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ACESSIBILIDADE NOS SÍTIOS BRASILEIROS

DE PRESERVAÇÃO HISTÓRICA:
DESAFIO A SER VENCIDO.

Melissa M. Gerente, Arqtª; Vera Helena Moro Bins Ely, Ph.D.


Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Centro Tecnológico - Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário - Caixa Postal 476
88040-900 - Florianópolis / Santa Catarina
Email: melissagerente@terra.com.br

Palavras-chave: acessibilidade, sítios históricos, desafio.

Neste trabalho pretende-se explanar sobre o desafio de se prover acessibilidade às pessoas com necessidades
especiais nos sítios históricos do Brasil e como a carência de pesquisas sobre o assunto vêm refletindo na
impraticabilidade do exercício da cidadania nestes locais. Através da revisão bibliográfica de dois temas tão
divergentes, a acessibilidade e os bens tombados, será apresentado um panorama geral no âmbito nacional,
incluindo a análise de dispositivos legais. O direcionamento da questão para o campo do desenho universal
será caracterizado como o primeiro passo para a promoção da acessibilidade, assim como a discussão sobre
como outros países vem lidando com este desafio será um rico embasamento para novas propostas. Almeja-se,
portanto, a inclusão da diversidade humana a partir da possibilidade do usufruto do patrimônio histórico
brasileiro pelas pessoas com necessidades especiais.

Keywords: accessibility, historic sites, challenge.

This work aims to discuss about the challenge of providing accessibility to the people with special needs in the
historic sites of Brazil and how the lack of research on the subject comes reflecting in the impracticability of
the exercise of the citizenship in these places. Through the bibliographical revision of two so divergent
subjects, the disability and the historic properties, will be presented a general panoram of these in the national
scope, including the analysis of the legal devices. The aiming of the question for the field of the universal
design will be characterized as the first step for the promotion of the accessibility, as well as the discuss about
how the others countries come dealing with this challenge will be a rich basement for new proposals. It is
intended, therefore, the inclusion of the human diversity from the possibility of the fruition of the brazilian
heritage for the people with special needs.

1. INTRODUÇÃO funcionamento humano no meio ambiente (OSTROFF,


2001). Dischinger e Bins Ely (1999) definem ainda
Embora existam hoje inúmeros dispositivos legais que melhor, afirmando que “acessibilidade para portadores
garantem o direito à cidadania das minorias, entre elas de deficiência significa poder realizar ações desejadas,
as pessoas com necessidades especiais, o seu exercício maximizando competências e habilidades, diminuindo
ainda está longe de ser inteiramente efetivado. Entende- as dificuldades e barreiras encontradas, permitindo
se por pessoas com necessidades especiais não só participação, igualdade e mais independência para uma
aquelas que apresentam deficiências permanentes do vida normal”. Pode-se dizer que produtos e ambientes
tipo físico-motoras, sensoriais, cognitivas ou múltiplas, acessíveis são aqueles que realçam as capacidades das
mas também aquelas que possuem alguma pessoas ao invés de destacar suas limitações. Quanto
incapacidade temporária, como mulheres grávidas ou mais acessíveis forem, mais incluirão as pessoas com
com carrinhos de bebê, indivíduos com membros necessidades especiais nas atividades do cotidiano.
fraturados etc. Garantir a cidadania das pessoas com
necessidades especiais significa permitir o pleno Ao mesmo tempo em que os avanços ocorridos em
exercício de seus direitos básicos, incluindo educação, diferentes campos do conhecimento, como a engenharia
saúde, trabalho, lazer, assistência social, transporte, bio-médica, a partir das últimas décadas do século XX,
cultura e acessibilidade ao meio físico-espacial, entre deram vida nova à esta camada da população, a
outros, como a qualquer outro indivíduo da sociedade. segregação e o preconceito ainda encontram-se
De uma maneira geral, a acessibilidade é uma questão presentes. Apesar do surgimento de associações,
que cobre todos os parâmetros que influenciam o centros de ajuda e legislações, bem como do progresso
ocorrido no âmbito das pesquisas médicas, assim como “as obras que alcançaram com o tempo um
ergonômicas e físico-espaciais, contribuírem a cada dia significado cultural”, deveriam ser equiparados aos
com a inclusão social, a prática ainda se mostra “Monumentos”, edifícios isolados (IPHAN, 2004).
