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A Expedicao Da KON-TIKI
A Expedicao Da KON-TIKI
I - Uma teoria
II - Nasce uma expedição
III - Para a América do Sul
IV - Através do Pacífico (I)
V - A meio do caminho
VI - Através do Pacífico (II)
VII - Para as ilhas dos mares do Sul
VIII - Entre polinésios
CAPÍTULO I -- Uma Teoria
Se, por exemplo, o leitor empreende uma viagem marítima numa jangada de madeira com
um papagaio e cinco companheiros, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, acordará
uma manhã em pleno mar, talvez um pouco mais descansado que de costume, e começará
a pensar no caso.
Numa manhã assim, sentei-me e pus-me a escrever num diário de bordo, humedecido pelo
orvalho nocturno:
«17 de Maio. Dia da Independência da Noruega. Mar grado. Vento de feição. Hoje sou eu o
cozinheiro. Achei na coberta sete peixes voadores, uma lula no telhado da cabina, e na
improvisada cama de Torstein um peixe desconhecido...»
Bengt, disse, empurrando para o lado o papagaio verde que queria empoleirar-se no diário
de bordo. Você é capaz de me dizer como foi que viemos parar aqui?
Os polegares deslocaram-se para três ripas adiante e Bengt continuou a ler Goethe. Fora
da cabina outros três homens trabalhavam no convés de bambu, sob um sol abrasador.
Seminus, trigueiros, barbados, com riscas de sal pelas costas abaixo, a sua aparência era
de quem nunca tivesse feito outra coisa senão atravessar o Pacífico em jangadas de
madeira, rumo ao Oeste. Erik entrou pela abertura, rastejando, com o seu sextante e um
maço de papéis.
Oeste por oito graus e dois minutos Sul. Andámos bem ontem, rapazes!
Pegou no meu lápis e traçou um minúsculo círculo num mapa pendurado na parede de
bambu; esse minúsculo círculo vinha juntar-se a uma série de outros dezanove que
descreviam uma curva, partindo do porto de Callao, na costa do Peru. Herman, Knut e
Torstein, ansiosos, também se introduziram, rastejando, na cabina, para ver o novo
circulozinho que nos punha a umas boas quarenta milhas marítimas mais perto das ilhas
dos mares do Sul do que o último círculo da série.
- Estão a ver, meninos? disse Herman com orgulho: isto significa que nos encontramos a
850 milhas marítimas da costa do Peru.
- E que temos ainda 3.500 até alcançarmos as ilhas mais próximas, acrescentou Knut,
cautelosamente.
- E para falar com inteira exactidão, disse Tornstein, estamos a 4.877 metros acima do
fundo do mar e a algumas toesas abaixo da lua.
Em tão árdua e prática escola, adquiríramos experiência de muitos dos curiosos problemas
do Pacífico. Creio que, tanto no corpo como no espírito, muitas vezes havíamos seguido as
pegadas dos homens primitivos que tinham aportado àquelas ilhas, vindos de uma região
desconhecida, e cuja posteridade polinésia governou soberanamente a ilha, até que
chegaram homens da nossa raça com a Bíblia em uma das mãos e pólvora e aguardente
na outra.
Naquela noite, então, estávamos sentados, como tantas vezes fazíamos, na praia
enluarada, tendo à nossa frente o oceano. Bem despertos e impregnados do ambiente que
nos rodeava, não houve impressão que nos escapasse. Respirávamos, a plenos pulmões, o
aroma de mata luxuriante e de água salobra e ouvíamos o vento fustigando a folhagem e o
topo dos coqueiros. Em intervalos regulares, todos os outros ruídos eram superados pelos
vagalhões que vinham rolando do mar e se arremessavam na direcção da terra até
rebentarem nos pedregulhos da praia, formando círculos de branca espuma. Ouvia-se um
rugido, um sussurro, um ribombo, no meio de milhares de pedras rutilantes, até que tudo
outra vez se aquietava quando a água do mar se retirava em busca de novas forças com
que repetir a investida contra a costa invencível.
- Coisa curiosa, comentou Liv, não há vagalhões como este no outro lado da ilha.
- É que, expliquei, este é o lado do vento, e as correntes marítimas dirigem-se para esta
banda.
"Continuávamos sentados a admirar o mar que não desistia de demonstrar que havia de vir
até ali, encapelando-se sempre de Leste. Era o eterno vento Leste, o vento alísio, que havia
encrespado a superfície do mar, subvertendo-o e arrojando-o para a frente, investindo para
o horizonte, a Leste, e daí até às ilhas. Aqui o incoercível avanço do oceano vinha afinal
quebrar-se de encontro às fragas e recifes, enquanto o vento Leste se erguia altaneiro por
sobre matas, costas e montanhas e prosseguia, indómito, para Oeste, de ilha cm ilha, rumo
ao Ocidente.
Assim as ilhas e as ligeiras formações de nuvens tinham flutuado sobre o mesmo horizonte
oriental desde a antemanhã dos tempos. Os primeiros homens que haviam abordado a
estas ilhas sabiam muito bem que era assim. Sabiam disso aves e insectos, e à vegetação
das ilhas não escapava, de nenhum modo, esta circunstância. E nós também sabíamos que
longe, lá abaixo do horizonte, na direcção de Leste, de onde as nuvens emergiam, estava
localizado o litoral sul-americano. Separavam-nos dele 4.300 milhas marítimas, não
havendo de permeio mais que céu e água.
Olhávamos para as nuvens em movimento e para a agitação do mar que a lua prateava, e
escutávamos as palavras de um velho, seminu, acocorado diante de nós, enquanto a nossa
vista se fixava no brilho mortiço de uma fogueira que se extinguia.
- Tiki, disse tranquilamente o velho, era ao mesmo tempo deus e chefe. Foi Tiki quem
trouxe os meus antepassados para estas ilhas onde agora vivemos. Antes, habitávamos
uma grande região para lá do mar.
Com um graveto mexeu nos tições para que se não apagassem. O ancião sentou-se e
começou a cismar. Vivia os tempos passados aos quais se achava firmemente ligado. Tinha
o culto de seus avós e das proezas destes, remontando até a época dos deuses. O seu
maior desejo era reunir-se-lhes de novo. O velho Tei Tetua era o único sobrevivente de
todas as extintas tribos da costa oriental de Fatuhiva. Ignorava a idade que tinha, mas a
pele encarquilhada, coriácea, escura como a casca das árvores, dava-lhe a aparência de ter
sido curtida, ao sol e ao vento, durante um século. Era certamente um dos poucos,
naquelas ilhas, que ainda se lembravam das histórias lendárias do grande deus-chefe
polinésico Tiki, filho do Sol, e que nelas acreditou.
Quando, naquela noite, nos metemos na cama, na choupana apoiada sobre estacas, as
histórias que o velho
Tei Tua nos contara, a respeito de Tiki e da antiga pátria dos ilhéus, além mar, ainda me
povoavam o espírito, acompanhadas pelo soturno bramido da ressaca distante. Tudo aquilo
soava como uma voz de tempos remotos e parecia ter qualquer coisa que dizer no silêncio
da noite. Eu não conseguia conciliar o sono. Era como se o tempo não mais existisse e Tiki
e seus marujos estivessem a fazer o seu primeiro desembarque lá em baixo, na praia, onde
as ondas vinham quebrar-se. De repente, assaltou-me uma ideia.
Foi, talvez, assim que a coisa começou. Ou melhor uma série de factos que tiveram como
resultado dar com seis de nós e um papagaio verde numa jangada por alturas da costa sul-
americana.
Recordo-me como espantei meu pai e assombrei minha mãe e os meus amigos quando, de
regresso à Noruega, entreguei ao Museu Zoológico da Universidade os meus frascos de
vidro com escaravelhos e peixes de Fatuhiva. Eu queria dizer adeus aos estudos de
Zoologia e dedicar-me aos povos primitivos. Haviam-me fascinado os mistérios ainda não
decifrados dos mares do Sul. Devia haver uma solução racional para eles, e o meu
objectivo precípuo era identificar o lendário herói Tiki.
Nos anos que se seguiram, as vagas do mar e as ruínas da selva foram uma espécie de
sonho remoto e irreal a formar o fundo e o acompanhamento dos meus estudos acerca dos
povos do Pacífico. Se é inútil procurar interpretar os pensamentos e as acções de um povo
primitivo lendo livros e visitando museus, é igualmente inútil a um explorador do nosso
tempo tentar atingir os horizontes que uma única estante de livros pode abranger.
Obras científicas, diários da época das mais antigas explorações e intermináveis colecções
existentes em museus da Europa e da América, ofereciam-me opulento material a utilizar na
solução do enigma. Desde que a nossa raça alcançou as ilhas do Pacífico, depois do
descobrimento da América, investigadores de todas as províncias do saber têm coligido um
repositório quase inesgotável de informações a respeito dos habitantes dos mares do Sul e
de todos os povos que vivem nas suas cercanias. Mas nunca existiu acordo quanto à
origem desse isolado povo de ilhéus, ou quanto à razão pela qual esse tipo só é encontrado
disperso por todas as ilhas solitárias da parte oriental do Pacífico.
Tem sido esta, entre leigos, uma teoria popular e uma explicação plausível, mas os
geólogos e outros investigadores não lhe dão importância. Além de que os zoólogos provam
facilmente, pelo estudo de insectos e caracóis das ilhas dos mares do Sul, que, durante
toda a História da Humanidade, essas ilhas estiveram tão completamente isoladas umas
das outras e dos continentes que as rodeiam como o estão hoje.
Sabemos, portanto, com absoluta certeza, que a primitiva raça polinésica deve ter vindo em
alguma época, espontaneamente ou não, ao sabor das águas ou com a força das velas de
uma embarcação qualquer, até essas ilhas longínquas. E uma observação mais atenta dos
habitantes dos mares do Sul revela que a vinda deles não pode datar de muitos e muitos
séculos. Pois, se bem que os polinésios vivam dispersos sobre uma área de mar que tem
quatro vezes o tamanho de toda a Europa, não lograram contudo produzir línguas diferentes
nas diferentes ilhas. Há milhares de milhas marítimas de Havai, no Norte, à Nova Zelândia
no Sul, de Samoa no Oeste à ilha de Páscoa no Leste, e no entanto todas estas tribos
isoladas falam dialectos de uma língua comum a que demos o nome de polinésio. A escrita
era desconhecida em todas as ilhas, existindo todavia algumas tabuinhas de madeira nas
quais se viam hieróglifos incompreensíveis que os naturais conservaram na ilha de Páscoa,
embora nem eles nem ninguém pudesse decifrá-los. Tinham, porém, escolas, e a sua
disciplina mais importante era o estudo poético da História, pois História, na Polinésia, era o
mesmo que Religião. Tinham o culto dos antepassados; veneravam os seus chefes mortos
a partir da época de Tiki, sendo este tido como filho do Sol.
De onde podiam ter vindo essas levas tardias de emigrantes? Poucos investigadores
parecem ter levado em conta o factor decisivo de que o povo que desembarcou nas ilhas
em data tão tardia se achava na Idade da Pedra. Apesar da sua inteligência e da sua, a
outros respeitos, assombrosa cultura, estes navegantes trouxeram consigo um certo tipo de
machado de pedra e uma porção de outros instrumentos característicos da Idade da Pedra,
e espalharam-nos por todas as ilhas em que se estabeleceram. Cumpre não esquecer que,
a não ser um ou outro povo isolado e selvícola e certas raças atrasadas, não havia
nenhuma civilização do mundo, com capacidade reprodutora, que ainda estivesse no nível
da Idade da Pedra nos anos 500 ou 1100 da nossa era, excepto no Novo Mundo. Ali, até
mesmo as mais elevadas civilizações indígenas desconheciam completamente o uso do
ferro e empregavam machados e instrumentos de pecha do mesmo tipo dos que eram
usados nas ilhas dos mares do Sul até a época das explorações.
Assim, não somente as minhas suspeitas mas também a minha atenção se afastaram cada
vez mais do Velho Mundo, onde tantos haviam procurado e nenhum havia encontrado nada,
como se voltaram para as civilizações indígenas da América, tanto as conhecidas como as
desconhecidas, as quais ninguém até então tinha considerado E na costa Leste mais
próxima, onde hoje a República sul-americana do Peru se estende do Pacífico até às
montanhas, não havia falta de vestígios, uma vez que alguém os procurasse. Ali vivera
outrora um povo desconhecido que fundara uma das mais estranhas civilizações do mundo,
até que subitamente, há muito, esse povo desaparecera, como que varrido da face da terra.
Deixou após si enormes estátuas de pedra semelhantes a seres humanos, que faziam
lembrar as de Pitcairn, as das ilhas Marquesas e da Páscoa, e imensas pirâmides
construídas em degraus como as de Taiti e de Samoa. Extraiam das montanhas, com
machados de pedra, blocos de pedra de tamanho descomunal e transportavam-nos pelo
campo, quilo metros a fio. Depois punham-nos em pé ou colocavam uns em cima de outros
para formar portões, paredões e terra plenos, exactamente como os vamos encontrar em
algumas das ilhas do Pacífico.
Os incas possuíam o seu grande império nessa região montanhosa quando os primeiros
espanhóis chegaram ao Peru. Disseram aos recém-chegados que os colossais
monumentos abandonados lá no meio da paisagem tinham sido erigidos por uma raça de
deuses brancos que ali haviam vivido antes deles. Esses arquitectos desaparecidos eram,
segundo a descrição que deles faziam, mestres sábios, pacatos, oriundos do Norte, de
onde tinham vindo ainda na aurora dos tempos e que ensinaram aos antepassados dos
incas a arquitectura e a agricultura e também os bons costumes e as boas maneiras. Eram
diferentes dos indígenas, tendo a pele branca e usando longas barbas; eram também mais
altos que os incas. Afinal saíram do Peru tão subitamente como haviam chegado; os incas,
por seu turno, assenhorearam-se do país, e os mestres brancos desapareceram para
sempre da costa sul-americana e fugiram para Oeste, atravessando o Pacífico.
Ora, aconteceu que, quando os europeus chegaram às ilhas do Pacífico, espantaram-se por
ver que muitos dos nativos tinham a pele quase branca e eram barbados. Em muitas ilhas
havia famílias inteiras notadas pela palidez da pele, com o cabelo variando entre o
avermelhado e. o louro, olhos azul-cinzentos e rostos quase semíticos, de nariz aquilino.
Por seu turno, os polinésios tinham pele bronzeada, cabelo muito preto e nariz chato e
carnudo. Os de cabelo vermelho denominavam-se urukehu e diziam-se descendentes
directos dos primeiros chefes das ilhas que eram deuses brancos, tais como Tangaroa,
Kane e Tiki. Lendas em torno de brancos misteriosos, de que os ilhéus descendiam, eram
correntes em toda a Polinésia. Quando Roggeween descobriu a ilha de Páscoa, em 1772,
notou com surpresa «homens brancos» entre os que se achavam na praia. E a gente da
ilha de Páscoa podia enumerar, com exactidão, os seus antepassados de tez branca até o
tempo de Tiki e do Hotu Matua, quando singraram através do oceano, «vindos de uma terra
montanhosa a Leste, requeimada pelo sol». Prosseguindo nas minhas pesquisas, encontrei
surpreendentes vestígios na cultura, na mitologia e na língua do Peru, que me incitaram a
aprofundar ainda mais, até identificar o lugar e a origem do deus tribal polinésio Tiki.
E encontrei o que esperava. Lia eu as lendas incas do rei-sol Virakocha, que foi o chefe
supremo do desaparecido povo branco do Peru, e eis que encontro o seguinte:
«Virakocha é um nome inca (Ketchua) e por conseguinte de data bastante recente. O nome
original de deus-sol Virakocha, que parece ter sido mais usado no Peru em tempos idos, era
Kon-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki. Kon-Tiki era sumo sacerdote e rei--sol dos
lendários «homens brancos», dos incas, que tinham deixado as enormes ruínas nas
margens do lago Titicaca. Reza a lenda que Kon-Tiki foi atacado por um chefe chamado
Cari que veio ao vale Coquimbo. Numa batalha travada numa ilha do lago Titicaca, os
misteriosos brancos barbados foram trucidados, mas Kon-Tiki e seus companheiros mais
chegados escaparam e, mais tarde, aportaram à costa do Pacífico, de onde finalmente
desapareceram sobre o mar para as bandas do ocidente.»
Já eu não tinha dúvida de que o branco deus-chefe Sol-Tiki que, segundo os incas, havia
sido pelos pais destes, expulso do Peru para o Pacífico, era idêntico ao branco deus-chefe
Tiki, filho do Sol, a quem os habitantes de todas as ilhas orientais do Pacífico reconheciam
como o primitivo fundador da sua raça. E os pormenores da vida de Sol-Tiki no Peru, com
os antigos nomes de lugares em redor do lago Titicaca, pululavam em lendas históricas
entre os naturais das ilhas do Pacífico. Mas, por toda a Polinésia, encontrei indicações de
que a pacífica raça de Kon-Tiki não logrou conservar as ilhas só para si por muito tempo.
Consoante essas indicações, barcaças guerreiras do tamanho dos navios dos vikings, e
amarradas duas a duas, haviam transportado por mar indígenas do nordeste a Havai e,
mais para o Sul, a todas as demais ilhas. Estes misturaram o seu sangue com o da raça de
Kon-Tiki, trazendo nova civilização à ilha de regime monárquico. Foi este o segundo povo
na Idade da Pedra que veio para a Polinésia, em 1100, ignorando a cerâmica, a existência
dos metais, sem rodas nem tear nem qualquer cultivo de cereais.
Sucedeu, pois, que eu estudava entalhaduras feitas na rocha, segundo o antigo estilo
polinésico comum entre os indígenas do nordeste na Colúmbia Britânica, quando os
alemães invadiram a Noruega.
Direita, volver; esquerda, volver; meia volta, volver! Lavar escadas de quartel, engraxar
botas, treino de rádio-transmissão, paraquedismo... e por fim um comboio de Murmansk a
Finmark, onde o deus-guerra da técnica reinou, na ausência do deus-Sol, durante o escuro
Inverno.
Veio a Paz. E um dia a minha teoria ficou completa. Devia porém ir à América e pô-la à
prova.
Tal fora o início da aventura, junto a uma fogueira numa ilha dos mares do Sul, onde um
velho indígena, sentado no chão, nos narrou lendas e histórias da sua tribo. Anos mais
tarde, achava-me, por minha vez, sentado em companhia de outro velho, então na escura
Secretaria de um vasto museu de Nova-Iorque.
O Pai Natal teria decerto o mesmo ar daquele velho, se alguém ousasse afirmar que, no
ano seguinte, o Natal ia cair no dia de São João.
- O senhor não tem razão. Está erradíssimo, repetiu, abanando a cabeça, indignado, como
para afugentar dela uma ideia.
- Mas o senhor ainda não leu os meus argumentos, insisti, fazendo com a cabeça um
esperançoso movimento na direcção do manuscrito que estava em cima da mesa.
- Argumentos! retorquiu. Não é possível tratar de problemas etnográficos como se fosse um
romance policial!
Cuidadosamente, afastou para um lado o manuscrito que não abrira, e inclinou-se sobre a
mesa.
- É bem verdade que a América do Sul foi a pátria de algumas das mais curiosas
civilizações da antiguidade, e que não sabemos nem quem eram os seus representantes
nem para onde foram quando os incas passaram a dominar ali. Uma coisa, porém,
sabemos ao certo: é que nenhum povo da América do Sul se passou para as ilhas do
Pacífico.
- Sabe por quê? É simples. Porque não podiam chegar lá. Não dispunham de botes!
- Não me venha dizer que o senhor é capaz de tentar uma excursão, desde o Peru até as
ilhas do Pacífico, numa jangada de madeira de balsa.
Não pude responder a isto. Era já tarde. Ambos nos levantamos. Enquanto me
acompanhava até à porta, o velho cientista bateu-me bondosamente no ombro e disse que
se eu quisesse continuar aprofundar o caso, a única coisa que tinha a fazer era vir ter com
ele. Mas no futuro devia especializar-me no estudo da Polinésia ou da América, e não
misturar duas distintas áreas antropológicas. E voltou para a mesa de trabalho.
Naquela mesma noite, fui bater à porta de uma velha casa, num afastado recanto de
Greenwich Village. Gostava de levar até ali os meus pequenos problemas quando sentia a
vida um tanto enredada por causa deles.
- Mal, respondi. Ninguém quer ler o manuscrito. Encheu os pratos e pusemo-nos a comer.
- É isto, tornou ele; todas as pessoas que você procurou pensam que se trata de uma ideia
passageira sua. Como sabe, aqui na América aparece gente com cada ideia extravagante!
- Sim, insistiu. Trata-se do seu modo de encarar o problema. É de especialistas toda aquela
corja, e não acreditam num método de trabalho que se aprofunda em cada ramo especial,
da botânica à arqueologia. Eles restringem o seu raio de acção a cavar fundo para obter
mais amplos pormenores. A pesquisa moderna exige que cada especialidade científica fure
o seu próprio buraco. Não é costume fazer-se uma selecção daquilo que emerge das
cavidades abertas e tentar pôr ordem no que se seleccionou.
- Veja isto, disse. É o meu último trabalho sobre desenhos de pássaros em bordado rústico
chinês. Gastei nisto sete anos, mas foi imediatamente aceite para publicação. O que hoje
querem é obra especializada e em pormenor.
Carl tinha razão. Resolver, porém, os problemas do Pacífico sem lançar luz sobre eles de
todos os lados, parecia-me o mesmo que organizar um quebra-cabeças dando apenas uma
parte dos dados.
- Não.
- Mas que foi que disse hoje o seu velho amigo do museu?
- Não mostrou interesse. Disse que uma vez que os indígenas dispunham apenas de
jangadas abertas, era descabido considerar a possibilidade de haverem sido eles os
descobridores das ilhas do Pacífico.
O homenzinho, de repente, pôs-se a enxugar com fúria o prato que tinha na mão.
- Sim, adiantou, em boa verdade, a mim também me parece uma objecção de ordem prática
à sua teoria.
Olhei tristemente para o pequeno etnólogo que eu julgara ser um decidido aliado meu.
- Mas não me vá compreender mal, apressou-se a acrescentar. Por um lado acho que você
tem razão, mas por outro parece-me incompreensível. O meu trabalho sobre desenhos vem
em apoio da sua teoria.
- Carl, volvi, estou tão certo que os indígenas cruzaram o Pacífico nas suas jangadas que
ando com vontade de construir eu mesmo uma jangada como a deles e atravessar o mar
para provar que isso é possível.
O meu amigo tomou aquilo como um gracejo e riu-se, não sem mostrar certo pavor diante
de tal ideia.
- Está louco! Uma jangada?
O homem não sabia o que dizer e limitou-se a fitar-me com ar estranho, como se esperasse
um sorriso para mostrar que eu estava gracejando.
Não conseguiu o que esperava. Naquele momento, via eu que, na prática, ninguém
aceitaria a minha teoria por causa da extensão de mar, aparentemente interminável,
existente entre o Peru e a Polinésia, extensão essa que eu ia tentar vencer sem nenhum
outro meio a não ser uma jangada pré-histórica.
A renda da minha casa vencia-se naquela semana. Ao mesmo tempo, uma carta do Banco
da Noruega informava-me que já não poderia obter dólares. Haviam sido impostas
restrições cambiais. Peguei na mala e tomei o metropolitano para Brooklyn. Aí, hospedei-
me no Lar dos Marinheiros Noruegueses, onde a alimentação era boa e substanciosa e os
preços condiziam com a minha bolsa. Arranjei um quarto pequeno no segundo ou terceiro
andar, mas tomava as refeições juntamente com os marinheiros numa vasta sala de jantar
situada no. andar térreo.
Mas de jangadas pouco entendiam. Jangada não era navio, não tinha quilha nem amurada.
Era uma coisa a boiar cm que a gente, numa emergência, se salvava até que um barco
qualquer, errante, nos apanhasse... Todavia, um deles mostrou grande respeito para com
as jangadas no alto mar. Tinha flutuado numa à mercê das ondas e do vento, durante três
semanas, quando um torpedo alemão pusera a pique o seu navio, em pleno Atlântico.
- Entretanto, o senhor não pode governar uma jangada, acrescentou o meu informador. Ela
joga para um lado e para o outro, para a frente e para trás, ao capricho do vento.
Na biblioteca, fui desenterrar relatórios deixados pelos primeiros europeus que haviam
atingido a costa do Pacífico, na América do Sul. Não faltavam esboços ou descrições das
enormes jangadas de madeira de balsa dos indígenas. Tinham vela quadrada, quilha
corrediça e um comprido remo de direcção à popa, podendo assim ser manobradas.
Passei algumas semanas no Lar do Marinheiro. Não veio nenhuma resposta de Chicago ou
de outras cidades às quais eu enviara cópias da minha teoria. Ninguém as tinha lido.
Um tanto desconcertado, olhou para mim em vez de olhar para o mapa, mas no mesmo
instante respondeu afirmativamente. O coração bateu-me com força, pois sabia que tudo
quanto se referia a navegação era para Wilhelm não só coisa de ofício mas apaixonante.
Inteirei-o, imediatamente, do que planeava. Com espanto meu, todavia, declarou
simplesmente que aquilo era rematada loucura.
- É mais fácil despertar o interesse dos outros com uma expedição do que com um
manuscrito que ninguém lê.
- Pode ser, mas, apesar de tudo, conforme você mesmo disse, uma entre dez logrou êxito
antes de nós.
As crianças saíram para jogar croquet, e naquele dia não discutimos mais o assunto.
No fim da semana seguinte, estava eu de volta a Ossining com o mapa debaixo do braço. E
quando parti, havia uma comprida linha feita a lápis, desde a costa do Peru até as ilhas
Tuamotu no Pacífico. O meu amigo comandante já havia perdido a esperança de me fazer
desistir d - ideia, e ficámos sentados horas a fio calculando a velocidade provável da
jangada.
- Noventa e sete dias. disse Wilhelm, mas lembre-se que é apenas em condições
teoricamente ideais, com bom vento em todo o percurso, e na hipótese de realmente portar-
se a jangada como você supõe que se portará. Deve fatalmente reservar quatro meses para
a viagem e ir aparelhado para muito mais.
- Esplêndido! exclamei com optimismo. Vamos calcular um prazo folgado de quatro meses e
fazê-la em noventa e sete dias.
Próximo ao Central Park, está localizado um dos clubes mais selectos de Nova Iorque. Nele
não existe mais do que uma placazinha de metal, impecavelmente brunida, cm que se lê
«Clube de Exploradores», para dizer aos transeuntes que no interior daquela casa há
qualquer coisa de menos banal. E, uma vez lá dentro, podia uma pessoa saltar de pára-
quedas num mundo estranho, a milhares de léguas das filas de automóveis de Nova Iorque,
ladeados de arranha-céus. Quando a porta que dá para a grande cidade se fecha atrás de
(piem penetrou naquele clube, envolve-o uma atmosfera de caçadas de leões, alpinismo e
vida no Polo, tudo isto aliado à impressão de que nos achamos sentados no salão de
confortável iate, numa viagem em redor do Globo. Troféus relembrando caçadas de
hipopótamos e de gamos, espingardas de caça grossa, colmilhos, tambores de guerra,
lanças, tapetes da índia, ídolos, miniaturas de navios, bandeiras, fotografias e mapas
rodeiam os membros do clube quando se reúnem para jantar ou para ouvir conferencistas
que vêm de regiões distantes.
Depois da minha viagem às ilhas Marquesas, fora eleito sócio efectivo do clube, e como
sócio mais novo raramente perdia uma reunião se me encontrava na cidade. De modo que,
quando, naquela ocasião, entrei no clube, numa noite chuvosa de Novembro, não fiquei
pouco surpreendido ao encontrar o salão num estado que não era o habitual. Via-se, no
centro, sobre o chão, uma jangada de borracha cheia de ar com rações e acessórios de um
bote, enquanto que, mesas e paredes, estavam cobertas de pára-quedas, macacões de
borracha, coletes salva-vidas e equipamento polar, juntamente com balões de água
destilada e outros curiosos inventos. O coronel Haskin, recentemente eleito membro do
clube, e que desempenhava funções no laboratório de equipamento do Comando de
Material do Ar, ia fazer uma conferência e uma demonstração de alguns novos inventos
militares que, no seu modo de ver, futuramente seriam de utilidade em expedições
científicas, tanto no Norte como no Sul.
Era assunto decidido. Fui eu o último a deixar as dependências do clube naquela noite. Fiz
questão de examinar, nos mínimos detalhes, todo aquele material novo em folha, que tão
inopinadamente me cairá nas mãos e que estava à minha disposição. Era justamente o que
eu precisava - o material com o qual trataríamos de salvar a vida se, contrariando a
expectativa, a nossa jangada de madeira desse sinal que ia ceder e não tivéssemos
nenhuma outra ali perto.
Todo aquele material era ainda objecto dos meus pensamentos durante o almoço, no Lar do
Marinheiro, ira manhã seguinte, quando um moço bem vestido e de conformação atlética,
empunhando a sua bandeja, se sentou na mesma mesa em que eu estava. Começámos a
conversar, e pareceu-me que também não era embarcadiço, mas sim engenheiro de
Trondheim, e que se achava na América para comprar acessórios de maquinaria e adquirir
experiência na técnica de refrigeração. Não residia longe e vinha frequentemente comer ao
Lar dos Marinheiros por causa dos bons pratos noruegueses que ali se serviam.
Perguntou-me o que fazia e eu, em poucas palavras, pu-lo ao facto dos meus planos.
Disse-lhe que, se até o fim da semana não obtivesse uma resposta definitiva a respeito do
meu manuscrito, tomaria providências para organizar uma expedição em jangada. O meu
companheiro de mesa falava pouco mas ouvia-me com grande interesse.
- Quando?
—O mais breve possível. Se me demorar muito por aqui, virão as grandes rajadas do
Antárctico e nas ilhas também começará a quadra dos furacões. Devo partir do Peru dentro
de poucos meses, porém preciso antes arranjar dinheiro e organizar tudo.
- Pensei em seis; representa alguma companhia a bordo, além de ser o - número preciso
para os quatro quartos de revezamento no governo da embarcação.
O meu companheiro esteve uns momentos como que a ruminar uma ideia no seu íntimo e
depois explodiu com ênfase:
Acerca daquele homem que estava ali na minha frente eu nada sabia a não Ser que tinha
um semblante bom e amigo, o que já era alguma coisa.
O seu nome era Herman Watzinger; ambos - eu e ele - éramos marinheiros de primeira
viagem.
Alguns dias depois, levei Herman como meu hóspede ao Clube de Exploradores. Lá demos
com o explorador do Pólo, Peter Freuchen. Possui Freuchen a apreciável qualidade de
nunca desaparecer no meio da multidão. Grande como o colosso de Rodes e com uma
barba respeitável, tem a aparência de um mensageiro que tivesse vindo do coração da
tundra. Cerca-o uma atmosfera especial: é como se ele andasse a passear um urso pardo.
Com o caloroso alento de Freuchen, o nosso plano ganhou tal ímpeto que deixou de ser
segredo, pelo que foi logo divulgado pela Imprensa escandinava. Já na manhã seguinte, os
repórteres foram bater com força à minha porta no Lar dos Marinheiros; e chamavam-me ao
telefone. O resultado da conversa foi que, naquele mesmo dia à noite, eu e Herman
estávamos a tocar à campainha / de uma casa situada num bairro elegante da cidade.
Fomos recebidos por um guapo moço, de chinelas de pelica, que usava roupão de seda
sobre um pijama azul. Dava quase impressão de languidez e, tendo um lenço perfumado
diante do nariz, desculpou-se, alegando estar constipado. Não obstante, sabíamos que
aquele jovem se tornara famoso na América pelas suas façanhas como aviador, durante a
guerra. Além do dono da casa, visivelmente calmo, estavam presentes dois jovens
jornalistas, vibrantes de actividade e de ideias. Reconhecemos num deles um hábil
correspondente.
Enquanto era servido um bom whisky, o dono da casa explicou-nos o seu interesse pela
nossa expedição. Ofereceu-se para conseguir o necessário capital se eu escrevesse artigos
para os jornais e fizesse conferências, pelo país, no meu regresso. Por fim, chegámos a
acordo e erguemos um brinde à auspiciosa colaboração entre os patrocinadores da
expedição e os que nela iam tomar parte. Dali por diante todos os nossos problemas
económicos estariam resolvidos, uma vez que deles se encarregavam os nossos
patrocinadores, o que nos tranquilizou bastante. Cumpria-nos, a mim e a Herman, tratar
imediatamente de providenciar a tripulação e equipagem, construir uma jangada e fazer-nos
ao largo antes que principiasse a época dos furacões.
Um grupo de homens que deviam viajar juntos, a bordo de uma jangada, devia ser
escolhido com cuidado. De contrário, haveria conflitos e outras complicações depois de um
mês de isolamento no mar. Eu não queria marinheiros para dirigir a jangada; do manejo de
uma jangada entendiam mais ou menos tanto quanto nós, e uma vez levada a bom termo a
empresa, não desejava que viessem depois dizer que o êxito era talvez devido ao facto de
nós sermos melhores marujos do que os antigos construtores de jangadas do Peru.
Contudo, precisávamos a bordo de um homem que soubesse usar um sextante e marcar a
nossa derrota numa carta que servisse de base aos relatórios científicos.
- Conheço um pintor, disse eu a Herman, sujeito espadaúdo que sabe tocar guitarra e é
muito engraçado.
Estudou navegação e rodou pelo mundo, em navio, várias vezes, antes de voltar a viver em
terra firme, empunhando os pincéis e uma paleta. Conhecemo-nos desde a adolescência e
muitas vezes fizemos juntos excursões pelas montanhas da Noruega, acampando ao ar
livre. Vou escrever-lhe e expor-lhe o assunto e tenho a certeza que aceitará.
- Radiotransmissão? perguntei, horrorizado. Para que diabo vamos precisar disso numa
jangada pré-histórica? Não será um objecto supérfluo?
- De modo nenhum. Trata-se de uma precaução, sem nenhum efeito na sua teoria, desde
que não mandemos nenhum SOS a pedir socorro. E teremos necessidade do aparelho para
transmitir observações sobre o tempo e outras comunicações. Ao mesmo tempo, não
poderemos receber avisos de próximos tufões, porquanto não há transmissões para aquela
parte do oceano e, se as houvesse, de que nos serviriam numa jangada?
- Conhece-os?
- Conheço. Vi Knut, pela primeira vez, na Inglaterra, no ano 1944. Tinha sido condecorado
pelos ingleses por ter tomado parte numa acção, em pára-quedas, que frustrou os esforços
dos alemães para obter a bomba atómica; foi o radiotelegrafista na tremenda sabotagem
verificada em Rjukan. Quando o conheci, acabava de voltar de outra façanha na Noruega; a
Gestapo apanhara-o com um aparelho radiorreceptor, no interior de uma chaminé, na
Maternidade de Oslo. Os nazistas localizaram-no por meio de radiogoniómetro e o edifício
foi cercado por soldados alemães com metralhadoras postadas defronte de cada porta do
prédio. O chefe da Gestapo, Fehmer, encontrava-se em pessoa no pátio à espera que
fizessem Knut descer. Mas o tiro saiu-lhe pela culatra. Fazendo «falar» a pistola, Knut foi
abrindo caminho desde a trapeira até à cave e daí em direcção aos fundos do edifício, onde
desapareceu pulando o muro do hospital, com uma saraivada de balas atrás de si.
Encontrei-o num esconderijo instalado num vetusto castelo inglês; havia voltado, a fim de
organizar uma cadeia secreta entre mais de cem estações transmissoras, na Noruega
ocupada pelos alemães.
Reinava então por aquelas bandas verdadeiro inverno ártico, e a aurora boreal bruxuleava
no firmamento estrelado que se arqueava sobre nós, escuro como breu, dia e noite. Quando
penetrámos nas pilhas de cinza da área abrasada de Finmark, roxos de frio e vestidos de
peles, um tipo alegre de olhos azuis e cabelo louro espetado saiu de rojo de uma
choupanazinha nas montanhas. Era Torstein Raaby. Primeiramente fugira para a Inglaterra,
onde frequentou um curso de sabotagem e depois introduziu-se clandestinamente na
Noruega, nas proximidades de Tromsõ. Andara escondido com um aparelhozinho
transmissor perto do couraçado Tirpitz e, durante dez meses, enviara comunicações diárias
à Inglaterra acerca de tudo quanto se passava a bordo. Mandava as suas comunicações, à
noite, ligando o transmissor secreto a uma antena receptora instalada por um oficial alemão.
As suas regulares comunicações guiaram os bombardeiros ingleses que afinal meteram a
pique o Tirpitz.
Torstein fugiu para a Suécia e de lá novamente para a Inglaterra, e foi então que saltou de
pára-quedas com um novo aparelho receptor atrás das linhas alemãs, rumo aos ermos de
Finmark. Quando os alemães se retiraram, percebeu que se achava perto das nossas linhas
e saiu do seu esconderijo para nos ajudar com o pequeno receptor, visto que a nossa
principal estação tinha sido destruída por uma mina. Sou capaz de apostar que tanto Knut
como Torstein estão já fartos de andar à toa na pátria e teriam gosto em fazer uma viajata
numa jangada de madeira.
Então escrevi uma cartinha curta e despida de qualquer artifício a Erik, Knut e Torstein:
«Vou atravessar o Pacífico numa jangada de madeira para provar a teoria de que as ilhas
dos mares do Sul foram povoadas por gente vinda do Peru. Quer ir também? Não garanto
nada, a não ser uma viagem gratuita ao Peru e de ida e volta às ilhas dos mares do Sul,
durante a qual terá boas ocasiões para exercitar as suas habilidades técnicas. Responda
sem perda de tempo.»
«Irei. Torstein».
Em busca do sexto membro do grupo, ora nos definhamos num homem, ora noutro, mas
surgia sempre algum obstáculo. Entretanto, Herman e eu tivemos de atacar o problema das
provisões de boca. Não era nossa intenção comer carne de lhama velho ou papas de
kumara seca durante a nossa viagem, pois não íamos empreendê-la para fazer crer que já
tínhamos também sido índios. A nossa intenção era pôr à prova o funcionamento e a
qualidade da jangada inca, sua resistência no mar e seu porte, e ver se os elementos
realmente a impeliriam através do mar até a Polinésia com a tripulação ainda a bordo. Os
nossos precursores nativos certamente conseguiram viver de carne seca, de peixe e de
papas de kumara seca a bordo, pois era principalmente disto que viviam em terra. E, na
presente viagem. íamos procurar provar se podiam obter peixe fresco e água de chuva ao
cruzar o Oceano. Tinha ideia de estabelecer como regime alimentar simples rações de
campanha, bem conhecidas nossas do tempo da guerra.
Justamente por essa época, chegara um novo assistente do adido militar norueguês em
Washington. Eu fora subcomandante da sua companhia em Finmark e sabia que se tratava
de pessoa de intensa actividade que gostava de atacar e resolver, com energia, qualquer
problema que lhe propusessem. Bjõrn Rõrholt pertencia a esse tipo de homens que se
sentem mal quando, superada uma dificuldade, não enxergam logo outra à frente.
Escrevi-lhe explicando a situação e pedi-lhe que usasse da sua habilidade para encontrar
um homem que me pusesse em contacto com o serviço de reabastecimento do Exército
americano. As possibilidade que tínhamos consistiam no facto do laboratório estar em
experiências com novas rações de campanha que podíamos pôr à prova, da mesma
maneira que procederíamos relativamente ao material destinado ao laboratório da Força
Aérea.
- Creio que tudo correrá bem, disse. Amanhã seremos recebidos no Departamento da
Guerra. Mas é necessário uma carta do coronel.
O «coronel» era Otto Munthe-Kaas, adido militar norueguês. Mostrou-se acolhedor e ainda
mais disposto a dar-nos uma boa carta de apresentação assim que soube o que
pretendíamos.
Quando, no dia seguinte pela manhã, voltámos para buscar o documento, levantou-se de
repente e disse que seria melhor ir connosco pessoalmente. Partimos no carro do coronel a
caminho do Pentágono, o maior edifício do mundo, onde se acha instalado aquele
Departamento. O coronel e Bjõrn iam no banco da frente, envergando a melhor farda,
enquanto que Herman e eu nos sentáramos atrás e, pelo pára-brisas, observávamos o
gigantesco prédio que se erguia diante de nós. A ciclópica construção, com os seus trinta
mil funcionários e quase vinte e seis quilómetros de corredores, ia formar a moldura da
nossa eminente «conferência da jangada» com militares de alta patente. Nunca, nem antes
nem depois, a jangadazinha nos pareceu tão insignificante, a Herman e a mim.
- Aposto que vão obter o que desejam. Isto tem aspecto de operação militar, trazendo um
pouco de variedade ao nosso ramerrão burocrático diário de tempo de paz; além disso, será
uma boa oportunidade para se pôr à prova, metodicamente, o material.
Imediatamente o oficial de ligação nos preparou um encontro com o coronel Lewis no
laboratório experimental da Intendência Geral, e eu e Herman fomos levados até lá de
automóvel.
O coronel Lewis era um oficial afável, gigantesco e com jeito de desportista. Chamou
imediatamente os homens encarregados de experiências nas diferentes secções. Todos se
mostraram bem dispostos para connosco, sugerindo logo grande quantidade de material
que gostariam de que experimentássemos devidamente. Excederam as nossas mais
optimistas expectativas quando nos mencionaram um chorrilho de coisas de que
poderíamos vir a precisar, desde rações de campanha ate pomadas contra queimaduras de
sol e sacos-cama à prova de salpicos. Em seguida, levaram-nos a diversas salas, para que
fossemos examinando os objectos. Provámos rações especiais, acondicionadas em
caprichosas vasilhas; experimentámos fósforos que se acendiam mesmo quando
mergulhados em água, fogareiros «Primus», novos, e barricas de água, sacos de borracha
e botas especiais, utensílios de cozinha e facas que flutuavam, e tudo quanto uma
expedição podia necessitar.
Olhei para Herman. Parecia um bom menino, muito esperançado, andando com uma tia rica
por uma confeitaria cheia de bombons. O coronel ia à frente mostrando todas aquelas boas
coisas e, depois de uma volta completa pelas secções, os oficiais do Estado-Maior tinham
tomado nota dos diversos objectos de que iríamos precisar e respectivas quantidades.
Pareceu-me haver ganho a batalha e o meu único desejo agora era correr para o hotel a fim
de, comodamente deitado na minha cama, pensar com calma no que me cumpria fazer.
Mas o amável coronel disse-me, de repente:
- Bom, agora vamos ter com o «patrão», pois ele é quem resolverá se podemos dar-lhes
estas coisas.
Caiu-me o coração aos pés. Com que então tínhamos de gastar de novo o nosso latinório?
E quem podia saber que espécie de homem era o «patrão»?
Verificámos que o «patrão» era um pequeno oficial de modos muito sisudos. Lá de detrás
da sua mesa de trabalho, ia-nos examinando com os seus penetrantes olhos azuis
enquanto entravamos no escritório. Fez-nos sentar.
- Que desejam esses cavalheiros? perguntou com alguma rispidez ao coronel Lewis, sem
tirar os olhos dos meus.
- Ora, volveu Lewis em tom conciliatório, a nossa esperança é que talvez os expedicionários
possam escrever relatórios sobre as novas provisões e sobre parte do material, nas árduas
condições em que o irão usar.
O carrancudo oficial recostou-se com pouco estudada lentidão, tendo os olhos ainda
cravados nos meus. Enterrei-me no fundo da minha cadeira quando disse com frieza:
- Eu nada vejo que possam dar-nos em troca.
- Mas, disse subitamente o chefe, e podia-se vislumbrar agora um certo brilho nos seus
olhos, a coragem e o espírito de empreendimento também pesam na balança. Coronel
Lewis, pode dar-lhes o que necessitam!
Ainda me achava sentado, meio ébrio de prazer, no carro que nos reconduzia ao hotel,
quando Herman, a meu lado, se pôs a cacarejar uns risinhos esquisitos.
- Não, disse ele rindo abertamente, estive a calcular que as provisões que nos foram
concedidas incluem 684 latas de abacaxi, a fruta da minha predilecção.
Há centenas de coisas que fazer, e quase todas ao mesmo tempo, quando seis homens,
uma jangada de madeira e a sua carga têm de reunir-se em determinado ponto da costa do
Peru. Nós tínhamos três meses de prazo, mas não dispúnhamos de nenhuma lâmpada de
Aladino. Voámos para Nova-Iorque com uma apresentação fornecida pela Secção de
Ligação e fomos procurar o professor Behre na Universidade de Colômbia. Era o chefe da
Comissão de Pesquisas Geográficas do Departamento da Guerra, e a ele se devem as
providências que permitiram a Herman ter finalmente todos os seus valiosos instrumentos e
aparelhos destinados a medidas científicas.
Daí voámos para Washington, a fim de nos encontrarmos com o almirante Glover, no
Instituto Hidrográfico Naval. O velho lobo do mar, homem de boa índole, chamou todos os
seus oficiais e, apontando para o mapa do Pacífico pregado na parede, disse ao
apresentarmos:
Quando tudo caminhava já, o coronel inglês Lumsden convocou uma reunião na Missão
Militar Britânica de Washington, a fim de discutir os nossos futuros problemas e as
possibilidades de bom êxito. Foram-nos dados conselhos proveitosos, ao mesmo tempo
que recebíamos material inglês escolhido que nos foi remetido da Inglaterra, por avião, para
ser experimentado na expedição em jangada. Um oficial-médico inglês era entusiástico
advogado de um misterioso «pó tubarão». Deitavam-se algumas pitadas daquele pó na
água, se um tubarão se fizesse muito atrevido, e o importuno desapareceria num instante.
- Bem, disse o inglês, sorridente, é justamente isto que nós queremos averiguar!
E assim estávamos na rua, com as mãos nas algibeiras onde só havia cotão.
Tudo o mais podia parecer obscuro, mas uma coisa era muito clara. A nossa viagem tinha
um objectivo, e não queríamos que nos confundissem com os acrobatas que rolam pelo
Niágara abaixo em barris vazios ou se sentam nos nós de paus de bandeira durante
dezassete dias.
As perspectivas eram tristonhas e, durante alguns dias, não víamos possibilidade de sair do
apuro. Foi então que o coronel Munthe-Kaas surgiu novamente em cena.
- Rapazes, disse-nos, vocês estão em maus lençóis. Para principiar eis aqui um cheque.
Quando voltarem das ilhas dos mares do Sul, restituem-mo.
O seu exemplo encontrou vários seguidores, e logo o empréstimo particular tomou tal vulto
que nos dissipou as dificuldades sem ser preciso o auxílio de agentes ou de outros.
Devíamos voar para a América do Sul e encetar a construção da jangada.
As antigas jangadas peruanas eram feitas de madeira de balsa que, quando seca, é mais
leve que a cortiça. A balsa dá-se bem no Peru, mas somente além dos Andes. Assim, os
navegadores da época dos incas subiram beirando a costa até o Equador, onde derribavam
gigantescas balsas bem abaixo, na orla do Pacífico. Nós pretendíamos fazer o mesmo.
Os problemas criados por uma viagem nos tempos de hoje são diferentes dos que existiam
na época dos incas. Acham-se à nossa disposição automóveis e aeroplanos e agências de
turismo, mas, para contrabalançar todas essas facilidades, temos também uma coisa
chamada fronteiras, com guardas de botões dourados que põem em dúvida o álibi do
interessado em viajar, lhe remexem na bagagem e lhe assinalam o peso em formulários
próprios, se é que tem sorte suficiente para o deixarem entrar. Foi o medo desses homens
de botões dourados que nos aconselhou a não desembarcar na América do Sul com
caixotes e malas cheias de objectos estranhos, descobrir-nos e pedir cortesmente em mau
espanhol permissão para entrar no país e fazer-nos de vela numa jangada. Iríamos dar com
os costados na prisão.
Um dos nossos amigos do triunvirato desfeito era correspondente junto às Nações Unidas e
levou-nos até lá de carro. Ficámos vivamente impressionados quando penetrámos no
grande salão da Assembleia, onde estavam sentados, lado a lado, homens de todas as
nações a escutar em silencio o fluxo verbal de um russo de cabelos pretos, postado em
frente do descomunal mapa do mundo que ornava a parede do fundo.
O correspondente nosso amigo tratou de, num moimento mais tranquilo, abeirar-se de um
dos delegados do Peru e, em seguida, de um dos representantes do Equador, e trazê-los
para um tête-à-tête. Refastelados em cómodo sofá de couro de uma antecâmara,
escutaram avidamente o nosso plano de cruzar o mar em apoio da teoria de que homens de
uma antiga civilização, oriundos do Peru, tinham sido os primeiros a alcançar as ilhas do
Pacífico. Ambos prometeram informar devidamente os seus Governos, assegurando-nos o
seu amparo quando regressassem aos respectivos países. Trygve Lie, passando pela sala
de espera, veio ter connosco ao saber que éramos patrícios seus, e alguém propôs que nos
acompanhasse na jangada. Mas para ele já havia bastantes vagalhões mesmo em terra. O
dr. Benjamin Cohen, do Chile, secretário assistente das Nações Unidas, era um conhecido
arqueólogo, e deu-nos uma carta para o Presidente do Peru, seu amigo pessoal.
Encontrámos também no salão o embaixador norueguês, Wilhelm von Munthe af
Morgenstierne, o qual, daí por diante, prestou à expedição valioso apoio.
Comprámos, pois, dois bilhetes, e voámos para a América do Sul. Quando os quatro
possantes motores começaram a roncar um após outro, afundámo-nos nas poltronas,
bastante extenuados. Veio-nos um indefinível sentimento de alívio por sentir concluída a
primeira parte do programa e pela convicção de que marchávamos, directamente, para a
aventura.
