de questionários validados liação da dor oncológica na rotina da clínica de pe-
para a avaliação da qualidade de vida em cães e gatos quenos animais10.
é escassa na literatura médica veterinária. McMillan
(2003) ressalta que a decisão da eutanásia pelo pro- CONCLUSÃO
prietário é baseada, na maioria das vezes, na qualida- Cães com câncer podem apresentar dor em di-
de de vida do animal28. Em estudo de cães com insu- versas fases da doença. A avaliação da dor baseada
ficiência cardíaca congestiva, baixa qualidade de vida em alterações fisiológicas e comportamentais e a
foi relatada por 13% dos proprietários como sendo o avaliação da qualidade de vida por intermédio de
principal motivo para a decisão da eutanásia35. Em es- questionários validados são de fundamental impor-
tudo com gatos com câncer, todos os proprietários re- tância para o diagnóstico e o tratamento precoce e
portaram a utilização da avaliação da qualidade de vi- adequado da dor oncológica. É um dever do médico
da como pré-requisito para a eutanásia36. veterinário aliviar o sofrimento do animal com dor.

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TABELA 1 – Escala para avaliação da qualidade de vida validada para cães com câncer e dor27
(zero – pior QV / 36 – melhor QV)

1. Você acha que a doença 9. O seu animal tem


5. Você acha que o seu
atrapalha a vida do seu vômitos?
animal sente dor?
animal? 0.( ) sempre
0.( ) sempre
0. ( ) muitíssimo 1.( ) freqüentemente
1.( ) freqüentemente
1. ( ) muito 2.( ) raramente
2.( ) raramente
2. ( ) um pouco 3.( ) não
3.( ) nunca
3. ( ) não

10. Como está o intestino


2. O seu animal continua 6. O seu animal tem do seu animal?
fazendo as coisas que apetite? 0.( ) péssimo/funciona
gosta (brincar, passear...)? 0.( ) não com dificuldade
0.( ) nunca mais fez 1.( ) só come forçado/só o 1.( ) ruim
1.( ) raramente que gosta 2.( ) quase normal
2.( ) freqüentemente 2.( ) pouco 3.( ) normal
3.( ) normalmente 3.( ) normal

11. O seu animal é capaz


3. Como está tempera- de se posicionar sozinho
7. O seu animal se cansa para fazer xixi e cocô?
mento do seu animal?
facilmente? 0.( ) nunca mais conseguiu
0.( ) totalmente alterado
0.( ) sempre 1.( ) raramente consegue
1.( ) alguns episódios
1.( ) freqüentemente 2.( ) às vezes consegue
de alteração
2.( ) raramente 3.( ) consegue
2.( ) mudou pouco
3.( ) está normal normalmente
3.( ) normal

12. Quanta atenção


4. O seu animal manteve o animal está dando
8. Como está o sono do
os hábitos de higiene para a família?
seu animal?
(lamber-se, p. ex.)? 0.( ) está indiferente
0.( ) muito ruim
0.( ) não 1.( ) pouca atenção
1.( ) ruim
1.( ) raramente 2.( ) aumentou muito
2.( ) bom
2.( ) menos que antes (carência)
3.( ) normal
3.( ) está normal 3.( ) não mudou/está normal

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RECEBIMENTO: 27/06/2008
APROVAÇÃO: 06/08/2008

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