insuficiente e existem campos que nem mesmo foram Desde aquela época, vários documentos vêm afirmando
efetivamente explorados no Brasil. Um destes campos é que, para a manutenção e proteção destas áreas de
o da acessibilidade nos sítios históricos. preservação, é necessário mantê-las vivas, não as
transformando em espaços estáticos e, sim, em lugares
A dificuldade de se prover acessibilidade nos sítios salubres e de abrigo de uma rica ambiência social. São
históricos encontra-se no fato de que estes não foram especialmente os idosos, que começam a sentir os
originalmente projetados para receber as pessoas com efeitos do tempo em seu corpo, comprometendo seu
necessidades especiais. Além disso, são locais adequado deslocamento, os indivíduos mais suscetíveis
protegidos por leis de preservação, que restringem a a ocupar estas áreas, seja por já residirem nelas durante
modificação de suas características históricas, toda a sua vida ou pelas mesmas se constituírem em
acarretando na inaplicabilidade das normas de ambientes calmos e relativamente afastados das
acessibilidade já existentes. metrópoles, na maioria dos casos. Além disso, o
incentivo ao turismo cultural convida as pessoas a, cada
Nos países mais avançados, como é o caso dos Estados vez mais, usufruírem e visitarem os centros históricos,
Unidos, pioneiro nesta questão, existem alguns estudos sendo que o turismo para a terceira idade é o grande
e bibliografias específicas sobre a performance das filão desta atividade. Com poder aquisitivo, as pessoas
pessoas com necessidades especiais em seus espaços idosas apreciam a história e realizam um turismo não-
históricos. Em contraponto, ainda existe um déficit sazonal, viajando durante o ano inteiro.
deste assunto na grande maioria dos países que já
abraçaram a causa das deficiências, entre eles, o Brasil. Na época do estabelecimento das cidades coloniais
brasileiras não existia a preocupação com as pessoas
Percebendo a insuficiência de pesquisas sobre o tema com necessidades especiais, que permaneciam dentro
no país e a urgência de sua realização, pretende-se aqui de suas casas, excluídas do convívio social. Dotadas de
oferecer um quadro geral do assunto no âmbito passeios estreitos, ladeiras, escadarias e pavimentação
nacional, complementado por exemplos internacionais, centenária, a forma das cidades históricas é uma
demonstrando como é possível vencer este desafio, resposta à topografia dos locais em que foram
apesar das inúmeras dificuldades a ele arraigadas. implantadas. Assim como ditavam as provisões régias,
as cidades brasileiras de colonização portuguesa
2. DICOTOMIA E CONVERGÊNCIA DOS deveriam ser estabelecidas em sítios urbanos elevados,
TEMAS locais menos insalubres, obedecendo as possibilidades
de aproveitamento da colina e protegendo o território
A pesquisa sobre a acessibilidade nos sítios históricos contra ataques inimigos. Dispostas preferencialmente
leva-nos a refletir sobre dois assuntos, aparentemente, ao longo do litoral, pretendia-se que a implantação
dicotômicos. De um lado, os bens históricos, onde os destes núcleos protegesse a costa brasileira contra
tombamentos restringem sua adaptação; de outro, as invasores, além de que os gêneros produzidos junto ao
pessoas com necessidades especiais, que não mar chegavam mais facilmente à Europa.
conseguem acessar estas áreas em razão de suas
características restritivas. Considerando a necessidade A discussão sobre a acessibilidade das pessoas com
de acesso das pessoas com necessidades especiais aos necessidades especiais é ainda mais atual do que a
sítios históricos, para o efetivo exercício de sua questão da preservação histórica, em que apenas nas
cidadania, a convergência dos dois assuntos torna-se últimas décadas do século XX ocorreram acentuadas
fundamental. Assim, um estudo aprofundado de cada mudanças no âmbito da consciência social, sendo
um dos temas é mister para a compreensão de todos os assumidas diferentes e gradativas posturas em relação
aspectos que os norteiam, apontando um possível às pessoas com “deficiências”. Sabe-se que “a
caminho a ser seguido para o provimento de ‘deficiência’ ou desvio é uma situação e não um estado
acessibilidade nas áreas de preservação do Brasil. definitivo, determinado apenas pelas incapacidades do
indivíduo, é uma situação criada pela interação entre a
A questão da preservação e da revitalização dos centros limitação física, sensorial, mental ou comportamental e
históricos é relativamente recente. A Carta de Veneza, o obstáculo social que impede ou dificulta a
de 1964, foi o primeiro documento de caráter participação nas atividades da vida cotidiana”.