Com os casacos da véspera, os coletes e capotes sobre o braço, saímos de rojo para uma
atmosfera de estufa ao encontro de meridionais tagarelas em trajes dos trópicos, e sentimos
as nossas camisas pegadas às costas como papel molhado. Fomos envolvidos nos braços
dos funcionários aduaneiros e da emigração e quase carregados até um carro que nos
levou para o melhor hotel da cidade, o único que prestava. Quando chegámos, cada qual
procurou a sua casa de banho, e espojou-se sob o duche de água fria.
Estávamos no país onde cresce a balsa e íamos comprar madeira para fazer a jangada.
Infelizmente, a coisa era mais fácil de dizer que de fazer. Podíamos, é claro, comprar
madeira de balsa em quantidade, mas não em toros inteiros como queríamos. Haviam já
passado os dias em que as balsas eram acessíveis na costa. A última guerra pusera-lhes
um fim; as árvores tinham sido derribadas aos milhares e embarcadas em navios para as
fábricas de aeroplanos, por causa da extrema leveza da madeira. Informaram-nos que o
único lugar onde havia enormes balsas era na mata, no interior do sertão.
Se querem madeira de balça, têm de voltar ao Equador daqui a seis meses; por essa altura,
as chuvas cessaram e as estradas estarão enxutas.
No embaraço em que estávamos, fomos procurar D. Gustavo Von Buchwald, o Rei da balsa
no Equador, e Herman exibiu o seu esboço da jangada com as medidas da madeira que
precisávamos. O descarnado reizinho da balsa pegou, pressurosamente, no telefone e pôs
em campo os seus agentes. Estes encontraram pranchas e tábuas leves e vigas curtas,
avulsas, em cada serraria, mas não conseguiram achar um único toro que servisse. Havia
dois enormes toros, secos como palha, no próprio depósito de D. Gustavo, mas não nos
levariam longe. Tornou-se evidente que a procura era inútil.
- Um irmão meu tem uma vasta plantação de balsa, disse D. Gustavo. Chama-se Frederico
e reside em Quivedo, pequena cidade do sertão. É capaz de lhes arranjar tudo o que os
senhores precisam logo que pudermos entrar em contacto com ele depois das chuvas.
Agora é inútil por causa do estado em que fica aquela zona do país na época das chuvas.
Se D. Gustavo dizia que era inútil, todos os entendidos em balsa no Equador diriam o
mesmo. De modo, que estávamos ali em Guayaquil sem madeira para a jangada e
impossibilitados de ir às matas e cortar as árvores nós mesmos, a não ser meses depois,
quando já fosse demasiado tarde.
- E nós precisamos arranjar balsa, insisti. A jangada tem que ficar igual ao modelo, pois, de
contrário, o desastre será certo.
Achámos no hotel um pequeno mapa escolar no qual as matas eram representadas em cor
verde, as montanhas em castanho e os lugares habitados tinham um círculo vermelho em
redor. Por ele. vimos que a região das matas se estendia sem interrupção desde o Pacífico
até ao sopé dos Andes altaneiros. Tive uma ideia. Era evidentemente impraticável no
momento, partindo do litoral e atravessando a selva, atingir as balsas em Quivedo: mas sé
pudéssemos chegar até as árvores partindo do sertão, penetrando directamente no interior
da selva, vindos das nuas montanhas nevadas da cordilheira dos Andes? Havia aqui uma
possibilidade, a única que víamos à nossa frente.
O avião foi subindo pela encosta como se o fizesse num funicular invisível, e embora o
próprio Equador estivesse ali à volta, por fim tínhamos de um lado e de outro cintilantes
campos de neve. Em seguida, deslizámos entre morros e sobre um fértil planalto alpestre,
revestido de verdura primaveril, e aí desembarcámos junto à mais singular das capitais do
mundo.
A maioria dos 150.000 habitantes de Quito são índios puros ou mestiços da montanha, pois
era ali a capital de seus antepassados muito antes de Colombo e da nossa própria raça
conhecerem a América. O traço característico da cidade são os seus antigos mosteiros,
repositórios de tesouros de arte de incalculável valor, e outros magníficos edifícios que
datam do tempo dos espanhóis, sobrepondo-se airosos aos telhados das casas baixas dos
indígenas, construídas de tijolo seco ao sol. Um labirinto de vielas vai serpenteando por
entre as paredes de taipa, e vimo-las formigando de índios das montanhas, de casacos
sarapintados de vermelho e enormes chapéus de fabricação caseira. Alguns iam para o
mercado com burros de carga, enquanto outros estavam sentados, recurvos, ao longo das
paredes de adobe, dormitando ao sol ardente. Vinham a seguir uns poucos automóveis
levando aristocratas de origem espanhola vestidos à tropical, que corriam a meia
velocidade, buzinando continuamente para, ao longo das ruelas que só davam uma
passagem, abrir caminho por entre crianças, burros e indígenas de pernas nuas. Ali, nas
alturas daquele planalto, o ar era de uma transparência tão cristalina que as montanhas
circundantes pareciam figurar no painel formado pela rua e contribuir para criar aquela
atmosfera de um mundo tão diferente.
O nosso amigo do avião de carga, Jorge, denominado «o aviador maluco», pertencia a uma
das tradicionais famílias espanholas de Quito. Instalou-nos num hotel antiquado mas
aprazível, e depois foi, ora connosco ora sozinho, procurar arranjar-nos transporte sobre as
montanhas e no interior da selva até Quivedo. O nosso ponto de encontro à noite foi um
velho café espanhol, e Jorge vinha cheio de más notícias; devíamos desistir completamente
da ideia de ir a Quivedo. Não havia jeito de obter homens nem veículos que nos levassem
até ao alto das montanhas e muito menos às selvas onde as chuvas já tinham começado e
corria risco de ataque quem ficasse atolado na lama. Ainda no ano anterior, um grupo de
dez engenheiros americanos, que faziam pesquisas petrolíferas, foram encontrados mortos
por setas envenenadas na parte oriental do Equador, onde havia ainda grande número de
selvícolas que viviam inteiramente nus e caçavam com setas envenenadas.
- Alguns são degoladores profissionais, disse Jorge com voz cavernosa, ao perceber que
Herman, impassível, se servia de mais bife e vinho.
- Pensam que exagero, prosseguiu em voz baixa. Mas, embora seja rigorosa/mente
proibido, ainda há gente neste país que ganha a vida vendendo cabeças humanas. É
impossível impedi-lo, de modo que até o dia de hoje os índios das matas cortam a cabeça
de seus inimigos das tribos nómadas. Despedaçam o crânio e retiram tudo o que nele se
contém e enchem de areia quente a pele vazia da cabeça, de maneira que esta se contrai
toda até ficar reduzida a pouco mais que o tamanho da cabeça de um gato, sem perder a
forma nem as feições. Estas cabeças minguadas de inimigos já foram, em tempos, valiosos
troféus; actualmente não são mais que artigos raros do câmbio negro. Intermediários
mestiços tratam de fazê-las chegar às mãos dos compradores da costa, os quais as
vendem a turistas por preços fabulosos.
Jorge olhou para nós triunfante. Mal sabia ele que. naquele mesmo dia. eu e Herman
tínhamos sido atraídos ao cubículo de um carregador, onde nos foram oferecidas duas
dessas cabeças a 1.000 sucres cada uma. Hoje em dia muitas das tais cabeças não são
mais do que cabeças de macacos, mas as duas que nos mostraram eram autênticas, de
puros índios, e tão iguais a uma cabeça humana natural que os traços mais insignificantes
estavam conservados. Pertenciam a um homem e a uma mulher e eram ambas do tamanho
de laranjas; a mulher fora até bonita, conquanto apenas as pestanas e os longos cabelos
negros houvessem conservado o seu tamanho natural. Arrepiei-me diante de tal ideia, mas
emiti dúvidas sobre se haveria degoladores desses a Oeste das montanhas.
- Quem sabe? ciciou Jorge, hesitante. E que diria o senhor se o seu amigo desaparecesse e
a cabeça dele, em miniatura, fosse posta à venda? Foi o que aconteceu uma vez a um
amigo meu, acrescentou, encarando-me inflexivelmente.
- Conte-nos como foi isso, disse Herman, mastigando o seu bife devagar e com o prazer
visivelmente aguado.
Pus cuidadosamente de lado o meu garfo e Jorge narrou a sua história. Há tempo, vivia ele
com sua mulher num posto avançado da selva, pesquisando ouro e comprando todo o ouro
de outros pesquisadores. O casal tinha, na ocasião, um amigo natural do lugar que trazia
com regularidade o seu ouro e lhe comprava outros objectos. Um dia, esse amigo foi
assassinado na floresta. Jorge seguiu a pista do criminoso e ameaçou matá-lo com um tiro.
Ora, o assassino era dos tais suspeitos de vender cabeças humanas em ponto pequeno, e
Jorge prometeu-lhe poupar a vida se lhe entregasse imediatamente a cabeça do
assassinado. No mesmo momento, o indivíduo exibiu-a, agora do tamanho do punho de um
homem. Jorge quase ficou fora de si ao rever o amigo, que era o mesmíssimo, a não ser
que se reduzira àquele ponto. Muito emocionado, levou para casa a cabecinha e mostrou-a
à mulher. Ao vê-la, esta desfaleceu, e Jorge teve de esconder o amigo dentro de uma mala.
Mas havia tanta humidade na "mata que a cabeça se cobriu de camadas de mofo,
obrigando Jorge a tirá-la para fora de vez em quando e pô-la a secar ao sol.
Amarrava-a jeitosamente, pelos cabelos, num poste, e a mulher de Jorge desmaiava toda
vez que a via. Um belo dia um ratinho conseguiu penetrar na mala e deixou o amigo muito
maltratado. Jorge ficou penalizado e enterrou-o, com toda a formalidade, num buraco aberto
ao ar livre. Pois, concluiu Jorge, tratava-se de um ser humano.
Quando voltávamos para casa no escuro, tive a desagradável impressão que o chapéu de
Herman se lhe enterrara bem mais na cabeça, quase tapando as orelhas. Mas o que ele
tinha feito era simplesmente baixar a aba para se proteger contra o frio da noite que vinha
das montanhas.
No dia seguinte, estávamos sentados com o nosso Cônsul Geral, Bryhn, e sua mulher, sob
eucaliptos, na sua esplêndida casa de campo fora da cidade. Bryhn achava pouco provável
que a nossa planejada excursão à selva equatoriana, em Quivedo, teria como resultado
alguma transformação radical no tamanho dos nossos chapéus, mas. . Havia salteadores
justamente naquelas regiões que pretendíamos visitar. Mostrou-nos recortes de jornais
anunciando que, quando chegasse a estação seca, iam ser enviados soldados para acabar
com os bandidos que infestavam os arredores de Quivedo. Visitar, em tal momento, esse
lugar era rematada loucura, e nunca arranjaríamos guias ou transporte. Enquanto
conversávamos, vimos passar na estrada, a toda a velocidade, um jeep do adido militar
americano, e isso deu-nos uma ideia. Fomos à embaixada dos Estados Unidos,
acompanhado pelo cônsul geral, e avistámo-nos com o próprio adido militar. Era um guapo
moço, muito alegre, vestido de caqui e com botas, que nos perguntou, rindo, como é que
nos havíamos perdido naquelas altitudes andinas quando, segundo a Imprensa local. íamos
empreender uma viagem marítima em jangada.
O adido militar ficou a princípio boquiaberto diante do nosso arrojo; depois abanou a
cabeça, meio desanimado, e disse com um sorriso:
- Pois bem, uma vez que não me dão uma terceira alternativa, prefiro a segunda.
Quanto mais nos adiantávamos, menos índios encontrávamos falando espanhol, e dentro
em breve as possibilidades linguísticas de Agurfo foram tão inúteis quanto as nossas. Via-
se um agrupamento de cabanas aqui e ali pelas montanhas; eram em número cada vez
menor as de barro, sendo a maioria de taquara e de colmo. Tanto as choças como a gente
queimada do sol e de cara engelhada pareciam ter surdido da terra mesma, sob a acção
escaldante do sol da montanha a bater de chapa nos rochedos dos Andes. Pertenciam ao
penhasco, ao calhau, à pastagem do planalto tão naturalmente como a erva à montanha.
Pobres cm posses e baixos na estatura, os índios da montanha tinham a fibra
inquebrantável de animais bravios e a vivacidade infantil de um povo primitivo, e quanto
menos sabiam falar, mais sabiam rir. Para onde quer que nos virássemos, encaravam
connosco faces radiantes de dentaduras alvinitentes. Ninguém podia dizer que o homem
branco tivesse perdido ou ganho um xelim naquelas regiões. Por ali não havia postes para
afixar avisos ou anúncios nem directivas para o trânsito, e se uma latinha ou pedaço de
papel fosse atirado à beira do caminho, imediatamente seria recolhido como objecto de uso
doméstico.
Seguindo o nosso percurso, fomos descendo encostas castigadas pelo sol e sem uma
moita ou árvore até alcançarmos vales ermos e arenosos, onde só medravam cactos, para
afinal subirmos em linha recta até atingir a eminência. Em volta do cume viam-se campos
de neve, e o vento frio era tão cortante que tivemos de afrouxar a marcha para não nos
enregelarmos de todo, caindo aos pedaços. Metidos nas nossas camisas gélidas
suspirávamos pelo ardor da selva. Durante longos trechos, tivemos de correr através de
campos ladeados de altos morros, sobre pedras e cristas tapizadas de erva, em busca de
qualquer coisa parecida com uma estrada. Ao atingirmos, porém, a muralha de Oeste, onde
a cordilheira dos Andes cai impetuosamente para as baixadas, a senda que seguíamos era
talhada como que em prateleiras na rocha viva, estando nós rodeados de penhascos e
tremendos desfiladeiros.
A nossa confiança depositou-se toda no nosso amigo Agurto que, curvado sobre o volante
de direcção, sempre achava meios e modos de se desviar dos precipícios. De súbito,
sentimos à nossa frente violenta rabanada de vento; havíamos alcançado o ponto mais
altaneiro da cadeia dos Andes, de onde a montanha descai abruptamente, numa série de
despenhadeiros até à floresta virgem, numa voragem sem fundo, a 3.600 metros abaixo de
nós. Mas foi-nos arrebatado da vista o espectáculo alucinante, pois mal havíamos chegado
ao topo, espessos cúmulos de nuvens se interpuseram entre nós e a selva incomensurável,
como se fossem vapores saídos de um caldeirão de bruxas. Agora, porém, o nosso
caminho estendia-se sem empecilhos, em demanda das profundezas. E fomos descendo,
descendo sempre, descrevendo temerárias curvas e voltas à beira de passos, fragas e
arestas, enquanto o ar se fazia mais enevoado e mais morno e cada vez mais impregnado
da carregada e asfixiante atmosfera de estufa que subia da mata lá em baixo.
Neste ponto começou a chuva. Fina a princípio depois engrossou de tal maneira que
tamborilava forte sobre o jeep, e logo, de um lado e de outro, corria pelas rochas abaixo
uma água cor de chocolate. Também nós quase íamos escorrendo dali abaixo, arrancados
dos planaltos secos da montanha à nossa retaguarda e indo parar num outro mundo, onde
a madeira, a pedra e o barro daquele resvaladouro eram moles e ricos ao influxo do musgo
e da relva. As folhas germinavam; em breve tornavam-se gigantescas, pendendo como
umbelas verdes e gotejando sobre a ladeira do morro. Vieram depois os primeiros débeis
postos avançados das árvores da selva, ostentando pesadas franjas e enfeitadas com
barbas de musgo e plantas trepadeiras. Por toda parte se ouvia um cachoar de água, um
patinar em poças. À proporção que os declives se tornavam mais suaves, a selva parecia
uma gigantesca legião verde de vegetais que fossem tragando o pequeno jeep, enquanto
este, na sua passagem pelos caminhos lamacentos e alagados, espadanava água em todas
as direcções. Estávamos em plena selva. O ar era húmido e quente e todo embalsamado
do cheiro da vegetação.
O pequeno veículo só teve de fazer alto quando o caminho ficou interceptado por um largo
rio de água barrenta que rolava pela selva abaixo. Parámos de todo, sem poder mover-nos
ao longo da margem do rio. Numa clareira havia uma choupana onde índios mestiços
estavam estendendo uma pele de jaguar na parede banhada de sol, enquanto cães e aves
domésticas se espanejavam e patinhavam aqui e ali ou farejavam e debicavam nas
sementes de cacau espalhadas no chão para secar ao sol. Quando o jeep chegou aos
solavancos, o lugar reanimou-se, e as pessoas que falavam espanhol disseram que aquele
era o rio Palenque e que Quivedo ficava do outro lado. Ponte não havia, e o rio levava forte
corrente e era fundo, mas mostraram-se dispostos a transportar-nos e ao jeep em jangada.
O que eles chamavam jangada estava ali perto da margem. Uns curvos toros da grossura
de braços e pernas, amarrados por fibras vegetais e bambus, formavam a frágil
embarcação, que tinha o dobro do comprimento e da largura do jeep. Com uma prancha
debaixo de cada roda e com o credo na boca, empurrámos o jeep para cima dos toros, e se
muitos deles estavam submersos debaixo da água barrenta, o facto é que nos aguentaram
e ao jeep, e a quatro homens seminus cor de chocolate, que se fizeram ao largo valendo-se
de duas compridas varas que manejavam.
- Balsa, respondeu com um meneio de cabeça um deles, aplicando nos toros um pontapé
pouco respeitoso.
Fomos colhidos pela correntes e rodopiámos, com ímpeto, rio abaixo, enquanto os homens
empurravam com as suas varas, a intervalos certos, mantendo a jangada numa rota
diagonal através da corrente, superando-a, e afinal, em água menos revolta, passando à
outra margem. Foi este o nosso primeiro contacto com a madeira de balsa e a nossa
primeira viagem numa jangada dessa madeira. Trouxemos a jangada para terra, deixando-a
em segurança na margem alcançada, e metemo-nos triunfalmente no jeep a caminho de
Quivedo. Duas filas de casas de madeira alcatroada, com urubus imóveis nos telhados de
palmeira, formavam uma espécie de rua, e era isto o lugar, sem tirar nem pôr. Os habitantes
largavam o que quer que estivessem carregando, e pretos e morenos, moços e velhos,
apareciam em chusma às portas e janelas. Arremessou-se ao encontro do jeep aquela
turba ameaçadora e tagarela. Subiram para ele, enfiaram-se debaixo dele, rodearam-no.
Nós defendemos bravamente as nossas poucas posses, enquanto que Agurto, ao volante,
realizava manobras incríveis. De repente, o jeep teve um pneu furado e pareceu que se
inclinava sobre um joelho. Havíamos chegado a Quivedo e tivemos de submeter-nos aos
abraços de boas-vindas.
A propriedade rural de D. Frederico ficava um tanto retirada do rio. Quando o jeep, aos
solavancos, entrou no pátio, ao longo de uma vereda ladeada de mangueiras, trazendo
como passageiros a mim e a Herman, além de Agurto que fazia de motorista, o magro
velho, morador daqueles confins equatorianos, veio ligeiro ao nosso encontro com seu
sobrinho Ângelo, rapazinho que lhe fazia companhia naquelas brenhas. Demos-lhe recados
da parte de D. Gustavo, e daí a pouco lá ficou solitário, no pátio, o nosso jeep, enquanto
uma refrescante bátega tropical desabava sobre a selva. Realizou-se uma refeição festiva
no palacete de D. Frederico; leitões e galinhas crepitavam no braseiro, enquanto
tomávamos assento em torno de uma mesa repleta de frutas locais e expúnhamos o motivo
da nossa vinda. A chuva caindo lá fora sobre a mata enviara para dentro, através das
janelas de rede, um perfume de flores e de barro molhado.
D. Frederico tornara-se espevitado como um rapaz. Sim, dizia ele, é claro que conhecia
desde criança jangadas feitas de madeira de balsa. Há cinquenta anos, quando vivia perto
do mar, os indígenas do Peru ainda costumavam viajar ao longo da costa em enormes
jangadas de balsa para irem vender peixe a Guayaquil. Podiam trazer umas duas toneladas
de peixe seco numa cabina de bambu instalada no centro da jangada, ou levavam a bordo
mulheres, crianças, cães e galinhas. Agora, com as chuvas, não seria nada fácil achar
dessas colossais balsas como as que eles usavam para suas jangadas, porquanto a água
em charcos e a lama já haviam tornado impossível chegar-se até à plantação de balsas na
floresta, ainda mesmo a cavalo. Entretanto, faria o que estivesse ao seu alcance; podia
ainda haver uma ou outra árvore na floresta perto do palacete, e nós não precisaríamos de
muitas.
Quase à boca da noite, a chuva estiou durante algum tempo, e fomos dar uma volta para
ver as mangueiras que circundavam a casa. D. Frederico tinha também todas as qualidades
imagináveis de orquídeas silvestres, pendentes dos ramos, servindo-lhes de vasos metades
de cocos vazios. Essas plantas raras, diferentes das orquídeas comuns, exalavam
admirável perfume, e Herman inclinara-se para poder aspirar melhor o perfume de uma
delas, quando uma coisa parecida com uma comprida e fina enguia, cintilante, surgiu de
entre as folhas acima de sua cabeça. Um golpe fulminante do chicote de Ângelo atirou no
solo uma agitada cobra. Mais uns segundos e estava o réptil com o pescoço pregado à terra
por meio de um pau em forquilha que, daí a pouco, lhe esmagou a cabeça.
- Mortal, disse Ângelo, exibindo duas recurvas presas com o veneno, para mostrar
convincentemente o que queria dizer.
Dormi bem, mas acordava pensando em bichos venenosos cada vez que um morcego
guinchava com mais ruído ou uma lagartixa passava perto demais do meu travesseiro.
- Convém sacudirmos as nossas roupas, disse Agurto, e ainda não acabara de falar quando
um escorpião lhe caiu da manga da camisa, enfiando-se num abrir e fechar de olhos, numa
frincha do soalho.
Logo depois de nascer o sol, D. Frederico mandou os seus homens a cavalo, em todas as
direcções, para procurarem balsas acessíveis, ao longo dos caminhos. Quanto a nós três,
D. Frederico, Herman e eu, formámos o nosso grupo, e não tardámos a achar caminho para
uma aberta onde havia uma árvore gigantesca, de cuja existência D. Frederico sabia.
Sobressaía ela entre as que a rodeavam, tendo o seu tronco 0,94 m. de grossura. À moda
polinésica baptizámos a árvore antes de tocar-lhe; demos-lhe o nome de Ku que era o de
uma divindade polinésica de origem americana. Em seguida, brandimos o machado
cravando-o no tronco da balsa até ecoarem pela floresta os nossos golpes. Mas cortar uma
balsa seivosa era o mesmo que cortar cortiça com um machado sem gume; o instrumento
não fazia mais que ricochetear, e ainda não tinha eu descarregado muitas machadadas
quando Herman teve de render-me. O machado passou assim de uma mão para outra
várias vezes, enquanto as lascas voavam e o suor pingava sob a canícula da selva.
Indo já alto o dia, Ku permanecia de pé como um galo numa perna só, estremecendo aos
nossos golpes; pouco depois cambaleou e tombou, com tremendo estalido, sobre as
árvores vizinhas, arrastando na sua pesada queda enormes galhos e árvores menores.
Tínhamos arrancado os ramos do tronco e íamos a tirar a casca em ziguezagues à maneira
indígena, quando Herman, de repente, deixou cair o machado e deu um pulo para o ar, com
uma mão agarrada à perna, como se estivesse a executar uma dança guerreira da
Polinésia. Da sua calça caiu uma formiga brilhante do tamanho de um escorpião e com
longo dardo da cauda. O crânio devia ser parecido com a tenaz de uma lagosta, pois foi
quase impossível esmigalhá-lo no chão com o salto do calçado.
- Um «kongo», explicou D. Frederico, contrariado. É bicho pior que o escorpião, mas não
oferece perigo a um homem sadio.
Herman sentiu-se magoado e um pouco enfraquecido durante vários dias, o que não o
impediu de galopar connosco a cavalo pelos caminhos da selva, à procura de novas balsas
gigantescas da floresta. De quando em quando, ouvíamos um rangido e um estalo seguido
de tremendo baque, algures na mata virgem. D. Frederico balançava a cabeça com ar
satisfeito. Aquilo queria dizer que seus índios mestiços haviam derrubado mais uma
gigantesca árvore para a jangada. Dentro de uma semana Ku tinha sido seguida por Kane,
Kama, lio, Mauri, Ra, Rangi, Papa, Taranga, Kura, Kukara e Hiti, doze possantes balsas,
todas baptizadas em honra de lendárias figuras da Polinésia, cujos nomes tinham sido,
juntamente com Tiki, levados do Peru através do mar. Os toros, gotejando seiva, eram
arrastados através da selva primeiro por cavalos e, finalmente, pelo tractor do nosso
anfitrião que os trazia até à margem do rio em frente ao palacete.
Cheios de seiva, os toros de maneira nenhuma eram leves «corno cortiça. Pesavam
certamente uma tonelada cada um, e não foi sem ansiedade que esperámos o momento em
que os veríamos flutuar na água. Rolámo-los, um por um, até a beira do rio; ali amarrámos
uma corda feita de sólidas trepadeiras à extremidade dos toros, para que não se fossem na
corrente quando os fizéssemos entrar na água. Depois empurrámo-los, cada um por sua
vez, pela margem abaixo, até dentro do rio. Foi um borrifar de água em todas as direcções.
Rodopiaram e boiaram, quase tanto acima quanto abaixo da superfície da água, e se
caminhávamos ao longo deles, permaneciam firmes. Ligámos as madeiras com cipó
resistente que pendia do alto das árvores da selva, de modo que fizemos duas jangadas
provisórias, uma rebocando a outra. Em seguida enchemo-las com todos os bambus e
cipós de que poderíamos necessitar mais tarde, e eu e Herman saltámos para bordo com
dois homens de uma misteriosa raça, com os quais não tínhamos linguagem comum.
Quando cortámos as amarras, fomos colhidos pelo redemoinho das águas, e eis-nos rio
abaixo, levados pela corrente com regular velocidade. A última coisa que pudemos ver por
entre o chuvisco, ao contornarmos a primeira ponta de terra, foram os nossos excelentes
amigos, de pé defronte do palacete acenando-nos. Depois metemo-nos sob um pequeno
abrigo feito de folhas de bananeira, deixando o governo da embarcação aos dois peritos
trigueiros que se haviam postado um à proa e outro à popa, cada qual segurando um remo
colossal. Com a maior calma mantinham a jangada no centro da corrente, e fomos bailando
rio abaixo, no meio do torvelinho, entre árvores submersas e bancos de areia.
Lá estava a selva como uma sólida muralha ao longo das margens, de um lado e de outro,
e papagaios e outras aves de cores vivas saíam, voando, da espessa folhagem quando
passávamos. Uma vez ou duas, um jacaré atirou-se ao rio, tornando-se invisível na água
lamacenta. Mas não tardou que víssemos um bicharoco bem mais notável. Era um iguano,
ou lagarto gigante, do tamanho de um crocodilo, mas de goela enorme e dorso franjado.
Cochilava na margem barrenta como se estivesse a dormir desde os tempos pré-históricos,
e não se mexeu à nossa passagem. Os remadores fizeram sinais para que não
atirássemos. Logo depois vimos um espécime menor, com cerca de 0,90 m.. Ia correndo
por um grosso galho que pendia sobre a jangada. Correu apenas até se ver a salvo e então
sentou-se, com a sua cor brilhante azul e verde e, aos passarmos, encarou-nos com olhos
gélidos de cobra. Mais tarde passámos por um outeiro coberto de feto, em cujo topo estava
deitado o maior iguano de todos. Parecia a silhueta de um dragão chinês com franjas,
esculpido em pedra, imóvel ali contra o céu, de cabeça e peito erguido. Nem sequer voltou
a cabeça ao descrevermos a curva debaixo do outeiro, desaparecendo na selva.
Mais adiante, apercebemos fumos e passámos por diversas cabanas cobertas de palha que
se achavam em clareiras ao longo da margem. Nós, na jangada, éramos alvo da atenção de
pessoas que estavam em terra e tinham ar sinistro, caldeamento pouco agradável de índio,
negro e espanhol. As embarcações que usavam, grandes pirogas, estavam amarradas na
margem.
Tendo chegado a hora do repasto, rendemos os nossos amigos nos remos de direcção
enquanto eles frigiam peixe sobre um pequeno fogareiro regulado com barro húmido.
Também faziam parte do cardápio de bordo ovos, frango assado e frutas meridionais,
enquanto os toros de madeira se transportavam a si próprios e a nós, a boa velocidade,
através da selva e na direcção do mar. Que importância tinha agora que a água jorrasse em
torno de nós? Quanto mais chovia, mais rápida era a corrente.
Quando as trevas caíram sobre o rio, instalou-se na margem uma orquestra mortificante
para os ouvidos. Rãs e sapos coaxavam, grilos cricrilavam e mosquitos zumbiam num
arrastado coro de muitas vozes. De vez em quando, o grito agudo de um gato selvagem
vibrava na escuridão, logo seguido de outro e ainda de outros, soltados por aves que o
susto causado pelos animais noctívagos da selva punha em fuga. Uma vez ou duas vimos o
brilho de uma fogueira em choça longínqua e, de caminho, ouvíamos vozes humanas
esganiçadas e ladrar de cães. Mas, na maior parte do tempo, sentíamo-nos sós com a
orquestra da selva sob as estrelas, até que o sono e a chuva nos impeliram para dentro da
cabana de folhas, onde fomos dormir com as pistolas nos coldres, prontos para qualquer
eventualidade.
Quanto mais descíamos o rio, mais numerosas se tornavam as choças e granjas, e logo
principiaram a aparecer nas margens aldeias regulares. O transporte aqui era feito por
pirogas, tocadas por longas varas, e de onde em onde víamos uma pequena jangada de
madeira de balsa, carregada de bananas verdes.
No ponto de junção do rio Palenque com o Guayas, a água tinha subido tanto que o vapor
de rodas navegava diligentemente entre Vinces e Guayaquil abaixo da costa. A fim de
poupar tempo precioso, eu e Herman tomámos passagens a bordo do vapor de rodas e
singra-mos através da região plana de população densa em direcção à costa. Os nossos
amigos morenos deviam seguir, vogando rio abaixo sozinhos com a madeira.
Em Guayaquil, Herman e eu separámo-nos. Ele ficou na foz do Guayas para deter os toros
de balsa que vinham vogando. Daí tinha de levá-los, como carga, num vapor costeiro, ao
Peru, onde ia dirigir a construção da jangada e fazer uma cópia fiel das vetustas
embarcações indígenas. Quanto a mim, tomei o avião de carreira que se dirigia ao Sul, a
Lima, capital do Peru, para procurar local adequado à construção da jangada.
Havia travado conhecimento com o adido naval peruano em Washington e obtivera dele
uma carta de recomendação. Dirigi-me, por isso, no dia seguinte, ao Ministério da Marinha,
com a carta e solicitei audiência ao Ministro, D. Manuel Nieto. Recebia, pela manhã, na
elegante sala de visitas Império do Ministério, refulgindo de espelhos e dourados. Passado
algum tempo, chegou D. Manuel em uniforme de gala. Era um oficial baixo e atarracado,
carrancudo como Napoleão, usando linguagem lacónica e cheia de franqueza. Perguntou-
me de que se tratava e eu lhe disse qual era o meu intento.
Falar pessoalmente com o Ministro das Relações Exteriores não era coisa fácil. A Noruega
não tinha delegação no Peru, não podendo, portanto, o nosso prestimoso Cônsul Geral,
Bahr, levar-me senão até aos consultores do Ministério. Receei chegar a um ponto morto. A
carta do dr. Cohen para o Presidente da República podia agora ser-me útil. E, por
intermédio do seu ajudante de ordens, solicitei uma audiência a Sua Excelência D. José
Bustamante y Rivero, Presidente do Peru. Um ou dois dias depois comunicaram-me que
devia estar no Palácio às doze horas.
Lima é uma cidade moderna com cerca de 500.000 habitantes, e acha-se esparramada
numa verde planície, no sopé das montanhas desertas. Pela sua arquitectura e graça e
também pelos jardins e granjas, é certamente uma das mais belas capitais do mundo - um
pouco da Riviera moderna ou da Califórnia, salpicada aqui e ali da velha arquitectura
espanhola. O palácio presidencial fica no centro da cidade e é fortemente guardado por
sentinelas armadas que se vestem de cores alegres.
Uma audiência no Peru é coisa séria, e pouca gente terá visto o Presidente, a não ser na
tela do cinema. Soldados com brilhantes bandoleiras escoltaram-me escada acima até o fim
do longo corredor; aí o meu nome foi registado por três civis que me introduziram, por
descomunal porta de carvalho, numa sala com uma comprida mesa e filas de cadeira.
Recebeu-me um homem de branco que me fez sentar e sumiu-se. Um momento depois,
abriu-se uma grande porta e fui introduzido numa sala muito mais bonita, onde um
personagem imponente, em uniforme impecável, se adiantou ao meu encontro.
Dez minutos depois, outros passos também firmes quebraram novamente o silêncio, e
dessa vez entrou um homem cheio de dragonas e galões dourados. Saltei vivamente do
sofá e fiz uma reverência profunda. O recém-chegado curvou-se ainda mais profundamente,
foi-me levando através de diversas salas, e fez-me subir uma escada com espessa alcatifa.
Depois deixou-me numa acanhada saleta em que havia uma cadeira de couro e um sofá. Aí
entrou um homenzinho vestido de branco. Esperei resignadamente a ver onde pretendia
levar-me. Mas não me levou a parte alguma. Saudou-me com afabilidade e continuou de
pé. Desta vez, era o Presidente Bustamante Rivero.
O Presidente pouca coisa mais sabia de inglês que eu de espanhol, de maneira que depois
de nos termos cumprimentado e depois que ele, com um gesto, me fez sentar, o nosso
vocabulário comum estava esgotado. Gesticulação e sinais valem alguma coisa, mas não
obtêm para um interessado permissão para construir uma jangada num porto naval do Peru.
A única coisa que percebi foi que o Presidente não entendia o que eu estava a dizer e ele
próprio chegara à mesma conclusão ainda com maior clareza, porque, decorridos alguns
instantes, desapareceu e voltou com o Ministro da Aeronáutica. O General Reveredo era
um formidável atleta, trajando uniforme da Força Aérea com asas no peito. Falava um inglês
esplêndido com sotaque americano.
Pedi desculpas pelo equívoco e disse que não era no aeródromo que eu estava a tentar
pedir admissão, mas no porto naval. O general riu-se e explicou que só havia sido chamado
como intérprete. A minha teoria foi sendo traduzida aos poucos para o Presidente que
escutava com atenção e fazia atiladas perguntas. Por fim disse e Reveredo traduziu:
- Se é possível que as ilhas do Pacífico tenham sido descobertas por intermédio do Peru,
este país está interessado nessa expedição. Diga pois o que pretende.
Pedi que me concedesse um local onde pudéssemos construir a jangada dentro dos muros
da área naval, acesso às oficinas navais, lugar para depósito de material e facilidades para
introduzi-lo no país, uso da doca seca e do pessoal naval para nos ajudar no trabalho, e
uma embarcação que nos rebocasse ao sairmos da costa para o alto mar.
- Que pede ele? perguntou, ansiosamente, o Presidente, de maneira que até eu entendi.
- Deus vos guarde a todos! disse o general, rindo e meneando a cabeça. O ajudante de
ordens entrou e escoltou-me até me entregar a um mensageiro que estava à espera.
Naquele dia, os jornais de Lima publicaram uma nota acerca da expedição norueguesa em
jangada que devia partir do Peru; ao mesmo tempo anunciaram que uma expedição
científica sueco-finlandeza havia concluído os seus estudo entre os selvícolas das regiões
amazónicas. Dois dos membros suecos da expedição ao Amazonas tinham subido o rio em
canoa até o Peru e acabavam de chegar a Lima. Um deles era Bengt Danielssen, da
Universidade de Upsala, que ia agora estudar os indígenas das montanhas do Peru.
Cortei a notícia e estava no meu quarto do hotel escrevendo para Herman a respeito do
lugar para a construção da jangada, quando fui interrompido por uma pancada na porta.
Entrou um tipo alto, queimado de sol, em trajes tropicais, e quando tirou o capacete branco,
parecia que a barba inteiramente vermelha lhe tinha queimado o rosto e chamuscado o
cabelo fino. Vinha do mato, mas o seu lugar era, evidentemente, num salão de
conferências.
E agora veio deitar por terra a teoria, porque é um etnólogo», voltei a pensar.
Eu nada sabia a respeito do homem, a não ser que era um cientista que acabava de chegar
das profundezas da selva. Se, porém, um taciturno sueco tinha ânimo de se abalançar a
uma expedição em jangada com cinco noruegueses, era sinal que não se tratava de um
niquento. E nem aquela barba imponente podia ocultar a sua índole pacata e o seu génio
alegre.
Bengt tornou-se o sexto membro da tripulação, pois o lugar estava ainda vago. E era o
único que falava espanhol.
Quando, alguns dias mais tarde, o avião de passageiros roncava rumo ao Norte, ao longo
da costa, tornei a olhar com respeito para o interminável mar azul lá em baixo.
Desses indivíduos, não havia dois que se tivessem conhecido antes, e eram todos de tipos
inteiramente diferentes. Assim, só depois de algumas semanas que passássemos juntos na
jangada é que nos poderíamos cansar de ouvir as nossas respectivas histórias. Nenhuma
nuvem carregada de baixa pressão nem qualquer tempestade oferecia maior ameaça para
nós do que o perigo, sempre possível, de uma súbita bátega psicológica entre seis homens
encerrados, juntos, durante meses, numa jangada a vogar. Em tais circunstâncias, uma boa
pilhéria era muitas vezes tão útil quanto um salva-vidas.
Em Washington havia ainda inverno rigoroso, com muito frio e neve. Quando voltei, estava-
se cm Fevereiro. Bjõrn tomara a seu cargo o problema do rádio e havia interessado a Liga
Americana de Radioamadores na recepção de comunicações vindas da jangada, e Knut e
Torstein estavam atarefados em preparar a transmissão, que devia ser feita ora com
transmissores de onda curta construídos especialmente para o nosso propósito, ora com
aparelhos secretos de sabotagem usados durante a guerra. Havia mil coisas para preparar,
grandes e miúdas, se quiséssemos levar a bom termo o que projectávamos fazer na
viagem.
- Seria capaz de jurar que esta correspondência pesa aí seus nove quilos, disse um dia
Knut em desespero, curvado sobre a máquina de escrever.
- Doze, disse Torstein friamente. Já a pesei. Minha mãe deve ter tido uma ideia clara da
situação
E eis que um dia chega de Lima um telegrama urgente. Colhido pela cauda de um
vagalhão, Herman fora arrojado em terra, malferido, com uma grave deslocação do
pescoço. Achava-se em tratamento num hospital de Lima.
Imediatamente Torstein foi mandado de avião com Gerd Vold, a popular secretária londrina
dos paraquedistas sabotadores noruegueses, durante a guerra, que na ocasião prestava
serviço cm Washington. Acharam-no melhor; tinham-no suspendido de uma correia atada
cm volta do pescoço durante meia hora, enquanto que os médicos lhe repunham na
posição, destorcendo-o, o atlas do pescoço. A radiografia mostrou que o osso mais alto do
pescoço de Herman se havia fracturado e tinha sofrido uma desarticulação completa. A
esplêndida constituição física de Herman salvara-lhe a vida, e pouco depois o
convalescente voltou, azul, verde, endurecido e reumático, ao estaleiro naval, onde ele
próprio havia amontoado madeira de balsa e começado a obra. Teve de ficar entregue aos
cuidados médicos durante várias semanas, sendo incerto se podia fazer a viagem
connosco. Ele, pessoalmente, jamais duvidou disto nem um momento, a despeito do modo
bastante rude com que, logo de início, o tratara o Pacífico.
Então Erik chegou de Panamá pelo ar, enquanto eu e Knut chegávamos de Washington,
achando-nos assim todos reunidos no ponto de partida, em Lima.
Pela primeira vez, em centenas de anos, estava a ser construída, na baía de Callao, uma
jangada de madeira de balsa. Naquelas águas onde, segundo as lendas incas, os seus
antepassados haviam aprendido com o desaparecido clã de Kon-Tiki a navegar em
jangadas dessas, reza a História que os indígenas eram proibidos, por homens da nossa
raça de fazer uso de semelhantes embarcações. Navegar numa jangada aberta podia
custar vidas humanas. Os descendentes dos incas mudaram com os tempos; como nós,
têm vincos nas calças e estão bem protegidos pelos canhões do seu poder naval. Balsa e
bambus são coisas do passado; aqui também tudo marcha para a blindagem e o aço.
Escolhemos nove dos mais grossos troncos e considerámo-los suficientes para formar a
verdadeira jangada. Praticámos fundos sulcos na madeira para impedir que as cordas que,
passando por eles, deviam amarrar toda a jangada, não escorregassem. Nem um único
prego, cavilha ou cabo de arame foi usado em toda a construção. Os nove grandes troncos
foram primeiro colocados lado a lado na água, de modo que pudessem cair livremente na
sua posição natural, flutuante, antes de serem fortemente amarrados uns aos outros. O toro
mais longo, de 13,70 m de comprimento, foi posto no centro e projectava-se bem além dos
outros numa e na outra ponta. Toros, cada vez mais curtos dispuseram-se, simetricamente.
.1 um e outro lado deste, de modo que os lados da jangada tinham 9 111 de comprimento, e
a proa emergia como um arado grosseiro. À ré. a jangada tinha um corte transversal, mas
os três troncos do centro projectavam-se e sustentavam um cepo curto e grosso de madeira
de balsa que ficava cm posição oblíqua à embarcação e tinha toletes para o comprido remo
de direcção. Depois que os nove troncos de balsa foram fortemente amarrados uns aos
outros, com corda de cânhamo, de uma polegada e de um quarto de polegada de
comprimentos diferentes, os toros finos de balsa foram amarrados, de través, sobre
aqueles, com intervalos de cerca de 0,90 m. A jangada agora estava completa,
laboriosamente ligada com cordas de cerca de trezentos comprimentos diferentes, cada
qual amarrada com nós firmíssimos. Sobre ela foi posta uma coberta feita de taquaras,
amarradas à jangada na forma de sarrafos separados e cobertos com esteiras soltas de
bambu trançado. No meio da jangada, mas perto da popa, erguemos uma pequena cabina
aberta, feita de bambu, com paredes também, de bambu e telhado ainda de fasquias de
bambu com folhas de bananeira que se encaixavam uma nas outras, como se fossem
telhas, À frente da cabana levantámos dois mastros, um ao lado do outro. Eram de
mangueiro, de uma dureza de ferro, inclinavam-se um para o outro e no topo estava
amarrados em cruz. A enorme vela quadrada foi carregada numa verga feita de dois paus
de bambu, atados para maior reforço e segurança.
Os nove enormes toros de madeira, que nos deviam conduzir através do mar, afilavam-se
ligeiramente nas extremidades, à moda indígena, para poderem deslizar com mais
facilidade na água. Tábuas bem baixas, para protecção contra borrifos, foram ligadas à proa
acima da superfície do mar.
Em vários lugares onde existiam grandes fendas entre toros, introduzimos, ao todo, cinco
sólidas pranchas de abeto, cujas pontas imergiam na água sob a jangada. Foram postas
mais ou menos a esmo e penetraram um metro e meio na água, tendo 25 mm de espessura
e 0,60 m de largura. Ficavam seguras no respectivo lugar por meio de cunhas e cordas e
serviam de pequeninas quilhas paralelas. Quilhas deste tipo eram usadas em todas as
jangadas de madeira de balsa dos tempos dos incas, muito antes da época dos
descobrimentos, e eram destinadas a evitar que as jangadas chatas de pau vogassem para
qualquer lado à mercê do vento e das ondas. Não pusemos nenhuma grade ou protecção
cm volta da jangada, mas tínhamos um toro de balsa, comprido e delgado, que de cada
lado oferecia apoio aos pés.
Toda a construção era cópia fiel das antigas embarcações do Peru e do Equador, com
excepção dos guarda-borrifos. colocados na proa, que posteriormente se verificou serem
inteiramente desnecessários. Respeitadas as linhas gerais, podíamos, é claro, dispor as
coisas a bordo como nos aprouvesse, desde que isso não tivesse influência na estrutura da
embarcação. Sabíamos que aquela jangada ia ser todo o nosso mundo no tempo que se
estendia à nossa frente, e que, consequentemente, o mínimo pormenor a bordo cresceria
em dimensões e importância à medida que as semanas passassem.
Por isso, fizemos a pequena coberta variar o mais possível. As lascas de bambu não
tapavam toda a jangada, mas formavam um piso em frente da cabina de bambu e a
estibordo dela, onde a parede era aberta. O costado de bombordo da cabana era uma
espécie de pátio interior cheio de caixotes e utensílios domésticos, tudo convenientemente
atado, com diminuto espaço livre para se poder andar. À frente, na proa, e à ré, até a
parede traseira da cabina, os nove gigantescos troncos não tinham coberta alguma. Assim,
quando saíamos da cabina de bambu, passávamos dos bambus amarelos e do trançado de
vime para os redondos toros cinzentos à popa, subindo daí até a carga amontoada do outro
lado. Não eram muitos passos, mas o efeito psicológico da irregularidade oferecia-nos
variação e compensava-nos da nossa limitada liberdade de movimento. No tope do mastro
pusemos um estrado de madeira, não tanto para termos um posto de atalaia quando afinal
chegássemos a terra, como para podermos marinhar por ele acima durante a viagem e ver
o mar de outro ângulo. Quando a jangada, principiou a tomar forma, figurando entre os
navios de guerra, dourada e fresca com os seus bambus e folhas verdes, o Ministro da
Marinha veio pessoalmente examiná-la. Estávamos imensamente ufanos da nossa
embarcação tal como ali se achava, pequena lembrança recente dos tempos dos incas
entre aqueles formidáveis vasos de guerra. Porém o Ministro da Marinha ficou
simplesmente horrorizado com o que viu. Fui chamado à repartição naval a fim de assinar
um documento em que declarava a Marinha livre de qualquer responsabilidade por aquilo
que havíamos construído nas suas oficinas, tendo ainda de declarar ao Capitão do Porto,
também em papel por mim firmado, que se saía de Callao com homens e carga a bordo,
isso corria inteiramente por minha conta e risco.
Depois, vários peritos navais e diplomatas estrangeiros tiveram acesso ao estaleiro para
verem a jangada. Tão pouco se mostraram optimistas, e alguns dias depois o embaixador
de uma das grandes potências mandou-me chamar.
- Sua mãe e seu pai ficarão muito penalizados quando souberem de sua morte.
Os prognósticos não eram bons, mas como nos mostrámos teimosos, deram-nos de
presente uma Bíblia para levarmos connosco na viagem. Bem lançadas as contas, pouco
estímulo se podia auferir dos peritos que examinavam a jangada. Rajadas e talvez furacões
arrebatar-nos--iam, destruindo a baixa e exposta embarcação que se veria desamparada e
a bailar pelo oceano, à mercê do vento e das águas. Mesmo num mar normalmente agitado,
ficaríamos, acto contínuo, encharcados de água salgada que acabaria arrancando-nos a
pele das pernas e estragando tudo a bordo. E se fôssemos somar as opiniões dos
diferentes peritos, cada um por sua vez, apontando uma falha vital na construção, não havia
na jangada um comprimento de corda, um nó, uma medida, um pedaço de madeira que não
nos fosse levar para o fundo do mar. Foram feitas valiosas apostas em torno do número de
dias que duraria a jangada, e um petulante adido naval apostou todo o whisky que os
membros da expedição poderiam beber no resto da vida se chegássemos vivos a uma ilha
dos mares do Sul.
Pior foi quando, tendo entrado no porto um navio norueguês, levámos ao estaleiro o capitão
e um ou dois dos seus mais experimentados lobos do mar. Ficámos ansiosos por
testemunhar as reacções práticas desses homens. E grande foi a nossa decepção quando
todos opinaram que a tosca jangada, com aquela proa absurda, jamais obteria da vela
qualquer ajuda, enquanto que o capitão sustentava que, se conseguíssemos manter-nos
sobre a água, a embarcação gastaria um ano ou dois para atravessar a corrente de
Humboldt. Olhando para as nossas amarras, o contramestre abanou a cabeça. Não havia a
menor dúvida. Não passariam duas semanas sem que cada corda da nossa pobre
embarcação se gastasse de todo, porque, uma vez dentro da água, os enormes toros se
movimentariam sem cessar, esfregando-se uns nos outros. Se não usássemos cordas de
arame ou correntes, podíamos arrumar as malas.
Não era fácil enfrentar todos estes argumentos. Se um deles sequer fosse verdadeiro, as
nossas possibilidades seriam inexistentes. Creio que várias vezes perguntei a mim mesmo
o que estávamos a fazer. Eu não podia apreciar tais advertências, uma por uma, porque
não era marinheiro. Tinha, porém, comigo um único trunfo de reserva, no qual estava
baseada toda a viagem. No meu íntimo havia uma voz que sempre me segredava que uma
civilização pré-histórica se espalhara do Peru, através do mar até as ilhas, numa época em
que jangadas como a nossa eram a única embarcação naquele litoral. E tirava a conclusão
geral de que se a madeira de balsa flutuara e as amarras haviam resistido para Kon-Tiki, no
ano 500 da nossa era, o mesmo havia de suceder connosco se fizéssemos da nossa
jangada uma cópia exacta da dele. Bengt e Herman estavam completamente enfronhados
na teoria, e enquanto os peritos franziam o sobrolho, o rapazes conservavam-se tranquilos
e divertiam-se em Lima. Uma noite, Torstein perguntou-me ansioso, se eu tinha a certeza
de que as correntes oceânicas iam no rumo certo; Voltávamos do cinema, onde víramos
Dorothy Lamour, com uma saia de palha, dançando a hula com outras jovens, entre
palmeiras, numa ilha amena dos mares do Sul.
- É para aí que devemos ir, disse Torstein. E terei muita pena se as correntes não andam no
sentido que você diz.
- Acontece, explicou Bengt, inclinando-se para o assustado homenzinho, que vão vim de
navio, mas de canoa.
Mudo de assombro, o funcionário olhou para Bengt e escreveu «canoa» num espaço aberto
do impresso.
- Acontece, repito, disse Bengt delicadamente, que não vou sair do Peru em navio, mas
numa jangada.
Alguns dias antes de nos fazermos à vela, provisões, água, o nosso material, enfim tudo foi
depositado a bordo da jangada. Reunimos provisões para seis homens por quatro meses,
na forma de sólidas caixinhas de papelão contendo rações militares. Herman teve a ideia de
ferver asfalto e espalhá-lo, de modo a formar uma camada uniforme em volta de cada caixa
separada. Depois esparzimos areia sobre elas para evitar que as caixinhas ficassem
pegadas umas às outras, e dispusemo-las lado a lado, sob a coberta de bambu, onde
ocuparam o espaço entre as nove baixas vigas transversais que sustentavam a coberta.
Numa fonte cristalina, jorrando de alta montanha, enchemos de água potável 56 latinhas, ao
todo 250 galões. Aquelas também foram amarradas entre as vigas transversais, de maneira
que a água do mar pudesse sempre borrifá-las. Sobre a coberta de bambu, amarrámos o
resto do material e grandes cestos de vime cheios de fruta e coco.
Primeiramente, a jangada foi rebocada para fora da área naval e tocada a remos em volta
da baía, durante algum tempo, para se verificar se a carga estava distribuída com equilíbrio.
Em seguida levámo-la a navegar, para defronte do Iate Clube de Callao, onde convidados e
outras pessoas interessadas assistiram à cerimónia do baptismo da embarcação na
véspera da nossa partida.
Gerd Vold, secretária da expedição, devia baptizar a jangada com leite de coco, quer para
se manter a tradição da Idade da Pedra, quer porque, em consequência de um equívoco, o
champanhe tinha sido posto no fundo do caixote particular de Torstein. Depois de terem os
nossos amigos sido informados, em inglês e em espanhol, de que o nome que se ia dar à
embarcação era o do grande precursor dos incas - o Rei-Sol que havia desaparecido para
as bandas do ocidente, atravessando o mar desde o Peru até a Polinésia há 1500 anos -
Gerd Vold baptizou a jangada com o nome de Kon-Tiki. Esmigalhou com tanta força o coco
rachado, contra a jangada, que o leite e a polpa foram atingir os cabelos dos que estavam
reverentemente em redor.
Em seguida, foi içada a verga de bambu e desenrolada a vela, tendo ao centro a cara
barbada de Kon-Tiki, pintada em vermelho pelo artista Erik. Era uma cópia fiel da cabeça do
Rei-Sol, esculpida em pedra vermelha sobre uma estátua nas ruínas da cidade de
Tiahuanaco.
- Ah! Olha o «Senor» Danielssen, exclamou encantado o mestre das nossas oficinas no
estaleiro, ver na vela a cara barbada.
Chamava a Bengt «Senor Kon-Tiki» havia dois meses, desde que lhe mostráramos a cara
barbada de Kon-Tiki num pedaço de papel. Mas agora tinha, afinal, percebido que o
verdadeiro nome do nosso companheiro era Danielssen.
Antes de nos fazermos à vela, despedimo-nos do Presidente, e depois fomos fazer uma
excursão pelas negras montanhas e fartarmo-nos de rochedos e pedras antes de nos
lançarmos ao oceano interminável. Enquanto trabalhávamos na jangada, perto da costa,
estivéramos hospedados numa pensão situada num bosque de palmeiras fora de Lima, e
íamos a Callao e de lá voltávamos num carro do Ministério da Aeronáutica, dirigido por um
motorista particular que Gerd conseguira de empréstimo para a expedição. Pedimos pois ao
motorista (pie nos levasse directamente às montanhas, penetrando no interior delas o mais
que pudesse ser num dia; e assim corremos por estradas desertas beirando antigos canais
de irrigação até chegarmos à alucinante altura de 3.657 metros acima do mastro da
jangada. AH limitámo-nos a devorar, com os olhos, rochedos e picos e mato verde, e
tratámos de nos saciar com a tranquila mole de montanhas da cadeia dos Andes que
tínhamos diante de nós. Procurámos convencer-nos de que estávamos fartos de ver pedra
e terra sólida e precisávamos fazer-nos de vela e ir conhecer o mar.
Uma partida dramática - Levam-nos a reboque para o mar - O venta começa a soprar - A
vida na corrente de Humboldt - O aeroplano que não nos encontrou - Os troncos absorvem
água - Pau contra corda - Comemos peixes-voadores - Um insólito companheiro de cama -
O erro de um peixe-cobra - Olhos no mar - História de um fantasma do oceano - Ficamos
conhecendo o maior peixe do mundo - Caça de tartaruga marinha.
HAVIA uma azáfama pouco comum no porto de Callao no dia em que a Kon-Tiki ia ser
rebocada para o mar. O Ministro da Marinha dera ordens para que o rebocador naval
Guardian Rios nos levasse a reboque até fora da barra e nos colocasse bem longe do
movimento costeiro, lá num ponto distante, onde, em tempos passados, os índios
costumavam pescar de bordo de suas jangadas. Os jornais haviam publicado a notícia com
cabeçalhos vermelhos e pretos, e desde as primeiras horas da manhã de 28 de Abril
verdadeira multidão acudira ao cais.
Nós, que devíamos estar reunidos a bordo, tínhamos tido, até à última hora, alguma
providência que tomar. Por isso, quando desci ao cais, somente Herman lá estava de
guarda à jangada. Propositadamente, mandei parar o carro a boa distância e fiz todo o
percurso ao longo do molhe para estirar bem as pernas pela derradeira vez. Por quanto
tempo ninguém poderia dizer. Pulei para bordo da jangada, cujo aspecto era
verdadeiramente caótico: cachos de bananas, cestos e sacos de fruta tinham sido atirados
para ali, no último momento, devendo ser devidamente empilhados e amarrados assim que
pudéssemos pensar um pouco em pôr as coisas em ordem. Herman, sentado, aguardava
resignadamente, tendo sobre os joelhos uma gaiola com um papagaio verde, presente de
despedida de uma pessoa amiga de Lima.
- Fica aqui um minuto cuidando do papagaio, disse-me. Preciso ir a terra beber um último
copo de cerveja. O rebocador não virá tão cedo...
Mal Herman desapareceu entre a turba que fervilhava no cais, o povo pôs-se a apontar e a
agitar-se. É que da banda indicada vinha, a toda a velocidade, o rebocador Guardian Rios.
Lançou âncora muito para lá de uma ondulante floresta de mastros que interceptavam o
caminho à Kon-Tiki, e enviou uma espaçosa lancha a gasolina para nos rebocar dali,
tirando-nos daquele labirinto de velas. A lancha vinha cheia de marinheiros, oficiais e
operadores de cinema, e enquanto as ordens soavam e as câmaras cinematográficas
entravam em acção com o seu ruído característico, uma sólida corda foi amarrada à proa da
jangada.
Neste comenos, Erik e Bengt vinham vagarosamente em direcção ao cais, com os braços
cheios de embrulhos, jornais e revistas. Encontraram a multidão de regresso a casa e foram
finalmente detidos junto à barreira policial por um delicado funcionário o qual lhe disse que
nada mais havia para ver. Fazendo um vago gesto com o seu charuto, Bengt retorquiu que
não tinha vindo ver nada; ia partir na jangada.
- Isso não é possível, volveu Erik, mostrando um embrulho; aqui está a lanterna!
Passava muito do meio-dia quando afinal partimos. O Guardian Rios não nos quis deixar ao
largo enquanto não nos viu, na manhã seguinte, desembaraçados do movimento costeiro.
Assim que nos afastámos do molhe, encontrámos um pouco de mar de proa, e todos os
pequenos botes que nos acompanhava voltaram um por um. Apenas alguns grandes iates
foram connosco até a entrada da baía, a ver como lá iriam as coisas.
A Kon-Tiki seguiu o reboque como um bode raivoso amarrado a uma corda, e deu marradas
com a parte dianteira no mar, de modo que a água entrou a bordo invadindo-a. Isto não
parecia muito animador, pois aquele era um mar calmo comparado com o que devíamos
esperar. No meio da baía, o cabo de reboque quebrou, e a ponta dele que estava do nosso
lado foi tranquilamente para o fundo, enquanto o rebocador continuava a sua marcha.
Deitámo-nos à beira da jangada a ver se pescávamos a ponta submersa do cabo de
reboque, enquanto os iates seguiam para a frente tentando fazer parar o rebocador.
Alforrecas picantes e pegajosas, do tamanho de uma cuba de barrela, subiam e desciam
com a água ao longo da jangada, cobrindo todas as cordas de uma espessa e escorregadia
camada de gelatina. Quando a jangada timbrava para um lado, debruçávamo-nos o mais
possível sobre a água até os nossos dedos tocarem o cabo viscoso. Quando a jangada
rolava para o lado oposto, metíamos a cabeça bem dentro do mar, enquanto as nossas
costas eram banhadas pela água salgada e por elas escorregavam enormes alforrecas.
Cuspíamos, praguejando, e arrancávamos dos cabelos fibras de alforreca, mas quando o
rebocador voltou, a ponta do cabo já tinha sido fisgada, estando apta para o conserto.
Quase prestes a lançá-la para bordo do rebocador, vogámos de repente sob a popa
inclinada da embarcação, em risco de sermos esmagados contra ela pela pressão da água.
Largámos tudo quando tínhamos nas mãos e tratámos de nos pôr a salvo, agarrando em
pontas de bambu e em remos antes que fosse tarde demais. Mas não atinávamos com uma
manobra conveniente, porque quando estávamos no espaço formado por duas ondas, não
conseguíamos atingir o teto de ferro que pairava sobre nós, e quando a água de novo se
ergueu, o Guardian Rios inclinou totalmente a popa para dentro da água e ter-nos-ia
esmagado, sem remédio, se a sucção nos arrastasse para o vórtice. Lá em cima, no convés
do rebocador, houve uma correria e a grita era incessante; por fim, a hélice começou a girar
justamente ao nosso lado, ajudando-nos, no derradeiro instante, a livrar-nos do ressalto de
água sob o Guardian Rios. A proa da jangada recebera alguns golpes rudes fazendo-se um
pouco recurva nos cabos de atracar, mas esse ligeiro defeito gradualmente se rectificou por
si mesmo.
- Quando uma coisa principia de uma maneira tão infernal, é sinal que terminará bem, disse
Herman. Se ao menos parasse este reboque! Acabará reduzindo a jangada a pedaços.
Mas o reboque continuou a noite toda com pouca velocidade e apenas com um ou dois
pequenos embaraços. Os iates tinham-se despedido havia muito tempo, e o último farol
desaparecera. Apenas passava por nós, nas trevas, uma ou outra luz de navio. Dividimos a
noite em quartos de vigília para termos de olho o cabo de reboque, e todos fizemos uma
boa soneca. Quando o dia seguinte começou a alvorecer, denso nevoeiro cobria a costa do
Peru, enquanto tínhamos sobre nós, para as partes do Oeste, um brilhante céu azul. O mar
estendia-se num longo e tranquilo marulho, coberto de pequenas cristas brancas, e roupas,
toros e tudo aquilo em que púnhamos a mão surgia-nos ensopado de orvalho. Estava quase
glacial, e a água verde que nos cercava, assombrosamente fria para 12º Sul. Era a corrente
de Humboldt que carreava do Antárctico as suas frias massas de água e as arrastava para
o Norte, ao longo de toda a costa do Peru, até se desviarem para Oeste e ainda além,
atravessando o oceano exactamente debaixo do Equador. Foi aqui que Pizarro, Zarate e
outros antigos espanhóis deram, pela primeira vez, com as colossais jangadas à vela dos
índios incas, as quais costumavam navegar 50 a 60 milhas marítimas para a pesca de atuns
e dourados justamente na corrente de Humboldt. Durante o dia todo, havia ali um vento
vindo da praia, mas à noite o vento que ia até à praia alcançava até o mesmo ponto,
ajudando-os a voltar para casa se o desejassem.
O rebocador permanecia perto, e tivemos o cuidado de pôr a jangada de capa, bem longe
da proa daquele, enquanto lançávamos à água o nosso pequeno bote de borracha pouco
cheio de ar. Ele boiava sobre as ondas como uma bola e bailava comigo, com Erik e Bengt,
até que agarrámos a escada de corda do Guardian Rios e trepámos para bordo. Tendo
Bengt como intérprete, puderam-nos mostrar bem no mapa a posição em que nos
achávamos. Estávamos a 50 milhas da terra, numa direcção Noroeste a partir de Callao, e
tínhamos de acender luzes nas primeiras noites para não sermos afundados por navios
costeiros. No alto mar, não havia um único navio, pois não existia nenhuma rota marítima
naquela parte do Pacífico.
- O velho não está a gostar, disse Erik. Quando era moço, as brisas corriam mais frescas.
- A impressão que se tem é que vamos perdendo terreno, acrescentou Herman que, da
proa, atirou ao mar um pedaço de madeira de balsa.
O pedaço de balsa permanecia calmamente na água ao lado da jangada; não tinha ainda
chegado a metade do caminho, ao longo da nossa embarcação.
- Espero que não iremos derivar à popa com a brisa nocturna, observou Bengt. Foi muito
interessante a despedida em Callao, mas eu preferia não ter de receber as boas-vindas de
novo.
Andava de um lado para outro metido em amplas calças de pele de carneiro e abrigado
debaixo de um imenso chapéu indiano, com o papagaio em cima do ombro.
- Só há uma coisa de que não gosto, acrescentou. É dessas poucas conhecidas correntes
cruzadas, que nos podem atirar sobre os rochedos, ao longo da costa, se permanecermos
aqui desta maneira.
E o vento veio. Soprava de Sueste, branda mas firmemente. Em breve a vela se enfunou e
arqueou-se para a frente como um peito intumescido, com a cara de Kon-Tiki a rebentar de
pugnacidade. E a Kon-Tiki principiou a mover-se. Demos novo «hurrah» e içámos escotas e
cordas. O remo de direcção foi introduzido na água e a ordem do serviço de vigia começou
a funcionar. Atirámos bolas de papel e cavacos ao mar, na proa, e ficámos à popa com os
nossos relógios.
- Um, dois, três... dezoito, dezanove... agora! Papel e lascas de madeira passavam pelo
remo de
direcção e logo ficavam como pérolas num fio, emergindo e desaparecendo no redemoinho
das ondas à popa. íamos avançando metro a metro. A Kon-Tiki não sulcava as águas como
uma lancha de corrida de bem proporcionada proa. Tosca e larga, pesada e sólida, seguia
para a frente patinhando sossegadamente sobre as ondas. Não teve pressa, mas uma vez
que resolveu mexer-se, seguiu avante com indomável energia.
No momento, a organização do governo da embarcação era o nosso maior problema. A
jangada fora construída exactamente como a haviam descrito os espanhóis, mas não existia
nenhuma pessoa viva no nosso tempo que nos pudesse ministrar um curso prático,
avançado, de como governar uma jangada indígena. O problema tinha sido
proficientemente discutido em terra pelos entendidos, mas com escassos resultados.
Sabiam justamente o que nós sabíamos, isto é, muito pouco. À proporção que o vento
Sueste aumentava em força, era necessário manter a jangada em tal marcha que a vela se
enfunasse da parte de popa. Se a jangada virava um lado demais para o vento, a vela
crescia de repente também para essa banda, batendo na carga, nos homens e na cabana
de bambu, ao passo que a jangada inteira girava completamente, continuando no mesmo
curso com a popa para a frente. A luta era árdua: enquanto três homens pelejavam com a
vela, os outros três remavam com o comprido remo de governo para pôr na devida posição
o bico de proa da jangada de madeira, afastando-o do vento. E logo que o conseguíamos, o
piloto devia ter toda a atenção para que o mesmo facto não se repetisse daí a um minuto.
O remo de direcção, de 5,80 m de comprimento, ficava solto entre dois toletes sobre um
enorme cepo à ré. Era o mesmo remo de direcção que os nossos amigos nativos tinham
usado quando descemos, com a madeira, o rio Palenque, no Equador. O longo pau de
mangueira tinha a resistência do aço, mas era tão pesado que iria para o fundo se caísse
na água, A sua extremidade terminava numa grande pá de remo de abeto, amarrada com
cordas. Era necessária toda a nossa força para manter firme esse comprido remo de
direcção quando era batido pelas ondas, e os nossos dedos cansavam-se de agarrá-lo com
tanta veemência para girar o pau de tal modo que a pá do remo se conservasse recta sobre
a água. Este último problema foi resolvido amarrando-se uma peça transversal no cabo do
remo de direcção, de maneira que ficámos dispondo de uma espécie de alavanca para
manejar. E, entretanto, o vento aumentou.
À tardinha já o vento alísio soprava com toda a força. O resultado foi que o oceano se
tornou agitado e roncador, enquanto as águas nos invadiam pela parte de trás. Foi então
que percebemos, pela primeira vez, que o mar nos aguardava ali para investir connosco. A
situação agora era séria, pois as nossas comunicações estavam cortadas. Ali, no largo
oceano, as coisas só correriam bem se as qualidades da jangada de madeira de balsa
fossem realmente boas. Sabíamos que dali em diante não teríamos vento que soprasse
para a terra nem jeito de voltar atrás. Havíamos entrado nos domínios do legítimo vento
alísio, e cada dia nos obrigaria a penetrar sempre mais no mar largo. A única coisa a fazer
era seguir avante a todo o pano; se tentássemos voltar atrás, derivaríamos em alto mar e
com a popa para a frente. Só havia uma alternativa: navegar ao sabor do vento com a proa
voltada para o poente. Era essa, afinal, a meta da nossa viagem: acompanhar o Sol no seu
curso, como supúnhamos que Kon-Tiki e os antigos adoradores do Astro-Rei deviam ter
feito quando foram postos em fuga do Peru rumo ao mar.
Cerca da meia-noite, passou na direcção Norte uma luz de navio. Às três horas, passou
outra no mesmo rumo. Acenámos com a nossa lampadazinha de parafina e fizemos
repetidos sinais com um maçarico eléctrico, mas não nos viram, e as luzes passaram
lentamente, sumindo-se na treva. Mal podiam adivinhar os que iam a bordo que uma real e
viva jangada inca estava bem perto deles, arfando entre as ondas. E, do nosso lado, mal
podíamos adivinhar, nós, tripulantes da jangada, que esse era o último navio e o derradeiro
vestígio de homens que veríamos até atingirmos a outra banda do oceano.
Agarrámo-nos como moscas, dois a dois, no escuro, ao remo de direcção e sentimos a
água fresca do mar caindo sobre os nossos cabelos enquanto o remo nos magoava até nos
deixar extenuados, ficando as nossas mãos duras com o esforço de nele se apoiarem.
Aqueles primeiros dias e noites foram uma boa escola; converteram marujos bisonhos em
embarcadiços experimentados. Durante as primeiras vinte e quatro horas, cada homem, em
ininterrupta sucessão, teve duas horas de leme e três de descanso. Dispusemos a escala
de tal maneira que, a cada hora, um homem repousado rendesse um dos dois timoneiros
que tivesse estado ao leme duas horas. Cada músculo do corpo era repuxado ao máximo,
durante o quarto, para estar à altura de dirigir a embarcação. Quando nos sentíamos
fatigados de empurrar o remo, mudávamos de lado e puxávamos; e quando braços e peito
nos doíam com a pressão, virávamos as costas, enquanto o remo quase nos convertia
numa pasta insensibilizada, tanto na frente como atrás. Quando afinal o substituto chegava,
arrastávamo-nos meio aturdidos, para dentro da cabina de bambu, ligávamos as pernas
com uma corda e adormecíamos tendo pegada ao corpo a nossa roupa impregnada de sal,
sem pensar em nos enfiarmos nos nossos sacos-cama. Quase no mesmo instante
verificava-se um brusco puxão na corda; três horas haviam decorrido, e tinha a gente de
sair de novo para render um dos dois homens no remo da direcção.
A noite seguinte foi ainda pior; o mar encapelou-se mais, em vez de se acalmar. Duas horas
a fio de luta com o remo de direcção eram demasiado longas; um homem não prestava para
muita coisa na segunda metade do seu quarto, e o mar levava-nos a melhor, atirando-nos a
um lado e a outro, enquanto a água invadia a embarcação. Então modificámos o quarto
para uma hora ao leme e uma hora e meia de descanso. Assim as primeiras sessenta horas
passaram-se em contínua luta com o pandemónio das ondas que investiam connosco, uma
após outra, sem cessar. Ondas altas e ondas baixas, ondas de ponta e ondas redondas,
ondas de través e ondas no topo de outras ondas. De nós quem mais sofreu foi Knut.
Dispensámo-lo do quarto de governo, mas em compensação teve de se sacrificar a
Neptuno e curtiu silenciosas agonias num cauto da cabina. O papagaio estava sentado no
seu poleiro, mal-humorado. e, dependurado pelo bico, batia as asas cada vez que a
jangada dava um inesperado pinote e as ondas, vindo por detrás, invadiam a jangada até a
parede. A Kon-Tiki não balouçava excessivamente Aguentava o mar com mais firme/a do
que qualquer bote das mesmas dimensões, mas era impossível predizer de que jeito a
coberta se inclinaria na vez seguinte, e nunca aprendemos a arte de andar com facilidade
pela jangada, porquanto ela jogava tanto quanto galeava.
Na terceira noite, o mar aquietou-se um pouco, embora o vento ainda soprasse com força.
Por volta das quatro horas, um inesperado perseguidor veio escachoando através da
escuridão e deu em cheio na jangada antes que os timoneiros reparassem no que estava
sucedendo. A vela bateu na cabina de bambu, ameaçando destroçar não somente a cabina
mas a si própria. Todos os homens tiveram de correr à coberta e pôr em segurança a carga
e alar escotas e estais na esperança de fazer a jangada volver à sua rota, de modo que a
vela pudesse enfunar-se e curvar-se para diante pacificamente. A jangada, porém, não
queria pôr-se direita. Queria cair à ré e pronto! O único resultado de todo o nosso puxar e
arrastar foi que dois homens quase caíram no mar, colhidos pela vela no escuro. O mar
tinha-se evidentemente tornado mais calmo. Aturdidos e machucados, com as palmas das
mãos esfoladas e olhos de sono, quase não prestávamos para nada. Era melhor
economizar o que nos restava para o caso de nos desafiar o tempo para alguma prova
ainda mais dura. Ninguém podia saber o que nos aguardava. Por isso, ferrámos a vela e
enrolámo-la na verga de bambu. A Kon-Tiki ficou de través sobre as águas, portando-se
como se fosse de cortiça. Tudo a bordo estava bem arrumado e nós arrastámo-nos para a
pequena cabina de bambu, caímos num só monte, e dormimos como pedra em poço.
Mal sabíamos que tínhamos pelejado no ponto de mais difícil direcção da viagem. Só
depois de estarmos, há muito, no mar alto, é que descobrimos a simples e engenhosa
maneira com que os incas governavam uma jangada. Dormimos até dia alto e despertámos
apenas quando o papagaio se pôs a assobiar e a chamar alguém indo de um lado para
outro no seu poleiro. Lá fora o mar estava encarneirado, mas não tão bravo e confuso como
na véspera. A primeira coisa que vimos foi que o sol batia na coberta de bambu amarelo
dando ao oceano, em redor de nós, um aspecto lindo. Que importava que o mar rugisse e
se encapelasse uma vez que nos deixasse em paz na jangada? Que importava que se
erguesse à nossa frente se sabíamos que, num segundo, a jangada subiria ao topo e,
semelhante a um cilindro compressor, alisaria a crista espumante, enquanto a poderosa e
ameaçadora montanha de água apenas nos levantava no ar e rolava mugindo e
gorgolejando sob os toros? Os velhos mestres vindos do Peru sabiam o que faziam quando
rejeitavam uma casca oca que poderia ficar cheia de água, ou uma embarcação qualquer
que não soubesse fazer face às ondas, uma por uma. Um cilindro compressor de cortiça,
eis a que equivalia a jangada de madeira de balsa.
Erik tomou a nossa posição ao meio-dia e verificou que, além da rota efectuada com o
impulso da vela, tínhamos feito enorme desvio para o Norte, ao longo da costa. Estávamos
ainda na corrente de Humboldt, exactamente a 100 milhas da terra. A grande questão era
saber se escaparíamos dos traiçoeiros redemoinhos ao Sul das Galápagos. Isto podia ter
consequências fatais, pois, uma vez lá, podíamos ser arrastados em todos os sentidos por
fortes correntes oceânicas que se dirigiam à costa da América Central. Se, porém, as coisas
corressem segundo os nossos cálculos, desviar-nos-íamos para Oeste, através do mar,
com a corrente principal, antes de chegarmos ao ponto
- Tudo bem nas Galápagos? perguntou Knut um dia, cautelosamente, olhando para o nosso
mapa, onde estava marcado um fio de pérolas indicando as nossas posições, parecendo
um dedo a apontar, sinistramente, para as malfadadas ilhas Galápagos.
- Sei lá, disse eu. Contam que o inca Topas Yupanqui navegou do Equador às Galápagos
pouco antes de Colombo, mas nem ele nem outro qualquer se fixou lá porque não .havia
água.
- Bem, bem, retrucou Knut. Então não queremos ir lá. Pelo menos, espero que não iremos.
Estávamos já tão habituados a ver a dança do oceano em torno de nós que não fizemos
caso disto. Que importava se tivéssemos de bailar um pouco com mil toesas de água
debaixo de nós, contanto que a jangada estivesse sempre no topo? Neste ponto foi que
surgiu outra questão: quanto tempo, de acordo com os nossos cálculos e esperanças, nos
podíamos conservar no topo? Era fácil de ver que os toros de balsa absorviam água. A viga
transversal posterior era pior que as outras; nela podíamos afundar a ponta inteira do dedo,
pois sentíamos a madeira encharcada e o barulho característico causado pela pressão no
líquido. Sem dizer nada, parti um pedaço de madeira ensopada e atirei-o ao mar.
Submergiu-se na superfície e lentamente desapareceu nas profundezas. Posteriormente, vi
dois ou três companheiros fazerem exactamente a mesma coisa, julgando que ninguém os
observava no momento. Estavam a olhar, reverentes, para o pedaço de madeira, todo
cercado de água, submergindo-se tranquilamente na água verde. Ao partirmos, havíamos
marcado na jangada a linha de flutuação, mas no mar agitado era impossível averiguar o
seu calado, porque se agora os toros se achavam acima da água, no momento seguinte
estavam profundamente embebidos nela. Se, porém, enterrávamos uma faca na madeira,
víamos com alegria que estava seca mais ou menos abaixo da superfície. Calculámos que
se a água continuasse a penetrar na madeira na mesma proporção, a jangada flutuaria sob
a superfície da água ao tempo em que esperávamos aproximar-nos da terra. Mas tínhamos
esperança de que, mais no interior, a seiva operaria como agente impregnador, moderando
a absorção.
Houve, durante as primeiras semanas, outra ligeira ameaça pendente sobre os nossos
espíritos. Eram as cordas. Durante o dia estávamos tão ocupados que pouco pensávamos
no assunto, mas quando as trevas caíam e nos metíamos na cama sobre o chão da cabina,
tínhamos mais tempo para pensar, sentir e escutar. Deitados nos nossos colchões de palha,
podíamos sentir o entrançado sobre que jazíamos arfando ritmicamente com os toros de
madeira. Além dos movimentos da própria jangada, todos os nove troncos se moviam
reciprocamente. Quando um subia, outro descia com ligeira arfagem. Não se moviam muito,
mas o bastante para no darem a sensação de estarmos deitados sobre o dorso de um
enorme animal a respirar e preferíamos alongarmo-nos sobre um toro no sentido
longitudinal. As duas primeiras noites foram as piores, mas então estávamos muito
cansados para nos preocuparmos com o caso. Mais tarde, as cordas incharam um pouco
com a água e conservaram mais quietos os nove troncos. Mas, apesar disto, não havia
nunca a bordo uma superfície plana que se mantivesse perfeitamente quieta em relação às
outras coisas. Como a base se movia para cima, para baixo e para o lado em cada junta,
tudo o mais se movia com ela. A coberta de bambu, o duplo mastro, as quatro paredes
trançadas da cabana e o telhado de taquara, com as folhas por cima, tudo estava amarrado
com cordas e se torcia e levantava em direcções opostas. A coisa era quase imperceptível,
mas suficientemente clara. Se um canto subia, o outro descia, e se uma metade do telhado
trazia todas as suas ripas para a frente, a outra metade arrastava as suas ripas para trás. E
se olhávamos para fora pela parede aberta, havia ainda mais movimento e mais vida,
porque lá o céu movia-se mansamente num»círculo enquanto que o mar pulava alto na
direcção dele.
A verdade é que as cordas aguentaram. Duas semanas, haviam dito os marujos. Depois,
todas as cordas estariam gastas. Mas, a despeito de opiniões tão unânimes, não tínhamos
até então encontrado o menor sinal de desgaste. Só depois de nos acharmos, há muito, no
mar, demos com a solução. É que a madeira de balsa era tão macia que as cordas
penetravam lentamente na madeira e, em vez de serem gastas pelos troncos, eram por eles
protegidas.
Mais ou menos depois de uma semana, o mar tornou-se mais calmo, e notámos que a água
tinha passado de verde a azul. Principiámos a mover-nos para Oeste-Noroeste em vez de
Noroeste, e tomámos isto como o primeiro débil sinal de que havíamos saído da corrente
costeira e tivemos alguma esperança de estarmos a ser levados para o mar alto.
Logo no primeiro dia em que ficámos sós no mar, reparámos nuns peixes que rodeavam a
jangada, mas estávamos muito atarefados com o governo da embarcação para pensarmos
em pescaria. No segundo dia. deparou-se-nos. um cardume de sardinhas e, logo depois,
um tubarão azul de 2,40 m veio rolar de barriga branca para cima, enquanto roçava na popa
alagada da embarcação, onde Herman e Bengt estavam de pé e descalços dirigindo.
Andou-nos rodeando por algum tempo, mas desapareceu quando, resolvidos a agir,
pegámos no arpão.
No dia seguinte fomos visitados por atuns, bonitos e dourados, e quando um grande peixe-
voador caiu na jangada, empregámo-lo como isco e imediatamente puxámos para dentro
dois grossos dourados, respectivamente de 9 kg e 16 kg cada um. Serviram-nos de
alimento durante vários dias. No quarto de direcção, podíamos ver muitos peixes que nem
conhecíamos, e um dia topámos com um cardume de porcos do mar que parecia não ter
fim. Era uma quantidade imensa de dorsos negros a mexer-se, amontoados e muito unidos
ao lado da jangada que, aqui e ali, surgiam por todo o mar, na maior distância que
podíamos alcançar do topo do mastro. E quanto mais nos aproximávamos do Equador e
nos distanciávamos da costa, mais comuns se tornavam os peixes-voadores. Quando, por
fim, penetrámos na água azul, onde o mar rolava majestosamente, brilhante de sol e
manso, encrespado por lufadas de vento, vimo-los cintilar como uma chuva de projécteis,
arrojando-se da água e voando em linha recta até que a sua força voadora se esgotasse.
Então desapareciam abaixo da superfície.
A primeira obrigação do cozinheiro, ao levantar-se pela manhã, era sair para a coberta e
recolher todo o peixe-voador que, no correr da noite, tivesse caído a bordo. Em geral, havia
meia dúzia ou mais, e uma manhã encontrámos sobre a jangada vinte e seis peixes-
voadores gordos. Knut ficou bastante aborrecido porque certa vez, quando lidava com a
frigideira, um peixe-voador foi bater-lhe na mão em vez de ir cair directamente na gordura
quente.
A nossa intimidade com o mar só foi verdadeiramente compreendida por Torstein quando
uma manhã, ao acordar, encontrou uma sardinha no travesseiro. Havia tão pouco espaço
na cabina que Torstein estava deitado com a cabeça na soleira da porta, e se alguém, ao
sair de noite, sem querer lhe pisava -o rosto, mordia-o na perna. Pegou a sardinha pelo
rabo e, de uma maneira inteligente, segredou-lhe que todas as sardinhas gozavam da sua
simpatia. Conscienciosamente, encolhemos as pernas para que, na noite seguinte, Torstein
tivesse mais espaço. Mas então, sucedeu qualquer coisa que fez com que Torstein fosse
procurar, para dormir, um lugar no alto de todos os trens de cozinha, no canto reservado ao
rádio.
Isto aconteceu algumas noites mais tarde. Estava escuro como breu, e Torstein havia
colocado a lâmpada de parafina perto da cabeça. Por volta das quatro horas, acordou com
a lâmpada revirada e uma coisa fria e húmida a roçar-lhe pelas orelhas. «Peixe-voador»,
pensou, tateando no escuro a ver se o agarrava para o atirar longe. Pegou assim numa
coisa comprida e molhada que se agitava como uma cobra, mas largou-a ao perceber que
as mãos lhe ardiam como se estivessem queimando. O visitante invisível enroscou-se e
escapuliu-se, indo passar por cima de Herman, enquanto Torstein procurava acender a
lâmpada. Herman também acordou assustado, e isto pondo-me igualmente desperto,
lembrou-me o polvo que, naquelas águas, surgia à noite. Depois que conseguimos acender
a lâmpada, Herman, triunfante, estava sentado, segurando o pescoço de um peixe
comprido e fino que se retorcia nas suas mãos como uma enguia. Tinha uns 93 centímetros
de comprimento, era delgado como uma serpente, possuía feios olhos pretos e comprido
focinho com uma voraz mandíbula cheia de dentes longos e agudos. Os dentes eram
afiados como navalhas e podiam dobrar-se até o céu da boca para dar passagem ao que
ele engolisse. Sob a pressão dos dedos de Herman, um peixe branco de olhos grandes,
com cerca de 20 cm de comprimento, foi subitamente expelido do estômago e da boca do
peixe rapace, sendo logo seguido de outro semelhante. Eram claramente duas «vítimas»
que habitavam as grandes profundidades, e estavam bastante maltratados pelos dentes do
peixe-cobra. A pele fina do peixe-cobra era de um azul violáceo nas costas e de um azul de,
aço por baixo e foi-se descamando toda quando o agarrámos.
Bengt também acordara afinal com o barulho, e assim aproximámos do nariz dele a
lâmpada e o comprido peixe. Estremunhado, sentou-se no seu saco de dormir e proclamou,
com solenidade:
Bengt não andava muito longe da verdade. Mais tarde verificou-se que nós seis sentados,
em redor da lâmpada, na cabina de bambu, fomos os primeiros homens que vimos tal peixe
vivo. Apenas o esqueleto de um peixe como esse tinha sido achado, algumas vezes, na
costa tia América do Sul e nas ilhas Galápagos; os ictiólogos chamaram-lhe Gempylus ou
cavalinha-serpente e supunham que vivia no fundo do mar, a grande profundidade, porque
ninguém jamais o vira vivo. Se, porém, vivia a grande profundidade, devia ser de dia,
quando o sol lhe cegava os enormes olhos, porquanto, em noites escuras, o Gempylus
andava bem à superfície do mar; nós na jangada tivemos experiência disso.
Uma semana depois do raro peixe vir parar ao saco-cama de Torstein, tivemos outra visita.
Eram também quatro horas da manhã e a lua nova tinha desaparecido, de maneira que
estava escuro, mas as estrelas brilhavam no firmamento. A jangada ia sendo dirigida com
facilidade, e quando o meu quarto terminou, dei uma volta pela beirada da embarcação para
ver se tudo estava em ordem para o novo quarto. Trazia uma corda em volta da cintura,
como o vigia sempre tinha, e, com a lâmpada de parafina na mão, andava cuidadosamente
ao longo do tronco extremo para evitar o mastro. O tronco estava húmido e escorregadio, e
fiquei furioso quando alguém agarrou, de surpresa, a corda atrás de mim e puxou por ela
até eu quase perder o equilíbrio. Voltei-me enraivecido com a lanterna, mas não vi por ali
nem viva alma. Senti novo puxão na corda e vi uma coisa brilhante deitada na coberta, a
retorcer-se. Era um novo Gempylus, e desta vez enterrara os dentes na corda com tanta
vontade que vários deles se quebraram antes que eu pudesse soltá-la. Provavelmente, o
clarão da lanterna batera ao longo da corda branca, e o nosso visitante das profundezas do
oceano tinha-a agarrado na esperança de, com um salto para cima, abocanhar mais um
pitéu comprido e gostoso. Acabou os seus dias num frasco de formalina.
O mar encerra muitas surpresas para quem tem o chão quase ao nível da superfície
oceânica e vai vogando devagar e sem fazer barulho. Um homem, dado ao desporto, que
se embrenhe pelas matas, na volta pode dizer que não viu nada de especial. Outro que se
sentou num tronco de árvore e se dispôs a esperar, muitas vezes terá percebido, entre o
estalido das folhas secas e o ramalhar da folhagem, uns olhos curiosos que espreitam
cautelosamente. O mesmo se passa no mar. Nós geralmente sulcamos as ondas com
máquinas roncadoras e vaivéns de êmbolos, com a água a espumar em roda das nossas
proas. Depois regressamos e vimos dizer que não há nada que ver no alto mar.
Não se passava dia sem que, enquanto íamos flutuando sobre a superfície do oceano, não
fôssemos visitados por hóspedes curiosos que se debatiam e rabeavam em torno de nós, e
alguns deles, tais como dourados e pilotos, se familiarizaram tanto connosco que
acompanhavam a jangada através do mar e ficavam em torno de nós, dia e noite.
Mas outras vezes eram os olhos rútilos de peixes dos abismos oceânicos que só de noite
vinham à tona de água e se deixavam ficar a fitar, fascinados pela luz bruxuleando que
caminhava diante deles. Em várias ocasiões, quando o mar estava calmo, a água escura
que rodeava a jangada aparecia, de repente, coalhada de cabeças redondas de sessenta e
noventa centímetros de diâmetro, que jaziam ali imóveis, fitando-nos com grandes olhos
brilhantes. Em outras noites, bolas de luz de mais de noventa centímetros de diâmetro eram
visíveis dentro da água, fulgindo em intervalos regulares como luzes eléctricas acesas
durante um momento.
Pouco a pouco, fomo-nos acostumando a ter esses animais submarinos debaixo do soalho,
mas apesar disso surpreendíamo-nos cada vez que aparecia um novo espécime. Por volta
das duas horas de uma noite nublada, em que o homem do leme tinha dificuldade de
distinguir a água escura do céu negro, divisou uma luz frouxa na água que, lentamente,
tomou a forma de um grande animal. Era impossível dizer se se tratava de plâncton a
brilhar-lhe em cima do corpo ou se o próprio animal tinha superfície fosforescente, mas o
bruxuleio dentro da água dava ao estranho ser contornos obscuros e vagos. Ora se
apresentava arredondado, ora oval ou triangular, e, de repente, separou-se em duas partes
que nadavam para um lado e para outro debaixo da jangada, uma independente da outra.
Finalmente havia três destes grandes fantasmas fulgentes a vagar em círculos lentos por
baixo de nós. Eram verdadeiros monstros, porquanto só as partes visíveis tinham uns nove
metros de comprimento, e rapidamente nos reunimos todos no convés para acompanhar,
de perto, aquela dança fantástica, que foi continuando, horas a fio, seguindo a derrota da
jangada.
Nunca tivemos cabal explicação da visita nocturna dos três monstros luminosos, a não ser
que a solução tenha sido dada por outra visita que recebemos, dia e meio mais tarde, em
pleno esplendor meridiano. Estávamos a 24 de Maio e vogávamos num mar calmo,
exactamente a 95o Oeste por 7° Sul. Era quase meio-dia e acabávamos de deitar à água as
tripas de dois grandes dourados que tínhamos pescado de manhã cedo. Eu dava um
refrescante mergulho junto à proa, deitado na água, com os olhos bem atentos na extensão
que me rodeava e preso à ponta de uma corda, quando avistei um grosso peixe pardo, de
1,80 m de comprimento, que vinha fendendo na minha direcção a água cristalina do mar.
De um pulo veloz, galguei a beira da jangada e sentei-me no sol quente, a olhar para o
peixe que passava tranquilamente, quando ouvi um formidável berro de Knut, que estava
sentado à ré por detrás da cabina de bambu. Gritou «Tubarão!» até a voz rematar numa
falsete, e como quase diariamente víamos, sem tamanho estardalhaço, tubarões nadando
ao lado da jangada, compreendemos que aquele devia ser um novo espécime e reunimo-
nos todos na popa para auxiliar Knut.
Este estivera ali de cócoras, a lavar um calção na corrente, e levantando os olhos por um
momento, cravou-os directamente na carantonha maior e mais horrenda que qualquer de
nós já tinha visto em dias de sua vida. Era a cabeça de um verdadeiro monstro marinho, tão
descomunal e horroroso que o próprio Neptuno, surdindo com o seu tridente dos abismos
do oceano, não nos faria impressão maior. A cabeça era larga e chata como a de uma rã,
com dois olhinhos de cada lado e uma mandíbula de sapo, de 1,20 m ou 1,50 m de largura,
e com longas franjas a penderem-lhe dos cantos da boca. Atrás da cabeça, estendia-se um
enorme corpo terminando em comprido e fino rabo com uma pontuda barbatana caudal
erecta, a provar que aquele monstro marinho não era nenhuma espécie de baleia. Debaixo
da água, o corpo parecia escuro, mas tanto a cabeça como o corpo eram profusamente
cobertos de pequenas malhas brancas. O monstro vinha com perfeita calma, nadando
preguiçosamente atrás de nós da parte da popa. Arreganhava os dentes como um cão de
fila e zurzia brandamente com a cauda. A grande e redonda barbatana dorsal ressaía
claramente da água, o mesmo acontecendo algumas vezes com a barbatana caudal, e
quando o animal se achava no espaço formado por duas ondas, a água escorria-lhe pelo
vasto dorso como se estivesse a lavar um recife submerso. Em frente às imensas
mandíbulas, nadava uma verdadeira chusma de pilotos zebrados, formando como que um
leque, e grandes remoras e outros parasitas, firmemente agarrados ao corpanzil, viajavam
com ele pela água dentro, de modo que aquilo parecia uma curiosa colecção zoológica
apinhada ao redor de urna coisa que se assemelhava a um rochedo flutuante. Um dourado
de uns 11 kg, ligado a seis dos nossos maiores anzóis, estava dependurado por detrás da
jangada para servir de engodo a tubarões, e um cardume de pilotos passou por ali como
uma bala, cheirou o dourado sem tocar-lhe, e depois correu de volta a seu senhor e mestre,
o Rei do Mar. Como se fora um monstro mecânico, pôs o seu maquinismo a funcionar e
avizinhou-se calmamente do dourado que ali estava, qual misérrima ninharia, diante de
suas mandíbulas. Tratámos de puxar o dourado para dentro, e o monstro marinho foi-o
seguindo lentamente até um lado da jangada. Não abriu a boca, mas apenas deixou o
dourado bater contra ela, como se não valesse a pena escancarar a porta para tão
insignificante migalha. Quando o gigante chegou muito perto da jangada, raspou o dorso no
pesado remo de direcção, que no momento se erguia fora da água, dando-nos isto ampla
oportunidade para examinarmos o monstro bem de perto, tão de perto que cuidei havermos
todos enlouquecido, pois quase estourámos de tanto rir, soltando, ao mesmo tempo, em
altos berros exclamações de legítimo estupor ante o espectáculo fantástico que
presenciávamos. O próprio Walt Disney, com toda a força de sua imaginação, não poderia
criar um monstro marinho „ mais horripilante do que aquele que, assim tão subitamente,
estava ali com as suas terríveis mandíbulas ao lado da nossa jangada.
O monstro era tão grande que, quando começou a nadar descrevendo círculos cm redor de
nós e sob a jangada, a sua cabeça podia ser vista de um lado enquanto a cauda inteira
avultava do outro. E pareceu tão grotesco, inerte e bronco, quando visto bem de perto e de
frente, que não pudemos deixar de nos rir às gargalhadas, embora compreendêssemos
que, se nos atacasse, tinha na cauda força suficiente para reduzir a pedaços tanto os toros
de balsa como as cordas. Repetidas vezes descreveu círculos cada vez menores sob a
jangada, enquanto nós o que fizemos foi ficar aguardando o que podia acontecer. Ao sair
na outra banda, deslizou amavelmente sob o remo de direcção e ergueu-o no ar, ao passo
que a pá do remo resvalou por todo o dorso do animal.
Estávamos reunidos na jangada com arpões portáteis, prontos para agir, mas pareciam
palitos em relação ao descomunal peixe com que tínhamos de lidar. Não havia indício de
que o tubarão-gigante pensasse em nos deixar; fazia círculos e mais círculos e seguia-nos
como um cão fiel, perto da jangada. Nenhum de nós poderia imaginar que em dias de sua
vida fosse ter uma experiência como aquela; a aventura toda, com o monstro marinho a
nadar ora atrás da jangada, ora debaixo dela, pareceu-nos tão fora do natural que
realmente não nos animávamos a tomá-la a sério.
Na verdade, não haveria nem uma hora que o tubarão-gigante fazia os seus giros em torno
de nós, mas a visita ia-nos parecendo ter a duração de um dia inteiro. Afinal aquilo afigurou-
se demasiado irritante para Erik, que estava de pé a um canto da jangada com um arpão de
2,40 m. E esporeado por gritos imprudentes, levantou o arpão acima da cabeça. Quando o
tubarão-gigante veio deslizando vagarosamente na direcção dele e a larga cabeça surgiu
bem debaixo do canto da jangada, Erik, com toda a sua força gigantesca, arremessou por
entre as pernas o arpão que foi cravar-se profundamente na cartilaginosa cabeça do
tubarão-gigante. Decorreram uns dois segundos antes que o gigante percebesse
cabalmente do que se tratava. Então, repentinamente, o plácido lorpa transformou-se numa
montanha de músculos de aço. Ouvimos o ruído de um sibilo quando a linha do arpão
passou violentamente sobre a beira da jangada, e vimos um cascatear de água quando o
monstro ergueu alto a cabeça para logo depois mergulhar nos abismos. Os três homens
que se achavam mais perto foram atirados por ali de pernas para o ar, e dois deles ficaram
esfolados e queimados pela linha quando ela fendia o ar. A linha grossa, com força
suficiente para amarrar um bote, ficou segura no lado da jangada, mas partiu-se no mesmo
momento como pedaço de cordel, e uns segundos depois um arpão quebrado surgiu à tona
da água a mais de 180 m de distância. Um cardume de assustados pilotos passou, como
um raio, pela água, cm desesperadora tentativa de seguir o rasto de seu antigo senhor e
mestre, e ficámos longo tempo à espera de que o monstro voltasse como um submarino
furioso; mas nunca mais vimos nenhum vestígio do tubarão-gigante.
Quando a tartaruga avistou a jangada, mergulhou e dirigiu-se para o nosso lado, perseguida
pelos cintilantes peixes. Avizinhou-se bastante da beira da jangada e já fazia menção de
querer trepar na madeira quando nos viu lá, de pé. Sé tivéssemos mais prática, podíamos,
sem dificuldade, tê-la apanhado com cordas enquanto a colossal casca remava,
pacatamente, ao longo da nossa embarcação. Em vez, porém, de aproveitarmos a
oportunidade, passámo-la a olhar para o animal, e quando fomos atirar o laço, já a
gigantesca tartaruga tinha ultrapassado a nossa proa. Lançámos à água o nosso botezinho
de borracha, e Herman, Bengt e Torstein partiram em perseguição da tartaruga marítima na
redonda casquinha de noz, não muito maior do que aquilo que ia nadando à frente deles.
Como despenseiro que era, Bengt viu em espírito uma enfiada de pratos de carne e a mais
deliciosa das sopas de tartaruga. Mas quanto mais rapidamente remavam, mais depressa a
tartaruga deslizava pela água pouco abaixo da superfície, e não se achavam eles a muito
mais de noventa metros da jangada quando, de repente, a tartaruga desapareceu sem
deixar vestígio. Tinham, em todo caso, praticado uma boa acção. Pois, quando o botezinho
amarelo de borracha vinha de regresso, dançando sobre a água, seguia-o uma luzidia
chusma de dourados. Rodearam a nova tartaruga, e os mais atrevidos deram dentadas nas
pás dos remos que mergulhavam na água como nadadeiras; entretanto, a pacífica tartaruga
escapou ilesa dos seus ignóbeis perseguidores.
A vida e as experiências de cada dia - Agua potável para quem viaja em jangada - A batata
e a cabaça revelam um segredo - Cocos e caranguejos - Johannes - Navegando através de
sopa de peixe - Plâncton - Fosforescência comestível - As nossas relações com as baleias -
Formigas e bernaclas - Peixes amigos - O dourado corno companheiro - Pescando tubarões
- A «Kon-Tiki» transformada em monstro marinho - Os pilotos e remoras deixam-nos por
causa dos tubarões - Lulas voadoras - Visitantes desconhecidas - O cesto de imersão -
Com atum e o bonito no seu próprio elemento - O falso escolho - A quilha corrediça - Uni
enigma - A metade do caminho
DECORRERAM semanas. Não vimos sinal algum nem de navio nem de qualquer outra
coisa que vogasse, para nos mostrar que havia mais gente no Mundo. O oceano inteiro
pertencia-nos e, com todas as portas do horizonte abertas, uma paz real e a verdadeira
liberdade desceram do firmamento sobre nós.