internacional a definir que “os sítios urbanos ou rurais”, (PINHEIRO, 1998, p. 91). Nicholl (2001) acrescenta
que “assim a deficiência deve ser vista como uma
relação específica entre a pessoa e o seu ambiente. O Até hoje o estudo da acessibilidade buscou diferentes
ambiente pode ser conducente ou não à construção e à formas de promover ambientes mais inclusivos através
percepção de deficiência em membros do público. do desenho, sendo que as designações adotadas
Temos assim o ambiente que cria deficiência (a refletiram a maneira de pensar da população ao longo
disabling environment) e temos o ambiente que do tempo perante as “deficiências”.
diferencia entre a pessoa deficiente e o ‘normal’ assim
chamando atenção à deficiência, criando barreiras O primeiro termo utilizado para designar um desenho
psicológicas e negando a inclusão ou a integração da que fosse mais acessível às pessoas com necessidades
pessoa”. Atualmente, como em nenhuma outra época, especiais foi “desenho livre de barreiras” (barrier-free
considera-se o ambiente exterior e sua interação com o design). Surgiu após a guerra do Vietnã, quando ex-
indivíduo como parte integrante e crucial do fenômeno combatentes tornados deficientes pelas guerras
da saúde, confirmando a teoria de que não se deve reivindicaram igualdade de direitos e condições de
centrar a abordagem apenas na pessoa mas, acesso à vida social. Ao longo dos anos, utilizou-se
principalmente, no contexto físico e político em que ela também as designações “desenho acessível” (acessible
está inserida. design), “desenho adaptável” (adaptable design),
“desenho através de gerações” (transgenerational
Apesar dos inúmeros problemas que um país como o design), também conhecido como “desenho ao longo da
Brasil apresenta, entre eles a pobreza, a falta de vida” (lifespan design), e “desenho universal”
oportunidades para educação, moradia e trabalho (universal design), o mais inclusivo deles. Todas as
dignos, pode-se afirmar que em termos de pesquisas outras designações apresentam alguma característica
para acessibilidade estamos bastante avançados. Graças segregadora e exclusiva, já que, para ampliar ou realçar
aos profissionais dos mais diversos campos, incluindo as capacidades dos indivíduos, torna-se necessário
os da ergonomia, da arquitetura e do urbanismo, tem-se provê-lo de ferramentas utilizáveis ou modificar o
progredido a cada dia na luta pela derrubada das ambiente.
inúmeras barreiras que impedem as pessoas com
necessidades especiais de exercerem sua cidadania. Criado pelo Centro de Habitação Acessível da Escola
Infelizmente, ao mesmo tempo em que os estudos sobre de Desenho da Universidade do Estado da Carolina do
o assunto prosperam, a prática ainda se mostra Norte, nos Estados Unidos, o desenho universal é
insuficiente, pela alienação de grande parte da considerado, na sua visão mais abrangente, como um
população frente ao assunto. Sob este ponto de vista, se desenho para todas as pessoas (NULL; CHERRY,
nas pesquisas sobre acessibilidade, já avançadas no 1996). É um desenho que pode “ser utilizado e
âmbito nacional, existe ainda um déficit na questão dos experimentado por pessoas de todas as idades e
sítios históricos, na prática a situação é ainda mais habilidades, na maior extensão possível, sem
crítica. A falta de consciência da população em geral e adaptação” (STORY, 1998 apud Center for Accessible
de vontade política têm ocasionado poucos efeitos Housing, 1995).
práticos, embora existam diversos dispositivos legais
dispondo sobre cada um dos assuntos, como será No intuito de guiar os profissionais no processo e na
exposto mais adiante. análise de projetos acessíveis, o mesmo Centro
elaborou sete princípios para o desenho universal. Tais
Dessa forma, percebe-se que a relação dos sítios princípios alertam que espaços e objetos acessíveis são
históricos com as pessoas com necessidades especiais é aqueles que oferecem um uso eqüitativo, possibilitando
bastante complexa, precisando convergir num ponto em serem utilizados de modo simples e intuitivo, com
comum. É um desafio iminente a ser vencido nos baixo esforço físico, dotados de informação de fácil
espaços abertos de preservação nacionais, para garantir percepção, sendo toleráveis à possíveis erros do
o exercício da cidadania de até 14,5% da população usuário, prevendo dimensões e espaço para
brasileira, ou seja, 24,5 milhões de pessoas que aproximação e uso adequado. Cada um dos princípios
apresentam alguma restrição, segundo dados do traz algumas diretrizes para que um espaço seja o mais
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do ano de inclusivo possível, resultado este que se quer obter
2000 (IBGE, 2003). também nos sítios históricos brasileiros. Assim, a partir
do uso dos princípios e de suas inclusivas diretrizes de
3. ACESSIBILIDADE ATRAVÉS DO DESENHO projeto, podem-se criar novas diretrizes específicas
UNIVERSAL – O PRIMEIRO PASSO PARA para os bens históricos, considerando sempre as
VENCER O DESAFIO questões relativas à preservação. Apesar de não
poderem ser utilizados fielmente nestes espaços, em A Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, no seu
razão da questão dos tombamentos, tais princípios Artigo nº 1, “estabelece normas gerais e critérios
poderão ser guias para a criação de um desenho básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas
aplicável aos locais históricos. Portanto, a adoção dos portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida,
princípios do desenho universal constitui-se no ponto mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas
de partida para a promoção de acessibilidade nos sítios vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na
históricos brasileiros, procurando torná-los inclusivos construção e reforma de edifícios e nos meios de
na maior extensão possível, considerando uma transporte e de comunicação” (BRASIL, 2000). É a lei
interferência mínima nas suas características históricas. que rege sobre o direito de uma performance adequada
dos indivíduos no ambiente físico-espacial da cidade,
4. OS DISPOSITIVOS LEGAIS ATUANTES propondo a consulta dos parâmetros constantes na
norma de acessibilidade da Associação Brasileira de
Além da adoção dos princípios de desenho universal, Normas Técnicas (ABNT, 1994). Quanto ao acesso aos
para que a acessibilidade nos espaços históricos espaços abertos públicos de preservação histórica a
brasileiros seja providenciada, é necessário referida lei não traz nenhuma solução de acessibilidade.
considerarmos os dispositivos legais que regem sobre Apenas o Artigo nº 25 cita os bens de cunho histórico,
os dois assuntos. relatando que “as disposições desta Lei aplicam-se aos
edifícios ou imóveis declarados bens de interesse
Na questão relativa às legislações e normalizações cultural ou de valor histórico-artístico, desde que as
sobre acessibilidade, pretende-se analisar como tais modificações necessárias observem as normas
dispositivos encaram a questão do acesso aos bens de específicas reguladoras destes bens”. Embora não
preservação e que maneiras oferecem para solucionar exista nenhuma solução específica a ser colocada em
as dificuldades existentes. Quanto aos dispositivos prática na lei, ao menos já existe a preocupação em
legais atuantes sobre o patrimônio histórico, tornar tais locais acessíveis.
explanaremos sobre até que ponto existe
permissividade de interferência nas propriedades Em relação à norma técnica preconizada pela ABNT, a
tombadas destes bens. que se encontra em vigor é a NBR 9050, de 1994
(ABNT, 1994), atualmente em fase de revisão.