Era como se o gosto fresco de sal que havia no ar e a imensa pureza azul que nos rodeava
nos tivessem lavado o corpo e purificado a alma. A nós, sobre aquela jangada, os grandes
problemas do homem civilizado afiguravam-se falsos e ilusórios, meros produtos pervertidos
do espírito humano. Só os elementos se revestiam de importância. E os elementos
pareciam não fazer caso da pequena jangada. Ou talvez a estivessem aceitando como um
objecto natural que não quebrava a harmonia do mar, mas que se adaptava à corrente e ao
oceano como a ave e o peixe. Em vez de se mostrarem um inimigo temível, investindo
connosco a espumar, os elementos haviam-se tornado num amigo fiel que, com firmeza e
segurança, nos ajudava a avançar. Enquanto o vento e as ondas empurravam e impeliam, a
corrente oceânica permanecia debaixo de nós e puxava-nos sempre para o rumo da nossa
meta.
Se um. bote cruzasse connosco no oceano, num dia comum, encontrar-nos-ia balouçando,
sossegadamente, para cima e para baixo sobre um mar imenso, coberto de ondazinhas de
crista branca, enquanto os ventos alísios mantinham virada na direcção da Polinésia a vela
alaranjada.
Os que iam a bordo teriam visto, à popa da jangada, um homem barbado, moreno e sem
roupa, ou desesperadamente a braços com um longo remo de direcção, enquanto arrastava
com violência uma"corda emaranhada, ou estando calmo o tempo, sentado num caixote a
cochilar no sol quente, e com os dedos dos pés mantendo em posição cómoda o remo de
governo.
Se o homem não fosse Bengt, este seria visto deitado de barriga para baixo na porta da
cabina, com um dos seus setenta e três livros de sociologia. Bengt tinha ainda sido
nomeado despenseiro de bordo, sendo responsável pela fixação das rações diárias.
Herman podia ser encontrado em diferentes lugares, a qualquer hora do dia: no tope do
mastro com instrumentos meteorológicos; debaixo da jangada com uns óculos de
mergulhador, a examinar uma quilha corrediça; ou à sirga no botezinho de borracha,
ocupado com balões e curiosos aparelhos de medir. Ele era o nosso chefe técnico e
responsável pelas observações meteorológicas e hidrográficas.
Knut e Torstein estavam sempre às voltas com as suas baterias húmidas e secas, os seus
ferros de soldar e os seus circuitos. Todo o treino que adquirira durante a guerra era exigido
para, com os borrifos de espuma e com o orvalho, manter em funcionamento a pequena
estação de rádio 30 centímetros acima da superfície da água. Todas as noites se
revezavam para enviar ao éter as nossas informações e observações sobre o tempo.
Radioamadores captavam-nas e transmitiam-nas ao Instituto Meteorológico de Washington
e a outros destinos. Erik, geralmente sentado, consertava velas e enlaçava pontas de
cordas, ou entalhava em madeira e desenhava homens barbados e peixes extravagantes.
E, ao meio-dia, diariamente, pegava no sextante e trepava a um caixote para olhar para o
sol e verificar o que havíamos progredido desde a véspera. Quanto a mim, tinha bastante
que fazer com o diário de bordo, a colecção de plâncton, a pesca e as fotografias. Cada
homem tinha a sua esfera de responsabilidade e nenhum se intrometia no trabalho alheio.
As ocupações piores, como cozinhar e montar guarda ao remo de direcção, eram divididas
igualmente entre todos. Cada um tinha de ali ficar duas horas por dia e duas horas por
noite. E o serviço de cozinha era distribuído de acordo com uma escala renovada
diariamente. Havia poucas leis e regulamentos a bordo, os quais eram reduzidos mais ou
menos ao seguinte: o vigia nocturno devia ter uma corda em volta da cintura; a corda salva-
vidas tinha um lugar certo; todas as refeições deviam ser feitas fora da cabina; o W.C.
situava-se exclusivamente na mais afastada extremidade dos toros, à ré. Se era necessário
tomar alguma decisão importante a bordo, reuníamo-nos em assembleia, discutíamos o
assunto e decidíamos o que havia a fazer.
Um dia ordinário, a bordo da Kon-Tiki, começava com a obrigação, que incumbia ao último
vigia nocturno, de infundir um pouco de vida no cozinheiro, sacudindo-o; este,
estremunhado, arrastava-se para o convés húmido de orvalho, onde já batia o sol da
manhã, e punha-se a recolher os peixes voadores que havia. Em vez de comei os peixes
crus, conforme a receita tanto polinésica como peruana, fritávamo-los sobre o fogãozinho
«Primus» colocado no fundo do caixote, solidamente amarrado ao convés, do lado externo
da porta da cabina. Este caixote era a nossa cozinha. Nele, cm geral, havia abrigo contra os
ventos alísios de Sueste que, por via de regra, sopravam do lado oposto ao da nossa
cozinha. Somente quando o vento e o mar atiçavam, de modo exagerado, a chama do
«Primus», é que esta pegava fogo ao caixote de madeira. Certa vez, o cozinheiro
adormeceu e o caixote ficou convertido num braseiro que se comunicou à parede da cabina
de bambu. Mas o fogo foi depressa extinto quando o fumo se introduziu na choça, porque,
afinal, a bordo da Kon-Tiki não tínhamos de ir muito longe para buscar água.
A alimentação a bordo não era passível de crítica. A cozinha estava dividida entre duas
experiências, uma dedicada à dieta do século XX, outra à do século v, o de Kon-Tiki.
Torstein e Bengt foram escolhidos para a primeira dieta e restringiram o seu regime
alimentício aos pacotinhos de provisões especiais que havíamos metido num buraco, entre
os troncos e a coberta de bambu. Na verdade, peixe e outra comida marítima nunca tinham
sido o seu forte. Passadas poucas semanas, desamarrámos as correias que prendiam a
coberta de bambu e tirámos para fora mantimentos frescos, que atámos, solidamente, em
frente à cabina. A espessa camada de asfalto por fora do papelão provou ser resistente, ao
passo que as latas hermeticamente fechadas que ficaram soltas ao lado dele, estavam
estragadas pela penetração da água do mar que constantemente banhava as nossas
provisões.
Na sua primitiva travessia, Kon-Tiki não tinha asfalto nem latas hermeticamente fechadas;
todavia, não lutou com sérios problemas alimentares. Aliás, naquela época, as provisões de
boca consistiam naquilo que os homens levavam consigo de terra e no que, durante a
viagem, iam apanhando. Pode-se presumir que, quando Kon-Tiki navegou da costa do Peru
após a sua derrota junto ao lago Titicaca, teve dois intuitos. Como representante espiritual
do Sol, entre gente inteiramente dedicada ao culto desse astro, é muito provável que se
aventurasse a enfrentar o oceano para seguir o próprio Sol na sua viagem, com a
esperança de achar uma nova região mais pacífica. Outra possibilidade que se lhe oferecia
era dirigir as suas jangadas para a costa da América do Sul, com a ideia de desembocar
bem acima e fundar novo reino fora do alcance de seus perseguidores. Uma vez livre da
perigosa costa, repleta de penedias, e das tribos inimigas ao longo da praia, teria, como se
deu connosco, ficado à mercê dos ventos alísios de Sueste e da corrente de Humboldt e,
portanto, à discrição dos elementos, pelo que acabou por cair exactamente no mesmo
grande semi-círculo rumo ao Poente.
Fossem quais fossem os planos desses adoradores do Sol, ao fugirem de sua pátria,
certamente se proveram de mantimentos para a viagem. Carne seca, peixe e batata doce
constituíam a parte mais importante de seu primitivo regime alimentar. Quando os
navegantes em jangada, daqueles tempos, se fizeram ao mar, ao longo da erma costa do
Peru, dispunham de amplo abastecimento de água a bordo. Em vez de vasilhas de barro,
geralmente usavam enormes cabaças que resistiam aos golpes e choques, embora ainda
mais próprias ao uso em jangada fossem as grossas hastes de gigantescos bambus;
furavam todos os nós e introduziam a água por um buraquinho no fundo, que vedavam com
um batoque ou com breu ou resina. Trinta ou quarenta dessas grossas hastes de bambu
podiam ser amarradas ao longo da jangada sob a coberta, onde ficavam à sombra e se
conservavam frias - a uns s6° e na corrente equatorial - graças à água fresca do mar que as
estava sempre banhando. Um depósito dessa espécie continha duas vezes a quantidade de
água que nós usámos em toda a nossa viagem, e podia ser levada quantidade ainda maior,
simplesmente amarrando mais hastes de bambu na água, por baixo da jangada, onde, além
de não ocuparem espaço, nada pesavam.
Verificámos que, passados dois meses, a água doce começou a alterar-se e a ter mau
gosto. Mas, nessa altura, já deixáramos bem para trás a primeira área do oceano onde há
pouca chuva, e chegáramos a regiões nas quais grandes chuvas equilibram a provisão de
água. Distribuíamos, diariamente, para cada homem, um bom litro de água, e raro era o dia
cm que a dose se esgotava.
Ainda mesmo que os nossos predecessores tivessem partido de terra sem provisões
adequadas, enquanto vogavam pelo mar ter-se-iam arranjado com a corrente Humboldt, na
qual há peixe em abundância. Não se passou um dia em toda a nossa viagem sem que
surgissem peixes em redor da jangada que eram facilmente apanhados. Mal houve um dia
sem que ao menos peixes-voadores viessem, espontaneamente, cair a bordo. Sucedeu até
que grandes bonitos, comida deliciosa, subiam à jangada com as massas de água que
entravam pela popa, e ficavam a rabear na embarcação quando a água escorrera já por
entre os toros como num crivo. Morrer de fome era impossível.
Os antigos indígenas conheciam bem o expediente de que, durante a guerra, se valeram
muitos náufragos - mascar peixe cru, extraindo assim o suco que tem a propriedade de
matar a sede. Pode-se também obter o suco torcendo pedaços de peixe num pano. Se o
peixe é grande, torna-se coisa bastante simples fazer-lhe buracos ao lado, que logo se
enchem de uma exsudação oriunda de suas glândulas linfáticas. O gosto não é bom se a
pessoa tem coisa melhor para beber, mas a percentagem de sal é tão baixa que se mata
bem a sede.
Quando está calor e somos atormentados pela sede, em geral supõe-se que o organismo
necessita de água, e isso gera o abuso na dose ordinária de líquido, sem nenhum benefício
para a saúde. Nos trópicos, em dias realmente quentes, pode-se fazer descer à vontade,
água pela garganta abaixo até senti-la no fundo da boca, e ter-se-á sede na mesma. É que
então o corpo não precisa de líquido mas de sal. É curioso, mas é verdade. As rações
especiais que tínhamos a bordo incluíam pastilhas de sal que deviam ser tomadas com
regularidade, em dias excessivamente quentes, porque a transpiração faz diminuir o sal do
organismo. Passámos dias assim, em que a calmaria era completa e o sol dardejava
impiedoso sobre a jangada. A nossa dose de água podia ser bebida toda de uma vez, a
ponto de nos pesar no estômago, mas a nossa goela continuava a pedir muito mais. Em tais
ocasiões, adicionávamos à nossa ração de água doce 20 a 40 por cento da salgadíssima
água do mar, e com surpresa verificávamos que essa água salobra nos mitigava a sede.
Muito tempo depois, sentíamos ainda na boca o sabor da água do mar, mas nunca nos fez
mal. Por outro lado, notámos considerável aumento da nossa ração de água.
Uma manhã, quando nos sentávamos para tomar a primeira refeição, uma onda inesperada
borrifou todo o nosso caldo, ensinando-nos gratuitamente que o gosto da aveia disfarçava,
em grande parte, o enjoativo sabor da água do mar.
Ora, como se sabe, é a América o único lugar do Mundo onde havia batata antes de ali
desembarcarem europeus. E a batata doce que Tiki trouxe consigo para as ilhas, Ipomoea
batatas, é exactamente a mesma que os índios cultivaram no Peru desde os tempos mais
remotos. A batata doce, seca, era a mais importante provisão de viagem, tanto para os
navegadores, da Polinésia como para os naturais do velho Peru. Nas ilhas dos mares do
Sul, a batata só se dá bem se for cuidadosamente cultivada e, como não tolera a água
salgada, é ocioso explicar a sua intensa distribuição por aquelas ilhas dispersas, afirmando
que pode ter sido transportada, através de 4.000 milhas marítimas, pelas correntes
oceânicas do Peru. Esta tentativa de explicação de um ponto tão obscuro é bastante inútil,
visto que os filólogos demonstraram que, em todas as ilhas dos mares do Sul, espalhadas
numa área tão vasta, o nome da batata doce é kumara, e que kumara é justamente a
denominação que a batata doce tinha entre os antigos indígenas do Peru. O nome
acompanhou a batata através do oceano.
Outra planta, bem importante, cultivada na Polinésia, e que tínhamos connosco a bordo da
Kon-Tiki, era a cabaça, Lagenaria vulgaris. Tão importante quanto é certo que o próprio
fruto era a casca, que os polinésios secavam ao fogo e usavam para guardar água. Esta
típica planta de horta, a qual, por sua vez, também não podia pro-pagar-se sem trato,
atravessando sozinha o oceano, era possuída pelos antigos polinésios em comum com os
primitivos povos do Peru. Estas cabaças, convertidas em vasilhas de água, têm sido
encontradas em túmulos pré-históricos do deserto, na costa do Peru, e eram usadas por
aquele povo de pescadores, séculos antes dos primeiros homens chegarem às ilhas do
Pacífico. Kimi, nome que os polinésios dão à cabaça, é ainda empregado entre os índios da
América Central, onde a civilização do Peru tem suas raízes mais profundas.
Além de algumas frutas meridionais que comemos dentro de poucas semanas e antes que
apodrecessem, tivemos a bordo uma terceira planta que, ao lado da batata doce,
desempenha importantíssimo papel na História do Pacifico: o coco. Levámos duzentos
cocos que deram bom trabalho aos nossos dentes e nos ministraram bebidas refrescantes.
Várias nozes da índia logo principiaram a brotar, e ao fim de dez semanas de estarmos no
mar, tínhamos meia dúzia de coqueirinhos de 30 centímetros que já haviam aberto os seus
renovos e formavam vasta folhagem verde. O coco medrava antes do tempo de Colombo,
tanto no istmo de Panamá como na América do Sul. Escreve o cronista Oviedo que havia
coqueiro em grande número, ao longo da costa peruana do Pacífico, quando os espanhóis
chegaram. Por essa época já ele existia, há muito, em todas as ilhas do Pacífico. O»
botânicos ainda não sabem ao certo em que direcção se espalhou pelo Pacífico. Mas uma
coisa se sabe de certeza: é que nem sequer o coco, com a sua famosa casca, pode
expandir-se através do oceano sem o auxílio do homem. Os cocos que tínhamos em
cestos, no convés, permaneceram comestíveis e aptos para a germinação durante todo o
percurso para a Polinésia. Havíamos, porém, posto cerca de metade entre as provisões
especiais abaixo do convés, com as ondas a banhá-los incessantemente. Todos, sem
excepção, ficaram estragados pela água salgada. E nenhum coco pode boiar no oceano
com maior rapidez do que a que é atingida por uma jangada de madeira de balsa, com o
vento a impeli-la por trás. Foram os olhos do coco que absorveram água e o amoleceram,
ocasionando a invasão do líquido salgado.
Às vezes, em dias aprazíveis e em pleno oceano azul, passávamos perto de uma pena
branca de ave, que boiava. Não era para admirar pois encontrámos, a milhares de milhas
do continente mais próximo, procelárias separadas do bando a que pertenciam e ainda
outras aves marítimas que podem dormir no mar. Ao aproximar-nos da peninha, víamos
dois ou três passageiros a seu bordo, singrando comodamente diante do vento. Quando a
Kon-Tiki ia a passar, qual outro Golias, os passageiros, notavam que era uma embarcação
mais rápida e mais espaçosa; por isso corriam de lado, a todo o pano, sobre a superfície, e
dali subiam para a Kon-Tiki, deixando a pena a velejai; sozinha. E assim a Kon-Tiki cm
breve principiou a encher-se de clandestinos. Eram pequenos caranguejos marítimos. Do
tamanho de uma unha, e uma vez ou outra bem maiores do que isso, transformavam-se em
petiscos para os gigantes de bordo se nos dávamos, ao trabalho de apanhá-los. Os
pequenos caranguejos são os polícias da superfície do mar, e não hesitam em
cuidar de si quando bispam qualquer coisa comestível. Se, um dia, o cozinheiro não
reparava num peixe-voador caído entre os troncos, no dia seguinte este estava coberto por
oito ou dez caranguejinhos. Sentados sobre o peixe e servindo-se com as suas tenazes. Na
maioria das vezes, quando nos aproximávamos, fugiam espavoridos e escondiam-se.
Todavia à ré, num buraquinho junto do cepo de direcção, morava um caranguejo muito
manso, que recebeu o nome de Johannes. Além do papagaio, que era a diversão de todos,
o caranguejo Johannes também fazia parte da nossa comunidade no convés. Se o homem
do leme, governando sentado a embarcação num dia de sol, de costas para a cabina, não
tinha a companhia de Johannes, sentia-se extremamente só naquela imensidão. Ao passo
que os outros caranguejinhos corriam furtivamente, aqui e acolá, e roubavam como baratas
num bote comum, Johannes escarrapachava-se com os olhos arregalados, esperando a
mudança de quarto. Todo aquele que vinha para a sua hora de vigia, trazia um pedacinho
de biscoito ou um pouco de peixe para Johannes, e bastava que nos curvássemos sobre o
buraco para imediatamente aparecer e estender as patas. Recebia as migalhas dos nossos
dedos com as suas tenazes e corria a enfiar-se no buraco, instalando-se perto da porta e
trincando o manjar como um estudante a atafulhar na boca uma gulodice qualquer.
Os caranguejos cosiam-se, como moscas, aos cocos encharcados que estouravam com a
fermentação, ou agarravam plânctones trazidos a bordo pelas ondas. E estes, os mais
diminutos organismos do oceano, eram boa comida até para nós, quando finalmente
aprendemos a apanhar, de uma vez, os suficientes para um prato decente.
Claro que deve existir alimento bem nutritivo nestes plânctones, animálculos quase
invisíveis que, cm número infinito, se movcm.com as correntes oceânicas. Os peixes e as
aves marítimas que não comem plânctones vivem, em todo caso, de outros peixes e
animais marinhos que ingerem, pouco importando o tamanho destes. Plâncton é um termo
geral com que se designam os milhares de espécies de microrganismos visíveis e invisíveis
que vogam quase à superfície do mar. Alguns são plantas (fítoplâncton), enquanto que
outros são ovos de peixe e minúsculos seres vivos (zooplâncton). O plâncton animal vive de
plâncton vegetal e este último vive de amoníaco, nitritos e nitratos formados de plâncton de
animal morto. E enquanto vivem reciprocamente uns dos outros, todos formam alimento
para tudo que se move sobre o mar e dentro do mar. O que não podem oferecer em
tamanho oferecem em número. Em águas de muito plâncton existem milhares no conteúdo
de um. Mais de uma vez tem acontecido pessoas morrerem de fome no mar porque não
acharam nenhum peixe suficientemente grande para ser colhido com um espeto, numa rede
ou num anzol. Em tais casos, sucede frequentemente que essas pessoas estiveram afinal a
navegar numa ralíssima sopa de peixe cru. Se, além de anzóis e redes, dispusessem de um
utensílio para coar a sopa em que estavam sentadas, teriam achado uma base nutritiva -
plâncton. Talvez que um dia os homens pensem em fazer a colheita de plâncton do mar na
mesma escala em que uma vez. há muito tempo, tiveram a ideia de fazer a colheita de trigo
em terra. Também, apenas um grão de trigo para nada serve, mas em grande quantidade
torna-se alimento.
O Dr. A. D. Bajkov, biólogo que se preocupa com as condições da vida oceânica, deu-nos
essa ideia e mandou
connosco uma rede de pesca adaptada aos seres que íamos "apanhar. Era uma rede de
seda com cerca de 450 malhas por «5 centímetros quadrados. Costurada em forma de funil,
com uma boca circular por trás de um aro de ferro, tendo de lado a lado 45 centímetros, foi
posta a reboque no fim da jangada. Tal como se dá com qualquer outra, esta pescaria
variava com o tempo e o lugar. As pescas diminuíram à medida que o mar ficava mais
quente no extremo Oeste, e os melhores resultados eram obtidos à noite, visto que muitas
espécies pareciam procurar maior profundidade quando o sol brilhava.
Se não tivéssemos outra maneira de passar o tempo a bordo da jangada, haveria bastante
distracção em nos pormos de bruços, com o nariz na rede de plâncton. Não por causa do
cheiro, que era mau. Nem por ser coisa de apetite, pois aquilo dava ideia de uma confusão
horrível. Mas porque, se estendíamos os plânctones sobre uma tábua e examinávamos, a
olho nu, cada um daqueles entezinhos separadamente, tínhamos diante de nós formas
fantásticas e infinita variedade de cores.
A maioria deles eram crustáceos (copépodes) parecidos com camarão, ou ovos de peixe
boiando desirmanados, mas havia também larvas de peixe e mariscos, curiosos
caranguejos em mistura, do mais vário colorido, medusas, e uma interminável variedade de
serezinhos que podiam ter sido tirados da Fantasia de Walt Disney. Alguns pareciam
duendes rendados, a flutuar no ambiente, recortados de papel celofane, enquanto que
outros semelhavam minúsculos passarinhos de bico vermelho com uma casca grossa em
vez de penas. A Natureza é fértil em extravagantes invenções no mundo dos plânctones;
aqui um artista surrealista teria de confessar-se vencido.
No ponto em que a corrente de Humboldt vira do Oeste para o Sul do Equador, podíamos,
ao cabo de algumas horas, tirar do saco vários quilos de sopa de plâncton. Os plânctones
apresentavam-se amontoados, tomo numa torta, em camadas de vário colorido, pardo,
vermelho, cinzento e verde, conforme os diferentes campos de plâncton pelos quais
tínhamos passado. De noite, quando havia fosforescência em redor, era como se
içássemos para bordo um saco de jóias faiscantes. Quando, porém, o trazíamos para mais
perto, o tesouro dos piratas transformava-se em milhões de minúsculos camarõezinhos
cintilantes e de larvas de peixe fosforescentes que, no escuro, brilhavam como um monte
de brasas. E quando os passávamos para um balde, a massa confusa e viscosa escorria
como uma tisana mágica composta de pirilampos. A nossa pesca nocturna parecia tão
desagradável, de perto, quanto havia sido bonita a distância. E se cheirava mal, em
compensação tinha bom sabor se a pessoa se animava a meter pela boca dentro uma
colhei daquela fosforescência. Se o que se ingeria era uma mistura de muitos
camarõezinhos anões, tinha gosto de massa de camarão, lagosta ou caranguejo. E se, mais
frequentemente, eram ovos de peixe do fundo do mar, o gosto era de caviar e, de vez em
quando, de ostra. Os plânctones vegetais não comestíveis eram ou tão pequenos que se
escapuliam com a água, pelas malhas da rede, ou tão grandes que podíamos pegá-los com
os dedos. O busílis era quando apareciam no prato celenterados, parecendo geleia ou
balões de vidro, e medusas de quase meia polegada de comprimento. Aqueles e estas
eram amargos e tinham de ser atirados fora. A não ser isso, podia-se comer tudo, tal como
era, ou cozido em água doce como caldo, de sopa. Os gostos variam. Dois homens a bordo
achavam o plâncton delicioso, dois outros, achavam-no bem bom, e os dois restantes
contentavam-se em vê-lo. Do ponto de vista nutritivo, os plânctones são mais ou menos
comparáveis aos mariscos maiores, e, convenientemente preparados e com bom tempero,
podem ser um prato de primeira para quantos apreciam comida marítima.
Que estes pequenos organismos contêm bastantes calorias foi provado pela baleia azul,
que é o maior animal do mundo e se alimenta de plâncton. O nosso método de captura,
com a redezinha que muitas vezes foi mastigada por peixes famintos, pareceu-nos bastante
primitivo quando, sentados na jangada, vimos passar uma baleia que atirava ao alto jorros
de água, coando assim os plânctones através da sua barba de celulóide. E um belo dia
perdemos a rede no mar.
- Por que é que vocês, comedores de plâncton, não fazem como ela? disseram-nos, com
desdém, Torstein e Bengt, os abstinentes, apontando para uma baleia que fazia repuxo. É
só encherem a boca e soprarem a água, para fora, pelo bigode!
De bote, vira baleias, a distância, e vira-as também empalhadas em museus, mas nunca
tivera pela gigantesca carcassa o interesse ou a simpatia que, em geral, despertam animais
de sangue quente propriamente ditos, por exemplo um cavalo ou um elefante. À luz da
biologia, aceitara, naturalmente, a baleia como um legítimo mamífero, mas na sua essência
ela era, para mim e para todos os efeitos, um grande peixe frio. Tive impressão diferente
quando as enormes baleias se dirigiam, com ímpeto, para o nosso lado, parando quase ao
pé da jangada. Um dia em que, sentados, como de costume, na beira da jangada,
tomávamos a nossa refeição, tão perto da água que bastava inclinar-nos para trás para
lavarmos as nossas canecas, assustámo-nos quando, de repente, uma coisa atrás de nós
soprou com força, como um cavalo a nadar, e uma colossal baleia surgiu e fixou-nos de tão
próximo que vimos um brilho, como de sapato engraxado, através do seu espiráculo abaixo.
Era tão insólito ouvir ruído de fôlego em alto mar, onde todos os seres vivos se agitam
silenciosamente sem pulmões e abrindo e fechando as suas brânquias, que nós, na
verdade, tivemos um cálido sentimento de família, em relação à nossa velha parenta
afastada, a baleia, que, como nós, «viera parar tão longe, no meio do oceano. Em vez do
frio tubarão-gigante, com aparência de sapo, que nem ao menos tinha o bom senso de pôr
de fora o focinho para respirar um pouco de ar puro, deparava-se-nos ali a visita de uma
coisa que fazia pensar num hipopótamo de jardim zoológico, bem nutrido e jovial, e que
respirou (isto me deu agradável impressão) profundamente, antes de imergir, de novo, no
mar, e desaparecer.
Fomos muitas vezes visitados por baleias. Na maioria dos casos eram pequenos porcos do
mar e baleias guarnecidas de dentes que, em cardumes, se movimentavam alegremente
em volta de nós, à flor da água, mas de quando em quando surgiam também imensos
cachalotes e outras gigantescas baleias, que vinham sós ou em reduzidos cardumes. Às
vezes passavam como navios no horizonte, expelindo de quando em quando, para o ar, um
esguicho de água, mas outras vezes vinham directamente para 6 nosso lado. Preparámo-
nos para perigoso choque certa ocasião em que uma incomensurável baleia, alterando a
sua rota, se encaminhou para a jangada com esse propósito. À medida que se aproximava,
podíamos ouvir-lhe o sopro e o bufido, pesado e longo, cada vez que a cabeça vinha à tona
de água. Era um animal terrestre,
Debaixo da jangada não víamos apenas baleias. Se levantávamos a esteira sobre que
dormíamos, enxergávamos pelas fendas entre os toros e em baixo a água azul e cristalina.
Se ali ficávamos algum tempo, víamos também uma barbatana peitoral ou caudal passar
aos saracoteios, e de vez em quando um peixe inteiro. Se as frinchas fossem alguns
centímetros mais largas, podíamos ficar comodamente deitados na cama com uma linha e
pescar por baixo, dos nossos colchões. Os peixes que mais atracção sentiam pela jangada
eram os dourados e os pilotos. Desde o momento em que os primeiros dourados se
reuniram a nós, na altura de Callao, não houve dia, durante toda a viagem, em que não
tivéssemos grandes dourados rebolando-se em redor da jangada. Não sabemos o que os
atraía. Talvez que existisse, para eles, uma atracção mágica cm poder nadar à sombra,
com um telhado móvel por cima, ou havia comida na nossa horta de algas e bernaclas que
pendiam, como festões, de todos os toros e do remo de governo Começou com uma fina
camada de verde macio, e daí a poucos ramos verdes de alga marinha desenvolveram-se
com rapidez incrível, de maneira que a Kon-Tiki tinha o aspecto de um deus marinho
barbado, enquanto ia aos ziguezagues por entre as ondas. E o interior das algas verdes era
o sítio favorito de miúdas petingas e dos nossos clandestinos, os caranguejos.
Um dia, durante o jantar, Torstein tornou real a mais incrível das histórias de pescadores.
De repente, largou o garfo no chão e pôs a mão no mar, e antes que pudéssemos saber de
que se tratava, a água pareceu ferver e um enorme dourado surgiu entre nós, a debater-se
terrivelmente. Torstein havia agarrado a ponta superior diurna linha de pesca que ia
deslizando pela corrente e na outra ponta estava pendurado um dourado, completamente
atónito, que dias antes quebrara a linha com que Erik estava a pescar.
Não havia um dia em que não tivéssemos seis ou sete dourados a acompanhar-nos,
descrevendo círculos em redor da jangada. Se, em certos dias, apareciam apenas dois ou
três, em compensação, no dia seguinte, podiam surgir uns trinta ou quarenta. Em geral, se
queríamos peixe fresco para o jantar era suficiente avisar o cozinheiro com vinte minutos de
antecedência. Ele amarrava então uma linha numa curta vara de bambu e punha no anzol
metade de um peixe-voador. No mesmo instante, estava lá um dourado, sulcando a
superfície com a cabeça, ao mesmo tempo que perseguia o anzol, e tendo mais dois ou três
nas suas águas. É um peixe divertido e, quando apanhado de fresco, tem uma carne sólida
e deliciosa, misto de bacalhau e de salmão. Durava dois dias, e era quanto necessitávamos,
pois peixe havia bastante no mar.
Na realidade, tínhamos grande respeito aos tubarões em atenção à sua fama e à sua
aparência assustadora. Havia uma força indomável naquele corpo aerodinâmico, que
apenas constava de um grande feixe de músculos de aço, e na tremenda voracidade
daquela vasta cabeça chata, com os olhinhos verdes de gato e as imensas mandíbulas
capazes de engolir bolas de futebol. Quando o timoneiro gritava «tubarão a estibordo» ou
«tubarão a bombordo», costumávamos sair à procura de arpões e fateixas, e postar-nos ao
longo da beira da jangada. Geralmente o peixe deslizava em volta de nós com a barbatana
dorsal rente aos toros da embarcação. E o nosso respeito pelo animal subiu quando víamos
as fateixas vergar como esparguetes ao baterem contra o arnês de lixa das costas do peixe,
ao passo que as pontas das lanças dos arpões portáteis se rompiam no aceso da batalha.
O que resultava de termos atingido a pele do tubarão, a sua cartilagem ou os seus
músculos, era tão somente uma luta febril, durante a qual a água fervia ao redor de nós até
que o peixe lograva soltar-se e lá se ia embora, enquanto um pouco de óleo ficava a boiar e
se espalhava sobre a superfície.
Para salvar a ponta do nosso último arpão, amarrámos, num feixe, os nossos maiores
anzóis e escondemo-los no interior da carcassa de um dourado. Atirámos ao mar o isco
com infinitas precauções, depois de havermos amarrado muitas linhas de aço em certa
parte do parapeito da jangada. O tubarão aproximou-se, confiado e vagaroso, e ao mesmo
tempo que levantava o focinho acima da água, abriu de golpe as grandes mandíbulas em
forma de crescente e fez resvalar por elas dentro o dourado inteiro, que lá ficou. Houve uma
batalha durante a qual o peixe vergastava a água espumante, mas nós segurávamos a
corda com muita firmeza, e a custo arrastámos o rebelde até os toros posteriores, onde
ficou à espera do que podia vir e apenas abriu a boca como para nos intimidar com as filas
paralelas de uns dentes que pareciam serrotes. Então aproveitámos de uma onda mais
forte para fazer o tubarão deslizar, suspendendo-o péla extremidade mais baixa dos toros,
escorregadia por causa das algas, e depois de laçar com uma corda a barbatana caudal,
puxamo-lo facilmente para bordo. Estava tudo terminado.
Ainda que soubesse que podia recalcitrar e resistir, e certamente era terrível nos seus
movimentos, tornava-se inerte e manso e nunca empregou a sua gigantesca força, uma vez
que tratávamos de segurar com firmeza a corda, sem deixar ao peixe a vantagem de uma
polegada no arrastão. Os tubarões que trouxemos para bordo mediam em geral 1,80 m a 3
m, e havia-os azuis e pardos. Estes últimos tinham uma pele por fora da massa dos
músculos através da qual não conseguíamos fazer passar uma faca afiada, a não ser que
forçássemos extraordinariamente a lâmina, e ainda assim, muitas vezes em vão. A pele do
ventre era tão impenetrável como a das costas, e as cinco fossas branquiais de cada lado,
atrás da cabeça, eram os únicos pontos vulneráveis.
Mas a rémora é estúpida e feia e nunca se tornou um peixinho agradável como o seu vivaz
companheiro, o piloto. O piloto é um peixe zebrado, tendo a forma de um charuto, que nada
com rapidez num cardume à frente do focinho do tubarão. Recebeu este nome porque era
crença que servia de guia no mar ao seu peticego amigo, o tubarão. Na realidade, o piloto
simplesmente acompanha o tubarão, e se procede com independência é apenas porque
enxerga alimento dentro do seu raio visual. O piloto acompanha o seu senhor e mestre até
o último segundo. Como, porém, não tem, como a rémora, a faculdade de pegar-se à pele
do gigante, fica completamente desnorteado quando o seu velho mestre de repente
desaparece no ar e não amarica. Então anda aflito, a nadar para aqui e para acolá,
procurando. Reparámos que sempre voltava e se saracoteava ao longo da popa da
jangada, onde o tubarão desaparecera na direcção do céu, por nós arrastado para dentro
da embarcação. Mas como a tempo passava e o tubarão não descia, tinha de procurar nos
arredores outro senhor e mestre. E nenhum se achava mais à mão que a própria Kon-Tiki.
Se nos debruçávamos do lado da embarcação, com a cabeça quase a tocar a água
cristalina, a jangada afigurava-se-nos a barriga de um monstro marinho, tendo por cauda o
remo de direcção e por tostas barbatanas as quilhas corrediças. E entre elas todos os
pilotos adoptivos nadavam lado a lado, sem reparar na cabeça humana ali pendente, com
excepção de um ou dois deles que, de um pulo. se colocavam de banda e erguiam um
pouco o focinho, mas daí a pouco iam de volta retomar, imperturbáveis, o seu lugar entre os
ávidos nadadores.
Os nossos pilotos patrulhavam em dois destacamentos: a maior parte deles nadava entre
as quilhas móveis, enquanto os outros formavam graciosamente um leque logo à frente da
proa. De vez em quando, afastavam-se, impetuosamente, da jangada, para abocanhar
qualquer coisinha comestível pela qual passávamos, e após as refeições, quando
lavávamos a nossa louça na água do mar, era como se tivéssemos esvaziado entre as
migalhas uma caixa de charutos cheia de pilotos zebrados. Não deixavam de examinar uma
única migalha e, a menos que fosse alimento vegetal, ia imediatamente para a barriga
deles. Os estranhos peixinhos acolhiam-se à nossa protecção com uma confiança tão
infantil que nós, como o tubarão, nutríamos para com eles sentimentos quase paternais.
Ficaram sendo os benjamins da Kon-Tiki e a bordo da nossa jangada era defeso pescar um
piloto.
Contávamos, no nosso séquito, pilotos que, com certeza, estavam na infância, pois mal
tinham «5 milímetros, ao passo que a maior parte media uns 15 centímetros. Quando o
tubarão-gigante, depois que o arpão de Erik lhe varou o crânio, se precipitou nos abismos
como um bólido, alguns dos seus antigos pilotos, perdendo o rumo, vieram ter com o
vencedor; esses tinham exactamente 60 centímetros. Após uma série contínua de vitórias, a
Kon-Tiki em breve possuía um séquito de quarenta a cinquenta pilotos, e muitos deles
gostaram tanto do nosso tranquilo avanço e das nossas sobras diárias, que nos foram
acompanhando por milhares de milhas.
Mas, às vezes, alguns não eram fiéis. Achando-me um dia ao remo de governo, notei, de
repente, que o mar fervia para as parte do Sul, e vi um imenso cardume de dourados
sulcando as águas como se fossem torpedos de prata. Não vinham como de costume,
nadando comodamente de lado, mas desenvolviam uma velocidade tal que mais pareciam
cortar os ares do que as águas. As ondas glaucas estavam convertidas em branca espuma
com a agitação frenética dos fugitivos, e atrás deles vinha um dorso negro singrando numa
rota em ziguezagues, qual bote de corrida. Os desesperados peixes ora apareciam sobre a
superfície, ora se sumiam abaixo dela, quase rente à jangada; aí mergulharam, enquanto
uns cem se: juntaram densamente em cardume e tomaram o rumo Leste, de modo que o
mar à popa era uma resplandecente massa de cores. O dorso brilhante, que vinha atrás
deles, ergueu-se a meio sobre a superfície, mergulhou em graciosa curva sob a jangada e
arremessou-se à ré como um torpedo após o cardume de dourados. Era, nada mais nada
menos, que um descomunal tubarão que parecia ter pouco mais de seis metros de
comprimento. Quando o monstro desapareceu, grande número dos nossos pilotos também
se fora com ele. Tinham encontrado um herói marinho mais airoso que os seduziu.
Durante muito tempo não vimos nenhum sinal de lula, tanto a bordo como no mar. Mas uma
manhã tivemos o primeiro aviso de que elas deviam estar naquelas águas. Quando o sol
nasceu, achámos a bordo uma cria de polvo, na forma de um animalzinho do tamanho de
um gato. Tinha subido para a jangada durante a noite, sem auxílio, e jazia morta, com os
braços enrolados no bambu, em frente à porta da cabana. Um líquido grosso e preto,
semelhante a tinta, estava espalhado sobre a coberta de bambu, formando uma poça cm
redor da lula.
Escrevemos mais de uma página no diário de navegação com tinta de siba, semelhante à
tinta da China, e depois atirámos à água a cria para regalo dos dourados.
Lulas novas continuaram a chegar a bordo. Numa manhã de sol, todos nós vimos um
cintilante cardume de qualquer coisa que pulava fora da água e voava pelo ar como se
fosse grossos pingos de chuva, enquanto o mar era um fervedouro de dourados a perseguir
a chusma. A princípio tomámos a coisa por um cardume de peixes-voadores, pois já
tínhamos visto três diferentes espécies deles a bordo. Quando, porém, chegaram mais
perto e alguns deles navegavam sobre a jangada a uma altura de um metro e vinte a um
metro e meio, um veio bater de chapa no peito de Bengt para dali estatelar-se no chão. Era
uma lula pequena. O nosso espanto foi grande. Quando a pusemos num balde de lona
continuou a erguer-se e a dar saltos para a superfície, mas não desenvolvia no baldezinho
velocidade bastante para emergir da água com mais da metade do corpo. É facto conhecido
que a lula nada, geralmente, segundo o princípio do avião de jacto. Expele, com grande
força, água do mar através de um tubo fechado, existente no lado do corpo, podendo assim
saltar para trás com movimento velocíssimo; e com todos os seus tentáculos dependurados
na parte posterior da cabeça e aí agrupados sobre ela, torna-se aerodinâmica como um
peixe. Tem, nos lados, dois refegos de pele, redondos e carnudos, ordinariamente usados
para regular os movimentos ao nadar. Mas com isto ficou provado que lulas novas,
indefesas, que são o alimento preferido de muitos peixes grandes, podem escapar dos seus
inimigos indo para o ar como fazem os peixes-voadores. Tinham convertido em realidade o
princípio do avião de jacto muito antes que o génio do homem originasse essa ideia.
Expelem a água do mar através de si mesmas até adquirirem uma celeridade incrível, e
então dirigem a sua rota a um ângulo da superfície desdobrando os tais refegos de pele
como se fossem asas. Como os peixes-voadores, fazem um voo de planador sobre as
ondas até à distância que a sua velocidade as pode levar. Depois disto, quando
começámos realmente a prestar atenção, vimo-las muitas vezes movendo-se por uns 40 ou
50 metros, sozinhas ou em número de duas ou três. Todos os zoólogos com quem
conversámos sobre o assunto mostraram-se surpresos com o facto das lulas poderem
«planar», o que era uma novidade para eles.
Como hóspede de indígenas do Pacífico, muitas vezes comi lulas; têm um gosto misto de
lagosta e borracha. Mas, a bordo da Kon-Tiki, as lulas vinham em último lugar na nossa lista
de pratos. Se as recebíamos de mão beijada no convés, trocávamo-las por qualquer outra
coisa. Fazíamos a troca atirando à água um anzol com a lula nele espetado e tornando a
puxá-lo para dentro com um grande peixe a debater-se na ponta. Até o atum e o bonito
gostavam de lulas novas. Ora aqueles eram iguaria que vinha em primeiro lugar na nossa
lista.
Mas, vogando sobre a superfície do mar, não eram só conhecidos nossos que
encontrávamos. O diário de bordo contém apontamentos como estes:
11/5. Hoje um enorme animal marinho surdiu duas vezes à tona, ao lado da jangada,
enquanto ceávamos, sentados na beira da mesma.
Fez um terrível barulho na água e desapareceu. Não temos ideia do que fosse.
6/6. Herman viu um grosso peixe de cor escura, com corpo largo e branco, cauda delgada e
aguilhões. Pulou várias vezes, fora da água, do lado de estibordo.
16/6. Um curioso peixe foi avistado a bombordo, quase à proa. Comprimento: 1,80 m;
largura máxima: 30 centímetros; focinho comprido, pardo e fino, grande barbatana dorsal
perto da cabeça e uma menor no meio das costas, pesada barbatana caudal falciforme.
Mantinha-se perto da superfície e nadava às vezes, retorcendo o corpo como uma enguia.
Mergulhou quando eu e Herman saímos no botezinho de borracha com um arpão portátil.
Tornou a subir mais tarde, mas mergulhou definitivamente e desapareceu.
17/6. Erik estava sentado na ponta do mastro, às 12 horas, quando viu trinta ou quarenta
peixes compridos, finos e pardos, da mesma espécie que o de ontem. Vinham com grande
velocidade do lado esquerdo da embarcação e desapareceram à ré, como uma grande
sombra escura e chata no mar.
18/6. Knut observou um animal ofióide, fino, de sessenta a noventa centímetros, que ora se
punha teso ora se achatava na água, abaixo da superfície, e que mergulhou retorcendo-se
como uma serpente.
Em várias ocasiões, deslizámos ao lado de uma grande massa escura que permanecia
imóvel sob a superfície da água como um recife oculto, do tamanho do soalho de um
quarto. Era provavelmente a arraia gigante, de má reputação, mas não se mexia, e nós
nunca chegámos bastante perto para poder distinguir-lhe claramente a forma.
Com tal companhia na água, o tempo nunca passava devagar. Pior era quando tínhamos de
dar um mergulho para examinar as cordas na parte inferior da jangada. Um dia, uma das
quilhas corrediças soltou-se e foi resvalando para baixo da jangada até que a colheram as
cordas, sem nós termos jeito de detê-la. Herman e Knut eram os melhores mergulhadores.
Duas vezes Herman nadou por baixo da embarcação, ficando lá no meio de dourados e
pilotos, a puxar pela prancha. Acabava ele de subir pela segunda vez e estava sentado na
beira da jangada para tomar fôlego, quando um tubarão de 2,40 m foi descoberto a não
mais de 3 metros de suas pernas, movendo-se resolutamente para cima, depois de tomar
impulso das profundezas rumo à ponta dos dedos dos pés de Herman. Talvez tenhamos
sido injustos com o tubarão, mas desconfiámos de suas tenções e embebermos-lhe no
crânio um arpão. O peixe ressentiu-se e houve um tremendo espadanar de água, e em
consequência disto o tubarão desapareceu, deixando sobre a superfície um lençol de óleo,
enquanto que a quilha corrediça continuava enredada debaixo da embarcação.
Então Erik teve a ideia de fazer um cesto de imersão. Não dispúnhamos de muita matéria-
prima, porém tínhamos bambus e cordas e um velho cesto de pau, no qual havíamos
guardado cocos. Aumentámos o cesto na parte superior com bambus e corda trançada, e
depois, metidos no cesto, deixávamos que nos descessem ao lado da jangada. As
atractivas pernas estavam agora escondidas no cesto, e embora a corda trançada da parte
superior do açafate tivesse apenas efeito psicológico, tanto sobre nós como sobre os
peixes, sempre podíamos, em dado moimento, encolher-nos dentro do cabaz se qualquer
coisa, com intenções hostis nos acontecesse, e fazer com que os outros do convés nos
puxassem para fora da água.
Este cesto de imersão não foi apenas útil; aos poucos tornou-se para os que íamos a bordo
um objecto de distracção. Deu-nos excelente oportunidade para estudar o aquário flutuante
que tínhamos sob o soalho.
Quando o mar estava de leite, entrávamos no cesto um por um e deixávamos que nos
imergissem na água enquanto nos durava o fôlego. No elemento líquido havia uma corrente
de luz sem sombra, curiosamente transfigurada. Logo que os nossos olhos estavam
debaixo da superfície, a luz já não parecia ter uma direcção particular, como no nosso
mundo acima da água. A retracção da luz vinha tanto de baixo como de cima; o sol não
mais brilhava, estava presente em toda a parte. Se levantávamos os olhos para o fundo da
jangada, víamo-la profusamente iluminada, com os nove enormes troncos e a malha das
cordas enlaçadas boiando numa luz mágica, e com um festão tremeluzente de algas
virentes rodeando a embarcação toda, e todo o comprimento do remo de direcção. Os
pilotos nadavam em boa ordem, cada qual em seu lugar, parecendo zebras em pele de
peixe, enquanto grandes dourados faziam os seus círculos com movimentos inquietos,
vigilantes, na ânsia de achar presa. Aqui e ali, a luz batia na seivosa madeira vermelha de
uma quilha corrediça que ressaía na parte inferior por uma frincha. Na madeira achavam-se
perfeitamente instaladas pacíficas colónias de bernaclas, cujas franjadas guelras amarelas
se moviam com ritmo, como que acenando para o oxigénio e para a comida. Se alguém se
aproximava demasiado, fechavam apressadamente as suas conchas vermelhas de orlas
amarelas, e assim se mantinham de portas fechadas até passar o perigo. A luz, lá em baixo,
era maravilhosamente clara e branda para nós, acostumados ao sol tropical no convés.
Mesmo quando olhávamos para baixo, para as profundezas insondáveis do oceano onde a
noite é eterna, parecia-nos um ameno azul claro por causa dos raios do sol que vinham de
volta. Com espanto nosso, víamos peixes nas profundezas do azul claro e límpido, quando,
afinal, nos achávamos apenas pouco abaixo da superfície. Seriam talvez os peixes
chamados bonitos, havendo ainda outras espécies que nadavam em tal profundidade que
não os podíamos reconhecer. Às vezes faziam parte de imensos cardumes, e vinha-nos,
frequentemente, vontade de saber se toda a corrente oceânica estava cheia de peixes, ou
se aqueles que revoluteavam nos abismos se haviam reunido de propósito, sob a Kon-Tiki,
para nos fazer companhia por alguns dias.
Não havia, neste ponto do oceano onde estávamos, muitos marcos fixos. Ondas e peixes,
sol e estrelas vinham e iam. Não se supunha existir nenhuma espécie de terra nas 4.300
milhas marítimas que separavam do Peru as ilhas dos mares do Sul. Ficámos, pois, muito
surpreendidos quando, ao aproximar-nos de 100o Oeste, descobrimos que o mapa do
Pacífico que tínhamos à vista assinalava a existência de um recife na rota que íamos
seguindo. Era marcado com um pequeno círculo, e como o mapa havia sido editado no
mesmo ano, procurámos a referência em «Instruções Náuticas para a América do Sul». Eis
o que lemos: «Em 1906 e novamente em 1926 foi assinalada a existência de cachopos a
cerca de 600 milhas a Sudoeste das ilhas Galápagos, na latitude de 6°42'S., e na longitude
de 9g°43'W. Em 1927, um vapor passou a uma milha a Oeste desta posição, mas não
observou ressaca, e em 1934 outro vapor passou a uma milha na direcção Sul e não viu
indício algum de escolhos. Em 1935 o navio-motor
Cowrie não obteve fundo a 160 toesas nesta posição». De acordo com os mapas, o lugar
era claramente considerado como perigoso para a navegação, e como um navio de grande
calado, aproximando-se demasiado de um baixio, corre maior risco do que nós correríamos
com uma jangada, deliberámos dirigir a nossa derrota para o ponto marcado no mapa e ver
o que encontraríamos. O recife estava assinalado um pouco mais para o Norte do que o
ponto para o qual parecia que nos estávamos a dirigir; por isso, pusemos o remo de
governo a estibordo e orientámos a vela quadrada de maneira que a proa apontasse mais
ou menos para o Norte, ficando nós com o mar e o vento do lado de estibordo. Ora,
aconteceu que as águas do Pacífico borrifaram os nossos sacos-cama um pouco mais que
de costume, acrescendo que, ao mesmo tempo, o ar começou a refrescar
consideravelmente. Verificámos, porém, com satisfação, que a Kon-Tiki podia, com
segurança e firmeza, ser manobrada num ângulo muito aberto dentro do vento visto que
este ainda se achava na nossa quadra. Mas, pelo contrário, a vela virava e dava-nos um
trabalhão para pôr a jangada novamente na rota. Durante dois dias e duas noites, dirigimos
a embarcação para Noroeste. O mar estava encapelado e não se podia prever como ficaria
quando o vento alísio entrou a oscilar entre Sueste e Leste, mas sentíamo-nos levantar e
daí a pouco descer ao sabor de todas as ondas que investiam connosco. Mantínhamos
constante atalaia na ponta do mastro e, quando cavalgávamos as cristas das vagas, o
horizonte dilatava-se. As ondas atingiam 1,80 m acima do nível do telhado da cabina de
bambu, e se dois tremendos vagalhões se arremessavam juntos, erguiam-se ainda mais
alto no combate e, com um sibilo, atiravam ao ar uma coluna de água que podia espalhar-
se nas mais diferentes direcções. Quando veio a noite, improvisámos, em frente à porta da
cabina, uma barricada feita com caixotes de mantimentos, e nem assim o nosso repouso foi
dos melhores. Mal acabávamos de pegar no sono, ouviu-se o primeiro estalo na parede de
bambu, e enquanto mil esguichos de água penetravam por entre as frestas, uma torrente
espumante se arrojou sobre as provisões e logo sobre nós.
- Telefonem para o canalizador, ouvi alguém dizer com voz de sono, enquanto tratávamos
de erguer-nos para dar passagem à água que alagava o chão.
O canalizador não veio, e naquela noite tomámos bastante banho sem sair da cama. Até
um enorme dourado, sem querer, entrou a bordo durante o quarto de Herman.
No dia seguinte, o mar estava menos conturbado por ter o vento alísio resolvido soprar de
Leste durante algum tempo. Revezámo-nos, no tope do mastro, pois agora esperávamos
poder chegar pela tarde ao ponto para o qual estávamos com a proa voltada. Reparámos
que, nesse dia, havia no mar mais vida que de costume. Talvez fosse por causa da tenção
que lhe prestávamos que era maior.
- Talvez haja por aí, de qualquer forma, um escolho ou algum banco de areia, pensaram
alguns. E os mais optimistas disseram: calculem se achamos uma ilhota virente e relvosa...
Quem pode saber isso ao certo quando tão pouca gente andou por aqui antes de nós?
Então teremos descoberto uma nova terra: a ilha de Kon-Tiki!
A partir do meio dia, Erik não fazia outra coisa senão trepar ao caixote da cozinha e, de pé,
piscando muito, olhar pelo sextante. Às 6,20 da tarde informou que a nossa posição era
6°42' Sul de latitude por 99°42' Oeste de longitude. Estávamos a uma milha marítima a
Leste do recife assinalado no mapa. A verga de bambu foi baixada e a vela enrolada na
coberta. Devia haver vento a Leste que nos conduzisse lentamente ao lugar marcado.
Quando o sol velozmente descambou no mar, surgiu a lua cheia que, com todo o seu
resplendor, iluminou a superfície do oceano, em ondulações pretas e prateadas de um
horizonte a outro. Do tope do mastro, a visibilidade era boa. Víamos marulhos em todas
parte, numa verdadeira série, mas não ressaca regular que pudesse denotar a existência de
escolho ou baixio. Ninguém quis ir deitar-se; estavam todos atentos e dois ou três homens
subiram imediatamente ao mastro. E como nos achávamos no centro da área marcada,
íamos sempre fazendo sondagens. Todos os prumos de chumbo que tínhamos a bordo
foram atados à ponta de uma corda de seda de 54 fios e de mais de 500 toesas de
comprimento, e embora a corda ficasse um tanto torta por causa da deriva da jangada, em
todo caso o chumbo encontrava-se a uma profundidade de cerca de 400 toesas. E a
verdade é que não havia fundo, nem a Leste do lugar, nem no centro, nem a Oeste dele.
Demos um último olhar pela superfície do oceano e depois de termos a certeza de que a
área se achava devidamente inspeccionada, estando livre de baixios de qualquer espécie,
fizemo-nos de vela e colocámos o remo no seu lugar habitual, de modo que tínhamos de
novo o vento e o mar na nossa quadra de bombordo. E assim seguiu a jangada na sua
derrota natural e livre. O vaivém das ondas continuava como antes, entre os toros abertos à
ré. Podíamos agora comer e dormir enxutos, ainda mesmo recrudescendo, como por vários
dias sucedeu, a fúria das ondas, enquanto os ventos alísios vacilavam de Este para Sueste.
Nessa curta excursão, rumo ao falso escolho, aprendemos muita coisa «cerca da eficiência
das quilhas corrediças, e quando, posteriormente, no decorrer da viagem, Herman e Knut
mergulharam juntos debaixo da jangada e salvaram a quinta quilha corrediça, ficámos
sabendo ainda mais particularidades a respeito dessas curiosas pranchas, uma coisa que
ninguém mais entendeu desde que os índios abandonaram este esquecido desporto. Que a
tábua fizesse o trabalho de uma quilha, permitindo à jangada mover-se num ângulo com o
vento, era coisa da navegação ordinária. Quando, porém, os antigos espanhóis declararam
que os índios em grande parte «dirigiam» as suas jangadas de balsa, no mar, com «certas
quilhas corrediças que introduziam nas fendas entre os toros de pau», isto parecia
incompreensível tanto para nós como para todos que se haviam ocupado do problema.
Como a quilha corrediça ficava segura simplesmente numa frincha estreita, não podia ser
virada para o lado e servir de leme.
Mas, na realidade, não sentíamos essas enormes distâncias, pois, enquanto nos movíamos,
o horizonte, sem que disso nos apercebêssemos, ia deslizando connosco, e o nosso mundo
flutuante permanecia estático, um círculo arremessado à abóbada celeste, tendo por centro
a própria jangada, ao passo que lá no alto, noite após noite, as mesmas estrelas brilhavam
sobre nós.
O que causava aquela impressão, tão ridiculamente absurda, éramos nós próprios e a
nossa soberba embarcação, a primeira vez que víamos o pitoresco conjunto a distância. É
que ainda não tínhamos tido tal vista exterior em alto mar. Os toros de madeira
desapareciam atrás de qualquer mareta, e quando conseguíamos ver alguma coisa, era a
cabina baixa com a larga porta e o cerdoso telhado de folhas que emergia de entre as
ondas. A jangada assemelhava-se a um velho depósito de feno norueguês que estivesse a
boiar, ao desamparo, no meio do oceano, um palheiro fora de prumo e cheio de indivíduos
barbudos e tisnados de sol. Se algum banhista tivesse vindo atrás de nós a nadar, pelo mar
em fora, teríamos sentido a mesma vontade de rir. Qualquer onda um pouco maior rolava
até o meio da cabina e dava a impressão de que invadiria tudo, sem resistência, pela larga
abertura da porta diante da qual se achavam os barbaças boquiabertos. Mas, de repente, a
pobre jangada tornava a surgir sobre a superfície, e os vagabundos lá estavam, tão
enxutos, hirsutos e intactos como antes. Se vinha a passar algum vagalhão de mais
respeito, dir-se-ia que cabina, vela e o mastro inteiro iam ser tragados pela montanha de
água, mas era mais que certo estarem novamente ali, no mesmo momento, com os seus
vagabundos.
A aparência da jangada era má, e não podíamos compreender como até ali as coisas
tinham corrido tão bem, a bordo da estrambótica embarcação.
De outra vez que fomos dar umas remadas fora, para rirmos um pouco de nós mesmos,
quase nos aconteceu um desastre. O vento e o mar estavam mais impetuosos do que
supúnhamos, e a Kon-Tiki ia abrindo caminho sobre as vagas com muito mais celeridade do
que julgávamos. Por isso, tivemos de remar no mar alto para salvar as nossas vidas,
envidando esforços para alcançarmos a ingovernável jangada que não podia parar e
esperar e provavelmente não podia virar-se e voltar atrás. Mesmo depois que os tripulantes
da Kon-Tiki amainaram a vela, o vento maltratou tanto a cabina de bambu que a jangada de
madeira de balsa derivou para Oeste, e eis-nos a acompanhá-la de rota batida no gigante
botezinho de borracha, com os seus insignificantes remos de brinquedo. Havia um único
pensamento na cabeça de cada homem - nós não podíamos ficar separados. Foram
horríveis aqueles minutos passados no mar, até que nos foi dado de novo alcançar a
fugitiva jangada e arrastarmo-nos para junto dos companheiros.
Desse dia em diante, foi expressamente proibido sair no botezinho de borracha sem
primeiro se amarrar à proa uma linha comprida, de modo que os que ficavam a bordo
pudessem, sendo necessário, puxá-lo para dentro. Por isso nunca mais nos afastámos
muito da jangada, excepto quando o vento era brando e o Pacífico fazia jus ao nome. Mas
só tivemos essas condições quando a jangada se achava a meio caminho da Polinésia e o
oceano, dominando tudo, se arqueava em redor do globo, em todos os rumos dos ventos.
Então pudemos, com segurança, deixar a Kon-Tiki e dar uma remadas pelo espaço azul
entre o céu e o mar. Quando víamos os contornos da nossa embarcação irem minguando
sempre com a distância, e a grande vela reduzir-se afinal a um vago quadrado negro no
horizonte, invadia-nos, às vezes, o sentimento da solidão. O mar curvava-se debaixo de nós
num azul infindo como o céu por cima, e onde os dois se encontravam todo o azul confluía,
confundindo-se. Quase nos sentíamos suspensos no espaço; todo o nosso mundo era vazio
e azul; não havia nele nenhum ponto fixo, a não ser o sol tropical, dourado e quente, que
nos queimava o pescoço. Então a vela distante da solitária jangada atraía-nos a si como um
ponto magnético no horizonte. Voltávamos, metíamo-nos a bordo e percebíamos estar de
novo no nosso mundo, a bordo, sim, mas em solo firme e seguro. E no interior da cabina de
bambu encontrávamos sombra, sentíamos o cheiro de bambu e de folhas murchas de
palmeira. A pureza azul do sol lá de fora era-nos agora servida em larga escala, através da
parede aberta da cabana. Assim, estávamos habituados aquilo e achávamos bom por
algum tempo, até que o azul vasto e límpido nos tentava de novo a sair.
É de assinalar aqui o efeito psicológico que a mísera cabina de bambu exercia no nosso
espírito.
Media 2,40 m por 4,20, e para diminuir a pressão do vento e do mar era de construção tão
baixa que não podíamos ficar em pé sem dar com a cabeça no tecto. As paredes e a
coberta eram feitas de fortes hastes de bambu amarradas e tapadas por uma sebe de varas
também de bambu. Os paus que formavam a parede, verdes e amarelos, com a rendada
folhagem pendente do tecto, descansavam mais a vista do que uma parede branca de
cabina, e embora a parede de bambu do lado de estibordo fosse aberta em um terço do seu
comprimento, e o telhado e paredes deixassem entrar o sói e o luar, aquele cochicho
primitivo dava uma sensação de segurança maior do que, em idênticas circunstâncias, o
dariam compartimentos de navios pintados de branco e com as portinholas fechadas.
Tentámos achar uma explicação para esse facto curioso e chegámos ao seguinte resultado:
a nossa consciência não podia jamais ter associado a uma viagem marítima uma morada
de bambu coberta de folhas de palmeira. Não havia harmonia natural entre o oceano
imenso e a choça de palmas exposta às correntes de vento e flutuando entre as ondas.
Portanto, ou a choça teria de parecer inteiramente deslocada no meio das ondas, ou estas
teriam de parecer inteiramente deslocadas em redor daquela. Enquanto permanecíamos a
bordo, a choça de bambu e seu cheiro de selva eram perfeita realidade, e as ondas
agitadas afiguravam-se meio imaginárias. Mas, do botezinho de borracha, ondas e choça
trocavam os -papéis. A circunstância de que os toros de madeira de balsa sulcavam sempre
o oceano como uma gaivota, e, num golpe de mar a bordo, deixavam a água escoar-se pela
parte posterior, dava-nos confiança inabalável na parte seca do centro da jangada onde
estava a cabana. Quanto mais durava a viagem, mais seguros nos sentíamos na nossa
aconchegada toca, e olhávamos para as ondas de cristas brancas que passavam a bailar
pela nossa porta como se fossem um impressionante espectáculo cinematográfico de que
estávamos completamente a salvo. Embora a esburacada parede se encontrasse apenas a
um metro e meio da desprotegida beira da jangada e somente a quarenta e cinco
centímetros acima da linha de flutuação, contudo, uma vez que, curvando-nos,
transpúnhamos a porta e penetrávamos na nossa choupana, tínhamos a impressão de que
nos achávamos a muitas milhas do mar e de que ocupávamos uma moradia nas selvas,
muito afastada dos perigos do oceano. Ali nos deitávamos de costas e ficávamos a olhar
para o curioso telhado, retorcido como ramos ao vento, e apreciávamos o cheiro agreste de
madeira tosca, de bambus e de palmas secas.
Às vezes também saíamos no pequeno bote de borracha para ver que tal éramos à noite.
De todos os lados erguiam-se os paredões negros das ondas, e miríades de cintilantes
estrelas tropicais provocavam um frouxo reflexo dos plânctones na água. O mundo era
simples: estrelas na escuridão. Se o ano em que estávamos era 1947 d.c. ou 1947 a.c,
tornava-se subitamente coisa sem importância. Estávamos vivos, e sentíamo-lo em plena
intensidade. Compreendíamos que a vida também fora cheia para os homens que existiram
antes da idade da técnica, mais cheia até e mais rica a muitos respeitos do que a vida do
homem moderno. O tempo e a evolução, de certo modo, cessavam de existir; tudo o que
era real e tudo o que oferecia importância era o mesmo hoje que sempre tinha sido e que
sempre seria; nós estávamos, por assim dizer, engolidos pela medida comum absoluta da
História, escuridão intérmina e ininterrupta sob um cardume de estrelas. Na nossa frente,
nas trevas, a Kon-Tiki erguia-se de entre as vagas para de novo mergulhar por detrás de
negras massas de água, que se elevavam como torreões entre ela e nós. À claridade do
luar havia uma singular atmosfera em volta da jangada. Sólidos toros de pau franjados de
algas, o negríssimo contorno quadrado de uma vela que fazia lembrar a dos velhos vikings,
uma cerdosa choupana de bambu com a luz amarela de uma lâmpada de parafina na parte
posterior - aquele conjunto trazia à mente antes a representação de um conto de fadas do
que a pura realidade. De vez em quando, a jangada desaparecia, completamente oculta
pelas ondas negras; depois tornava a levantar-se e recortava-se em silhueta, contra as
estrelas, enquanto a água faiscante escorria dos troncos.
£ o que também se observa nas ilhas dos mares do Sul. A mais próxima do Peru, a ilha de
Páscoa, é aquela que ostenta os vestígios mais fundos de civilização, embora a
insignificante ilhota seja seca e estéril, e de todas as ilhas do Pacífico a mais afastada da
Ásia.
Quando completámos metade da nossa viagem, tínhamos vencido a distância que vai do
Peru à ilha de Páscoa, tendo diante de nós, ao Sul, a ilha lendária. Havíamos deixado o
continente num pomo qualquer do meio do litoral peruano, para arremedar a partida de uma
jangada antiga. Se tivéssemos saído da terra firme mais para o Sul, mais perto das ruínas
de Tiahuanaco, a cidade de Kon-Tiki, teríamos o mesmo vento, mas uma corrente mais
fraca, que nos conduziria na direcção da ilha de Páscoa.
Quando passámos 110° Oeste, estávamos dentro da área oceânica da Polinésia, tanto
quanto a ilha de Páscoa polinésia estava agora mais próxima do Peru que nós. Achávamo-
nos no nível do primeiro posto avançado das ilhas dos mares do Sul, o centro da mais
antiga civilização insulana. E quando, à noite, o nosso guia brilhante baixava do céu e
desaparecia no Poente com todo o seu espectro solar, o brando sopro dos ventos alísios
dava vida às histórias do estranho mistério da ilha de Páscoa. Enquanto o céu nocturno
abafava qualquer concepção de tempo, as cabeças dos gigantes barbados eram de novo
projectadas na vela.
Mas para o Sul, na ilha de Páscoa, estavam em pé cabeças de gigantes ainda maiores,
talhadas em pedra, de barbas pontudas e feições de homens brancos, meditando sobre o
arcano dos séculos. Assim estavam elas quando os primeiros europeus descobriram a ilha
em 1722, e assim estavam vinte e duas gerações polinésias antes, quando os habitantes
actuais desembarcaram das suas canoas e exterminaram todos os homens adultos que
encontraram entre os misteriosos povos civilizados da ilha. Desde então as gigantescas
cabeças de pedra da ilha de Páscoa tem figurado entre os primeiros símbolos dos mistérios
insolúveis da antiguidade. Espalhadas pelas encostas daquela ilha sem árvore, as
descomunais figuras ergueram-se para o céu, colossos de pedra esplendidamente
esculpidos em forma humana, e ali instalados como um bloco único da altura de uma casa
comum de três ou quatro andares. Como tinham podido os homens daquele tempo
aperfeiçoar, transportar e erigir tão gigantescos colossos de pedra? Como se o problema
não fosse suficientemente grande, tinham conseguido equilibrar mais um gigantesco bloco
de pedra vermelha, qual colossal cabeleira, no alto de várias das cabeças, a cerca de onze
metros acima do solo. Que significava tudo isto e que espécie de ciência mecânica
possuíam os desaparecidos arquitectos que conheciam a fundo problemas suficientemente
grandes para os engenheiros da actualidade?
Se reunirmos os dados de que dispomos, talvez não seja afinal insolúvel o mistério da ilha
de Páscoa, desde que vejamos, no fundo do quadro, uns homens em jangada vindos do
Peru. A velha civilização deixou nesta ilha traços que a patina do tempo não logrou apagar.
A ilha de Páscoa é constituída pelo cume de um antigo vulcão extinto. Estradas calçadas,
feitas pelos habitantes civilizados de outrora, levam a desembarcadouros em bom estado
existentes na costa e mostram que a profundidade da água, em torno da ilha, era
exactamente a mesma que é hoje. Não se trata de restos de um continente submerso, mas
de uma desolada ilhota, hoje tão pequena e solitária como quando era o centro cultural do
Pacífico.
No centro dessa ilha em forma de cunha, está a extinta cratera do vulcão e, em baixo, fica a
surpreendente pedreira e oficina dos escultores. Lá está ela exactamente como a deixaram
os velhos artistas e arquitectos há centenas de anos, ao fugirem à pressa para a parte
oriental da ilha, onde, segundo a tradição, o povo recentemente chegado à ilha matou todos
os homens adultos que a habitavam. E a súbita interrupção do trabalho dos artistas dá uma
ideia clara do que era um dia comum de trabalho na cratera da ilha de Páscoa. Os
machados de pedra dos escultores, de uma rijeza de pederneira, jaziam por ali na oficina e
mostram que esse povo civilizado não conhecia o ferro, como o não conheciam os
escultores de Kon-Tiki quando, perseguidos, fugiram do Peru, deixando espalhados pelo
planalto dos Andes gigantescas estátuas de pedra semelhantes. Em ambos os lugares
pode ser encontrada a pedreira onde o lendário povo branco, barbado, cortava no flanco da
montanha os blocos de pedra de nove ou doze metros de comprimento, servindo-se de
machados de uma pedra ainda mais dura. E em ambos os lugares, os gigantescos blocos,
pesando várias toneladas, eram transportados por muitos quilómetros sobre solo áspero
antes de serem postos em pé como enormes figuras humanas, ou erguidos uns por cima de
outros para formar misteriosas plataformas e muralhas.
Muitas estátuas descomunais, não concluídas, estão ainda onde foram começadas, no
interior da cratera da ilha de Páscoa, e mostram como o trabalho era executado nas suas
diferentes fases. A maior figura humana, que estava quase terminada quando os
construtores foram obrigados a fugir, tinha pouco mais de vinte metros de comprimento;
posta em posição erecta, quando completada, a cabeça desse colosso de pedra ficaria à
altura de um prédio de oito andares. Cada figura distinta era feita com a pedra tirada de um
único bloco, e os recantos de trabalho ocupados pelos escultores, em redor da figura de
pedra deitada, evidenciam que não eram muitos os homens a trabalhar, ao mesmo tempo,
em cada estátua. Deitadas de costas, com os braços curvos e as mãos colocadas sobre o
estômago, tal qual os colossos de pedra do Peru, as estátuas da ilha de Páscoa eram
completadas nos mínimos detalhes antes de serem removidas da oficina e transportadas
aos seus destinos, nos diferentes lugares da ilha. Na última fase, no interior da pedreira, o
gigante era amarrado à rocha apenas por uma estreita aresta debaixo das costas; depois,
também a aresta era desfeita, passando o colosso a ser apoiado por pedras.
Grandes quantidades destas estátuas eram arrastadas para o fundo da cratera e aí postas
na vertente. Mas uma boa parte dos maiores desses colossos eram transportados para
cima c, sobre a parede da cratera e, por muitos quilómetros, arrastados sobre terreno difícil
antes de serem colocados numa plataforma de pedra e de receberem, sobre a cabeça, mais
uma pedra descomunal de lava vermelha. Esse transporte já de si parece uni mistério, mas
não se pode contestar que se tenha dado nem que os arquitectos desaparecidos do Peru
tivessem deixado nas montanhas andinas colossos de pedra de igual tamanho,
demonstrando que eram também peritos nessa especialidade. Embora os monólitos sejam
maiores e mais numerosos na ilha de Páscoa, a mesma desaparecida civilização erigiu
gigantescas estátuas semelhantes, em forma humana, em muitas das outras ilhas do
Pacífico mais próximas da América, e em toda a parte os monólitos eram trazidos de
pedreiras distantes para o lugar do templo. Nas Marquesas ouvi lendas sobre o modo pelo
qual as gigantescas pedras eram manobradas, e como essas lendas correspondiam,
exactamente, às histórias dos naturais a respeito do transporte dos pilares de pedra ao
imenso portal de Tongatabu, pode-se conjecturar que o mesmo povo empregava igual
método com as colunas, na ilha de Páscoa.
O trabalho dos escultores na cavidade consumia longo tempo, mas exigia apenas alguns
artistas. O transporte de cada estátua pronta era feito com mais rapidez, mas, por outro
lado, requeria maior quantidade de homens. A pequena ilha de Páscoa era rica de peixe e
inteiramente cultivada, existindo grandes plantações de batata doce do Peru. Opinam os
entendidos que a ilha, na sua época de esplendor, pode ler tido uma população de sete ou
oito mil almas. Uns mil homens eram mais que suficientes para puxar as descomunais
estátuas para cima da parede íngreme da cratera, ao passo que bastava quinhentos
homens para as arrastar para a frente, através da ilha.
Com filaça e fibras vegetais trançavam cabos sólidos e duráveis e, usando formas de pau, a
multidão arrastava o colosso de pedra sobre troncos e pedras tornadas escorregadias com
raízes de taro. É um facto assaz conhecido que, na fabricação de cordas e cabos, eram
mestres os antigos povos civilizados das ilhas dos mares do Sul e mais ainda do Peru, onde
os primeiros europeus acharam pontes pênseis de mais de noventa metros de comprimento
lançadas sobre torrentes e desfiladeiros por meio de cabos trançados, tão grossos como a
cintura de um homem. Quando o colosso de pedra chegava ao lugar escolhido e ia ser
posto em pé, surgia outro problema. A multidão construía, provisoriamente, um plano
inclinado de pedra e areia, e puxava o gigante para cima pelo lado menos íngreme, com as
pernas para a frente. Quando a estátua chegava ao alto, passava rapidamente sobre uma
quina aguda e escorregava dali para baixo, de modo que a parte inferior se encaixava numa
cavidade anteriormente preparada. Com o plano inclinado completo ainda lá estava,
roçando na parte posterior da cabeça do gigante, rolavam para cima mais um cilindro de
pedra e punham-no no alto da cabeça, antes de ser removido todo o plano inclinado. Planos
inclinados, prontos de antemão como este, encontraram-se em vários lugares da ilha de
Páscoa, aguardando figuras colossais que nunca vieram. A técnica era admirável, mas de
modo algum misteriosa se deixarmos de subestimar a inteligência dos homens de outras
épocas, e o tempo e o material humano de que dispunham.
Mas por que faziam eles tais estátuas? E por que era necessário ir directamente dali a outra
pedreira, que ficava a mais de seis quilómetros da oficina da cratera para achar uma
qualidade especial de pedra vermelha afim de pôr sobre a cabeça da estátua? Tanto na
América do Sul como nas ilhas Marquesas, muitas vezes a estátua inteira era dessa pedra
vermelha, e faziam grandes caminhadas para obtê-la. Os toucados vermelhos era um traço
característico das pessoas de posição tanto na Polinésia como no Peru.
Ora, as lendas incas do Peru dizem que o Rei-Sol Kon-Tiki governava um povo branco,
barbado, ao qual os incas davam o nome de «orelhas grandes», por haverem aumentado
artificialmente as orelhas que desciam até os ombros. Acentuavam os incas que tinham sido
os «orelhas grandes» de Kon-Tiki que erigiram as abandonadas estátuas gigantescas nas
montanhas andinas, antes de serem exterminados ou expulsos pelos próprios incas na
batalha travada numa ilha junto do lago Titicaca.
As estátuas da ilha de Páscoa possuíam orelhas compridas porque como disse também as
tinham os próprios escultores. Haviam escolhido, especialmente, pedras vermelhas para
servirem de cabeleiras, porque os escultores também tinham cabelo avermelhado. Essas
estátuas ostentavam ainda o queixo pontudo e saliente porque os escultores deixavam
crescer a barba. Apresentavam a fisionomia típica da raça branca, com nariz recto e
pequeno e lábios finos, porque os escultores não pertenciam à raça malaia. E quando as
estátuas possuíam cabeças enormes e pernas miúdas, com mãos colocadas sobre o
estômago, é que era justamente desse modo que o povo do Peru costumava fazer estátuas
gigantescas. O único ornato das figuras da ilha de Páscoa é um cinto que era sempre
talhado em volta do estômago da estátua. O mesmo cinto simbólico se vê em todas as
estátuas das antigas ruínas de Kon-Tiki, perto do lago Titicaca. É o lendário emblema do
deus-sol, o cinto do arco-íris. Conforme um mito corrente em Mangareva, o deus-sol tirara o
arco-íris, que era o seu cinto mágico, e por ele descera do céu até Mangareva, a fim de
povoar a ilha com os seus filhos de pele branca. Outrora, o sol era considerado como o
mais antigo antepassado em todas aquelas ilhas, bem corno no Peru.
No mapa aparece esse nome «ilha de Páscoa» porque um holandês a «descobriu» num
domingo de Páscoa. E nós esquecemo-nos que os próprios naturais, que já lá viviam,
tinham para a sua terra nomes mais instrutivos e mais significativos. Esta ilha tem nada
menos que três nomes em polinésio.
Um deles é Te-Pito-te-Henua, que significa «umbigo das ilhas». Este nome poético coloca,
claramente, a ilha de Páscoa numa posição especial em relação às outra» ilhas situadas
mais para o Oeste, sendo, consoante os próprios polinésios, a mais antiga designação da
ilha de Páscoa. Na banda ocidental da ilha, próximo ao tradicional lugar de desembarque
dos primeiros «orelhas compridas», há uma esfera de pedra cuidadosamente feita com
ferramenta, a que deram a designação de «umbigo de ouro», sendo por sua vez
considerado o umbigo da própria ilha de Páscoa. Quando os poéticos antepassado»
polinésios cinzelaram o umbigo da ilha na costa oriental e escolheram a ilha mais vizinha do
Peru como o umbigo de suas miríades de ilhas situadas mais para o Oeste, esse facto
revestiu-se de um significado simbólico. E quando sabemos que a tradição polinésica se
refere ao descobrimento das ilhas como o seu «nascimento», com isto nitidamente se
sugere que, dentre os demais lugares, a ilha de Páscoa era considerada como o símbolo do
nascimento das outras ilhas e o traço de união com a mãe-pátria original.
O segundo nome da ilha de Páscoa é Rapa-nui e significa «Grande Rapa», enquanto que
Rapa-iti ou «Pequena Rapa» é outra ilha do mesmo tamanho, sita a grande distância a
Oeste da ilha de Páscoa. Ora, é prática natural de todos os povos chamarem à sua primeira
pátria, por exemplo, Grande Rapa, ao passo que a seguinte é chamada Nova Rapa ou
Pequena Rapa, ainda que os lugares sejam do mesmo tamanho. E na Pequena Rapa o»
nativos sustentam a tradição, muito ortodoxa, de que o» primeiros habitantes da ilha vieram
da Grande Rapa, a ilha de Páscoa, a Leste, mais perto da América. Isto é alusão directa a
uma primitiva emigração do Oriente.
O terceiro e último nome desta ilha-chave é Mata-Kitc-Rani e quer dizer «o olho (que) olha
(para) o céu». A primeira vista, isto causa alguma hesitação, pois a ilha de Páscoa,
relativamente baixa, não olha para o céu mais que as outras elevadas ilhas montanhosas,
por exemplo Taiti, as Marquesas ou Hawai. Mas Rani tinha para os polinésios duplo
significado. Era também a pátria de origem de seus avós, a terra santa do deus-sol, o
montanhoso reino abandonado de Tiki. E é muito expressivo o facto de terem eles dado
precisamente ao posto avançado que é a ilha de Páscoa, dentre os milhares de ilhas do
oceano, o nome de olho que olha para o céu. Mais notável é ainda a circunstância de que o
nome afim Mata-Rani, que cm polinésio significa «o olho do céu», é um velho nome local do
Peru, o de um lugar na costa peruana do Pacífico, defronte da ilha de Páscoa, e logo abaixo
da vetusta cidade em ruínas de Kon-Tiki, nos Andes.
A ilha de Páscoa, sozinha, dava-nos assunto de sobra para conversa enquanto estávamos
sentados no convés sob o céu estrelado, sentindo-nos participantes de toda a aventura pré-
histórica. Quase nos vinha a impressão de que não fizéramos outra coisa, desde os tempos
de Tiki, senão correr o mar sob o sol e as estrelas em busca de terra.
Então começámos a fazer o mesmo jogo com os tubarões. Púnhamos um pedaço de peixe
na ponta de uma corda ou, amiúde, um saco com restos do jantar, que pendurávamos
numa linha. Em vez de se virar de costas, o tubarão empurrava o focinho acima da água e
vinha nadando, com as mandíbulas escancaradas, para engolir o engodo. Não podíamos
deixar de puxar pela corda justamente no momento em que o tubarão ia de novo fechar as
mandíbulas, e o peixe, enganado, continuava a nadai com uma expressão de indizível
toleima e paciência, e tornava a abrir as mandíbulas para abocanhar as sobras que lhe
escapavam de cada vez que tentava engoli-las. O final da manobra era vir o peixe até os
toros e pular como um cão pedinte, atraído pela isca que balançava num saco pouco acima
de seu focinho. Era como se estivéssemos num jardim zoológico dando comida a um
hipopótamo de boca aberta, e um dia, pelos fins de Julho, depois de passarmos três meses
a bordo da jangada, a seguinte nota deu entrada no diário:
«(Estabelecemos amizade com o tubarão que hoje nos acompanhou. Ao jantar alimentámo-
lo com sobejos que atirávamos directamente para dentro das suas mandíbulas abertas.
Quando vai a nadar ao nosso lado, faz lembrar um pouco um cão meio feroz, meio
bonachão e amigo. Não se pode negar que os tubarões parecem bastante agradáveis
enquanto não se cai dentro das suas mandíbulas. Pelo menos, achamos divertido tê-los em
redor de nós, excepto quando estamos a tomar banho.»
Um dia, uma vara de bambu, com um saco de comida para tubarões amarrado num cordel,
estava na beira da jangada, pronta para ser utilizada, quando um golpe de mar a arrebatou
violentamente. A vara de bambu ainda boiava a mais de cem metros da parte posterior da
jangada, quando de repente ficou em pé na água e precipitadamente veio vindo, sozinha,
atrás da jangada, como se tivesse intenção de voltar espontaneamente para o seu antigo
lugar. Quando a cana de pescar se aproximou, balouçando, para mais perto de nós, vimos
um tubarão de três metros nadando logo abaixo dela, enquanto que a vara de bambu
ressaía fora das ondas como um periscópio. O peixe engolira o saco de comida sem trincar
a linha. Pouco depois a cana de pescar alcançou-nos e, sossegadamente, passou por nós e
desapareceu mais além.
Se é verdade que, pouco a pouco, passámos a olhar para o tubarão com olhos bem
diferentes, jamais desapareceu o respeito que nos infundiam aquelas cinco ou seis carreiras
de dentes afiados como navalhas, sempre de emboscada no interior das colossais
mandíbulas.
Um dia, Input, sem querer, nadou em companhia de um tubarão. A ninguém era permitido
nadar longe da jangada, quer em atenção à sua marcha, quer por causa dos tubarões. Um
dia, porém, que tudo estava calmo, e depois de termos arrastado para bordo os tubarões
que nos vinham a acompanhar, houve permissão para se dar um rápido mergulho no mar.
Input atirara-se para dentro de água e só bem longe tornou aparecer à superfície. .No
instante em que ia empreender a volta, vimos do mastro uma sombra maior do que ele vir a
subir atrás do banhista, mas bem mais no fundo. Demos aviso com voz forte, porém com a
devida prudência a fim de não criar o pânico, e Input soergueu-se e nadou em direcção ao
lado da jangada. Mas a sombra lá em baixo era de um nadador ainda melhor, que irrompeu
do fundo e quase ia bater Input. Chegaram à jangada ao mesmo tempo. Enquanto Input
trepava para bordo, um tubarão de 1,80 m deslizou pouco abaixo de seu estômago e
deteve-se ao lado da jangada. Demos-lhe uma apetitosa cabeça de dourado em
agradecimento por não ter abocanhado o nosso companheiro.
Geralmente o que excita a voracidade dos tubarões é mais o cheiro do que a vista. Para os
pôr à prova, sentávamo-nos com as pernas na água, e eles nadavam na nossa direcção até
se acharem mais ou menos a meio metro da jangada, e daí pacificamente voltavam, de
novo, as caudas para nós. Se, porém, a água apresentava manchas de sangue, poucas
que fossem, o que se verificava quando tínhamos estado a preparar peixe, as nadadeiras
dos tubarões movimentavam-se, e eles, vindo de longe, reuniam-se ali como moscas
varejeiras. Se atirávamos fora tripas de tubarão, atiravam-se às cegas a esse manjar e
como que tomados de frenesi. Devoravam, avidamente, o fígado de um seu semelhante, e
se então púnhamos um pé na água, dirigiam-se para ele que nem foguetes, chegando a
ferrar os dentes nos toros onde o pé tinha estado. Existem tubarões e tubarões, porque
esse peixe é verdadeiro joguete das suas emoções.
A derradeira fase das nossas relações com tubarões consistiu em começar a puxá-los pelo
rabo. Puxar a cauda dos animais passa por ser uma forma inferior de desporto, mas isto
dizem os que não experimentaram fazê-lo com a de um tubarão. Porque era esta, na
verdade, uma activa forma de desporto.
Para segurar um tubarão pelo rabo, primeiro tínhamos de entretê-lo com um bom pitéu.
Mostrava-se então pronto a pôr a cabeça fora da água para recebê-lo. Em geral, a comida
era-lhe servida dentro dum saco balouçante, pois dar-lha directamente da mão não é muito
divertido. Se uma pessoa alimenta cães ou ursos mansos na mão, eles metem os dentes na
carne e vão-na rasgando aos poucos ou, quando o conseguem, arrebatam-na toda para si.
Se, porém, segurarmos um grande dourado a boa distância da cabeça do tubarão, este
ergue-se e dá um estalo com as mandíbulas, e, sem se ter percebido nenhum arranco, lá se
foi de repente metade do dourado, e o pescador fica sentado e com um rabo na mão. Não
fora sem dificuldade que havíamos cortado em dois pedaços o dourado, mas num segundo,
o tubarão, movendo rapidamente para os lados os dentes triangulares que parecem
serrotes, tinha imperceptivelmente triturado a espinha dorsal e o resto como uma máquina
de fazer linguiça. Quando o tubarão tranquilamente se virava para de novo descer,
meneava o rabo acima da superfície e era fácil agarrá-lo. Pegar na pele do peixe era o
mesmo que passar a mão sobre lixa, e dentro da ponta superior de sua cauda havia um
entalhe que parecia bem a propósito. Se se colocava ali a mão com firmeza, o peixe estava
seguro. Tinha-se então de dar um sacão antes que ele voltasse a si, e puxar com força para
os troncos a maior parte possível da cauda agarrada. Durante um ou dois segundos, o
animal parecia nada haver entendido, mas de súbito começava a saracotear-se e debater-
se sem grande energia com a parte dianteira do corpo, pois que sem o auxílio da cauda o
tubarão não consegue fazer muito. As outras barbatanas servem apenas para equilíbrio e
direcção. Após algumas desesperadas sacudidelas, durante as quais tínhamos de segurar a
cauda com toda a firmeza, o surpreso tubarão tornava-se abatido e apático, e principiava a
afundar-se na direcção da cabeça, até que ficava totalmente paralisado. Quando o
prisioneiro se aquietava e, todo hirto, estava como que a aguardar os acontecimentos, era a
hora de o puxarmos para dentro, com toda a nossa força. Raramente levantávamos para
fora da água mais da metade do pesado peixe, porque ele despertava e incumbia-se do
resto. Com violentos repelões maneava a cabeça para os lados e na direcção dos toros, e
então cumpria-nos puxar com toda a energia e sair do caminho com a maior rapidez, se
tínhamos amor às nossas pernas. Pois, nesse momento, o tubarão não era para gracejos.
Debatendo-se e dando grandes saltos, zurzia a parede de bambu com a cauda que parecia
um martelo. Agora o peixe não poupava os seus músculos de ferro. As imensas mandíbulas
estavam escancaradas, e as fileiras de dentes procuravam morder no ar qualquer coisa que
lhes estivesse ao alcance Podia acontecer que o saracoteio terminasse com a queda mais
ou menos involuntária do peixe na água e seu desaparecimento definitivo após tão
vergonhosa humilhação, mas as mais das vezes arrojava-se ao acaso, sobre os mesmos
toros traseiros, até que passávamos um nó corredio em volta da raiz da sua cauda, ou até
que deixasse para sempre de exibir aqueles seus dentes diabólicos.
A princípio, o papagaio implicava com os nossos dois entendidos de rádio. Certa ocasião,
estavam eles no seu canto, muito entretidos com os seus fios e auscultadores, talvez em
contacto com um radioamador de Oklahoma. De repente os auscultadores emudeceram e
Torstein e Knut não logravam obter um som sequer, por mais que afagassem os fios e
torcessem os botões. O papagaio estivera ocupado em dar bicadas no fio da antena. Isto
era bastante comum, sobretudo nos primeiros dias, quando o fio da antena se esticava para
cima, amarrado a um balão. Mas um dia o bicho adoeceu gravemente. Viveu tristonho, sem
tocar em comida durante dois dias, enquanto que, no meio do seu estrado, cintilavam
pedacinhos de fio dourado de antena. Nessa ocasião, os encarregados do rádio
arrependeram-se das pragas rogadas e o papagaio arrependeu-se da sua maldade,
Torstein e Knut passaram a ser os seus maiores amigos e a ave palradora não quis mais
dormir em outro lugar que não fosse o canto do rádio. Quando o papagaio veio para a
jangada, a sua língua materna era o espanhol, e Bengt afirmou que o bicho dera para falar
espanhol com sotaque norueguês, muito antes de se pôr a papaguear as pragas favoritas
que Torstein proferia em norueguês de lei.
Durante dois meses, o papagaio deliciou-nos com o seu humorismo e as suas cores
brilhantes, até que um golpe de mar invadiu a embarcação pela popa enquanto a ave, vinda
da ponta do mastro, descia pelo estai. Quando averiguámos que o papagaio havia sido
levado pelo vagalhão, era demasiado tarde. Não o vimos mais. E a Kon-Tiki não podia fazer
meia volta nem parar; se qualquer coisa caía da jangada no mar, era impossível voltar para
reavê-la. Inúmeras experiências o tinham demonstrado.
Várias vezes observáramos as grandes cascas brancas de ovos de siba a boiar, como ovos
de avestruz ou crânios brancos, na água azul. Numa única ocasião, topámos uma lula
remexendo por baixo de uma dessas cascas. Vimos as bolas, alvas como neve, flutuando
perto de nós, e a princípio cuidámos que seria coisa fácil dar uma remadas no botezinho e
apanhá-las. Pensámos a mesma coisa de outra vez em que a corda da rede de plâncton se
partiu, ficando a rede de pano, sozinha, a flutuar na nossa esteira. Lançámos à água o
botezinho, munido de uma corda para as remadas de volta. Ficámos, porém, surpreendidos
ao ver que o vento e o mar conservavam o bote a distância, e que a linha proveniente da
Kon-Tiki tinha tão violenta acção de freio na água, que não conseguiríamos jamais voltar,
remando, ao ponto de onde havíamos saído. Podíamos chegar a alguns metros daquilo que
queríamos recolher, mas nessa ocasião a linha inteira estava na água e a Kon-Tiki
arrastava-nos para Oeste. «O que no mar cai no mar fica» - era a lição que, aos poucos, se
gravara indelevelmente na nossa consciência. Se quiséssemos ir até o fim tínhamos de
agarrar-nos bem até que a proa da Kon-Tiki tocasse em terra na outra banda.
O papagaio deixou um lugar vazio no canto do rádio, mas quando, no dia seguinte, o sol
tropical brilhou sobre o Pacífico, a tristeza foi de pouca duração. Nos dias que se seguiram
arrastámos, para bordo, vários tubarões e constantemente achávamos na barriga do peixe,
entre cabeças de atuns e outras curiosidades, bicos pretos e curvos de papagaios. Mas,
depois de mais detido exame, verificávamos sempre que os bicos pretos pertenciam a síbas
digeridas.
Os dois encarregados do rádio tinham tido um trabalho insano no seu canto desde o
primeiro momento em que vieram para bordo. Já no primeiro dia, na corrente de Humboldt,
a água salgada começou a escorrer das baterias; por isso tiveram de revestir de lona o
sensível canto do rádio para salvar o que, no mar grosso, pudesse ser salvo. Em seguida,
veio o problema da instalação de uma antena suficientemente longa na pequena jangada.
Tentaram suspender a antena com uma pandorga, mas corri a primeira lufada forte a
pandorga mergulhou numa crista de onda e desapareceu. Experimentaram depois levantá-
la com um balão, mas o sol dos trópicos queimou-o, fazendo-lhe buracos, de modo que o
balão murchou e caiu no mar. Finalmente, houve o caso com o papagaio. Além disso,
estivemos duas semanas na corrente de Humboldt antes de sairmos de uma zona morta
dos Andes, na qual a onda curta era muda e sem vida como o ar numa caixa de sabão
vazia.
Mas eis que, certa noite, irrompeu de repente a onda curta, e o prefixo de chamada de
Torstein foi ouvido por um amador casual de Los Angeles que estava a mexer no seu
transmissor para pôr-se em contacto com outro amador na Suécia. O homem perguntou
que espécie de aparelho era o nosso, e tendo recebido resposta satisfatória, indagou de
Torstein quem era e onde vivia. Quando soube que a morada de Torstein era uma cabina
de bambu, numa jangada a navegar no Pacífico, houve vários ruídos esquisitos até que
Torstein deu informações mais minuciosas. Depois que o amador de Los Angeles se
acalmou, disse-nos que o seu nome era Hal e o de sua mulher Anna, que era sueco, de
nascimento, e que levaria ao conhecimento de nossa famílias que estávamos vivos e íamos
bem.
Naquela noite, achámos estranho pensar que um homem totalmente desconhecido, obscuro
operador de um cinema da populosa Los Angeles, era a única pessoa no Mundo, além de
nós, que sabia onde estávamos e que passávamos bem. Daquela data em diante, Hal, de
seu verdadeiro nome Harold Kempel, e o seu amigo Frank Cuevas, revezavam-se cada
noite à espera de ouvir sinais da jangada, e Herman recebeu telegramas de agradecimento
do chefe do Serviço de Meteorologia dos Estados Unidos pelas suas duas informações
diárias, dadas em. código, sobre uma área a respeito da qual poucas informações havia e
nenhuma estatística. Posteriormente Knut e Torstein estabeleceram ligação com outros
radioamadores quase todas as noites, e estes transmitiam saudações à Noruega por
intermédio de um adepto de rádio chamado Egil Berg, de Notodden.
Apenas durante alguns dias, no meio do oceano, penetrou muita água salgada no canto do
rádio, e a estação deixou de funcionar totalmente. Os dois encarregados daquele difícil
trabalho andavam dia e noite às voltas com parafusos e ferros de soldar, e todos os
radioamadores distantes deram como findos os dias da jangada. Mas eis que, uma noite, o
prefixo LI2B se fez ouvir no ar, e num instante o canto do rádio zumbia como um vespeiro
por terem várias centenas de radioamadores da América batido nas suas teclas
simultaneamente, respondendo à chamada. Na realidade, tínhamos sempre a impressão de
nos sentarmos num vespeiro se, casualmente, invadíamos o domínio dos técnicos do rádio.
Era húmido, devido à água salgada que se ia entranhando no madeiramento, e conquanto
houvesse um pedaço de borracha bruta sobre o toro de madeira de balsa onde o operador
se sentava, apanhávamos choques eléctricos tanto na parte traseira como na ponta dos
dedos se tocávamos no manipulador Morse. E se um de nós, profanos, tentava bifar um
lápis no canto do rádio que tinha de tudo, ou os cabelos se lhe eriçavam na cabeça, ou
tirava faíscas do toco de lápis. Somente Torstein, Knut e o papagaio eram capazes de se
saracotear ilesos por aquele recanto, e nós pusemos um papelão como marca bem visível
da zona de perigo para os outros quatro.
Uma noite, a deshoras, Knut bulia no aparelho à luz da lâmpada quando, de repente puxou-
me a perna e disse-me que estivera falando com um homem que morava nas cercanias de
Oslo e se chamava Christian Amundsen. Isto chegava a ser um record para um amador,
pois que o pequeno transmissor de ondas curtas, a bordo da jangada, com os seus 13.990
kc por segundo, não emitia mais do que 6 watts, tendo mais ou menos a mesma força de
um maçarico eléctrico. Estávamos a 2 de Agosto e navegáramos já mais de 60 graus em
redor da terra, de modo que Oslo encontrava-se no extremo oposto do Globo. O Rei
Haakon fazia 75 anos no dia seguinte, e nós enviámos-lhe uma mensagem de
congratulações directamente da jangada; e no dia 4 Christian fez-se ouvir de novo
mandando-nos a resposta do Rei que nos desejava felicidade e pleno êxito na nossa
viagem.
Agradecemos-lhe o conselho e informámos que a mais baixa temperatura que nos cercava
era a da própria corrente oceânica, mais ou menos 80o. Ora Herman era engenheiro de
frigoríficos, e eu disse-lhe por gracejo, que fizesse a temperatura da água baixar a 60o.
Herman pediu permissão para se utilizar da garrafinha de ácido carbónico pertencente ao
pequeno bote de borracha, já cheio de ar, e depois de umas ligeirezas de mãos numa
caldeira coberta com um saco-cama e um colete de lã, de repente surgiu neve na barba do
engenheiro, e ele apareceu com um enorme pedaço de gelo na caldeira.
Mas embora as misteriosas palavras levadas através do ar pela onda curta fossem um luxo
desconhecido nas remotas eras de Kon-Tiki, as ondas do oceano por baixo de nós eram as
mesmas de outrora, e levavam a jangada de madeira de balsa constantemente para Oeste,
como faziam há 1500 anos.
Depois que entrámos na área mais próxima das ilhas dos mares do Sul, o tempo tornou-se
um pouco mais inconstante, com aguaceiros esparsos, e o vento alísio mudou de direcção.
Tinha soprado invariavelmente de Sueste até nos acharmos já bem avançados na corrente
equatorial; depois virara cada vez mais para Leste. Alcançámos a nossa posição mais
setentrional a 10 de Junho, com a latitude 6o 19' Sul. Estávamos tão perto do Equador que
se tinha a impressão de que íamos navegar até mesmo acima das ilhas mais setentrionais
do grupo das Marquesas, e sumir-nos completamente no mar sem achar terra. Mas então o
vento alísio rodopiou para mais longe, de Este para Nordeste, e, numa curva, impeliu-nos
para a latitude do mundo das ilhas.
Acontecia, amiúde, que o vento e o mar permaneciam inalteráveis dias seguidos, e já não
sabíamos então a quem tocava o quarto de direcção, menos à noite, quando o quarto de
vigia ficava sozinho no convés. Pois se o mar e o vento estavam firmes, o remo de governo
ficava bem amarrado e a vela da Kon-Tiki permanecia enfunada sem nos causar nenhuma
preocupação. Então o vigia nocturno podia sentar-se calmamente na porta da cabina e ficar
a olhar para as estrelas. Se, porém, as constelações mudavam de posição no firmamento,
impunham que o vigia saísse e fosse ver se era o remo de governo ou o vento que se tinha
desviado do rumo.
Quase não se acredita em como era fácil governar a embarcação pelas estrelas, quando
lhes havíamos observado o curso através da abóbada celeste, semanas a fio. De resto à
noite não havia muita coisa para ver. À medida que as noites se sucediam, sabíamos onde
se podia esperar observar as diferentes constelações, e quando nos íamos avizinhando do
Equador, a Ursa Maior ergueu-se tão clara do horizonte ao Norte, que estávamos a ver a
hora em que divisaríamos a estrela polar, a qual aparece quando se vem do Sul e se
atravessa o Equador. Mas quando o vento alísio de Nordeste começou a soprar, a Ursa
Maior desapareceu de novo.