4.1. Legislações e Normalizações de Acessibilidade Atendendo aos preceitos de desenho universal, a norma
deve ser aplicada tanto a novos projetos quanto a
Embora a Constituição Federal de 1988 já garanta que adequações de edificações, espaço, mobiliário e
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de equipamentos urbanos, em caráter provisório ou
qualquer natureza (...)” (BRASIL, 1988), o direito à permanente. Entretanto, não faz referência alguma aos
possibilidade de integração das pessoas com espaços abertos ou edificações de caráter histórico. Já
necessidades especiais na cidade, a partir da eliminação sua versão em fase de revisão, ainda não publicada,
de barreiras de acesso às ruas, foi ratificado pela Lei nº prevê um item referente aos bens tombados. Segundo a
7.853, no ano de 1989, que transferiu para Estados e nova norma, os projetos de adaptação para
Municípios a responsabilidade pela execução de acessibilidade destes bens deverão obedecer às mesmas
normas sobre o assunto (BRASIL, 1989). O Decreto nº condições descritas para locais sem interesse histórico,
3.298, de 1999, que regulamenta esta Lei, procura porém, atendendo aos critérios específicos a serem
garantir e estimular o acesso das pessoas à cultura e ao aprovados pelos órgãos do patrimônio histórico e
turismo, entre outros (BRASIL, 1999). Entretanto, cultural competentes. Apesar disso, existem inúmeros
grande parte destas atividades ocorre em locais itens na norma que são impraticáveis em locais
históricos, onde as pessoas com necessidades especiais históricos. Um dos exemplos é referente aos passeios,
não conseguem ter acesso. Além disso, o Art. 54 deste que nos sítios históricos são geralmente bastante
Decreto relata que os órgãos da Administração Pública estreitos. As distâncias estabelecidas pela norma para a
Federal tinham até no máximo três anos, ou seja, até o implantação de um “rebaixamento de calçada” são
ano de 2002, para “promover adaptações, eliminações maiores do que a própria largura da maioria das
ou supressões de barreiras arquitetônicas existentes nos calçadas históricas. Os afastamentos necessários para a
espaços e edifícios de uso público (...)”. Ou seja, o implantação de faixas táteis de alerta no piso, a partir
prazo já se esgotou e o que se percebe hoje são da guia dos passeios, tomam quase que toda a largura,
inúmeros locais públicos inacessíveis, inclusive, sítios impossibilitando sua aplicação. Apesar disso, a norma é
históricos. bastante feliz quando explicita que em áreas ou
elementos onde não houver possibilidade de se
promover adaptação deverá ser garantido o acesso por Quanto à interferência física na “coisa tombada”, o
meio de informação visual, auditiva ou tátil. Nos sítios Artigo 17º impede sua destruição, demolição,
considerados inacessíveis ou com visitação restrita mutilação, reparação, restauração ou pintura sem a
deverão ser oferecidas outras formas de conhecimento, prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico
como mapas, maquetes, peças de acervo originais ou e Artístico Nacional - SPHAN. O Artigo 21º atribui
suas cópias, sempre possibilitando serem tocados para atentado contra o patrimônio nacional tais
compreensão tátil. Embora esteja avançando na questão interferências nos bens tombados.
da acessibilidade em espaços históricos, a norma em
estudo não se propõe ainda a oferecer soluções A partir de 1964, quando em Veneza a “Carta
específicas de projeto que exemplifiquem possíveis Internacional sobre Conservação e Restauro de
adaptações. Monumentos e Sítios” foi instituída, vários documentos
internacionais surgiram com o objetivo de proteger os
Com relação à acessibilidade no turismo, que no Brasil sítios históricos mundiais. Esta Carta foi um marco na
é realizado em muitos casos em sítios históricos, existe preservação destes locais, pois foi o primeiro
um manual elaborado pela EMBRATUR em 1987, documento a conceituar que “monumento histórico
intitulado “Turismo para Portadores de Deficiência engloba, não só como as criações arquitetônicas
Física – Normas para facilidade de acesso e isoladamente, mas também os sítios, urbanos ou rurais,