Além de se aperceberem do céu estrelado ser como que uma gigantesca bússola cintilante,
a revolutear de Este para Oeste, compreendiam que as diferentes estrelas que se achavam
exactamente sobre as suas cabeças lhes mostravam sempre a que distância estavam para
o Norte ou para o Sul. Quando os polinésios exploraram e construíram o seu actual
domínio, que é toda a parte do mar que está mais próxima da América, mantiveram tráfico
entre algumas das ilhas durante muitas gerações. Rezam tradições históricas que, quando
os chefes de Taiti visitaram Hawai, sita a mais de 2.000 milhas marítimas para o Norte e
vários graus para o Oeste, o timoneiro dirigia primeiro a embarcação para o Norte, guiando-
se pelo sol e pelas estrelas, até que as estrelas que tinha acima da cabeça lhe dissessem
que estava na latitude de Hawai. Então fazia um ângulo recto e dirigia a embarcação para
Oeste até se achar tão perto que as aves e as nuvens lhe anunciavam onde ficava o grupo
de ilhas.
Na Polinésia, como no Peru, o ano civil tinha sido disposto de tal maneira que principiava
exactamente no dia do ano em que a constelação das Plêiades aparecia, pela primeira vez,
acima do horizonte, e em ambas as zonas essa constelação era considerada padroeira da
Agricultura.
No Peru, onde o continente descai aos poucos para o Pacífico, encontram-se hoje, na areia
deserta, as ruínas de um observatório astronómico de grande antiguidade, relíquia do
mesmo misterioso povo civilizado que esculpiu colossos de pedra, ergueu pirâmides,
cultivou a batata doce e a cabaça, e que começava o ano com o aparecimento das
Plêiades. Kon-Tiki conhecia as estrelas quando se fez de vela pelo Pacífico.
A 2 de Julho, o vigia nocturno não pôde mais continuar sentado a estudar o firmamento.
Tivemos um vento forte e mar banzeiro, depois de vários dias de ligeira brisa de Nordeste.
Sendo já noite avançada, surgiu-nos luar brilhante e vento muito fresco. Medíamos a nossa
velocidade, contando os segundos que gastávamos para passar por uma lasca de madeira
atirada para a frente a um dos lados da jangada, e averiguámos que estávamos a
estabelecer um record de velocidade. Ao passo que a nossa velocidade média era de doze
a dezoito «lascas de madeira», segundo a gíria corrente a bordo, descíamos agora, durante
algum tempo, a «seis lascas de madeira», e a forforescência remoinhava numa esteira
regular por detrás da jangada.
Quando o primeiro vagalhão nos atingiu, a jangada levantou para o lado a popa e passou
por cima cio dorso da onda que acabava de quebrar, de modo que silvava e fervia ao longo
de toda a crista. Cavalgávamos aquele caldeirão de espuma que se escoava de um e outro
lado da jangada, ao mesmo tempo que, por baixo de nós, o mar escachoava furibundo. A
proa ergueu-se por fim enquanto a onda passava, e nós resvalámos para o abismo cavado
entre as vagas, inclinando-se para ele primeiro a popa. Imediatamente depois, veio outra
muralha de água e empinou-se, enquanto éramos novamente levantados ao ar e claras
massas de água estrugiam sobre nós à ré. A embarcação foi atirada de lado sobre as
ondas, tornando-se impossível fazê-la voltar, com suficiente presteza, à posição natural.
Seguiu-se novo vagalhão que surgiu da espuma como uma parede fulgente, que se desfez
ao despenhar-se sobre nós. Vendo tal massa de água impendente e já a cair, agarrei-me
firmemente a um bambu que repontava do telhado da cabana, e ali retive a respiração ao
perceber que a jangada estava a ser arrojada para o alto e que tudo em redor de mim
dançava num vórtice espumante. Num segundo, nós e a Kon-Tiki estávamos de novo por
cima da água, a deslizar suavemente do outro lado, pelo dorso de uma onda. Pouco a
pouco o mar normalizou-se. As três grandes muralhas de água prosseguiram em seu
ímpeto à nossa frente, e atrás de nós a lua cheia batia numa fieira de cocos a boiar entre as
ondas.
A última vaga desferira violento golpe na cabina, de modo que Torstein foi atirado de pernas
para o ar no canto do rádio e os outros acordaram amedrontados com o barulho, enquanto
a água esguichava entre os toros e invadia a parede. No lado esquerdo da coberta da proa,
o caniçado de bambu apresentava uma brecha semelhante a uma pequena cratera, e o
cesto de imersão achava-se completamente achatado, mas tudo o mais estava como antes.
Nunca pudemos explicar, com segurança, de onde tinham vindo os três vagalhões, a menos
que proviessem de perturbações do fundo do mar, (pie não são raras naquelas paragens.
Dois dias mais tarde tivemos a nossa primeira tempestade. Começou com a paralisação
completa dos ventos alísios e depois de as alvas e leves nuvens desses mesmos ventos,
que se amontoavam sobre as nossas cabeças lá do azul, serem invadidas por um espesso
montão de nuvens vindas do Sul e que se detiveram sobre o horizonte. Seguiram-se fortes
rajadas provenientes das mais diversas direcções e impossibilitando qualquer paralisação
da parte do quarto de governo. Se conseguíamos virar rapidamente a nossa popa para a
nova direcção do vento, de maneira que a vela ficasse copada, com a mesma rapidez nos
salteavam as lufadas oriundas de outras bandas, desfazendo o bojo à vela e pondo-a a
girar e a dar vergastadas, com evidente perigo tanto para a tripulação como para a carga.
Mas o vento, de repente, começou a soprar directamente do lado de onde vinha o mau
tempo, e enquanto as nuvens negras se acastelavam sobre nós. a brisa foi aumentando
tanto que, dentro em pouco, era furacão e temporal.
Num instante, as ondas que marulhavam em volta de nós foram atiradas a mais de quatro
metros de altura, enquanto algumas cristas de vagas sibilavam a seis ou sete metros acima
do covão formado pela água, de sorte que ficavam ao nível da ponta do nosso mastro
quando nós mesmos nos engolfávamos no boqueirão. Todos os homens tiveram de
movimentar-se no convés e, por assim dizei, multiplicar-se, enquanto o vento sacudia a
cabina de bambu e zunia e uivava no cordame.
Para proteger o canto, do rádio, estendemos a lona sobre a parede dos fundos e no lado
esquerdo da cabina.
Toda a carga solta foi amarrada com firmeza e a vela arreada e atada em torno da verga de
bambu. Encapotando-se o céu, o mar fez-se escuro e sinistro, e em todas as direcções
viam-se cristas brancas de ondas que rebentavam. Havia longas faixas de espuma do lado
do vento, na raiz do dorso de grandes vagas, e em qualquer parte onde os espinhaços das
ondas haviam quebrado e se submergiam, massas verdes, como se fossem chagas abertas
no oceano, ficavam a espumar, por muito tempo, na água azul escura. Ao rebentarem, as
cristas desmanchavam, caindo sobre o mar uma chuva de salpicos salgados. Quando a
chuva tropical se desfazia em cima de nós, em aguaceiros horizontais, e açoitava a
superfície do mar, invisível ao nosso derredor, a água que nos escorria dos cabelos e da
barba tinha gosto a salobro, enquanto andávamos pelo convés cambaleando e fazendo
arco com o corpo, nus e enregelados, cuidando de que tudo a bordo estivesse em ordem
para enfrentar a procela. Quando o temporal se armou no horizonte e depois pairou sobre
nós, pela primeira vez, podia-se ler nos nossos olhares a ansiedade e a inquietação. Mas
quando realmente desabava e a Kon-Tiki vencia com facilidade e até com entusiasmo tudo
quanto se lhe punha no caminho, o temporal tornou-se uma excitante forma de desporto, e
todos nos deleitávamos com a fúria que borbulhava em redor de nós e que a jangada de
madeira de balsa superava tão airosamente, mantendo-se sempre sobranceira no topo das
ondas, leve como cortiça, enquanto que todo o potencial da água escachoava sempre
alguns centímetros por baixo. O mar tinha muita coisa em comum com as montanhas num
tempo destes. Era como se saíssemos para um ermo durante uma tempestade, galgando
os mais elevados planaltos nus e cinzentos das montanhas. Conquanto nos achássemos no
coração dos trópicos, quando a jangada deslizava para cima e para baixo sobre a
espumante vastidão do oceano, sempre imaginávamos estar a descer por um monte
abaixo, entre massas de neve e rochedos.
Com um tempo destes, o piloto devia ter lume no olho. Quando as ondas mais a pique
passavam debaixo da metade dianteira da jangada, os toros de trás erguiam-se para fora
da água, mas no momento seguinte tornavam a mergulhar para subir pela nova crista. De
cada vez, as ondas vinham tão perto uma da outra que a que estava mais atrás nos
alcançava enquanto a primeira ainda suspendia no ar a proa; então os sólidos lençóis de
água desabavam sobre o piloto em catadupa terrífica, mas no instante seguinte a popa ia
para cima e a cachoeira desaparecia como que através dos dentes de um garfo.
Calculámos que, num mar calmo ordinário, onde em geral decorriam sete segundos entre
as ondas mais altas, haviam entrado pela popa, em vinte e quatro horas, duzentas
toneladas de água, o que nós mal notámos, porque a água assim como penetrava
tranquilamente ao redor das pernas nuas do piloto, assim tranquilamente se escoava por
entre os toros. Mas, numa tempestade forte. mais de dez mil toneladas de água entravam a
bordo pela popa no decurso de vinte e quatro horas, visto que massas de água variando de
alguns galões a duas ou três jardas cúbicas, e às vezes muito mais, penetravam na
embarcação de cinco em cinco segundos. A torrente algumas vezes irrompia a bordo com
violento fragor, e o timoneiro via-se com água até a cintura e tinha a impressão de estar a
lutar com a corrente num rio caudaloso. A jangada parecia tremer por um momento, mas
depois a carga cruel que a oprimia à ré tornava a despenhar-se no mar em grandes
cascatas.
Herman ficou cá fora durante esse terrível tempo, medindo a violência das rajadas de vento
que duraram vinte e quatro horas; depois pouco a pouco foram-se transformando num brisa
forte com aguaceiros intermitentes, que contribuíam para manter agitado o mar em redor de
nós enquanto íamos aos cambaleios rumo ao Ocidente, com vento favorável à derrota. Para
obter medidas precisas do vento, no meio das ondas altíssimas, Herman, sempre que era
possível, tinha de subir ao oscilante tope do mastro, único lugar que lhe facilitava as
operações.
Ou tinham sido devorados pelos furibundos atuns, ou haviam-se escondido nas frinchas por
baixo da jangada, ou fugiam para longe do campo de batalha. Não ousávamos pôr as
nossas cabeças dentro da água para ver.
Senti um desagradável empurrão (e depois não pude deixar de rir do meu completo
desnorteamento) quando me achava na parte posterior da jangada obedecendo a uma
imperiosa exigência da Natureza. Estávamos acostumados a um regular marulho quando
nos achávamos no W. O, mas afigurou-se-me contrário a todas as probabilidades razoáveis
receber à popa, como de maneira totalmente inesperada recebi, um violento golpe
desfechado por qualquer coisa grande, fria e pesadona que me dava marradas, como se
fosse uma cabeça de tubarão no mar. Já eu fazia menção de subir ao estai do mastro, com
a sensação de ter um tubarão pendurado no posterior, quando me passou o susto. Herman
que, curvado sobre o remo de direcção, ria às bandeiras despregadas, pôde informar-me
que um atum colossal pespegara de lado uma bicota na minha nudez com os seus setenta
e tanto quilos de carne fria. Posteriormente, quando Herman e depois Torstein estavam de
quarto, o mesmo peixe tentou saltar para bordo com as ondas rebentando de popa, e duas
vezes o enorme animal esteve quase a subir pela ponta dos toros, mas logo descaía de
novo para o mar antes que conseguíssemos segurar aquele corpo escorregadio.
Depois disto, um robusto e desnorteado «bonito» veio directamente parar a bordo, trazido
por um vagalhão, e com ele e mais um atum apanhado na véspera, deliberámos pescar, a
fim de pôr ordem no caos sangrento que fervia em redor de nós. Diz o nosso diário:
«Um tubarão de 1,80 m foi colhido no anzol e depois puxado para bordo. Logo que o anzol
de novo desceu à água, foi engolido por um tubarão de 2,40 m, que igualmente puxámos
para bordo. Lançado o anzol pela terceira vez ao mar, pescámos outro tubarão de 1,80 m e
já o tínhamos puxado para a beira da jangada quando se soltou e se submergiu. Tendo ido
imediatamente, de novo, para a água o anzol, chegou-se um tubarão de 2,40 m que nos
deu que fazer. Já tínhamos a cabeça sobre os toros quando todas as quatro linhas de aço
foram cortadas e o peixe sumiu-se no abismo. Atirado ainda uma vez o anzol à água, foi
arrastado para bordo um tubarão de 2 metros. No momento era perigoso ficar de pé a
pescar, sobre os resvaladiços troncos posteriores, porquanto os três tubarões continuavam
a lançar para o alto as cabeças querendo morder, muito tempo depois que pensávamos que
tinham morrido. Arrastámos, os tubarões pela cauda amontoando-os na coberta da proa, e
logo depois ficou preso no anzol um grande atum, o qual nos deu mais que fazer que
qualquer tubarão, antes de o termos a bordo. Era tão gordo e pesado que nenhum de nós
pôde erguê-lo pela cauda.
O mar continuava cheio de furiosos dorsos de peixes. Foi pescado mais um tubarão, mas,
justamente ao dar entrada a bordo, arrebentou tudo e foi-se. Mas logo conseguimos trazer
para dentro da jangada outro tubarão de 1,80 m, outro de 1,50 m, outro ainda de 1,80 m e
finalmente um de pouco mais de 2 metros».
Em qualquer ponto do convés por onde andássemos, víamos grandes tubarões deitados no
caminho, a dar convulsivamente com o rabo no chão ou vergastando a cabina de bambu
enquanto procuravam atirar bocadas para os lados. Já cansados e exaustos quando
principiámos. a pescar depois das noites tempestuosas, ficámos completamente zonzos
quando, ao aproximar-nos deles, quisemos determinar quais os tubarões que estavam
mortos de todo, quais os que ainda se debatiam em convulsões, e quais os que estavam
bem vivos e de emboscada, com os seus olhos verdes de gato. Depois de termos,
espalhados ao redor de nós por todas as bandas, nove grandes tubarões, estávamos tão
cansados de arrastar linhas pesadas e de pelejar com peixes tão rebeldes, que afinal
desistimos, após cinco horas de labuta.
No dia seguinte, havia menos dourados e atuns mas ainda muitos tubarões. Começámos de
novo a pescá-los e a puxá-los para dentro, mas parámos ao percebermos que todo o
sangue fresco de tubarão que corria para fora da jangada só servia para atrair ainda mais
tubarões. Deitámos ao mar todos os tubarões mortos e lavámos bem o convés." As esteiras
de bambu foram dilaceradas por presas de tubarões e pelos seus ásperos corpos
escamosos; atirámos ao mar as mais ensanguentadas e mais rasgadas e substituímo-las
por esteiras novas, feitas de bambu amarelo, de que tínhamos várias, fortemente
amarradas na coberta de proa.
Quando, naquelas noites, nos íamos deitar, víamos em espírito, escancaradas, mandíbulas
vorazes e sangue de tubarões. E as nossas narinas estavam impregnadas de cheiro de
carne de tubarão. Nós comíamos tubarão; tirando-se o amoníaco das postas do peixe, o
que se conseguia pondo-as na água salgada durante vinte e quatro horas, tinha gosto
parecido com o de uma espécie de bacalhau pequeno que se chama «gado». Mas o bonito
e o atum eram infinitamente melhores.
Numa noite daquelas, pela primeira vez, ouvi um dos companheiros dizer que havia de ser
agradável cada qual poder espreguiçar-se à vontade sobre a relva verde de uma ilha cheia
de coqueiros; folgaria de ver alguma outra coisa que não fosse peixe frio e mar grosso.
O tempo tornara-se inteiramente calmo, de novo, mas nunca mais foi constante e tal que se
pudesse contar com ele como antes se dava. Violentas e inesperadas rajadas de vento
traziam consigo, de vez em quando, fortes pancadas de chuva que bendizíamos, porque
grande parte da nossa provisão de água tinha principiado a estragar-se, apresentando
gosto de malcheirosa água de brejo. Quando a chuva caía com mais força, apanhávamos
água do telhado da cabina e ficávamos nus no convés, para nos dar ao luxo de tirar, com
água doce, o sal entranhado nos nossos corpos.
Os pilotos agitavam-se novamente nos lugares de costume, mas não podíamos dizer se
eram os antigos que haviam voltado depois do banho de sangue, ou se eram novos
perseguidores que tinham aparecido no ardor da batalha.
No dia 21 de Julho, de súbito, o vento cessou novamente. A calmaria era absoluta, e pela
experiência anterior sabíamos o que isto podia significar. Passado algum tempo, depois de
algumas violentas lufadas de Este, Oeste e Sul, o vento declinou e uma brisa soprou do Sul,
onde nuvens pretas e ameaçadoras tornaram a acumular-se no horizonte. Herman estava
fora com o seu anemómetro, medindo já quinze metros e mais por segundo, quando de
repente o saco-cama de Torstein caiu no mar. E o que aconteceu nos poucos segundos
seguintes levou muito menos do que se gasta para narrar.
Herman tentou agarrar o saco que se ia, deu um passo em falso e caiu também na água.
Ouvimos um débil grito pedindo socorro no meio do motim das ondas, e vimos a cabeça de
Herman e um braço a acenar, e ainda um vago objecto de cor verde rodopiando ria água
perto dele. Fazia esforços hercúleos para voltar à jangada através das vagas que o
levantavam, afastando-o do lado esquerdo da embarcação. Torstein, que estava ao remo
de governo à popa, e eu à proa, fomos os primeiros a avistá-lo e ficámos gelados de medo.
«Homem ao mar!» berrámos com quanta força tínhamos, ao mesmo tempo que corríamos a
agarrar o salva-vidas mais próximo. Os outros não tinham ouvido o grito de Herman por
causa do barulho do mar, mas num instante houve uma lufa-lufa no convés. Herman era
excelente nadador, e conquanto percebêssemos imediatamente que a sua vida corria
perigo, tínhamos muita esperança de vê-lo, com umas braçadas, alcançar a beira da
embarcação antes que fosse tarde demais.
Torstein, que se achava mais próximo, agarrou a caixa de bambu em volta da qual estava a
linha que usávamos para o bote, pois encontrava-se ao seu alcance. Foi a única vez em
toda a viagem que se lançou mão daquela linha. Tudo sucedeu em poucos segundos.
Herman estava agora no nível da popa da jangada, mas a poucos metros de distância, e a
sua derradeira esperança era dar umas braçadas até a pá do remo de governo e pendurar-
se nela. Tendo-lhe escapado a ponta dos toros, quis ver se agarrava a pá do remo, mas
esta resvalou-lhe também. E lá estava ele, justamente onde a experiência havia
demonstrado que o que caía não voltava. Enquanto Bengt e eu lançávamos o botezinho à
água, Knut e Erik atiravam o cinto salva-vidas. Ostentando uma linha comprida, esse cinto
estava à mão, pendurado no canto do telhado da cabina. Após alguns malogrados lanços,
Herman achava-se já bem afastado do remo de direcção, nadando desesperadamente para
acompanhar a jangada, enquanto a distância aumentava com cada rajada de vento.
Percebeu que, dali por diante, a brecha tenderia a aumentar, mas pôs uma ligeira
esperança no botezinho que agora estava na água. Se não fosse a linha que funcionava
como uma espécie de freio, talvez teria sido possível dirigir a embarcaçãozinha de borracha
ao encontro do nadador, mas se o bote conseguiria, ou não, voltar à Kon-Tiki, era outra
questão. Contudo, três homens num bote de borracha tinham alguma possibilidade; um
homem no mar é que não tinha nenhuma.
Nisto, eis que vemos Knut erguer-se num ímpeto e mergulhar de cabeça no oceano. Tinha
numa das mãos o cinto salva-vidas e lá se foi nadando com a outra. Cada vez que a cabeça
de Herman aparecia sobre o dorso de uma onda, não se via a de Knut, e cada vez que Knut
aparecia num certo ponto, ali não estava Herman. Mas. de repente, vimos as duas cabeças
ao mesmo tempo; os dois homens nadavam um para o outro e ambos aferravam o cinto
salva-vidas. Knut fez sinal com o braço, e como entrementes o bote de borracha tivesse
sido puxado para bordo, nós quatro agarrámos a linha do cinto salva-vidas e puxámos a
todo o puxar, com os olhos cravados no grande objecto escuro que se podia ver logo atrás
dos dois homens. Esse mesmo misterioso animal que estava na água ia empurrando um
grande triângulo preto-esverdeado acima das cristas das ondas, e quase que deu um
empurrão em Knut quando este se dirigia ao encontro de Herman. Somente este sabia
então que o triângulo não pertencia a um tubarão ou a qualquer outro monstro marinho. Era
a extremidade cheia de ar do saco-cama impermeável de Torstein. Mas o saco não ficou a
flutuar muito tempo depois que puxámos para bordo, sãos e salvos, os dois homens. Seja o
que for que tenha arrastado para o fundo o saco perdeu uma presa bem melhor. - Antes o
saco que eu, disse Torstein e pegou no remo de governo onde o tinha largado.
Mas, naquela noite, não houve outros comentários tão alegres. Muito tempo depois, ainda
sentíamos um frio terrível a correr-nos pelos nervos e ossos. Entretanto, os nossos arrepios
misturavam-se com um cálido sentimento de gratidão por estarmos de novo, todos seis, a
bordo.
Naquele dia tivemos muita coisa agradável para dizer a Knut, a Herman e até a nós
mesmos.
Não houve, porém, muito tempo para reflectir no que já havia sucedido, porque enquanto o
céu se toldava por cima de nossas cabeças, as lufadas de vento recrudesciam, e, antes de
cair a noite, nova tempestade pairava sobre nós. Afinal resolvemos pendurar o cinto salva-
vidas atrás da jangada numa linha comprida, de modo que tivéssemos alguma coisa para a
qual pudéssemos apelar se um de nós tornasse a cair na água durante uma borrasca. Em
seguida ficou totalmente escuro em volta de nós, enquanto a noite caía encobrindo a
jangada e o mar, e atirados para aqui e para ali no meio das trevas, apenas ouvíamos a
ventania esfuziando nos mastros e patarrazes, enquanto as rabanadas investiam com tanta
fúria contra a cabina de bambu, que pensámos que seria cuspida à água. Mas a nossa
choça era coberta de lona e estava solidamente amarrada com cabos. Percebemos que a
Kon-Tiki servia de joguete às vagas espumantes, enquanto os toros se moviam para cima e
para baixo com a oscilação das ondas como as chaves de um instrumento. Espantava-nos
ver que catadupas de água não esguichavam pelas largas fisgas do soalho; apenas
funcionavam como uni fole regular através do qual o ar húmido corria para cima e para
baixo.
Durante cinco dias completos o tempo oscilou entre temporal desfeito e ventania moderada;
o mar cavava-se formando amplos vales cheios de vapor, proveniente de espumantes
ondas azul-cinzentas que pareciam estar com os dorsos achatados sob a pressão do vento.
Então, no quinto dia, os céus rasgaram-se deixando ver uma nesga azul, e o negro manto
tristonho das nuvens cedeu lugar ao firmamento azulado, enquanto a tempestade ia
amainando. Havíamos atravessado o mau tempo com o remo de direcção partido e a vela
rasgada, ao passo que as quilhas corrediças, tendo-se soltado, ficavam batendo nos toros
como alavancas de unha, porque todas as cordas que as tinham presas debaixo da água
estavam completamente gastas. Mas nós e a carga íamos sem novidade.
Depois das duas tempestades, a Kon-Tiki tinha as juntas bem enfraquecidas. O esforço
despendido em galgar ondas a pique havia estirado todas as cordas, e os troncos, no seu
trabalho contínuo, tinham feito as cordas roer a balsa. Agradecemos à Providência termos
seguido a prescrição dos incas e não havermos usado cabos de arame, que teriam, durante
a tempestade, serrado a jangada toda. transformando-a em madeira própria para fazer
fósforos. E se de começo tivéssemos empregado madeira de balsa demasiado seca e apta
para flutuar, há muito que a jangada, saturada de água, teria ido connosco para o fundo. Foi
a seiva existente nos troncos novos que serviu de impregnação, impedindo que a água
filtrasse para o interior através da porosa madeira de balsa. Mas agora as cordas tinham-se
tornado tão frouxas que era perigoso deixar o pé escorregar entre dois toros, pois podia ser
esmagado quando estes violentamente colidiam. À frente e atrás, no espaço do convés
onde não havia bambu, tínhamos de ceder aos joelhos quando estávamos de pé e
conservávamos os pés muito abertos sobre dois toros ao mesmo tempo. Na parte posterior,
os toros eram escorregadios como cascas de banana devido ao alastramento da alga
marinha, e embora tivéssemos feito uma senda regular através da verdura, por entre a qual
geralmente andávamos, e houvéssemos posto no chão uma prancha para que o piloto
ficasse de pé sobre ela, não era fácil aguentar erecto um golpe de mar que investisse com a
jangada. E no lado de bombordo, um dos nove toros gigantescos batia, dia e noite, na
travessa, com uma pancada seca e monótona. Dos cabos que amarravam no tope os dois
mastros inclinados, vinham também novos e temíveis rangidos, pois as carlingas dos
mastros eram independentes uma da outra, uma vez que descansavam sobre dois toros
diferentes.
Todavia, depois da última tempestade, era claro que devíamos boiar e resistir durante a
curta distância que nos separava das ilhas à nossa frente. E eis que surgia agora novo
problema: como iria terminar a viagem?
A Kon-Tiki devia continuar inexoravelmente a sua derrota para Oeste até dar com a proa
num sólido rochedo ou em algum outro objecto fixo que lhe detivesse o movimento. A
viagem só terminaria quando todos os homens houvessem desembarcado, sãos e salvos,
em alguma das numerosas ilhas polinésias que? tínhamos diante de nós.
Depois de termos arrostado a última tempestade, era bastante incerto onde iria acabar a
jangada. Estávamos a igual distância das ilhas Marquesas e do grupo Tuamotu, e numa
posição tal que era perfeitamente possível passarmos entre os dois grupos de ilhas sem,
nem de longe, lobrigar qualquer delas. Do grupo das Marquesas, a ilha mais próxima ficava
a 300 milhas marítimas a Noroeste, e no grupo Tuamotu a mais próxima ficava a 300 milhas
marítimas a Sudoeste, ao passo que corrente e vento eram incertos, com o rumo geral para
Oeste e para a vasta brecha oceânica entre os dois grupos de ilhas.
A ilha que ficava mais próxima do Noroeste não era outra senão Fatuhiva, a ilhota
montanhosa e coberta de matas onde eu havia morado numa cabana construída sobre
estacas na praia, e onde ouvira as vívidas histórias que o velho me contava do herói Tiki.
Se a Kon-Tiki singrasse para aquela mesma praia, encontraria muitos conhecidos, menos,
provavelmente, o velho narrador de histórias. Ele já devia ter partido há muito, na esperança
de encontrar de novo o Tiki verdadeiro. Se a jangada dirigisse o seu curso para aquelas
serranias do grupo das Marquesas, as poucas ilhas desse grupo estavam muito separadas
umas das outras, e ali o mar bramia indómito, quebrando em fragas escarpadas. Nesses
lugares devíamos ficar de alcateia, ao dirigirmos a jangada para a boca dos poucos vales
que sempre iam terminar numa estreita faixa de praia.
Se, pelo contrário, ela tomasse o rumo dos recifes de coral do grupo Tuamotu, lá as
inúmeras ilhas ficavam bem juntas e cobrindo vasto espaço do oceano. Mas esse grupo de
ilhas é também conhecido como o Baixo Arquipélago ou Arquipélago Perigoso, porque é
todo formado de pólipos de coral e consta de traiçoeiros escolhos submersos e atóis
cobertos de palmeiras que se erguem somente a dois ou três metros acima da superfície do
mar. Perigosos recifes anulares ali se levantavam em redor de cada atol, como que a
protegê-lo, constituindo uma ameaça à navegação em toda aquela área. Mas ainda que os
atóis de Tuamotu fossem formados por pólipos de coral, enquanto que as ilhas Marquesas
são restos de vulcões extintos, ambos os grupos são habitados pela mesma raça polinésia,
e as famílias reais de ambos consideram Tiki como seu primeiro antepassado.
Pouco antes de 3 de Julho, quando estávamos ainda a 1.000 milhas marítimas da Polinésia,
a própria Natureza se incumbiu de nos dizer, como o dissera aos viajantes de jangada
vindos do Peru, que realmente havia terra em certo ponto do oceano, à nossa frente.
Enquanto nos achávamos a umas mil milhas da costa do Peru, vimos pequenos bandos de
fragatas. Essas aves desapareceram mais ou menos a 100º Oeste, e depois disto só vimos
procelárias que têm sua morada no mar. Mas no dia 3 de Julho as fragatas reapareceram, a
125o Oeste, e a partir daquela data reduzidos bandos dessas aves podiam ser vistos
frequentemente, já nas alturas, já sobre as cristas das ondas, onde pescavam peixes-
voadores, que saltavam ao ar fugindo dos dourados. Como essas aves não vinham da
América atrás de nós, a sua moradia devia ficar noutra região à nossa frente.
A 16 de Julho a Natureza traiu-se ainda com maior evidência. Nesse dia puxámos para
bordo um tubarão de 2,70 m que expeliu do estômago uma grande astéria não digerida que
decerto trouxera de alguma costa até aquele ponto do oceano.
E, no dia seguinte, tivemos a primeira visita certa, vinda directamente das ilhas da Polinésia.
Foi uma festa a bordo quando dois grandes sulas-patolas foram avistados acima do
horizonte para as bandas do Oeste e logo depois passaram sobre o nosso mastro, em voo
baixo. Com uma envergadura de metro e meio descreveram vários círculos em torno de
nós, depois dobraram as asas e instalaram-se no mar, ao nosso lado. Uns dourados
compareceram imediatamente no local e, curiosos, rebolavam-se em volta dos grandes
pássaro» que nadavam, mas nem estes atacaram aqueles, nem aqueles se meteram com
estes. Foram eles os primeiros mensageiros vivos que nos vieram dar as boas-vindas da
Polinésia. À noite não voltaram, preferindo descansar no mar, e depois da meia-noite ainda
os ouvimos voar em redor do mastro soltando gritos roucos.
Os peixes-voadores que agora vinham para bordo eram de outra espécie e muito maiores;
eu já tinha verificado isto nas minhas excursões piscatórias com os naturais, ao longo da
costa de Fatuhiva. Por três dias e três noites, fomos no rumo de Fatuhiva, mas então
sobreveio forte vento Nordeste que nos pôs na direcção dos atóis de Tuamotu. Os ventos
agora tinham-nos afastado da verdadeira corrente equatorial do Sul, e as correntes
oceânicas já não inspiravam confiança. Um dia estavam num lugar, no dia seguinte haviam
desaparecido. As correntes podiam correr como rios invisíveis ramificando-se por todo o
mar. Se a corrente era rápida, em geral havia mais marulho, e a temperatura da água
ordinariamente baixava um grau. Sabíamos, diariamente, a direcção e a força da corrente
pela diferença entre a posição calculada por Erik e a por ele medida.
À entrada da Polinésia, o vento deu ordem de passar, transferindo-nos para um ramo fraco
da corrente que nos assustou bastante por dirigir a sua marcha para o Antárctico. O vento
não parou completamente (isto nunca se deu em toda a viagem); se era fraco, içávamos
todo o pano que tínhamos, a fim de recolher o pouco vento que havia. Não houve dia em
que recuássemos para a América, e a nossa menor distância em vinte e quatro horas foi de
9 milhas marítimas, ao passo que a nossa derrota média na viagem era em geral de 42
milhas e meia em vinte e quatro horas.
O vento alísio, afinal, não teve ânimo de nos decepcionar já na última hora. Compareceu de
novo no seu posto e imprimiu alguns empurrões na mísera embarcação que se preparava
para fazer a sua entrada numa nova e estranha parte do Mundo.
Em cada dia que passava, maiores bandos de aves marítimas vinham e descreviam
círculos ao redor de nós, sem destino e em todas as direcções. Uma tarde, quando já o sol
ia sumir-se no oceano, percebemos claramente que as aves tinham recebido violento
ímpeto. Voavam, tomando o rumo de Oeste, sem prestar atenção nem a nós nem aos
peixes-voadores. E do alto do mastro podíamos observar que assim como vinham, voavam
todas na mesma direcção. Talvez que lá da sua altura estivessem vendo alguma coisa que
nós não víamos. Talvez voassem por instinto. Em todo caso, voavam com um plano,
dirigindo-se à ilha mais próxima, ao seu lugar de origem.
Torcemos o remo de governo e dirigimos o nosso curso exactamente para o lado em que as
aves tinham desaparecido. Ainda depois de já estar escuro, ouvimos os gritos de aves
retardatárias, voando entre nós e o céu estrelado, e na mesma direcção que estávamos
agora a seguir. Era uma noite maravilhosa; a lua apresentava-se quase cheia, pela terceira
vez, no decurso da viagem da Kon-Tiki.
No dia seguinte, havia ainda mais pássaros por cima de nós, mas não precisávamos
esperar por eles para, à noite, sabermos de novo o caminho. Desta vez descobríramos uma
curiosa nuvem estacionária acima do horizonte. As outras nuvens eram como que
vaporosos flocos de lã que se elevavam do Sul e atravessavam a abóbada celeste com o
vento alísio até desaparecerem sobre o horizonte, a Oeste. Foi assim que eu viera a
conhecer as nuvens que se moviam com o vento alísio sobre Fatuhiva, e assim as tínhamos
visto sobre nós, noite e dia, a bordo da Kon-Tiki. Mas a solitária nuvem no horizonte, para
as bandas do Sudoeste, não se mexia; apenas se levantava como uma coluna de fumo
imóvel enquanto passavam as nuvens que iam com o vento alísio. Cumulunimbus é o nome
latino que se dá a tais nuvens. Os polinésios não sabiam isto, mas sabiam que debaixo de
tais nuvens havia terra. É que, quando o sol tropical torra a areia ardente, cria-se uma
corrente de ar morno que se ergue e faz o seu conteúdo de vapor condensar-se nas
camadas mais frias do ar.
Fomos em direcção à nuvem até desaparecer com o sol. O vento estava firme c, com o
remo de governo bem amarrado, a Kon-Tiki foi seguindo sozinha a sua rota, como tantas
vezes fazia quando o tempo era belo. O que agora competia ao piloto era sentar-se o mais
tempo possível na prancha junto ao tope do mastro, que reluzia com o uso, e prestar
atenção a qualquer indício de terra.
Durante toda aquela noite houve uma ensurdecedora bulha de pássaros por cima da
jangada. E a Lua estava quase cheia.
Na noite de 29 para 30 de Julho, nova e estranha atmosfera pairava sobre a Kon-Tiki. Era
talvez o alarido ensurdecedor das aves marítimas sobre nós, como para mostrar que, breve,
teríamos novidades. A algazarra das aves era vibrante e terrestre, depois do surdo rangido
de cordas sem vida, única coisa que ouvíramos além do estridor do mar, nos três meses
decorridos. E a lua parecia maior e mais redonda do que nunca, a boiar lá no alto, em volta
do nosso posto de observação instalado na ponta do mastro. Na nossa imaginação, a lua
reflectia topos de palmeiras e romances maravilhosos; ela não brilhava, com uma luz tão
amarela, sobre os frios peixes do mar.
Às seis horas, Bengt desceu da ponta do mastro, acordou Herman e deitou-se. Quando
Herman marinhou pelo mastro rangedor e oscilante, o dia começava a raiar. Dez minutos
depois tornava a descer pela escada de corda e puxava-me pela perna.
Tinha o rosto radiante. Pus-me em pé de um salto, no que fui imitado por Bengt que ainda
não pegara no sono. Um atrás do outro, amontoámo-nos no lugar mais alto que pudemos
atingir, no ponto onde os mastros se cruzavam. Muitas aves esvoaçavam em redor de nós,
e um pálido véu roxo-azulado, estendido sobre o firmamento, reflectia-se no mar, como
derradeira lembrança da noite que se despedia. Mas sobre o horizonte, a Leste, começara a
espalhar-se um frouxo clarão avermelhado, que longe, a Sueste, formava aos poucos um
fundo purpurino para uma débil sombra, como se fosse uma linha traçada por lápis azul
quase à superfície do mar.
Terra! Uma ilha! Devorámo-la avidamente com os olhos e acordámos os outros que,
estremunhados, saíram de roldão e olharam para todos os lados como se pensassem que a
proa da jangada já ia abicar numa praia. Barulhentas aves marinhas formavam uma ponte,
através do céu, na direcção da ilha distante, que se recortava vivamente no horizonte, à
medida que o fundo se dilatava e tomava a cor do ouro com a aproximação do sol e a plena
luz do dia.
O nosso primeiro pensamento foi que a ilha não estava onde devia estar. E como ela não
podia ter mudado de lugar, a jangada é que, durante a noite, devia ter sido colhida numa
corrente que se dirigia para o Norte. Bastava lançarmos os olhos sobre o mar para logo
percebermos, pela direcção das ondas, que as trevas nos tinham feito perder a
oportunidade. Na nossa posição actual, o vento não nos permitia colocar a jangada no rumo
da ilha. A região que ficava em redor do arquipélago de Tuomotu estava cheia de fortes
correntes oceânicas locais que se ramificavam em vários sentidos quando se
encaminhavam para terra e muitas delas mudavam de rumo ao encontrarem poderosas
correntes de marés, dirigindo-se para dentro e para fora sobre escolhos e lagoas.
Procurámos virar o remo de governo, embora soubéssemos muito bem que era inútil. Às
seis e meia, o sol emergiu do mar e subiu directamente, como acontece nos trópicos. A ilha
ficava distante algumas milhas marítimas e, de longe, parecia uma faixa de floresta que se
estendia pelo horizonte além. As árvores apinhavam-se por detrás de uma estreita praia
clara, situada tão baixo que, a intervalos regulares, as ondas a ocultavam. De acordo com
as posições de Erik, era Puka-puka, primeiro posto avançado do grupo Tuamotu. As
«Instruções Náuticas para as Ilhas do Pacífico. Ano de 1940», os nossos dois mapas
diferentes e as observações de Erik davam quatro posições diferentes para essas ilhas,
mas como não havia outras ilhas em toda aquela redondeza, não podia restar dúvida
quanto à identidade da que estávamos a avistar.
Não se verificaram manifestações extravagantes a bordo. Depois de se orientar a vela,
formámos um grupo silencioso junto ao tope do mastro ou ficámos de pé no convés, com os
olhos fitos na terra que subitamente surdira no meio do oceano, infindável e avassalador.
Até que enfim tínhamos uma prova visível de que realmente nos havíamos mexido durante
todos aqueles meses; não estivéramos apenas a cambalear de um lado para outro no
centro do mesmo eterno horizonte circular. Tínhamos a impressão de que a ilha era móvel e
que, de repente, havia entrado na esfera do oceano azul e vazio em cujo centro estava a
nossa residência permanente, como se ela viesse a vogar lentamente para o nosso
domínio, em direcção ao horizonte oriental. Todos nos sentimos cheios de uma satisfação
plena e tranquila por havermos, de facto, alcançado a Polinésia, mas a essa satisfação
vinha misturar-se ligeiro e momentâneo desencantamento pela irremediável submissão de
apenas ver a ilha, que permanecia como uma miragem, enquanto continuávamos o nosso
eterno cruzeiro para Oeste.
Pouco depois do nascer do sol, espessa nuvem negra de fumo se ergueu acima das copas"
das árvores, à esquerda do centro da ilha. Acompanhámo-la com os olhos e pensámos que
os habitantes se estavam a levantar e a preparar a sua primeira refeição. Não nos passou
pela ideia então que os postos locais de observação nos tinham visto e que com aquele
fumo nos enviavam sinais, convidando-nos a desembarcar. Por volta das sete horas,
percebemos um fraco cheiro de pau de borao queimado que nos fez cócegas nas narinas,
impregnadas de sal. O cheiro despertou em mim imediatamente fugitivas lembranças de
fogueira na praia de Fatuhiva. Meia hora depois sentimos cheiro de madeira recentemente
cortada e de mata. A ilha agora começara a diminuir e a ficar à nossa retaguarda, de modo
que recebíamos dela ligeiros sopros de aragem. Durante uns quinze minutos, eu e Herman,
agarrados à ponta do mastro, deixámos o cheiro quente de folhagem e verdura coar-se
pelas nossas narinas. Aquilo era a Polinésia, aquele rico cheiro de terra seca após noventa
e três dias de água salgada e no meio das ondas. Bengt já ressonava no seu saco-cama.
Erik e Torstein estavam na cabina deitados de costas, meditando, e Knut corria para dentro
e para fora, aspirava o cheiro de folhagem e escrevia no seu diário.
As oito e meia, Puka-puka afundou-se no mar atrás de nós, mas até às onze horas
pudemos ver, trepados no mastro, uma esgarçada lista azul acima do horizonte, a Leste.
Depois, também isto desapareceu, e uma nuvem alta, elevando-se quase imóvel para o
céu, era o único indício que se tinha da situação de Puka-puka. As aves igualmente
desapareceram. Ficavam de preferência no lado em que o vento soprava para a ilha, e
assim teriam o vento consigo quando, à noite, voltassem para casa, com o papo cheio. Os
dourados também tinham diminuído sensivelmente, e havia outra vez um ou outro piloto
debaixo da jangada.
Naquela noite, Bengt disse que suspirava por uma mesa e uma cadeira, pois estava
cansado de ficar deitado ora de costas, ora de bruços, enquanto lia. Por outro lado, folgava
de que não tivéssemos podido desembarcar, porquanto tinha ainda três livros para ler. A
Torstein assaltou de repente, o desejo de comer uma maçã, e quanto a mim acordei
durante a noite por ter sentido nitidamente um delicioso cheiro de bife com cebolas. Mas
sabem o que era? Apenas uma camisa suja.
Na manhã do dia seguinte, descobrimos duas novas nuvens que se erguiam como o vapor
de duas locomotivas abaixo do horizonte. O mapa esclareceu-nos que os nomes das ilhas
de coral de onde as nuvens subiam eram Fangahina e Angatau. A nuvem que se librava
sobre esta última era a mais favorável para nós enquanto havia vento, por isso rumámos
para lá a nossa derrota, amarrámos solidamente o remo, e gozámos a maravilhosa paz e
liberdade do Pacífico. Tão bela era a vida, num dia bonito passado sob a coberta de bambu
da Kon-Tiki, que fomos a sorver todas as impressões, na certeza de que a viagem se
achava quase no seu termo, fosse qual fosse a sorte que nos aguardava.
Três dias e três noites dirigimos o rumo, sem perder de vista a nuvem que pairava sobre
Angatau; o tempo estava magnífico, somente o remo regulava a nossa marcha, e a corrente
não nos pregava partidas. Na quarta manhã, Torstein rendeu Herman, depois do quarto das
4 às 6, recebendo deste a comunicação de que lhe parecera ter visto, à claridade do luar,
os contornos de uma ilha baixa. Quando, pouco depois, o sol surgiu, Torstein meteu a
cabeça pela porta da cabina e gritou:
- Terra à vista!
Precipitámo-nos para o convés, e o que vimos fez-nos içar todas as nossas bandeiras.
Primeiro a norueguesa à popa, depois a da França na ponta do mastro porque estávamos a
rumar para uma colónia francesa. Daí a pouco toda a colecção de bandeiras da jangada
tremulava aos frescos ventos alísios, a bandeira americana, a inglesa, a peruana e a sueca,
além da bandeira do Clube de Exploradores, de modo que a bordo não havia dúvida de
que, agora, a Kon-Tiki estava empavesada. Desta vez, a posição da ilha era ideal, ficando
justamente na nossa rota e um pouco mais afastada de nós do que estivera Puka-puka
quando, quatro dias antes, surdira ao nascer do sol. Quando o astro se ergueu no céu, por
detrás de nós, pudemos ver um clarão verde que se elevava na direcção do sol brumoso
sobre a ilha. Era o reflexo da tranquila lagoa verde no interior do recife circunvizinho. Alguns
dos atóis baixos lançavam ao alto miragens dessa espécie por vários milhares de metros,
de modo que mostravam a sua posição aos primitivos navegantes muitos dias antes que a
própria ilha se tornasse visível acima do horizonte. Às dez horas, tomámos o remo de
governo; cabia-nos agora decidir para que parte da ilha rumaríamos. Já podíamos distinguir,
separadamente umas das outras, as árvores, brilhando ao sol, que serviam de fundo de
quadro à vasta folhagem.
Sabíamos que entre nós e a ilha havia um perigoso cachopo submerso, que se achava de
emboscada contra o quer que se aproximasse da inocente ilha. Esse escolho ficava logo
abaixo do profundo marulho das ondas da parte Leste, e como as imensa» massas de água
perdiam o equilíbrio por cima do cachopo, oscilavam no ar e submergiam-se, reboando e
fremindo, sobre o recife de coral a pique. Muitas embarcações foram colhidas na temível
sucção contra os recifes submersos do grupo Tuamotu e fizeram-se em pedaços no embate
com o coral.
Do mar nada víamos dessa insidiosa armadilha. íamos navegando no sentido das ondas, e
apenas apercebêramos o dorso curvo e brilhante de onda e mais onda a desaparecer no
rumo da ilha. Tanto o recife quanto toda a sarabanda espumante dos génios do Mal que se
desfazia sobre ele ficavam ocultos por detrás de séries e mais séries de largos dorsos de
ondas espalhadas à nossa frente. Mas ao longo de ambas as extremidades da ilha, onde
víamos o contorno da praia, tanto ao Norte como ao Sul, percebemos que a algumas
centenas de metros de terra o mar era uma branca massa fervente que subia a grande,
altura.
Regulámos a nossa marcha de modo que tocássemos de leve a parte externa do boqueirão
sinistro, à altura da ponta meridional da ilha, e esperávamos, ao chegar lá, poder navegar
ao longo do atol até que ou rodeássemos a ponta do lado de Sotavento ou que, em todo
caso,
tocássemos antes de por lá passarmos, um lugar tão pouco fundo que conseguíssemos
deter a nossa derrota com uma âncora provisória e aguardar a mudança de vento que nos
pusesse a Sotavento da ilha.
Por volta do meio-dia, pudemos ver pelo binóculo que a vegetação da praia consistia em
coqueiros novos e verdes, cujas copas se confundiam com a sebe ondulante formada pela
luxuriante vegetação do primeiro plano. Defronte deles, a praia cintilante estava juncada de
bom número de grandes blocos de coral. O único sinal de vida eram uns pássaros brancos
voando sobre os penachos dos coqueiros.
Às duas horas achávamo-nos tão perto que começámos a navegar ao longo da ilha, quase
costeando o desconcertante recife. À medida que nos avizinhávamos, ouvíamos o quebrar
das vagas, como uma cascata constante, de encontro ao escolho, e em breve elas soavam
como um comboio rápido quê corresse paralelo â nós, a umas centenas de metros do
nosso lado de estibordo. Agora também podíamos ver o alvo borrifo que, de vez em
quando, era atirado ao ar por detrás dos encaracolados dorsos das ondas já dentro da
nossa área, onde o «comboio» roncava sempre.
Dois homens ao mesmo tempo faziam girar o remo de direcção; postavam-se atrás da
cabina de bambu e por isso nada enxergavam à sua frente. Erik, como piloto, estava em pé
sobre o caixote da cozinha e transmitia indicações aos dois homens junto do pesado remo
de governo. O nosso plano era ficarmos o mais próximo possível do perigoso recife, uma
vez que não corrêssemos risco. Da ponta do mastro observávamos, com atenção contínua,
procurando uma brecha ou abertura no recife por onde pudéssemos tentar a passagem da
jangada. A corrente levou-nos agora ao longo da extensão toda do recife, e não mais nos
enganava. As quilhas corrediças permitiam dirigirmos a embarcação num ângulo de cerca
de 20º em relação ao vento, em ambos os lados, e o vento soprava ao longo do recife.
Enquanto Erik dirigia a nossa marcha e descrevia as suas curvas o mais perto possível do
recife, sem se descuidar do perigo da sucção, eu e Herman metemo-nos no botezinho de
borracha, a cuja ponta estava atada uma corda. Quando a jangada se encontrava na parte
interior, seguimos rebocados e chegámos tão perto do recife que pudemos ver, de relance,
a muralha de água verde clara que se despenhava afastando-se de nós, e ainda como, ao
recuarem os vagalhões numa espécie de sucção de si mesmos, o recife se desnudava,
lembrando uma barricada desfeita de minério de ferro oxidado.
Quanto podia alcançar a vista ao longo da costa, não havia brecha nem passagem. Por
isso, Erik orientou a vela apertando as escotas de bombordo e afrouxando as de estibordo,
e os timoneiros acompanharam-no com o remo de governo, de modo que a Kon-Tiki tornou
a virar para fora o bico da proa e escapou da zona de perigo até ao seu próximo impulso
para dentro.
Cada vez que a Kon-Tiki dirigia a dianteira para o recife e outra vez se desviava, nós que
íamos a reboque no botezinho ficávamos com o coração aos pulos, pois aproximávamo-nos
tanto que sentíamos o embate das ondas tornar-se cada vez mais intenso, enquanto elas
mais se enfureciam e mais alto se elevavam. E em cada uma dessas vezes convencíamo-
nos que Erik tinha avançado demais e que já não havia esperança de novamente tirar para
fora a Kon-Tiki, pondo-a a coberto dos vagalhões que nos impeliam para o diabólico recife
vermelho. Erik, porém, sempre se saía galhardamente na sua manobra, e de novo a Kon-
Tiki se safava ilesa para o mar largo, desembaraçando-se das garras da sucção. E íamos,
durante todo aquele tempo, deslizando ao longo da ilha, tão perto que víamos nitidamente a
praia. Contudo a sua celestial formosura era-nos inacessível por causa do abismo
espumante que se interpunha entre ela e nós. .
Às três horas, o coqueiral da praia abriu-se e pela larga brecha vimos uma lagoa verde e
cristalina. Mas o recife circundante lá estava, compacto como nunca, mordiscando
sinistramente a espuma com os seus dentes de um vermelho sanguíneo. Passagem não
havia e o coqueiral tornou a fechar-se enquanto, penosamente, prosseguíamos o nosso
curso, costeando a ilha e com o vento por detrás de nós. Depois o coqueiral tornou-se cada
vez mais ralo, permitindo-nos ver o interior da ilha de coral. Esta consistia numa lindíssima
lagoa de água salgada, qual imenso poço silencioso, rodeado de coqueiros oscilantes e de
claras praias de banho. A sedutora ilha de coqueiros verdes formava um largo e macio anel
de areia em torno da hospitaleira lagoa, e um segundo anel cintava a ilha toda - a espada
de um vermelho ferrugento que defendia os portões do céu.
Passámos o dia inteiro ziguezagueando ao longo da ilha de Angatau, tendo muito próximo
de nós a sua beleza, logo fora da porta da cabina. O sol batia em todas as palmeiras, e no
interior da ilha tudo era paraíso e alegria. Como as nossas manobras se tornaram, aos
poucos, uma questão de rotina, Erik foi buscar a guitarra e, de pé, no convés, tendo na
cabeça um enorme chapeleirão peruano, pôs-se a tocar e a cantar canções sentimentais
dos mares do Sul, enquanto Bengt servia um excelente jantar na beira da jangada. Abrimos
um velho coco do Peru e bebemos em homenagem às frutas frescas que, lá longe, pendiam
nas árvores. Aquele ambiente - a paz que reinava sobre o verde coqueiral profundamente
arraigado no solo e brilhando na nossa direcção, a paz que respiravam aqueles pássaros
brancos adejando sobre a copa dos coqueiros, a paz que se evolava da lagoa espelhenta e
da macia areia da praia, a malignidade do recife vermelho, o canhoncio e o rufo de
tambores no ar - tudo, enfim, fazia extraordinária impressão em nós que vínhamos do mar,
uma impressão que nunca mais se nos varrerá da memória. Não havia dúvida que
havíamos agora alcançado a outra banda; nunca veríamos uma ilha dos mares do Sul mais
genuína do que aquela. Desembarcássemos ou não, o facto é que atingíramos a Polinésia:
a imensidão do mar ficava atrás de nós para todo o sempre.
Aconteceu que aquele dia festivo, à altura de Angatau, era o nonagésimo sétimo que
passávamos a bordo. Por notável coincidência, eram em número de noventa e sete os dias
que, em Nova Iorque, tínhamos calculado como o tempo mínimo absoluto, no qual, em
condições teoricamente ideais, poderíamos chegar às mais próximas ilhas da Polinésia.
Mais ou menos às cinco horas, passámos por duas choças de telhado de palma construídas
entre as árvores da praia. Não se via fumo nem qualquer sinal de vida.
Às cinco e meia, dirigimos de Aovo a proa para o recife; estávamos perto da extremidade
ocidental da ilha e devíamos dar uma derradeira olhadela em redor, na esperança de
encontrarmos uma passagem. O sol estava, então de tal modo baixo, que nos cegava
quando olhávamos para a frente, mas vimos um pequeno arco-íris no céu, onde o mar
rebentava no recife, a umas centenas de metros para lá da última ponta da ilha. Esta ficava
agora à nossa frente como uma silhueta. E na praia, mais para dentro, lobrigámos um
monte de imóveis manchas pretas. De repente, uma delas caminhou vagarosamente para a
água. ao passo que outras se dirigiram, a toda a pressa, para a fímbria do bosque. Era
gente !
Mareámos a jangada ao longo do recife, o mais próximo que nos foi possível aventurar-nos.
O vento cessara de todo, de modo que percebemos que nos achávamos quase a Sotavento
da ilha. Vimos então que lançavam à água uma canoa e duas pessoas pularam para dentro
e começaram a remar no outro lado do recife. Lá, num ponto longínquo, viraram para fora a
vante do bote, que foi atirado ao alto pelas ondas quando atravessou, como uma bala, a
passagem do recife, vindo directo para o nosso lado.
Portanto a abertura do recife era ali; ali estava a nossa única esperança. Agora também
podíamos ver a aldeia colocada entre os fustes dos coqueiros. Mas as sombras já se
estavam a alongar.
Os dois homens na canoa acenaram com a mão. Nós também acenámos ansiosos, e eles
aumentaram a velocidade. Era uma canoa polinésia, e dois vultos trigueiros, vestindo
camisas de malha, remavam, de frente para nós. Surgiriam agora as dificuldades para nos
entendermos. Somente eu, a bordo, me recordava de umas poucas palavras do dialecto
das Marquesas, aprendidas na minha estadia em Fatuhiva, mas o polinésio é uma língua
difícil de reter na memória, por falta de prática nos países setentrionais.
Sentimos, pois, algum alívio quando a canoa se encostou com estrondo ao lado da jangada
e os dois homens saltaram para bordo, porque um deles, todo risonho, estendeu a sua mão
morena, dizendo em inglês:
- Boa noite!
Seu vocabulário inglês não ia além dessas duas palavras, e ainda assim levava vantagem
ao seu modesto amigo que se conservava atrás, também sorridente, e impressionado com
o saber do companheiro.
Erik também cabeceou ufano. O indígena tinha razão, estávamos onde o sol lhe dissera que
estávamos.
Neste momento, boas rajadas de vento vieram do interior da ilha. Uma nuvenzinha de
chuva pairava sobre a lagoa. O vento ameaçava afastar-nos do recife, e percebemos que a
Kon-Tiki não correspondia ao remo de governo num ângulo suficientemente largo para
poder atingir a boca da abertura do recife. Tentámos achar fundo, mas a corda da ancora
não tinha comprimento suficiente. Tivemos então de recorrer aos remos, e com toda a
presteza, antes que o vento ganhasse preponderância. Rapidamente, colhemos a vela e
cada um de nós foi buscar o seu remo grande. Eu quis dar mais um remo a cada um dos
dois nativos, que estavam a deliciar-se com cigarros que lhes oferecêramos.
- Brrrrrrr...!
Não havia dúvida alguma que queria que puséssemos a máquina a funcionar. Pensavam
que estavam no convés de um bote carregado. Conduzimo-los à parte traseira da jangada e
fizemo-los apalpar sob os toros para lhes mostrar que não tínhamos hélice. Ficaram
assombrados, deitaram fora o cigarro e precipitaram-se para o lado da jangada, onde nos
sentámos, quatro homens em cada toro exterior, mergulhando na água os nossos remos.
Ao mesmo tempo, o sol engolfou-se no mar atrás da ponta e as lufadas de vento, vindas do
interior da ilha, refrescaram. Parecia que não nos arredávamos um milímetro do lugar. Os
naturais mostraram-se amedrontados, tornaram a pular para a canoa e desapareceram.
Escurecia, e nós estávamos sós, mais uma. vez, remando desesperadamente para não
sermos de novo arrastados para o mar.
Quando as trevas se estenderam sobre a ilha, quatro canoas saíram gingando de detrás do
recife, e daí a pouco havia uma multidão de polinésios a bordo, todos querendo
cumprimentar-nos e receber cigarros. Com esses homens a bordo, que conheciam bem o
local, não havia perigo; não nos deixariam decerto ir outra vez para o mar largo e não nos
perderiam de vista; de modo que naquela noite estaríamos em terra !
Mais que depressa, amarrámos cordas da popa de todas as canoas à proa da Kon-Tiki, e
as quatro sólidas canoas estenderam-se em forma de leque, como uma parelha de cães, à
frente da jangada. Knut pulou para o botezinho e achou um lugar, como cão de tiro, entre as
canoas, e nós, munidos de remos, postámo-nos nos dois toros exteriores da Kon-Tiki. E
assim se iniciou, pela primeira vez, uma luta contra o vento Leste, que tinha estado tanto
tempo às nossas costas.
Fazia já, então, completamente escuro, até que a lua se mostrou, e corria um vento fresco.
Em terra, os habitantes da aldeia, tendo reunido mato seco, acenderam uma grande
fogueira para nos mostrar a direcção da passagem através do recife. O ribombo que dele
vinha rodeávamos, na escuridão, como incessante e ensurdecedora catadupa, e a princípio
o barulho tornou-se cada vez maior.
Não podíamos ver as canoas que nos puxavam à frente, mas ouvíamos as respectivas
tripulações cantando entusiásticos cantos de guerra em polinésio, com toda a força dos
seus pulmões. Sabíamos que Knut ia com eles porque, toda vez que a música polinésia se
interrompia, ouvíamos a voz solitária do nosso companheiro cantando canções populares
norueguesas, no meio do coro dos polinésios. Para completar o caos, nós a bordo da
jangada encetámos uma cantiga gaiata, e tanto os homens brancos como os morenos
ofegavam junto aos seus remos, ao mesmo tempo que riam e cantavam.
Estávamos de muito bom humor. E não era para menos, pois, após noventa e sete dias de
viagem, chegáramos à Polinésia. Naquela noite ia haver uma festa na aldeia. Os indígenas
ovacionavam e berravam. Realizava-se um desembarque em Angatau apenas uma vez por
ano, quando vinha de Taiti a escuna de copra buscar caroços de coco secos. Assim,
naquela noite, ia realmente haver em terra uma festa em redor do fogo.
Mas o vento enfurecido soprava obstinadamente. Mourejámos até que cada membro do
corpo nos doía. Persistimos. Contudo, a fogueira nem por isso chegava mais perto de nós,
ao passo que o fragor que vinha do recife era o mesmo que antes. Pouco a pouco, as
cantigas foram cessando. Tudo ficou quieto. E a única coisa que os homens podiam fazer
era remar. A fogueira continuava no mesmo ponto, apenas as labaredas bailavam para
cima e para baixo enquanto nós caíamos e nos levantávamos com as ondas. Decorreram
três horas, e eram então nove da noite. íamos paulatinamente perdendo terreno. Estávamos
cansados.
Fizemos compreender aos indígenas que necessitávamos mais auxílio de terra. Explicaram-
nos que havia muita gente em terra, mas que em toda a ilha só dispunham daquelas quatro
canoas.
Nesse momento, apesar da escuridão, Knut apareceu com o botezinho. Tivera uma ideia:
iria, no bote de borracha buscar mais gente. Em caso de necessidade, cinco ou seis
homens podiam apinhar-se na embarcaçãozinha.
Era arriscar muito. Knut não conhecia o lugar; jamais atinaria com a abertura do recife de
coral naquela escuridão absoluta. Então propôs levar consigo o chefe dos nativos, que lhe
podia mostrar o caminho. Tampouco esse plano me inspirava confiança, pois que o
indígena não tinha experiência de manobrar um canhestro botezinho de borracha através
da estreita e perigosa passagem. Todavia, pedi a Knut que fosse buscar o chefe, o qual
estava sentado a remar no escuro à nossa frente, para ouvirmos o que pensava da
situação. Era evidente que já não conseguíamos impedir que a corrente nos levasse para
trás.
Imediatamente um de nós pegou numa lâmpada Morse, subiu ao tope do mastro e fez os
sinais convencionais indicando a Knut que voltasse.
Mas ninguém voltou.
Passaram-se cinco minutos, dez, meia hora. A fogueira minguava cada vez mais; de vez em
quando, até desaparecia totalmente quando resvalávamos para a voragem cavada entre
duas ondas, A arrebentação no recife tornou-se um murmúrio distante. Agora a lua surgia;
víamos o clarão do seu disco por trás dos cimos dos coqueiros, mas o céu parecia
enevoado e quase encoberto.
Percebemos que os naturais diziam qualquer coisa, trocando ideias. De repente, notámos
que uma das canoas tinha soltado o cabo no mar e desaparecido. Os homens das outras
três canoas estavam fatigados e amedrontados e não remavam com a energia anterior. A
Kon-Tiki descaía para o alto mar.
Daí a pouco, as três cordas restantes afrouxaram-se e as três canoas bateram com força no
costado da jangada. Um dos indígenas pulou para bordo e disse tranquilamente com um
movimento de cabeça:
Olhava ansiosamente para a fogueira, que agora desaparecia durante muito tempo de cada
vez, e apenas clareava de quando em quando como uma fagulha. Estávamos a derivar
rapidamente. A arrebentação cessara; somente o mar rugia como de costume, e todas as
cordas da jangada estalavam e rangiam.
Oferecemos mais cigarros aos indígenas que partiam e eu rabisquei à pressa duas linhas
que deviam entregar a Knut caso o encontrassem. Eis o que lhe dizia: «Traga consigo dois
indígenas numa canoa, com o botezinho a reboque. Não volte sozinho no nosso bote de
borracha».
Confiávamos em que os prestativos ilhéus trouxessem Knut numa canoa, dado que
julgassem prudente fazer-se ao mar. Se o considerassem desaconselhável, seria loucura
Knut meter-se no oceano dentro do nosso botezinho, na esperança de alcançar a fugitiva
jangada.
Os homens guardaram o bilhete, saltaram dentro das canoas e desapareceram nas trevas.
A última coisa que ouvimos foi a voz aguda do nosso primeiro amigo que gritou no escuro:
- Boa noite!
Houve um murmúrio de apreciação da parte dos linguistas menos consumados, e depois
tudo ficou em silêncio, tão despido de sons vindos do exterior como quando nos achávamos
a duas mil milhas do continente mais próximo.
Era inútil fazermos força com os remos em alto mar, incessantemente acossados pelo
vento, mas continuámos com os sinais luminosos do tope do mastro. Já não ousávamos
enviar o sinal de «voltar»; apenas mandávamos com regularidade um clarão. A escuridão
era completa. A lua somente se mostrava, de vez em quando através de fisgas entre a
massa das nuvens. Devia ser a nuvem de Angatau agora liberando-se sobre nós.
Às dez horas, perdemos toda a esperança de tornar a ver Knut. Sentámo-nos em silêncio
na borda da jangada e trincámos alguns biscoitos, enquanto nos revezávamos nos sinais
com a luz postada no alto do mastro, que parecia apenas uma sombra nua, sem a grande
vela da Kon-Tiki.
Resolvemos continuar toda a noite a fazer sinais com a lâmpada, enquanto não
soubéssemos onde Knut estava. Não queríamos acreditar que tivesse sido tragado pelas
ondas. Knut sempre havia de desembarcar vivo e em pé, por mais bravo que estivesse o •
mar; estava vivo, sim, estava. O diabo era achar-se entre os polinésios numa longínqua ilha
do Pacífico. Péssima perspectiva. Depois de uma viagem tão longa, a única coisa que
fizéramos tinha sido desembarcar, às pressas, um homem numa remota ilha dos mares do
Sul e partir de novo. Mal tinham os primeiros polinésios chegado a bordo, sorridentes, e
houve mister de saírem depressa para não serem colhidos na impetuosa e irresistível
investida da Kon-Tiki para Oeste. Era uma situação absurda. E, naquela noite, as cordas
rangiam de uma maneira tão horrível I Nenhum de nós queria dormir.
Olhei para o relógio. Dez e meia. Bengt preparava-se para descer da ponta do mastro
balouçante. Ia ser substituído. De repente, tivemos um sobressalto. Ouvimos vozes
claramente no mar, saindo das trevas da noite. E era outra vez conversa de polinésios.
Berrámos, em plena escuridão nocturna, com toda a força de nossos pulmões.
Responderam aos nossos gritos e... no meio das vozes distinguia-se a de Knut! Ficámos
loucos de contentamento; a nossa fadiga desapareceu; a nuvem borrascosa dissipara-se.
Que importância tinha afastarmo-nos de Angatau? Havia outras ilhas no oceano. Agora os
nove toros de balsa, tão desejosos de viajar, podiam vogar onde quisessem, uma vez que
estivéssemos todos seis, de novo. juntos, a bordo.
Três canoas emergiram das trevas, passando por cima das ondas, e Knut foi o primeiro a
pôr os pés dentro dá querida Kon-Tiki, seguido de seis homens morenos. O tempo era
pouco para explicações; tínhamos de dar alguns presentes aos indígenas que deviam logo
empreender a sua arriscada viagem de volta à ilha. Sem ver luz nem terra, sem uma estrela
sequer que os guiasse, tinham de achar a rota, remando contra o vento e o mar, até
avistarem o clarão da fogueira. Recompensámo-los generosamente com mantimentos,
cigarros e outros brindes, e cada um deles, à despedida, nos deu um cordial aperto de mão.
Knut agarrou alguns dos indivíduos mais fortes e por sinais deu-lhe a entender que deviam
ir com ele no botezinho. Então aproximou-se um homem enorme e gordo, de andar
bamboleante, que Knut presumiu ser o chefe porque tinha na cabeça um velho quépi de
uniforme e falava em voz alta e autoritária. Todos abriram caminho para que ele passasse.
Knut explicou em norueguês e depois em inglês que precisava de homens e linha de voltar
à jangada antes que os outros se fossem. A cara do chefe abriu-se num sorriso largo, mas
nada entendeu, e Knut, apesar de seus mais veementes protestos, foi arrastado para a
aldeia pela turba que gritava. Lá o receberam cães e porcos e formosas jovens dos mares
do Sul que transportavam frutas frescas. Era evidente que aquela gente estava resolvida a
tornar a estada de Knut ali a mais amena possível, mar, o nosso companheiro não se
deixou seduzir; o seu pensamento voou tristonho para a jangada que ia a desaparecer rumo
ao Oeste. A intenção dos indígenas do povoado era óbvia. Necessitavam muito da nossa
companhia e sabiam que os navios dos brancos estavam cheios de coisas boas. Se
pudessem reter Knut ali, nós e a extravagante embarcação certamente também viríamos.
Nenhum navio iria abandonar um barco em ilha tão remota como Angatau.
Após algumas curiosas experiências, Knut libertou-se daquela gente e dirigiu-se, a toda a
pressa, para o botezinho, rodeado de admiradores de ambos os sexos. A sua fala e os seus
gestos internacionais não podiam deixar de ser compreendidos; perceberam que Knut devia
e queria voltar, no meio da noite, para a estranha embarcação, a qual estava com tanta
pressa que tinha de seguir imediatamente.
Então os habitantes tentaram um expediente; deram a entender por sinais que estávamos a
desembarcar na outra ponta da ilha, Durante alguns minutos, Knut ficou atarantado, mas
depois ouviram-se gritos do lado da praia, onde as mulheres e crianças estavam a alimentar
a fogueira vacilante. As três canoas tinham regressado e os homens trouxeram o bilhete
para Knut. Este viu-se embaraçado. Por um lado recomendavam-lhe que não se metesse
ao mar só, mas como se os indígenas se negavam terminantemente a acompanhá-lo?
Verificou-se terrível e ruidosa discussão entre os indígenas. Os que tinham estado no mar e
visto a jangada perceberam, claramente, que era quase inútil reter Knut na esperança de
atrair o resto a terra. O fim de tudo aquilo foi que as promessas e ameaças de Knut
induziram as tripulações de três canoas a acompanhá-lo na perseguição da Kon-Tiki. E
fizeram-se ao mar na noite tropical com o botezinho a reboque, enquanto os ilhéus, de pé e
imóveis perto da fogueira a extinguir-se, viam o seu recente amigo louro desaparecer com a
mesma rapidez com que viera.
- Oh, você devia ver as dançarinas de hula!, disse Knut para espicaçá-lo.
Três dias singrámos pelo mar sem ver terra. Estávamos a vogar directamente para os
negregados recifes de Takume e de Raroia que, juntos, bloqueavam 40 a 50 milhas de mar
à nossa frente. Fizemos desesperados esforços para evitá-los, mareando para Norte
desses perigosos escolhos, e tudo parecia correr bem até que, uma noite, o homem que
estava de quarto entrou precipitadamente na cabina e impeliu-nos para fora.
Enquanto o vento Norte soprou, deslizámos morosamente mas com segurança ao longo da
fachada dos recifes de coral que lá estavam de emboscada abaixo do horizonte. Mas eis
que um dia, mais para a tarde, o vento cessou e, ao voltar, soprava para Leste. Segundo a
posição de Erik, estávamos já tão longe que agora tínhamos alguma esperança de evitar a
ponta meridional extrema do recife de Raroia. Tentaríamos contorná-la e pôr-nos a coberto,
antes de irmos dar a outros recifes situados para lá daquele.
Ao pôr-se o sol, fazia cem dias que estávamos no mar. Alta noite acordei sobressaltado e
inquieto. Havia qualquer coisa desusada no movimento das ondas. O balouço da Kon-Tiki
estava ligeiramente diferente do que, em geral, era em tais condições. Havíamo-nos
tornado sensíveis às mudanças no ritmo dos troncos. Pensei logo em sucção de uma costa
que se aproximava, e ora me achava no convés, ora subia ao mastro. Não se via mais que
o mar. Mas não pude conciliar um sono tranquilo. O tempo escoava-se.
Ao amanhecer, pouco antes das seis, Torstein desceu depressa do topo do mastro. Tinha
visto, muito ao longe, uma linha de ilhotas cobertas de coqueiros. Antes de mais nada,
virámos o remo para o Sul o mais possível. O que Torstein vira devia ser as pequenas ilhas
do coral que estavam espalhadas, como pérolas num fio, por detrás do recife de Raroia.
Devíamos ter sido apanhados por uma corrente que ia para o Norte.
As mais próximas achavam-se a quatro ou cinco milhas de distância. Pelo exame a que
havíamos procedido da ponta do mastro, vimos que, embora a nossa proa apontasse para a
última das ilhas da série, a nossa deriva para o lado era tão grande que não estávamos a
avançar na direcção para a qual a proa apontava. íamos a ser impelidos, diagonalmente,
para o cachopo. Com quilhas corrediças firmes ainda teríamos alguma esperança de
afastar-nos dele. Mas os tubarões seguiam-nos de perto, sendo portanto impossível
mergulhar por baixo da jangada e amarrar, com calabres, as quilhas soltas.
íamos ainda a todo o pano na esperança de, mesmo naquele momento, passar de largo. À
proporção que nos aproximávamos, meio de lado, vimos do mastro como toda a enfiada de
ilhotas cobertas de coqueiros estava ligada a um recife de coral, uma parte acima da água,
outra debaixo dela, que fazia de dique onde o mar espumava
e saltava a grande altura. O atol de Raroia é de forma oval, tendo vinte e cinco milhas de
diâmetro, sem contar os vizinhos recifes de Takume. No seu maior comprimento a face
lateral olha o mar para Leste, precisamente a área onde íamos penetrando a trancos e
barrancos. O recife propriamente dito, que corre numa só linha de horizonte a horizonte,
não tem nada adiante de si apenas por algumas centenas de metros, e atrás dele estão
umas ilhotas idílicas como que numa fieira em volta da plácida lagoa interior.
A bordo da Kon-Tiki faziam-se todos os preparativos para o fim da viagem. Tudo que era de
valor foi transportado para o interior da cabina e fortemente amarrado. Documentos e
papéis metidos dentro de sacos impermeáveis, junto com filmes e outras coisas que
sofreriam, se fossem mergulhadas no mar. Cobriu-se de lona toda a cabina de bambu e
atámos fortes cordas em torno dela. Quando demos por perdida toda a esperança, abrimos
a coberta de bambu e cortámos com machetes, as cordas que mantinham em baixo as
quilhas corrediças. Não foi coisa fácil puxar para cima aquelas quilhas, porque estavam
totalmente cobertas de bernaclas. Com as quilhas corrediças em cima, o calado da nossa
embarcação não era maior que o fundo dos toros de madeira e podíamos assim ser
varridos pelas ondas sobre o recife. Sem quilhas corrediças e com a vela arreada, a
jangada ficou completamente oblíqua, estando de todo em todo à mercê do vento e do mar.
Amarrámos o nosso cabo mais comprido à âncora que fabricáramos e ligámo-la firmemente
ao degrau do mastro no lado esquerdo, de maneira que .a Kon-Tiki entraria na ressaca
primeiro pela popa, quando a âncora fosse arremessada à água. A âncora consistia numas
latas de água, vazias, que havíamos atulhado com baterias de rádio usadas e outras coisas
para fazer peso, ressaindo delas sólidos paus de mangueiro, postos de través.
A ordem número um, em primeiro e último lugar, era: permanecer na jangada. Acontecesse
o que acontecesse, devíamos ficar a bordo e deixar que os nove grandes troncos
aguentassem a pressão do recife. Quanto a nós, tínhamos bastante que fazer resistindo à
massa de água. Se saltássemos para o mar, tornar-nos-íamos vítimas, indefesas, da
sucção que ora nos tragaria, ora nos arrojaria sobre os agudos corais. A jangada de
borracha cairia de borco sobre as ondas escarpadas, ou carregada com o nosso peso
despedaçar-se-ia contra o escolho. Mas os toros de madeira seriam lançados a terra mais
cedo ou mais tarde e nós com eles, uma vez que nos agarrássemos bem aos mesmos.
Em seguida, houve ordem para que todos, que nada traziam nos pés havia cem dias, se
calçassem e para que tivessem à mão o cinto salva-vidas. Todavia, os últimos objectos
mencionados não eram de grande valor, porque se um homem caísse no mar, morreria não
afogado mas à força de receber pancadas. Também tivemos tempo de meter nos bolsos os
nossos passaportes e os poucos dólares que nos restavam. Mas o que nos preocupava não
era falta de tempo.
8.45: O vento tomou direcção ainda mais desfavorável para nós; por isso, não temos
nenhuma esperança de passar de largo. Não há nervosismo a bordo, mas preparativos
febris no convés. Vê-se qualquer coisa no recife, diante de nós, parecendo os restos de
uma embarcação de vela, mas pode ser que seja apenas uma pilha de madeira para lá
levada.
9.45: O vento está-nos a conduzir directamente para a penúltima ilha que enxergamos por
detrás do recife. Agora podemos ver, claramente, o coral inteiro; tem a aparência de uma
parede pintada de vermelho e branco, que emerge da água formando uma faixa em frente a
todas as ilhas. Ao longo do recife, a ressaca de alva espuma sobe a elevada altura. Bengt
está a servir-nos uma boa refeição quente, a derradeira antes da grande façanha! O que lá
está junto ao recife é um barco naufragado. Vogamos agora tão perto que podemos
abarcar, com a vista, a espelhenta lagoa atrás do recife, e podemos ver os contornos das
demais ilhas, no outro lado da lagoa.
Depois que isto foi escrito, o ronco sinistro da ressaca avizinhou-se de novo; esse ronco
vinha do interior do recife e enchia o ar como os rufos trémulos de um tambor, anunciando o
último acto da Kon-Tiki.
9.50: Estamos perto agora. Vogamos ao longo do recife. A distância que nos separa não
chega a cem metros. Torstein está a tentar falar com o homem de Rarotonga. Agora é
preciso guardar o diário. Reina o bom humor; o aspecto é tenebroso, mas havemos de
vencer!
Alguns minutos depois, a âncora caiu na água e atingiu o fundo, de modo que a Kon-Tiki
rodou e virou a popa para o lado da rebentação. Segurou-nos assim por alguns minutos
preciosos, enquanto Torstein continuava a martelar desesperadamente na chave. Apanhara
agora Rarotonga. Os vagalhões bramiam no ar e a água subia e se despenhava com fúria.
Todos se atarefavam no convés, e Torstein conseguira transmitir o seu recado. Disse que
íamos na direcção do recife de Raroia. Pediu a Rarotonga que estivessem atentos. Se
guardássemos silêncio por mais de trinta e seis horas, Rarotonga devia comunicar à
embaixada norueguesa em Washington. As últimas palavras de Torstein foram: «Estamos a
menos de cinquenta metros. Já vamos. Adeus». Depois fechou a estação, Knut guardou os
papéis, e ambos se arrastaram para fora com a necessária presteza, a fim de se juntarem a
nós, pois tornara-se evidente que a âncora estava a dar de si.
O mar estava cada vez mais revolto, com profundas voragens entre onda e onda, e
sentíamos o balanço aumentar cada vez mais.
Novamente foi dada a ordem em altos brados: «Ficar na jangada; a carga pouco importa,
firmes!
Estávamos agora tão perto da catadupa interior que já nem ouvíamos o incessante estrondo
que atroava na extensão toda do recife. Ouvíamos apenas um estridor distinto cada vez que
o vagalhão mais próximo quebrava nas rochas.
Todos os homens estavam a postos, aferrando cada um a corda que julgava mais segura.
Somente Erik, no último momento, penetrou na cabina; havia uma parte do programa que
ainda não executara: não encontrara os sapatos!
Ninguém ficou na parte posterior da embarcação, porque ali se daria o primeiro embate do
recife. Tampouco ofereciam segurança os dois firmes estais que corriam do tope do mastro
até à popa, porquanto se o mastro caísse, ficariam pendurados entre o mar e o cachopo.
Herman,
Bengt e Torstein tinham trepado sobre uns caixotes que estavam amarrados em frente à
parede da cabina, e enquanto Herman se firmava nos patarrazes, que partiam do cavalete
do telhado da cabina, os outros dois seguravam-se às cordas da ponta do mastro por meio
dos quais, em outros tempos, a vela era colhida. Eu e Knut escolhemos o estai, que ia da
proa ao alto do mastro, porque se mastro, cabina e tudo mais caísse no mar, pensávamos
que o cabo, vindo de proa, ainda assim continuaria sobre a jangada, achando-nos então,
como nos achávamos, com a frente para as ondas.
Quando percebemos que estávamos em poder das ondas, cortámos a amarra da âncora e
partimos. Uma vaga ergueu-se bem por baixo de nós, e sentimos que a Kon-Tiki se
"suspendia no ar. O grande momento chegara; estávamos a passar em velocidade máxima
por cima do dorso de uma onda, enquanto a nossa desconjuntada, embarcação rangia e
estalava sob os nossos pés. A excitação fez ferver o sangue de cada um. Lembro-me que,
à falta de inspiração melhor, acenei com o braço e berrei «Hurrah», com toda a força de
meus pulmões; isto, sem fazer mal algum, não deixou de incutir uma certa animação. Os
outros pensaram certamente que eu enlouquecera, mas todos se mostraram radiantes e
sorriram entusiasmados. Fomos andando para a frente, tendo as ondas a acossar-nos por
detrás; aquilo era o baptismo de fogo da Kon-Tiki; tudo havia de correr bem.
Mas o nosso entusiasmo foi de curta duração. Nova onda se ergueu por detrás de nós
como se fosse uma cristalina e refulgente parede verde; ao baixarmos, veio rolando no
nosso encalço e, no mesmo instante em que vi aquela coluna líquida por cima de mim, senti
um golpe violento e vi-me submerso num dilúvio de água. Percebi a sucção rodear-me o
corpo todo com tamanha violência que me foi preciso o esforço de cada músculo e só tinha
uma ideia fixa - resistir, resistir sempre! Penso que em situação de tal desespero os braços
serão arrancados antes que o cérebro consinta em soltá-los, sendo evidente, como é, o
resultado. Depois percebi que a formidável massa de água prosseguia na sua marcha,
desprendendo do meu corpo a sua garra infernal. Uma vez varrida toda a montanha líquida,
com ensurdecedor ribombo e estrépito, vi novamente Knut dependurando-se a meu lado e
tão encolhido que parecia uma bola. Vista detrás, a grande onda era quase lisa e cinzenta;
avançando arrojou-se por cima da cumeeira do telhado da cabina que ressaltava da água.
Lá estavam dependurados os outros três companheiros, comprimidos contra o telhado
enquanto a água passava por cima deles. Ainda nos achávamos a bordo.
Então ouvi um grito triunfante de Knut, que estava dependurado na escada de corda:
- A jangada aguenta!
Com o ímpeto de três vagalhões, somente o duplo mastro e a cabina tinham vergado um
pouco. Sentíamos mais uma sensação de triunfo sobre os elementos, e o júbilo da vitória
deu-nos novo vigor.
Em seguida, vi que avançava nova onda, mais sobranceira que as precedentes, e dei outro
berro de advertência aos outros, enquanto que, com a maior presteza, subi o mais que pude
para o estai ao qual me aferrei com força. Depois desapareci, de lado, no meio da parede
verde que desabava sobre nós; os outros, que estavam atrás e mais retirados e me viram
desaparecer primeiro, calcularam a altura da massa de água nuns oito metros, enquanto
que a crista espumante passava a uns cinco metros acima da parte da parede cristalina em
que eu me sumira. Então a grande onda alcançou-os, e todos tivemos um único
pensamento - resistir, resistir e não ceder!
Desta vez devíamos ter atingido o recife. Senti apenas a tensão do estai, que parecia
dobrar-se e afrouxar com intermitências. Mas se os embates vinham de cima ou de baixo
não podia dizê-lo, pendurado onde estava. A submersão não durou mais que segundos,
mas exigiu maior vigor do que o que os nossos corpos em geral oferecem. Há mais energia
no mecanismo humano do que a que existe apenas nos músculos. Resolvi que, se tivesse
de morrer, morreria naquela posição, como um nó no estai. O vagalhão foi rugindo adiante,
e depois que passou, deixou patente um espectáculo contristador. A Kon-Tiki estava
inteiramente mudada, como se a houvesse tangido uma vara mágica; em poucos segundos,
a nossa aprazível moradia achava-se reduzida a um estado miserando.
Um arrepio de medo perpassou pelo meu corpo. Que me valia não ter cedido? Se eu perdia
um só homem que fosse, ao penetrar na área perigosa, tudo estaria arruinado, e no
momento, passada a última refrega, só se via uma figura humana. Naquele instante, a
forma corcovada de Torstein apareceu do lado de fora da jangada. Parecia um macaco
dependurado nos cabos da ponta do mastro e conseguiu alcançar os toros e foi andando,
de rojo, até perto dos destroços que se achavam defronte da cabina. Herman voltou então a
cabeça e, para me estimular, esboçou Um sorriso amarelo, mas não se mexeu. Dei um
berro, na esperança de localizar os outros, e ouvi a voz calma de Bengt gritar que todos os
homens se encontravam a bordo. Deitados, estavam agarrados às cordas por detrás da
emaranhada barreira que o sólido trançado da coberta de bambu havia formado.
Tudo isto se deu no decurso de alguns segundos, enquanto a Kon-Tiki estava a ser
arrastada para fora da zona perigosa pelas águas impetuosas que vinham detrás. Novo
vagalhão veio a rolar sobre ela. Pela última vez, gritei «resistir!» com toda a minha força e
no meio daquele estrondo, e foi tudo quanto eu próprio pude fazer; mantive-me firme,
desaparecendo na massa de água que desabava sobre nós naqueles dois ou três
infindáveis segundos. Aquilo para mim foi suficiente. Vi as extremidades dos toros bater e
chocar-se contra um degrau pontudo do recife de coral sem o transporem. Depois o vórtice
das águas novamente nos fez recuar. Vi também os dois homens estendidos, de través,
sobre o cavalete do telhado da cabina, mas nenhum de nós agora sorria. Por detrás do
caos de bambu ouvi uma voz calma gritar:
Senti-me igualmente desalentado. À medida que a ponta do mastro se afundava cada vez
mais longe, para o lado de estibordo, vime dependurado numa frágil corda fora da jangada.
Veio a onda seguinte. Depois que se foi, eu estava extenuado e o meu único pensamento
era alcançar os toros e postar-me atrás da barricada. Depois que o turbilhão de água se
retirou, vi pela primeira vez, bem a descoberto e atrás de nós, o escarpado recife vermelho,
e avistei Torstein de pé e curvado sobre o rútilos corais vermelhos, segurando-se às pontas
de um monte de cordas do mastro. Knut, também de pé na parte posterior, estava a ponto
de dar um pulo. Gritei que devíamos todos permanecer sobre os toros, e Torstein, que tinha
caído no mar com a pressão da água, tornou a saltar à tona como um gato.
Mais duas ou três ondas rolaram sobre nós com força menor, e o que sucedeu depois não
me lembro, excepto que a água espumava ao entrar e ao sair e que eu mesmo me
afundava cada vez mais na direcção do recife vermelho, sobre o qual íamos a ser içados.
Depois, somente vinham a rodopiar cristas de espuma cheias de borrifos salinos. Logrei
abrir caminho para a jangada, na qual todos nos dirigimos para a extremidade posterior dos
troncos, que mais se elevava no sentido do recife.
No mesmo momento, Knut agachou-se e deu um salto para o recife com o cabo que ficara
livre à popa. Enquanto o turbilhão se desfazia, andou a vau uns vinte e tantos metros,
chegando ileso à ponta do cabo quando a onda seguinte se encaminhou, espumante, na
sua direcção, esmoreceu e se escoou do recife plano como uma corrente caudalosa.
Naquele momento, Erik saiu de rojo da cabina tombada, tendo os sapatos nos pés. Se
todos tivéssemos seguido o seu exemplo, escaparíamos com menos dificuldade. Como a
cabina não fora cuspida ao mar pela violência das ondas, tendo apenas cedido
completamente ao peso da lona, Erik permaneceu calmamente estendido entre a carga,
ouvindo o fragor das águas que desabavam por cima dele, enquanto as abaladas paredes
de bambu se inclinavam cada vez mais. Com a queda do mastro, Bengt sofrera ligeira
contusão, mas conseguiu arrastar-se para debaixo da desmoronada cabina, ficando ao lado
de Erik. Todos nós devíamos ter-nos estendido lá, se tivéssemos antes percebido quão
firmemente as inúmeras amarras e escotas de bambu trançado se aferrariam aos toros
principais com a pressão da água.
Erik achava-se agora em pé e a postos sobre os toros traseiros, e depois que o vagalhão
recuou, também deu um pulo para o recife. Em seguida, foi a vez de Herman e depois a de
Bengt. Cada vez que a jangada recebia novo impulso para o interior da zona do recife, e
quando chegou a minha vez e a de Torstein, já a embarcação se aproximara tanto do
escolho que não havia mais nenhum motivo para abandoná-la. Todos os homens se
aprestaram para os trabalhos de salvamento.
Achávamo-nos, agora, a pouco menos de vinte metros do fatídico degrau que conduzia ao
recife, e era ali e para lá dele que os vagalhões se sucediam encapelados um após outro.
Os pólipos de coral tinham tido o cuidado de fazer o atol tão elevado que somente o cimo
das vagas podia, ao passar, salpicar-nos com uns borrifos de água salgada que, depois, se
entranhavam na piscosa lagoa. Era ali dentro o verdadeiro mundo do coral, onde havia uma
real orgia das mais estranhas formas e cores.
Na água, pouco funda, do interior do recife, vimos qualquer coisa que faiscava ao sol.
Fomos até lá patinhando para apanhá-la è com espanto verificámos que se tratava de latas
vazias. Não era bem isso que esperávamos encontrar, e ainda mais admirados ficámos
quando vimos que se tratava de latas recentemente abertas e nas quais se lia «abacaxi»
nos mesmos caracteres das novas rações de campanha que estávamos a experimentar
para o Departamento de Guerra. Eram realmente duas das nossas latas de abacaxi atiradas
ao mar depois da última refeição, a bordo da Kon-Tiki. Tínhamo-las seguido bem de perto
até ao recife.
Estávamos agora alcandorados com agudos e ásperos blocos de coral e sobre esse fundo
irregular andávamos a vau, com água ora até o tornozelo, ora até a cintura, conforme os
canais existentes no recife. Anémonas e corais davam-lhe a aparência de um jardim
cravado na rocha em que houvesse muito musgo e cactos e plantas fósseis, vermelhas,
verdes, amarelas e brancas. Não havia cor que ali não estivesse representada, ou em
corais ou em algas, ou em conchas e lesmas do mar e em peixes fantásticos que por toda a
parte rabeavam. Nos canais mais profundos, pequenos tubarões de pouco mais de um
metro aproximavam-se sorrateiramente, de nós na água límpida. Bastava-nos, porém, dar
uma palmada na água para fazê-los voltar e conservar-se a distância.
O recife estendia-se como uma parede de fortaleza meio submersa, acima para o Norte e
abaixo para o Sul.
No extremo Sul estava uma ilha comprida, toda coberta de coqueiros. E logo acima de nós,
ao Norte, a uns 500 ou 600 metros mais ou menos, ficava outra ilha de coqueiros, mas
consideravelmente menor. Achava-se no interior do recife, com os cimos das palmeiras
erguendo-se para o céu e com as praias de areia alvíssima estendendo-se até se perderem
na plácida lagoa. A ilha toda parecia um verde açafate de flores, um pedacinho onde se
concentrara o Paraíso.
A meu lado, Herman, muito barbudo, mostrava-se radiante. Não disse uma palavra, apenas
estendeu a mão e riu tranquilamente. A Kon-Tiki permanecia a distância, no recife,
recebendo o esguicho das ondas. Era uma embarcação naufragada, mas era-o com muita
honra. Tudo o que estivera por cima do convés achava-se esfacelado, mas os nove troncos
de macieira de balsa da floresta de Quivedo, no Equador, estavam intactos. Tinham-nos
salvo a vida. A carga que o mar tomara para si fora pouca, e nenhuma da que havíamos
depositado dentro da cabina. Nós é que tínhamos despojado a jangada de tudo quanto
representava valor real e que se achava agora, em segurança, no cume da grande rocha
castigada pelo sol, no interior do recife.
Desde que saltara da jangada, dera por falta de todos os peixes pilotos que cirandavam
defronte da nossa vante. Agora os grandes toros de balsa estavam no recife, metidos na
água quinze centímetros, e lesmas pardas do mar retorciam-se debaixo da proa. Os pilotos
tinham-se ido embora e os dourados também. Apenas alguns peixes desconhecidos,
chatos, com uns desenhos de plumagem de pavão e rabos de forma esquisita, se
rebolavam, curiosos, entre os toros. Tínhamos chegado a um novo mundo.
Johannes havia saído do seu buraco. Com certeza achara ali outro esconderijo. Relanceei
um último olhar pela embarcação naufragada e vi um coqueirinho novo num cesto
amachucado. Fui andando a vau até a ilha com o coco na mão. A certa distância de mim
lobriguei Knut, também satisfeito, dirigindo-se para terra, e transportando sob o braço uma
miniatura da jangada que fizera, com muito trabalho, durante a viagem. Pouco depois
passámos por Bengt. Era um excelente despenseiro. Com um galo na testa e água salgada
a gotejar da barba, vinha curvado, arrastando um caixote que oscilava diante dele cada vez
que, lá fora, os vagalhões enviavam uma corrente para o interior da lagoa. Com orgulho,
levantou a tampa. Era o caixote da cozinha, e dentro dele iam o «Primus» e demais
utensílios em boa ordem.
A viagem estava terminada. E todos vivos, felizmente. Tínhamos encalhado numa ilhota
inabitada dos mares do Sul. E que ilha Torstein chegou, atirou ao chão um saco, deitou-se
ao comprido, e pôs-se a olhar para os coqueiros e para os pássaros brancos, leves como
penugem, que giravam em silêncio pouco acima de nós. Logo depois nos estirávamos todos
seis. Herman sempre lépido, subiu a um coqueiro baixo e atirou ao solo como se fossem
ovos, dez cocos verdes. Cortámo-los no alto como se fossem ovos, tão macios eram, e
entornámos pela garganta abaixo a bebida mais deliciosa e refrescante do Mundo - o leite
doce e frio de um coco novo e sem semente. Lá fora, no recife, ressoava o rufo monótono
dos tambores da guarda aos portões do Paraíso.
- O Purgatório era um pouquinho húmido, disse Bengt, mas o Céu é mais ou menos como
eu o imaginava.
E enquanto, ali deitados, nos estirávamos, lá fora os vagalhões troavam como um comboio,
num vaivém ininterrupto, ao longo do horizonte.
Laivos de Robinson - Medo de que nos socorram - Tudo bem, «Kon-Tiki»! - Mais restos de
naufrágio - Ilhas desabitadas - Luta com enguias marítimas - Os indígenas encontram-nos -
Fantasmas no recife - Um mensageiro é enviado ao chefe - O chefe visita-nos - A Kon-Tiki»
é reconhecida - Maré cheia - Cruzeiro terrestre da nossa embarcação - Somente quatro na
ilha - Os indígenas vêm buscar-nos - Recepção na aldeia - Antepassados da hula» -
Medicina por via aérea - Tornamo-nos pessoas régias - Outro naufrágio - A «Tamara» salva
a «Maoae» - Para Taiti - Encontro no cais - Hospedagem principesca - Seis coroas.
A nossa pequena ilha estava desabitada. Ficámos logo a conhecer cada grupo de
coqueiros e cada praia, pois a ilha não tinha nem duzentos metros de diâmetro. O ponto
mais elevado ficava a pouco mais de um metro e meio acima da lagoa.
Sobre as nossas cabeças, da grimpa dos coqueiros, pendiam grandes cachos de coco
verde, cuja casca grossa isolava do sol tropical o seu conteúdo de leite frio de coco, de
maneira que, nas primeiras semanas, não sentiríamos sede. Havia também cocos maduros,
grande quantidade de bernardos eremitas, e na lagoa toda a casta de peixes. Quanto a isto,
portanto, não tínhamos nenhuma preocupação.
No lado Norte da ilha, encontrámos os restos de uma velha cruz de pau sem pintura, meio
enterrada na areia de coral. Daqui enxergava-se para as bandas do Norte, ao longo do
recife, o barco naufragado que só tínhamos visto mais de perto ao aproximar-nos do lugar
onde encalháramos. Ainda mais para o Norte lobrigámos, numa bruma azulada, as frondes
dos coqueiros de outra ilhota. Bem mais próxima estava a ilha do lado meridional, na qual o
arvoredo era muito cerrado. Tão pouco descobríamos ali qualquer sinal de vida, mas no
momento tínhamos outras coisas em que pensar.
Enquanto falava, tropeçou e entornou meia chaleira de água a ferver nos pés descalços de
Bengt. Estávamos todos poucos firmes no primeiro dia que passávamos em terra, depois de
101 dias a bordo da jangada, e não era raro começarmos de repente, a cambalear por entre
os troncos dos coqueiros porque tínhamos fincado um pé no chão para resistirmos a uma
onda que não vinha.
Quase todo o material radiotelefónico já estava em teria, e, entre as coisas que boiavam no
recife, Bengt achou um caixote sobre o qual pôs as mãos. Deu um pulo para o ar por motivo
de um choque eléctrico; não havia dúvida que o conteúdo pertencia à secção de Rádio. E
enquanto os operadores desatarraxavam, encaixavam e reuniam, nós fomos armar a
barraca.
Quando acordámos, no dia seguinte, ao nascer do sol, a vela estava encurvada e cheia de
água de chuva, pura como cristal. Bengt recolheu-a e depois desceu até a lagoa,
conseguindo trazer para terra alguns peixes interessantes que atraíra a uns canais abertos
na areia.
Nessa noite, Herman sentira dores no pescoço e nas costas, lugares onde se magoara
antes da partida de Lima, e a Erik voltou o seu lumbago que havia desaparecido. De resto,
da nossa excursão pelo recife tínhamo-nos saído bastante bem, apenas com arranhões e
ligeiros ferimentos, excepto Bengt que recebera um golpe na testa com a queda, ficando-lhe
uma leve contusão. Quanto a mim, tinha as pernas e os braços moídos e com equimoses
causadas pela pressão das cordas.
Mas nenhum de nós se achava em tão ruim estado que não lhe apetecesse Um ágil
mergulho na límpida lagoa antes do almoço. Era uma lagoa imensa. Mais para longe, era
azul e encrespada pelo vento alísio, e tão larga que mal podíamos lobrigar os altos de uma
fila de ilhas azuis perdidas na bruma, que serviam de marco à curva do atol, no outro lado.
Aqui, porém, a Sotavento das ilhas, o vento alísio sussurrava brandamente nas frondes
rendadas dos coqueiros, fazendo-as bulir e oscilar, enquanto a lagoa parecia um espelho
imóvel lá em baixo, a reflectir todo o encanto das árvores. A água fortemente salina era tão
pura e clara que corais, de cores alegres e a menos de três metros de profundidade,
pareciam tão próximos da superfície que podíamos cortar os pés neles ao nadar. E na água
havia lindas variedades de peixes coloridos. Era um mundo maravilhoso e divertido. A água
fria e refrescante e o ar agradavelmente quente e seco devido ao sol. Tínhamos porém, de
voltar depressa para terra; Rarotonga irradiaria notícias alarmantes se, até o fim do dia,
nada se transmitisse da jangada.
Bobinas e peças do rádio estavam estendidas ao sol tropical sobre lajes de coral bem
enxutas, e Torstein e Knut aparafusavam e encaixavam. Passou-se o dia todo, e o ambiente
foi-se tornando cada vez mais electrizante. Deixámos de lado todas as outras tarefas e
agrupámo-nos em torno dos encarregados do Rádio esperando ser-lhes úteis de qualquer
maneira. Devíamos estar no ar antes das 10 da noite. Então expiraria o limite de 36 horas, e
o radioamador de Rarotonga faria apelos no sentido de serem trazidos socorros por avião.
Veio o meio-dia, passou-se o meio-dia, o sol pôs-se. Quem dera que o homem de
Rarotonga se contivesse um pouco! Sete horas, oito, nove. A tensão dos ânimos era
insuportável. No transmissor nenhum sinal de vida, mas o receptor, um NC-173, principiou a
animar-se lá num ponto, no fundo da escala, onde ouvimos música muito ao longe. Não
porém no comprimento de onda de amador. Ia-se, contudo, chegando a um resultado
qualquer, talvez animador; seria provavelmente uma bobina húmida que secava na parte
interna por uma das pontas. O transmissor estava ainda completamente inactivo; de todos
os lados, curtos circuitos e faíscas.