locomoção”. Apesar de abarcar diversos itens nos quais sejam patentes os testemunhos de uma
referentes à acessibilidade neste campo, entre eles, o civilização particular, de uma fase significativa da
“acesso a locais públicos e locais turísticos”, o “acesso evolução ou do progresso, ou algum acontecimento
a prédios”, a “circulação interna”, os “quartos”, o histórico” (IPHAN, 2004). No seu Artigo 5 a Carta
“banheiro privativo completo” e os transportes, as ressalta a importância da utilização dos monumentos
normas são bastante resumidas e limitadas, estando para fins sociais, facilitando a sua conservação, desde
diversas delas ultrapassadas, se comparadas à ABNT. que não seja alterada “a disposição ou a decoração dos
Além disso, em nenhum momento as normas referem- edifícios”. O Artigo 7 complementa que “a remoção do
se aos locais históricos, onde grande parte do turismo todo ou se parte do monumento não deve ser permitida,
em nosso país acontece. exceto quando tal seja exigido para a conservação desse
monumento ou por razões de grande interesse nacional
4.2. Legislações e Normalizações sobre Patrimônio ou internacional” (IPHAN, 2004, grifo nosso). Ora, a
Histórico utilização para fins sociais, inclui todos os cidadãos,
inclusive as pessoas com necessidades especiais, que
Existem hoje inúmeros instrumentos legais atuando devem ter acesso também a estes “monumentos”. Além
sobre as questões do patrimônio histórico brasileiro. disso, apesar de não se pretender aqui justificar
Além da legislação nacional e outros dispositivos drásticas interferências na integridade de bens
legais, como o de turismo cultural, a preservação dos históricos, é de grande interesse nacional e
bens relativos à cultura brasileira é orientada por internacional que todas as pessoas, sem restrições,
Cartas, Declarações e Tratados Nacionais e tenham acesso a estes locais. Assim, interferências
Internacionais. Tendo em vista a grande quantidade mínimas têm um caráter social, celebrando a
destes instrumentos e o enfoque deste trabalho, diversidade humana e permitindo às pessoas com
apresentaremos aqui alguns dos mais relevantes com necessidades especiais de usufruírem de locais
relação à possibilidade de interferência no bem construídos em épocas quando seu acesso não era
histórico para torná-lo acessível. consentido. Quanto à adoção de novos elementos que
venham a substituir partes que faltem no “monumento”,
O documento que criou o instituto do tombamento no a mesma Carta afirma que estes devem se integrar
Brasil, e até hoje referenciado, foi o Decreto-Lei nº 25, harmoniosamente ao conjunto, equilibrando a
de 30 de novembro de 1937 (BRASIL, 1937). Foi composição e a relação com o entorno e serem
quando criou-se o Instituto do Patrimônio Histórico e distinguíveis das características históricas.
Artístico Nacional - IPHAN. No seu Artigo 1º o
Decreto-Lei define o patrimônio histórico e artístico A “Carta Internacional para Salvaguarda das Cidades
nacional como “o conjunto dos bens móveis e imóveis Históricas”, ou “Carta de Washington”, de 1987,
existentes no País e cuja conservação seja de interesse complementa a Carta de Veneza, afirmando que
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da qualquer operação para transformação de bens
história do Brasil, quer por seu excepcional valor históricos “deverá respeitar a organização espacial
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. existente (...)” (IPHAN, 2004). Além disso, segundo a
Carta, “a introdução de elementos de caráter Normativa estabelece a adoção de um “Plano
contemporâneo, desde que não perturbem a harmonia Plurianual de Ação em Acessibilidade do Instituto”,
do conjunto, pode contribuir para o seu para a promoção de acessibilidade nos locais de
enriquecimento”. Este ponto justifica a possibilidade da preservação histórica brasileiros. Embora sejam ainda
adoção de elementos para a acessibilidade, desde que apenas ambições, pela contemporaneidade da Instrução,
não interfiram no conjunto, principalmente por é mais um passo dado na direção do vencimento deste
caracterizar-se como um “enriquecimento” humano e desafio.
social.