As trinta e seis horas em breve estariam no fim. Recordo-me que alguém dizia baixinho
«mais sete minutos», «cinco minutos mais», e depois disso ninguém voltou a olhar o
relógio. O transmissor continuava mudo como sempre, mas o receptor «cuspia» para o
comprimento de onda do lado direito. De súbito, houve uma crepitação na frequência do
homem de Rarotonga, donde inferimos que se achava em activo contacto com a estação
telegráfica de Taiti. Pouco depois, apanhámos o seguinte fragmento de mensagem enviada
de Rarotonga: «...nenhum avião deste lado de Samoa. Tenho a plena certeza...»
Então Torstein transmitiu uma mensagem CQ, isto é, chamou todas as estações do Mundo
que nos pudessem ouvir no nosso comprimento de onda de amador.
Isto valeu alguma coisa. Agora uma voz fraca no ar começou a chamar-nos lentamente.
Chamámos de novo e dissemos que estávamos a ouvir. Então a voz vagarosa disse no ar:
- Meu nome é Paulo. Moro no Colorado. Qual é o seu nome e onde mora?
Paulo não quis acreditar nessa informação. Pensou que era algum radioamador da rua
próxima que queria divertir-se com ele, e não voltou ao ar. Desesperados, arrepelámos os
cabelos. Ali nos achávamos, sentados, à sombra dos coqueiros e debaixo do céu estrelado,
numa ilha deserta, e ninguém queria acreditar no que dizíamos.
Torstein não desanimou; tornou a bater na chave transmitindo incessantemente «tudo bem,
tudo bem, tudo bem». Tínhamos de impedir a qualquer custo que toda aquela aparelhagem
de salvamento atravessasse o Pacífico por nossa causa. Ouvimos então, um tanto
frouxamente, no receptor:
Vieram-nos ímpetos - tão desesperados nos achávamos - de dar um pulo e trepar a uma
daquelas árvores e de uma sacudidela deitar abaixo todos os cocos, e sabe Deus o que não
teríamos feito se tanto Rarotonga como o bom Hal, de repente, não nos tivessem ouvido.
Hal chorou de alegria, disse-nos, ao ouvir novamente LI a B. Toda aquela trapalhada
cessou como por encanto; achávamo-nos outra vez sós e em paz na nossa ilha dos mares
do Sul, e, esfalfados, deitámo-nos nas nossas camas de folhas de coqueiro.
O dia seguinte correu tranquilo, e gozámos a vida à perna solta. Uns tomavam banho,
outros pescavam ou foram dar uma batida rio recife à cata de curiosos animais marítimos,
enquanto que outros mais activos fizeram uma limpeza em regra no acampamento,
tornando aprazível os seus arredores. Num ponto que dava directamente para a Kon-Tiki,
cavámos um buraco na orla das árvores, forrámo-lo com folhas e nele plantámos um belo
coco do Peru. Ao lado, levantámos um montão de corais, bem defronte do lugar onde a
Kon-Tiki dera em seco.
A jangada fora empurrada pela força das águas um pouco mais para o interior, durante a
noite, e estava quase seca dentro de umas poças, e espremida entre um grupo de enormes
blocos de coral que se atravessavam no recife.
Depois de um bom banho de sol na areia quente, Erik e Herman achavam-se de novo em
excelentes condições, e estavam ansiosos por ir, ao Sul, contornando o recife, na
esperança de alcançar a grande ilha que lá ficava. Preveni-os mais contra as enguias do
que contra os tubarões, e cada um meteu no cinto o seu comprido machete. O recife de
coral é o lugar predilecto de temíveis enguias de dentes compridos e venenosos que podem
facilmente decepar a perna de um homem. Enroscam-se para o ataque com rapidez
fulminante e são o terror dos naturais, que não têm medo de nadar perto de um tubarão.
Os dois conseguiram vadear longos trechos do recife para as bandas do Sul, mas num ou
noutro trecho tiveram de pular ou de atravessar a nado. Alcançaram ilesos a grande ilha e
foram a vau para a terra. A ilha, comprida e estreita e coberta de coqueirais, estendia-se
mais para o Sul entre praias banhadas de sol e abrigadas pelo recife.
Continuaram a sua excursão até chegarem à extremidade meridional. Daí o recife, coberto
de branca espuma, estendia-se para o Sul até outras ilhas distantes. Acharam o restos de
um enorme navio que ali dera à praia: tinha quatro mastros e jazia na praia partido em dois
pedaços. Era um velho navio à vela, espanhol, que tinha vindo carregado de barras de
ferro, e essas, todas enferrujadas, estavam dispersas ao longo do recife. Voltaram pelo
outro lado da ilha, mas não viram na areia um vestígio sequer.
No mesmo dia, ia eu a vau para a ilha quando uma coisa, num movimento rapidíssimo, se
agarrou ao meu tornozelo, apertando-o dos dois lados. Era uma siba. Não grande, mas
causava horror a pressão daqueles braços frios no pé e ver-se a gente obrigada a trocar
olhares com aqueles olhinhos perversos, metidos no saco vermeIho-azulado que formava o
corpo. Sacudi com força o pé em todas as direcções, mas a lula, que teria pouco mais de
meio metro de comprimento, não o largava. Fui-me arrastando aos pulos e sacudidelas para
a praia, com o nojento mostrengo pendurado no pé. Só quando cheguei à orla da areia seca
me soltou, metendo-se lentamente na água rasa, com os braços estendidos e os olhos
voltados para a praia, como se mostrasse disposta a novo ataque, caso eu desejasse.
Atirei-lhe uns pedaços de coral e desapareceu.
Eis que certa manhã uns companheiros vieram correndo dizer que tinham visto uma vela
branca na lagoa. Por entre os fustes dos coqueiros, podíamos lobrigar uma diminuta
mancha muito branca, a contrastar com o azul cor de opala da lagoa. Era evidentemente
uma vela próxima da terra, do outro lado. Pudemos ver que estava a fazer um bordo. Pouco
depois apareceu outra.
- ta ora na, responderam em coro, e ura saltou para fora e arrastou a sua canoa atrás de si
enquanto atravessava a vau os baixos arenosos, vindo no nosso rumo.
Os dois tinham roupas de homens brancos, mas corpos de homens morenos. Traziam as
pernas nuas, possuíam boa conformação física e usavam chapéus de palha de fabricação
caseira para se protegerem do sol. Desembarcaram e aproximaram-se de nós meio
vacilantes, mas quando lhes sorrimos e lhes apertámos as mãos, puseram-se risonhos
mostrando filas de dentes alvíssimos que diziam mais que palavras.
Nesta, havia três homens e quando vieram para terra e nos saudaram, pareceu-nos que um
deles conhecia um pouco de francês. Ficámos a saber da existência de uma aldeia nativa
numa das ilhas situadas à beira da lagoa, e dela tinham os polinésios visto a nossa fogueira
várias noites antes. Como só havia uma passagem, através do recife de Raroia, até ao
círculo de ilhas que rodeavam a lagoa, e como essa passagem se estendia para além da
vila, ninguém podia aproximar-se das ilhas que ficavam no interior do recife sem ser visto
pelos habitantes. Por isso, os velhos do lugar tinham chegado à conclusão de que a luz que
viam no recife, a Leste, não podia ser obra de homens, e devia ser algo de sobrenatural.
Isto amortecera neles todo o desejo de atravessar a lagoa e ir ver. Mas eis que parte de um
caixote viera boiando pela lagoa e nele estavam pintados uns sinais. Dois dos nativos, que
tinham estado em Taiti e aprendido alfabeto, decifraram a inscrição e leram Tiki, em
grandes letras negras, na tábua do caixote. Então não houve mais dúvida de que havia
espíritos no recife, porquanto Tiki, todos eles o sabiam, era o fundador da sua raça, morto
havia muito tempo. Mas depois veio a boiar pela lagoa uma porção de coisas, pão enlatado,
cigarros, coco e um caixote contendo um sapato velho. Então compreenderam que tinha
havido um naufrágio no lado Leste do recife, e o chefe mandara duas canoas para procurar
os sobreviventes cujo fogo tinham visto na ilha.
A instâncias dos outros, o homem moreno que falava francês perguntou por que razão a
tábua do caixote que viera pela lagoa trazia a palavra «Tiki». Explicámos que Kon-Tiki
estava escrito em todo o nosso material e que esse era o nome da embarcação na qual
tínhamos vindo.
No dia seguinte, o horizonte enxameava de velas brancas. Parecia que os indígenas tinham
vindo buscar-nos com toda a sua frota.
O comboio fez um bordo no nosso rumo, e quando chegou perto, vimos o nosso bom amigo
Bengt acenando com o chapéu na primeira canoa, cercado de figuras morenas. Disse-nos,
aos berros, que o chefe em pessoa estava com ele, e por isso formámos respeitosamente
na praia enquanto vinham a vau ao nosso encontro.
Bengt apresentou-nos ao chefe com grande cerimónia. O nome do chefe, informou, era
Tepiuraiarii Teriifaatau, mas que entenderia também se lhe chamássemos, simplesmente,
Teka.
O chefe Teka era um polinésio alto e esbelto, de olhos vivos e inteligentes. Importante
personagem, descendente da antiga estirpe real de Taiti, era chefe das ilhas Raroia e
Takume. Em Taiti, havia frequentado a escola, falava francês e sabia ler e escrever. Disse-
me que a capital da Noruega era Cristiânia e perguntou-me se eu conhecia Bing Crosby.
"Acrescentou que apenas três navios estrangeiros tinham aportado em Raroia nos últimos
dez anos, mas que a aldeia era visitada várias vezes no ano pela escuna de copra vinda de
Taiti, trazendo mercadoria e levando caroço de coco. Há semanas que estavam à espera da
escuna, de maneira que chegaria a qualquer momento.
Bengt disse, em resumidas palavras, que em Raroia não havia escola, nem Rádio, nem
homens brancos, mas que os 120 habitantes do lugar tinham feito tudo para estarmos lá à
vontade e que nos haviam preparado uma grande recepção.
O primeiro pedido do chefe foi ver o bote que nos trouxera, vivos, a terra. Vadeámos o
trajecto até a Kon-Tiki, seguidos de uma fila de indígenas. Quando chegámos perto,
estacaram e romperam em exclamações de espanto, falando todos ao mesmo tempo, numa
grazinada. Agora podíamos ver perfeitamente os toros da Kon-Tiki, e um dos indígenas
gritou:
Quando fizemos, a vau, o percurso de regresso à nossa pequena ilha, recebeu o nome de
Fenua Kon-Tiki, ou seja, a ilha de Kon-Tiki. Este era um nome que todos podíamos
pronunciar, mas os nossos amigos morenos suaram tentando pronunciar os nossos curtos
nomes de baptismo, nórdicos. Gostaram muito quando lhes disse que podiam chamar-me
Terai Mateata, porque o grande chefe de Taiti me dera esse nome ao adoptar-me como seu
«filho» a primeira vez que estive por aquelas bandas.
Os indígenas trouxeram das canoas galinhas, ovos e fruta-pão, enquanto outros fisgavam
grandes peixes na lagoa com arpões trifurcados, e foi-nos oferecido um banquete ao ar
livre. Tivemos de narrar todas as nossas aventuras no oceano a bordo do pae-pae, e
quiseram que lhes repetíssemos, várias vezes, o caso do tubarão-gigante. E cada vez que
chegávamos ao ponto da história em que Erik embebera o arpão no crânio do monstro,
rompiam em gritos de entusiasmo. Reconheciam imediatamente cada peixe de que lhes
mostrávamos os desenhos, dizendo prontamente os seus nomes em polinésio. Mas nunca
tinham visto o tubarão-gigante ou o Gempylus, ou sequer ouvido falar neles.
À noite ligámos o Rádio, o que causou imenso prazer a toda a assembleia. Apreciaram
muito música de igreja até que, com espanto nosso, apanhámos da América a verdadeira
música de hula. Então os mais espevitados começaram a saracotear-se com. os braços
curvados sobre a cabeça, e, daí a pouco, o grupo todo movia os quadris dançando a hula-
hula ao compasso da música. Depois reunimo-nos todos em redor de uma fogueira na
praia. Foi uma coisa divertida não só para os naturais mas também para nós.
Naquele dia, o recife atroava mais que de costume; o vento recrudescera, e a rebentação
subia a grande altura por detrás do barco naufragado.
- Hoje, a Tiki virá para dentro, disse o chefe, apontando para os restos da jangada. Vamos
ter praia mar.
Pelas onze horas, a água começou a correr na nossa frente em direcção à lagoa. Esta
principiou a encher-se como uma imensa bacia, e a água elevava-se em redor da ilha. Mais
tarde, iniciou-se, vindo do mar, o verdadeiro afluxo. À proporção que as ondas se
avolumavam, o recife submergia-se abaixo da superfície do mar. As massas de água
rolavam para a frente em toda a extensão da ilha. Arrancavam enormes blocos de coral e
cavavam .grandes bancos de areia que desapareciam como farelo diante do vento,
enquanto que outros se formavam. Bambus, soltos, da embarcação naufragada, passavam
por nós boiando, e a Kon-Tiki começou a mover-se. Tudo que se achava ao longo da praia
teve de ser transportado para o interior da ilha para não ir com a maré. Dentro em pouco,
somente eram visíveis as pedras mais altas do recife, tendo-se sumido codas as praias que
rodeavam a ilha, enquanto a água corria invadindo o mato da nossa ilhota plana. Era coisa
de meter medo. Parecia que o oceano se preparava para nos tragar. A Kon-Tiki vinha
rodando e vogou até se deter junto a outros blocos de coral.
As ondas açoitadas pelo vento vinham quebrar-se na lagoa, e grande parte do nosso
material não cabia nas. canoas estreitas e molhadas. Os indígenas tiveram de voltar
apressadamente à aldeia, e Bengt e Herman foram com eles para ver um menino que
estava lá à morte com um abcesso na cabeça. E nós tínhamos penicilina.
No dia seguinte, estávamos os quatro sós na ilha de Kon-Tiki. O vento Leste soprava com
tanta violência que os indígenas não puderam atravessar a lagoa, pois esta era toda
marchetada de pontudas formações coralinas e de parcéis. A maré, que havia cedido um
pouco, afluiu de novo com ferocidade, formando como que degraus impetuosos.
Pouco a pouco, sulcámos a lagoa, que aqui tinha mais de onze quilómetros de largura.
Soprava uma fresca brisa. Foi com verdadeiro pesar que vimos os coqueiros familiares da
ilha de Kon-Tiki acenar-nos adeus com as suas frondes, ao mesmo tempo que se iam
tornando numa coisa indistinta, na pequena ilha, que já se confundia com as outras ao
longo do recife a Leste. Mas adiante de nós, vinham avultando ilhas maiores. E, numa
delas, vimos um quebra-mar e fumo a sair das choças entre os coqueiros.
A aldeia parecia morta; não se topava viva alma. Que aconteceria? Na praia, por detrás de
um molhe formado por blocos de coral, estavam de pé dois vultos solitários, um magro e
alto, outro robusto e gordo como uma pipa. Ao aportarmos, saudámos os dois. Eram o
chefe Teka e o vice-chefe Tupuhoe. Ganhou-nos logo o coração o sorriso afável e franco de
Tupuhoe. Teka era homem de inteligência lúcida e um diplomata, mas Tupuhoe tinha uma
índole de criança, tanta sinceridade, um sentido de humor e uma força primitiva tão intensa
como raramente se encontram num só indivíduo. Com a sua corpulência e as suas feições
régias realizava exactamente o (que um chefe polinésio devia ser. Tupuhoe cia, dc lacto, o
verdadeiro chefe da ilha, mas Teka havia paulatinamente conquistado a posição suprema
porque subia lalar francês e contar e escrever, de modo que os aldeões não eram
enganados quando a escuna vinha de Taiti para buscar copia.
Teka explicou que tínhamos de marchar juntos até ao templo da aldeia, e depois que todos
haviam chegado a terra, partimos para aquele local em cerimonioso cortejo, precedidos de
Herman com a bandeira a tremular na lança de um arpão, vindo cu depois ladeado dos dois
chefes.
A aldeia ostentava sinais evidentes do seu comércio de copra com Taiti; tanto as tábuas
como o ferro ondulado tinham vindo na escuna. Enquanto algumas choças eram
construídas num pitoresco estilo antiquado, com varas e folhas de palmeira trançadas,
outras eram feitas de um modo tosco com pregos e tábuas como pequenos «bungalows»
tropicais. Uma grande casa de tábuas e que estava solitária entre os coqueiros, era o novo
templo da aldeia; ali deviam ficar os seis brancos. Entrámos, com a bandeira, por uma
portinha dos fundos, e saímos pela frente, postando-nos numa larga série de degraus,
diante da fachada. Defronte de nós, na praça, achava-se toda a gente da aldeia que tinha
podido acorrer ao local andando ou arrastando-se - mulheres e crianças, velhos e moços.
Estavam todos profundamente sérios; até os nossos alegres amigos da ilha de Kon-Tiki
formavam entre os demais e não davam mostras de nos reconhecerem.
Quando aparecemos, parando sobre os degraus, toda aquela gente abriu a boca
simultaneamente e começou a cantar ...a Marselhesa! Teka, que sabia a letra, tirava o
canto que ia bastante bem, apesar de algumas velhas se atrapalharem um pouco nas notas
altas. Tinham-se exercitado bastante para isso. As bandeiras francesa e norueguesa foram
hasteadas em frente aos degraus, e com isto terminou a recepção oficial dada pelo chefe
Teka. Retirou-se então, tranquilamente, para segundo plano, e o robusto Tupuhoe passou
rápido para a frente, tornando-se mestre de cerimónias. A um sinal seu, a assembleia inteira
entoou novo cântico. Desta vez foi melhor, pois a toada era deles e bem assim as palavras,
ditas na sua própria língua, além de que sabiam a hula como ninguém. Tão encantadora era
a melodia na sua tocante simplicidade, que sentimos um arrepio na espinha lembrando-nos
do estrondo dos mares do Sul, tão conhecido nosso. Alguns tiravam o canto e todo o coro
entrava em perfeito ritmo; apesar de haver variações na melodia, as palavras eram as
mesmas:
«Bom dia, Terai Mateata, e os vossos homens, que viestes através do mar num pae-pae até
nós em Raroia; sim, bom dia. Oxalá fiqueis muito tempo entre nós, constando-nos as
vossas aventuras, e contando-vos nós as nossas, de modo a que estejamos sempre juntos,
ainda quando partirdes para uma terra longínqua. Bom dia».
Tivemos de pedir-lhe que repetissem o cântico, e aquela boa gente, sentindo-se menos
constrangida, cantou ainda com mais alma. Em seguida, Tupuhoe solicitou-me que
dissesse algumas palavras ao povo, a respeito do motivo que nos fizera atravessar o mar
num pae-pae; estavam todos esperando por isso. Eu falaria francês e Teka traduziria aos
poucos.
Achava-me diante de um povo sem cultura mas muito inteligente e que contava com a
minha palavra. Disse-lhes que já tinha estado antes com patrícios deles nas ilhas dos mares
do Sul, e que ouvira falar do seu primeiro chefe Tiki, que trouxera os seus antepassados
para as ilhas, vindo de um país misterioso, cujas paragens ninguém mais sabia. Mas numa
terra distante chamada Peru, acrescentei, havia reinado outrora um chefe poderoso cujo
nome era Tiki. O povo chamou-lhe Kon-Tiki ou Sol-Tiki, porque se dizia descendente do Sol.
Tiki e muitos dos seus seguidores tinham por fim desaparecido de seu país em grandes
pae-paes; por isso, pensámos que era o mesmo Tiki que tinha vindo para aquelas ilhas.
Como ninguém quisesse acreditar que um pae-pae podia fazer a viagem através do mar,
havíamos partido de Peru num pae-pae e ali estávamos, por isso era certo que a façanha
podia ser realizada.
Quando o pequeno discurso foi traduzido por Teka, Tupuhoe inflamou-se e pulou para a
frente da assembleia como que tomado de um arroubo. Foi falando na sua língua, atirava os
braços para o alto, apontava para o céu e para nós, e no seu dilúvio verbal repetia
continuamente a palavra Tiki. Falava tão depressa que era impossível seguir o fio do que
dizia, mas a assembleia em peso bebia-lhe as palavras e estava visivelmente electrizada.
Teka, pelo contrário, deu mostras de muito embaraçado quando teve de traduzir.
Tupuhoe dissera que seu pai e seu avô e os pais destes tinham falado de Tiki e haviam dito
que Tiki fora o seu primeiro chefe e que agora se encontrava no Céu. Mas eis que vieram
os brancos e insinuaram que as tradições de seus antepassados eram mentiras. Tiki nunca
existira. No céu não estava, pois lá estava Jeová.
Tiki era um deus pagão e por isso não deviam continuar a crer nele. Mas agora nós seis
tínhamos atravessado o mar num pae-pae. Éramos nós os primeiros brancos que
reconheciam que os seus antepassados haviam falado a verdade. Tiki vivera, tinha sido
real, mas agora estava morto e achava-se no céu.
Apavorado com a ideia de estar a estragar o trabalho dos missionários, dei um passo à
frente para explicar que Tiki tinha existido, isto era absolutamente certo, e que agora estava
morto. Mas se hoje ele estava no céu ou no inferno só Jeová sabia, porque Jeová estava no
Céu ao passo que Tiki havia sido um homem mortal, um grande chefe como Teka e
Tupuhoe, talvez ainda maior.
Três velhos adiantaram-se e quiseram cumprimentar-nos. Não havia dúvida que eram eles
que tinham conservado viva, entre a população, a memória de Tiki, e o chefe disse-nos que
um daqueles velhos sabia uma quantidade enorme de lendas e baladas históricas do tempo
de seus antepassados. Perguntei ao ancião se, entre as suas lembranças, existia alguma
coisa referente à direcção de onde Tiki tinha vindo. Não. Nenhum dos velhos se recordava
de ter ouvido falar nisso. Mas, depois de demorada e cuidadosa reflexão, o mais idoso dos
três disse que Tiki tinha um parente próximo que se chamava Maui, e na balada de Maui
dizia-se que viera das ilhas de Pura, e a palavra pura queria dizer a parte do Céu onde o
Sol nasce. Se Maui tinha vindo de Pura. disse o velho, sem dúvida Tiki viera do mesmo
lugar, e nós seis tínhamos vindo dc Pura no pae-pae. Isto era coisa certa.
Expliquei aos homens morenos que, numa ilha solitária chamada Mangareva, perto da ilha
de Páscoa, a população nunca se utilizara dc canoas, continuando a fazer uso até agora dc
enormes pae-paes, no mar. Isso os velhos, não sabiam, mas sabiam que seus avós
também tinham usado grandes pac-paes, mas estes, pouco a pouco, haviam sido postos de
lado, e agora deles só restava o nome e a tradição. Em época muito afastada, exclamou o
mais idoso, eram conhecidos por rongo-rongo, mas essa palavra não existia mais na língua
indígena. Entretanto, o rongo-rongo é mencionado nas mais antigas lendas.
Este nome era interessante, porquanto Rongo - pronunciado Lobo em certas ilhas - era
como se chamava um dos mais conhecidos heróis lendários dos polinésios. Descreviam-no
até como homem branco e de cabelos louros. Quando o capitão Cook chegou, pela primeira
vez, a Hawai, foi recebido de braços abertos pelos ilhéus, porque pensaram que ele era o
seu parente branco Rongo que, depois de várias gerações, tinha voltado da pátria de seus
antepassados no seu colossal navio de vela. E na ilha de Páscoa a palavra rongo-rongo era
a designação usada para os misteriosos hieróglifos cujo segredo se perdera com os últimos
«orelhas compridas» que sabiam escrever.
Ao passo que os velhos queriam discutir a respeito de Tiki e do rongo-rongo, os moços
preferiam ouvir falar no tubarão-gigante e na viagem através do mar. Mas a comida estava
à espera e Teka cansara-se já de servir de intérprete.
Depois que ficámos a conhecer os 127 habitantes da aldeia, foi posta uma longa mesa para
os dois chefes e para nós seis, e as jovens aldeãs trouxeram pratos deliciosos. Enquanto
algumas arrumavam a mesa, outras penduravam grinaldas de flores em volta de nosso
pescoço, e coroas menores eram colocadas em torno de nossa cabeça. As flores exalavam
um lânguido perfume e eram um refrigério no calor que fazia. E assim teve começo uma
festa de boas-vindas que só terminou quando deixámos a ilhas semanas depois.
Arregalámos os olhos e veio-nos água à boca, pois as mesas estavam cobertas de leitões
assados, galinhas, patos assados, lagostas frescas, peixadas polinésias, fruta-pão, mamão
e leite de coco. E enquanto nos atirávamos àquelas iguarias, a multidão distraía-nos
cantando canções próprias para a dança da hula, enquanto moçoilas dançavam em redor
da mesa.
Os meninos riam e divertiam-se à nossa custa, e não era para menos, pois cada um de nós
parecia mais ridículo que o vizinho, a comer como uns esfaimados, com umas barbas
respeitáveis e com grinaldas de flores na cabeça. Os dois chefes gozavam a vida com igual
desenvoltura.
Depois do repasto, houve dança de hula em grande escala. A aldeia queria fazer uma
exibição dc danças populares locais. Enquanto Teka. Tupuhoe e nós seis nos sentávamos
junto à orquestra, dois tocadores de guitarra adiantaram-se, puseram-se de cócoras e
começaram a tocar, lá a seu modo, genuínas melodias dos mares do Sul. Duas filas de
dançarinos e dançarinas, com saias farfalhantes de folhas de coqueiro em volta dos
quadris, vinham deslizando e saracoteando-se por entre os espectadores que estavam de
cócoras, formando um círculo, e cantavam. Dirigia o canto, com entusiasmo e vivacidade,
uma gorda uahine, a quem os dentes agudos de um tubarão haviam arrebatado um braço.
No começo, os dançarinos mostraram-se um tanto teatrais e pareciam nervosos, mas
quando viram que os homens brancos do pae-pae não desgostavam das danças populares
de seus avós, o baile foi-se tornando cada vez mais animado. Algumas pessoas de mais
idade vieram-se juntar aos primeiros; aquelas tinham um ritmo esplêndido e sabiam danças
que certamente não estavam mais em voga. E enquanto o Sol descambava no Pacífico, as
danças que estavam a ser executadas, sob os coqueiros, iam em entusiasmo crescente,
tornando-se cada vez mais espontâneo o aplauso dos espectadores. Tinham-se esquecido
que nós, que os observávamos, éramos seis estrangeiros; consideravam-nos como seis dos
seus, a distraírem-se com eles.
O repertório era inesgotável; um número fascinante era seguido de outro. Finalmente, vários
moços agacharam-se, em apertado círculo, diante de nós e, a um sinal de Tupuhoe,
principiaram a marcar compasso ritmicamente no solo com as palmas das mãos. Primeiro
devagar, depois mais depressa, tornando-se o ritmo cada vez mais perfeito quando um
tamborileiro, de repente, se associou aos primeiros e os acompanhou, batendo
vertiginosamente com duas baquetas num bloco de madeira oca e muito seca, que emitiam
som forte e agudo. Quando o ritmo atingiu o grau de animação que se desejava, começou o
canto e, de súbito, pulou para dentro do círculo uma dançarina de hula que trazia, em volta
do pescoço, uma grinalda de flores, tendo também flores debaixo das orelhas. Dançava ao
compasso da música e ostentava os pés descalços e dobrados os joelhos, meneando
airosamente os quadris e curvando os braços acima da cabeça em legítimo estilo polinésio.
Dançava magnificamente, e dentro em pouco toda a assembleia marcava compasso com as
mãos. Outra jovem pulou para o círculo e depois ainda uma terceira. Moviam-se com
incrível agilidade em ritmo perfeito, resvalando uma em torno da outra como se fossem
graciosas sombras. O soturno bater das mãos no chão, o canto e o alegre tambor de pau
aumentaram-lhes o entusiasmo, fazendo-as rodopiar numa vertigem, atingindo a dança uma
animação incrível, ao mesmo tempo que os espectadores gritavam e batiam as palmas em
ritmo impecável.
Era essa a vida nos mares do Sul tal como a haviam conhecido os dias de antanho. As
estrelas tremeluziam e os ramos balouçavam-se. A noite corria branda e parecia
interminável, cheia de aromas e de cri-cris de grilos. Supure estava radiante e bateu-me no
ombro.
- Maitai? perguntou,
- Maitai, responderam todos com entusiasmo que, bem se via, não era fingido.
A festa estava de facto muito boa, até mesmo no conceito de Teka; era a primeira vez que
homens brancos tinham presenciado as suas danças em Raroia, explicou. Cada vez mais
depressa, num crescendo constante, iam os rufos dos tambores, o bater das mãos, os
cantos e os bailados. De repente, uma das dançarinas deteve os seus movimentos em
torno do círculo e permaneceu no mesmo lugar, executando uma dança em terrífico
rodopio, com os braços estendidos para Herman. Por detrás da barba, o nosso
companheiro escondia uma risota; não sabia absolutamente como interpretar aquilo.
- Não se faça rogar, cochichei-lhe, você que é tão bom camarada e sabe dançar tão bem!
E com imenso gozo da multidão, Herman pulou para dentro da roda e, meio agachado,
empreendeu os difíceis meneios da hula. O júbilo já não conhecia limites. Pouco depois,
Bengt e Torstein também aderiram à dança, esforçando-se, até o suor lhes escorrer do
rosto, para seguir o rodopio que não cessava nunca, finalmente o tambor sozinho ficou
batendo com uma espécie de longo zumbido, e as três verdadeiras dançarinas de hula
puseram-se a tremer como folhas de faia, deixando-se cair, no final da execução, momento
em que os rufos surdos do tambor emudeceram abruptamente.
O número seguinte do programa foi a dança do pássaro, uma das cerimónias mais antigas
de Raroia. Homens e mulheres, em duas filas, pulavam para a frente numa dança rítmica,
imitando bandos de pássaros conduzidos por um director de bailados. Este tinha o título de
chefe dos pássaros e executava curiosas manobras sem realmente tomar parte na dança.
Acabada esta, Tupuhoe explicou que fora executada em honra da jangada e que agora
seria repetida, porém o regente do bailado ia ser substituído por mim. Como me pareceu
que a principal tarefa do regente consistia em dar berros selvagens e saltar girando sobre
as ancas, sacudindo o traseiro e mexendo com as mãos por cima da cabeça, firmei bem a
minha grinalda de flores e penetrei na arena. Enquanto macaqueava a meu modo a tal
quadrilha, vi o velho Tupuhoe rir tanto que quase caiu do seu banquinho, e a música
afrouxou um pouco porque os cantores e os músicos seguiram o exemplo de Tupuhoe.
Todos agora queriam dançar, jovens e velhos, e logo estavam de novo a postos o
tamborileiro e os que davam palmadas na terra, iniciando o primeiro movimento de uma
fogosa hula-hula. Saltaram as dançarinas para dentro do círculo e puseram-se a bailar com
uma desenvoltura sempre crescente, sendo nós, pouco depois, convidados a tomar parte
no rodopio, enquanto mais gente vinha, a bater com os pés e a piruetar com admirável
presteza.
Mas não havia quem induzisse Erik a mexer-se. As correntes de ar e a humidade a bordo
da jangada tinham feito voltar o seu desaparecido lumbago, e lá estava ele sentado, como
um velho patrão de barco, teso e barbado, tirando baforadas do seu cachimbo. Não se
deixava seduzir pelas dançarinas de hula que procuravam atraí-lo para a arena. Vestia
umas calças largas dc pele de carneiro, que usara nas noites gélidas passadas na corrente
de Humboldt, e sentado ali sob os coqueiros, com a barba crescida, o corpo nu até a cintura
e as bombachas de carneiro, parecia uma imagem viva de Robinson Crusoe. Lindas
mocinhas sucediam-se à sua volta procurando insinuar-se mas em vão. Fumava
sisudamente o seu cachimbo, com a coroa de flores no cabelo intenso.
Então uma matrona bem fornida de carnes e de músculos rijos entrou na arena, executou
com mais ou menos graça alguns passos de hula, e depois marchou deliberadamente para
Erik. Este assustou-se, mas a amazona mostrou-lhe o seu melhor sorriso, agarrou-o
resolutamente pelo braço, arrancando-o do tamborete em que estava sentado. O cómico
par de bombachas de Erik tinha a lã de carneiro para dentro e o carnaz para o lado de fora,
havendo na parte posterior das tais calças um rasgão, de modo que ressaía para fora um
pedaço branco de lã à guisa de coto de rabo, como o de um coelho. Erik acompanhou-a
com relutância e entrou na roda mancando, com o cachimbo numa das mãos e apertando
com a outra o lugar onde lumbago lhe doía. Quando procurava dar o salto do estilo, teve de
largar as calças para amparar a coroa que ameaçava cair, e então, com a coroa de banda,
teve de segurar de novo as calças que estavam a descer, naturalmente, com o seu próprio
peso. Não era menos desopilante o espectáculo que oferecia a robusta dama dançando a
hula com o volume da sua corpulência, de modo que ríamos até chorar pelas barbas
abaixo. Pouco depois, todos os outros que se achavam na roda pararam, e estrepitosas
gargalhadas ressoaram pelo coqueiral enquanto Erik, dançarino de hula, e o peso-pesado
feminino rodopiavam guapamente pela arena. Por fim até os dois tiveram de parar, porque
tanto os músicos como os cantores, não mais aguentando a cena, se torciam de riso. A
festa continuou até ser já dia claro; então concederam-nos licença para uma pequena
pausa, depois de termos novamente cumprimentado cada um dos 127 aldeões. Durante a
nossa permanência na ilha, todas as manhãs e todas as noites apertávamos a mão de cada
um deles. Percorrendo as choças da povoação recolheram seis leitos que foram colocados,
lado a lado, ao longo da parede do templo, e neles dormimos em fila como se anõezinhos
da história de fadas, com grinaldas de flores balsâmicas a coroarem-nos a cabeça.
No dia seguinte, o menino de seis anos que tinha um abcesso na cabeça parecia ter
piorado. A temperatura era elevadíssima e o tumor do tamanho do punho de uma pessoa
adulta, latejava dolorosamente.
Teka declarou que tinham perdido dessa maneira várias crianças e que se não tivéssemos
nenhum jeito de medicar o doentinho, este não teria muitos dias de vida. Trazíamos
connosco alguns frascos de penicilina preparada .em pastilhas, mas não sabíamos a dose
que uma criança podia suportar. Se o menino morresse com o nosso tratamento, isso
podia-nos acarretar consequências bem sérias.
Knut e Torstein instalaram, de novo, o Rádio, suspendendo uma antena entre os coqueiros
mais altos. À noite comunicaram com os nossos invisíveis amigos Hal e Frank,
comodamente sentados nos seus aposentos em Los Angeles. Frank chamou um médico ao
telefone, e com o manipulador Morse demos por sinais todos os sintomas do pequeno
enfermo e uma lista do que trazíamos na nossa farmácia portátil. Frank transmitiu a
resposta do médico, e naquela noite fomos à choupana onde o pequeno Haumata se
agitava no ardor da febre, tendo a metade da aldeia a chorar e a fazer barulho em redor
dele.
A Herman e Knut coube o papel de médicos, enquanto os outros tinham bastante que fazer
para conservar fora da cabana os aldeões. A mãe fez-se histérica quando chegámos com
uma faca afiada e pedimos água a ferver. Rapou-se o cabelo do doentinho e o abcesso foi
aberto. O pus esguichou quase até o teto, e vários nativos, numa fúria, quiseram forçar a
entrada, tendo de ser postos para fora. Não foi coisa fácil. Esvurmado o abcesso e
convenientemente esterilizado, a cabeça toda foi enfaixada e começámos a cura com a
penicilina. Durante dois dias e duas noites fazia-se o tratamento do menino de quatro em
quatro horas, enquanto a febre ia no auge e o abcesso era conservado aberto. E cada noite
consultava-se o médico de Los Angeles. Então a temperatura do menino baixou de repente,
o pus foi substituído por plasma que se foi deixando cicatrizar, e o menino estava todo
satisfeito, querendo ver ilustrações do estranho mundo do homem branco onde havia
automóveis e vacas e casas com vários andares.
Uma semana depois, Haumata brincava na praia com as outras crianças, tendo a cabeça
envolvida numa grande atadura, que pouco depois teve licença de tirar.
Tendo-nos saído bem este caso, não tivemos mãos a medir com as doenças que surgiam
na aldeia. Por toda a parte havia dores de dentes e embaraços gástricos, e tanto moços
como velhos tinham o seu furúnculo em algum lugar. Mandávamos os pacientes ao Dr. Knut
e ao Dr. Herman, que receitavam dietas e esvaziaram a nossa caixa de remédios, tantas
pílulas e unguentos dela saíram. Alguns ficaram curados e ninguém piorou, e quando a
farmácia ficou inteiramente vazia, fizemos papa de coco e de farinha de aveia, que se
revelou um remédio de primeira ordem para mulheres histéricas.
Não havia muitos dias que estávamos no meio dos nossos admiradores morenos, quando
os festejos culminaram numa nova cerimónia. íamos ser adoptados como cidadãos de
Raroia e receber nomes polinésicos. Eu mesmo não me chamaria mais Terai Mateata;
podia chamar-me assim em Taiti, mas não ali, entre eles.
Seis tamboretes foram colocados para nós, no centro da praça, e a vila toda saiu cedo para
arranjar bons lugares na roda que se ia formar. Teka sentou-se solenemente no meio deles;
era chefe, mas não quando se tratava de antigas cerimónias locais. Então Tupuhoe
assumiu a presidência.
Depois disse-nos, tendo Teka como intérprete, que Tikaroa era o nome do primeiro rei que
se estabelecera na ilha, e que havia reinado nesse mesmo atol, de Norte a Sul e de Leste a
Oeste, até ao Céu acima das cabeças dos homens.
Enquanto todo o coro cantava a velha balada do rei Tikaroa, Tupuhoe pôs a sua mão
enorme sobre o meu peito e, voltando-se para a assistência, proclamou que me nomeava
Varoa Tikaroa, isto é, Espírito de Tikaroa.
Acabado o canto, foi a vez de Herman e de Bengt. Colocando a grande mão morena sobre
o peito de um e depois sobre o do outro, deu-lhes os nomes, respectivamente, de Tupuhoe-
Itetahua e Topakino. Estes eram os nomes de dois antigos heróis que haviam lutado com
um monstro marinho, matando-o à entrada do recife de Raroia.
O tamborileiro executou alguns rufos enérgicos, e dois homens robustos pularam para a
frente com tangas cheias de nós e comprida lança em cada mão. Iniciaram uma marcha de
passo rápido, erguendo os joelhos à altura do peito, apontando a lança para o alto e virando
a cabeça de um lado para outro. A novo toque do tambor deram um salto para o ar e, em
ritmo perfeito, começaram uma batalha ritual no mais puro estilo de ballet. Foi tudo
executado com a maior rapidez, representando o combate dos heróis com o monstro
marinho. Depois veio o baptismo de Torstein, acompanhado da mesma cerimónia e canto;
foi chamado Maroake, do nome de um rei antigo da actual povoação, e Erik e Knut
receberam os nomes de Tane-Matarau e Tefaunui, de dois navegadores e heróis do
passado. A longa e monótona recitação que acompanhava a imposição de nomes era feita
com grande velocidade e num jorro contínuo de palavras, cuja incrível rapidez tinha o intuito
não só de impressionar mas de divertir.
Estava terminada a cerimónia. Havia outra vez chefes brancos e barbados entre o povo
polinésico de Raroia. Duas filas de dançarinos e dançarinas adiantaram-se, com saias de
palha trançada, tendo na cabeça, postas de banda, coroas feitas de esparto. À medida que
dançavam, aproximavam-se de nós, transferindo as coroas das próprias cabeças para as
nossas. Em redor das nossas cinturas, puseram barulhentas saias de palha, e as
festividades continuaram.
Em Raroia, as festas continuaram. Uma noite ouviram-se gritos estranhos partidos do mar,
e os vigias desceram do alto dos coqueiros e informaram que havia uma embarcação
parada à entrada da lagoa. Atravessámos correndo o coqueiral rumo à praia, do lado de
Sotavento. Aí olhámos, pelo mar, para a direcção oposta àquela de que tínhamos vindo. A
rebentação era muito menor dessa banda que ficava ao abrigo de todo o atol e do recife.
Logo fora da entrada da lagoa enxergámos as luzes de uma embarcação. Como era
fartamente iluminada, vimos os contornos de uma escuna bem larga, de dois mastros. Seria
o navio do governador que vinha buscar-nos? Por que não entrava?
Os indígenas estavam visivelmente aflitos. Agora nós também víamos a causa. A escuna
levava grande inclinação, ameaçando virar. Encalhara num invisível recife de coral sob a
superfície.
- Quel bateau?
A Maoae era a escuna que fazia o percurso entre as ilhas. Estava a caminho de Raroia para
buscar copra. O capitão e a tripulação eram polinésios e conheciam os recifes da entrada.
Mas, no escuro. a corrente revelara-se traiçoeira. Por felicidade, a embarcação achava-se a
Sotavento da ilha e o tempo estava calmo, porém a corrente fora da lagoa era de qualquer
maneira bastante perigosa. A inclinação da Maoae acentuava-se cada vez mais, e a
tripulação dirigiu-se ao bote. Amarraram fortes cabos aos topos dos mastros. Esses cabos
foram depois presos em volta de troncos de coqueiros para impedir que a escuna se
virasse. A tripulação, munida de outros cabos, postou-se próximo à abertura do recife, no
seu bote, com a esperança de desencalhar a Maoae quando a corrente da maré se
escoasse da lagoa. A população da aldeia lançou à água todas as suas canoas e começou
a pôr a salvo a carga. Havia a bordo noventa toneladas de copra valiosa. Sacos e mais
sacos foram transportados da escuna oscilante para terra firme.
Com a maré alta, a Maoae estava ainda varada, rolando e batendo contra os corais, até que
principiou a meter água. Quando o dia raiou, achava-se no recife, em posição pior do que
antes. A tripulação nada podia fazer. Era inútil tentar puxar do recife as 150 toneladas da
escuna com o seu bote e as canoas. Se continuasse a bater onde se achava, acabaria
espatifando-se, e se o tempo mudasse, seria levantada pela sucção, sofrendo perda total na
ressaca que castigava o atol.
A Maoae não tinha Rádio, mas nós tínhamos. Ao mesmo tempo, era impossível obter de
Taiti uma embarcação de socorro antes que a Maoae tivesse tempo suficiente para se livrar
do naufrágio. Mas, pela segunda vez naquele mês, foi arrebatada ao recife de Raroia a sua
presa.
Cerca das doze horas do mesmo dia, a escuna Tâmara surgiu no horizonte para o lado de
Oeste. Tinha sido enviada para nos receber em Raroia, e não foi pequeno o espanto de sua
tripulação ao ver, em vez de uma jangada, os dois mastros de uma grande escuna
debatendo-se desesperadamente no recife.
Na maré alta, a Maoae safou-se do recife, e a Tâmara rebocou-a para o largo. Agora,
porém, a água entrava a frouxo pelo casco da Maoae, tendo de. ser puxada, a toda a
pressa, até os baixios da lagoa. Três dias permaneceu a Maoae à altura da aldeia quase a
soçobrar, com todas as bombas trabalhando dia e noite. Os melhores mergulhadores, entre
os nossos amigos da ilha, mergulharam munidos de chapas de chumbo e de pregos e
taparam os principais rombos, de modo que a Maoae pôde ser escoltada pela Tâmara até o
estaleiro de Taiti, com as bombas a funcionar.
Quando a Maoae ficou em condições de ser comboiada, Ahnne manobrou a Tâmara entre
os baixios de coral nas lagoas e ao longo da ilha Kon-Tiki. A jangada foi posta a reboque, e
então o comandante dirigiu a sua rota de regresso à abertura, com a Kon-Tiki a reboque e a
Maoae atrás e tão perto que a tripulação podia ser retirada da mesma se, no mar, os
rombos oferecessem perigo.
Muito triste foi o nosso adeus a Raroia. Todos quantos podiam caminhar ou arrastar-se
estavam no molhe, tocando e cantando as nossas canções favoritas enquanto o bote do
navio nos levava para a Tâmara.
No centro, destacava-se o espadaúdo Tupuhoe, segurando pela mão o pequeno Haumata.
O pequeno chorava, e pelas faces do poderoso chefe as lágrimas também corriam. No
quebrantar não havia ninguém de olhos enxutos, mas continuaram a cantar e a tocar
incessantemente, até muito depois que a rebentação do recife abafou todos os demais sons
em nossos ouvidos.
Aquelas pessoas sinceras e fiéis que estavam, em pé, sobre o molhe, cantando, perdiam
seis amigos. Nós silenciosos, de pé e encostados ao parapeito da Tâmara, até os coqueiros
encobrirem o molhe e desaparecerem eles próprios no mar, perdíamos 127. Ainda nos
soava aos ouvidos da alma a música estranha:
Quatro dias depois, Taiti surdiu do oceano. Não como um fio de pérolas com frondes de
coqueiros, mas como denteadas montanhas azuis arremessando-se ao céu, com farrapos
de nuvens que pareciam festões a engrinaldar os picos.
Enquanto pouco a pouco nos aproximávamos, as montanhas azuis revelavam aos nossos
olhos umas encostas verdes. Com o verde a sobrepor-se ao verde, a luxuriante vegetação
do Sul ondulava, estendendo-se sobre morros e fragas de um vermelho ferrugento, até se
abismarem em profundos barrancos e vales que pareciam correr para o oceano. E, quando
a costa ficou mais próxima de nós, vimos esguios coqueiros muito juntos em toda a
extensão dos vales e ao longo de toda a costa por trás de uma praia maravilhosa. Taiti foi
constituída por antigos vulcões. Agora estão extintos, e os pólipos de coral estenderam o
seu recife protector em volta da ilha para que o mar não a carcomesse.
Uma manhã, bem cedo, metemos a dianteira da escuna por uma abertura no recife e
entrámos no porto de Papeete. Diante de nós, estavam agulhas de torres de igreja e
telhados vermelhos meio escondidos pela folhagem de árvores gigantescas e de grimpas
de coqueiros. Papeete é a capital de Taiti, a única cidade da Oceânia francesa. É uma
cidade de diversões, sede do Governo e centro de todo o tráfico do Pacífico oriental.
Quando entrámos no porto, a população de Taiti esperava-nos numa pinha tão densa de
gente que parecia uma garrida parede humana. Em Taiti, as notícias espalham-se como o
vento, e o pae-pae que tinha vindo da América era uma coisa que todos queriam ver.
À Kon-Tiki coube o lugar de honra ao longo do passeio da praia; o prefeito de Papeete deu-
nos as boas-vindas, e uma menina polinésia brindou-nos com uma enorme roda de flores
silvestres de Taiti, em nome da sociedade polinésia. Em seguida, algumas jovens
adiantaram-se e cingiram-nos o pescoço com grinaldas brancas e flores odoríferas, em sinal
da boa acolhida que nos fazia Taiti, a pérola dos mares do Sul.
Houve recepção no palácio do Governo e uma festa na Prefeitura, tendo nós recebido
inúmeros convites de todos os recantos da hospitaleira ilha.
Como outrora, o chefe Teriieroo deu uma grande festa em sua casa, no vale Papeno, que
eu tão bem conhecia, e como Raroia não era Taiti, houve nova cerimónia durante a qual
foram outorgados outros nomes àqueles que ainda não tinham recebido nenhum.
Veio então uma mensagem da Noruega comunicando-nos que Lars Christensen tinha dado
ordem ao navio Thor I para ir, da Samoa a Taiti, buscar a expedição e conduzi-la à América.
Uma manhã, bem cedo, o grande vapor norueguês entrou no porto de Papeete, e a Kon-Tiki
foi rebocada, por uma embarcação naval francesa, para o lado da sua gigantesca patrícia
que, estendendo para fora um braço colossal de ferro, ergueu a sua pequena companheira
até e convés. Fortes apitos da sirene ecoaram pela ilha coberta de coqueiros. Gente branca
e morena aglomerava-se no cais de Papeete, penetrando de roldão pelo navio dentro com
dádivas de despedida e coroas de flores. Nós estávamos de pé, junto ao parapeito,
esticando o pescoço como girafas para livrar os nossos queixos da pilha sempre crescente
de flores.
- Se desejam voltar a Taiti, gritou o chefe Teriieroo, quando o apito ressoou sobre a ilha
pela derradeira vez, devem atirar uma coroa para dentro da lagoa, quando o barco partirl
Soltaram os cabos, as máquinas roncaram e com o rodar da hélice a água fez-se verde
quando, deslizando de lado, nos distanciámos do cais.
Dentro em pouco, os telhados vermelhos desapareciam por trás dos coqueiros e estes iam-
se perdendo na voragem azul das montanhas que se engolfavam como sombras no
Pacífico. As ondas quebravam-se no oceano. Já não nos era dado, abaixando-nos um
pouco, atingi-las. Nuvens brancas formadas pelos ventos alísios corriam pelo céu. Não
viajaríamos mais da maneira antiga. Agora podíamos desafiar a Natureza. Viajávamos em
direcção ao século que se achava distante, muito distante.
Mas nós no convés, de pé, ao lado dos grandes toros de balsa, estávamos todos vivos. E
na lagoa de Taiti seis coroas brancas boiavam solitárias, para um lado e para outro, ao
sabor das maretas da praia.
FIM
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