5. COMO OS OUTROS PAÍSES VÊM LIDANDO
Retornando para o domínio nacional, a Portaria nº 010, COM A QUESTÃO
de 10 de setembro de 1986, reafirma o cumprimento do
Decreto-Lei nº 25, anteriormente citado, determinando Apesar da acessibilidade nos sítios históricos ser uma
que “quaisquer obras de construção ou reconstrução, questão ainda bastante recente, alguns países já vêm se
total ou parcial, tais como modificações, acréscimos, destacando por adotá-la, como é o caso dos Estados
reformas, (...) a serem executados nas áreas constituídas Unidos, pioneiro na questão da acessibilidade. Com o
por bens tombados ou integrantes de seus respectivos estabelecimento do Ato para as Pessoas com
entornos” dependem da expressa aprovação do Deficiências, em 1990, o acesso aos espaços abertos ao
SPHAN. público do país passou a ser um direito civil e esforços
foram iniciados para o exercício deste direito. Assim,
A Constituição Federal de 1988 dedicou espaço à os bens históricos abertos ao público também passaram
cultura e aos bens culturais, como nenhum outro a ser alvo de pesquisa, sendo adotadas algumas
documento constitucional havia feito. É a primeira vez medidas para torná-los acessíveis. A publicação
que surge a denominação e definição “patrimônio “Preservation Brief 32: Making Historic Properties
cultural”. A Constituição compete à União, aos Accessible”, de 1993, emenda do Ato Nacional de
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a Preservação Histórica de 1966, foi preparada para
proteção e preservação deste patrimônio, sendo que os desenvolver e tornar disponíveis informações sobre a
danos a ele cometidos deverão ser punidos, na forma de acessibilidade de propriedades históricas. Direcionada
lei. aos proprietários, profissionais do desenho e
administradores, a publicação caracteriza-se como um
Com relação especificamente à acessibilidade aos guia sobre como tornar propriedades históricas
locais de preservação histórica do país, um texto acessíveis, preservando suas características históricas.
bastante recente do IPHAN é o marco inicial na Apresenta desde maneiras de se planejar modificações
tentativa de resolver este desafio. A Instrução de acessibilidade a partir do reconhecimento do
Normativa nº 1, de 25 de novembro de 2003, pretende significado histórico do bem, até soluções para
oferecer algumas diretrizes para a promoção de situações diversas, tanto com relação aos espaços
acessibilidade nos bens culturais imóveis, “a fim de interiores quanto exteriores. Embora não ofereça
equiparar as oportunidades de fruição destes bens pelo soluções específicas para as características dos sítios
conjunto da sociedade, em especial pelas pessoas históricos brasileiros, que, por serem de colonização
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida”. portuguesa, apresentam problemas de acessibilidade
Tendo como referências básicas a Lei Federal nº diferentes dos americanos, é um exemplo a ser seguido
10.098/2000 e a NBR 9050 da ABNT, a Instrução por sua atitude inclusiva.
Normativa afirma que a adoção dos critérios de
acessibilidade devem compatibilizar-se com a Os países em reconstrução, como é o caso do Líbano,
preservação dos imóveis, “devendo ser legíveis como também têm procurado tornar suas cidades históricas,
adições do tempo presente, em harmonia com o destruídas pelas guerras, acessíveis. Isto vem ocorrendo
conjunto”. Além disso, dispõe que o limite para a principalmente em razão de que parte de sua população
adoção de soluções para acessibilidade é o tornou-se “deficiente” durante as batalhas. Com o fim
comprometimento do valor testemunhal e da dos combates no início dos anos 90, procurou-se criar
integridade estrutural do bem. Apesar de não apresentar um centro livre de barreiras na cidade de Beirute,
nenhuma solução de projeto, sendo ainda bastante aproveitando a “oportunidade” da reconstrução da
superficial, o documento destaca a importância de se cidade e a necessidade de torná-la acessível às pessoas
adotar soluções segundo os preceitos de desenho com necessidades especiais. Assim, foi publicado um
universal, observando sua compatibilidade com as manual intitulado “Acessibilidade para o Deficiente:
características históricas. A referida Instrução um Manual de Desenho para um Ambiente Sem-
Barreiras”, que tem como objetivos principais ser obtidos na pesquisa sobre acessibilidade não atingiram
facilmente utilizável nos processos de planejamento e ainda o âmbito da preservação histórica. Assim, a
desenho pelos profissionais, permitindo o feedback do prática apresenta-se ainda mais obsoleta, privando estas
campo, facilitando a avaliação pós-ocupação e pessoas de usufruírem o nosso patrimônio histórico e
englobando três categorias de construções urbanas: cultural.
elementos públicos urbanos, novas edificações e a
reabilitação de edifícios antigos. Adotou-se tanto Apesar do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
propostas de acessibilidade em longo prazo, quanto em Nacional estar se preocupando com a questão do acesso
curto prazo. Estas seriam implantadas nas construções aos bens históricos, a atitude é ainda bastante recente e
que já estavam em andamento, servindo como “teste” pouco efetiva, caracterizando-se apenas como o
para as propostas em longo prazo, visto que não se estabelecimento do ponto inicial de uma busca pela
tinha tempo para a realização de pré-avaliações, já que solução do problema. Em contraponto, desde a década
a reconstrução já estava em andamento. Com as passada, já se percebem esforços internacionais para
propostas em curto prazo prontas, foram realizados tornar espaços de preservação histórica acessíveis,
testes pós-ocupação, levando em conta considerações demonstrando que é possível conciliar a acessibilidade
técnicas e funcionais, onde foram percebidas diversas com as características históricas, através da vontade
falhas a serem corrigidas. (TAPPUNI, 2001) Hoje política e de uma maior conscientização da população.
Beirute é um exemplo de cidade reconstruída e tornada
acessível à sua população. Pretendeu-se, assim, demonstrar que é possível vencer
o desafio de se prover acessibilidade nos sítios
Outras cidades do Líbano, como o resort turístico Aley, históricos brasileiros, como já realizado em outros
também vêm sendo alvo de propostas para países, a partir da compreensão de que a união de temas
acessibilidade durante sua reconstrução, através do tão divergentes pode contribuir com a inclusão social.
envolvimento da sociedade civil e da utilização dos Apesar de ainda pouco esclarecer especificamente
preceitos de desenho universal. sobre a acessibilidade em sítios históricos, a análise dos
dispositivos legais atuantes sobre as questões mostrou-
A Grécia é o exemplo mais atual da adoção de nos possibilidades de intervenção. Embora estejamos
acessibilidade em centros históricos, já que se pretende ainda no início da luta, sabemos que o desafio pode e
tornar Atenas acessível até agosto deste ano, quando deve ser vencido. A reunião de esforços nos campos
ocorrerão os Jogos Olímpicos, e em setembro, os multidisciplinares do conhecimento e da administração
Paraolímpicos. Atualmente, os locais históricos de federal, aliados à campanhas de esclarecimento social,
maior visitação, Sounio, Delphi e a Acrópole, são são a base fundamental para tornamos nossos sítios
inacessíveis às pessoas com necessidades especiais, históricos acessíveis, permitindo que as pessoas com
mas deverão o ser até as Olimpíadas, permitindo que necessidades especiais também tenham acesso à
não só os atletas possam conhecer estes locais, como o herança patrimonial brasileira, exercendo sua
grande público visitante. Não se obteve acesso aos cidadania.
planos de acessibilidade que estão sendo implantados
na Grécia, já que a divulgação do assunto é bastante 7. REFERÊNCIAS
restrita.
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas.
Além destes, outros exemplos são encontrados NBR 9050: Acessibilidade de pessoas portadoras
internacionalmente, sejam projetos isolados em pontos de deficiências a edificações, espaço, mobiliário e
específicos das cidades ou grandes planos de equipamentos urbanos. Rio de Janeiro, 1994. 59
acessibilidade, como é o caso do Líbano. Todos eles p.
são exemplos a serem seguidos pelo Brasil, não só pelo
desenho criado para se obter acessibilidade nos bens BINS ELY, Vera Helena Moro; DISCHINGER, Marta.
históricos, mas principalmente pela atitude tomada em A Importância dos Processos Perceptivos na
direção da inclusão social. Cognição de Espaços Urbanos para Portadores de
Deficiência Visual. In: III SEMINÁRIO DE
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ERGONOMIA DA BAHIA, 1999, Salvador.
Anais do III Seminário de Ergonomia da Bahia.
A partir da análise do panorama nacional com relação à 1999. CD-ROM.
acessibilidade das pessoas com necessidades especiais
nos sítios históricos, percebeu-se que os progressos
BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
1937. Organiza a Proteção do Patrimônio Histórico Nacional. Disponível em:
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