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Pedro Bittencourt*
Introdução
Acreditamos que essa diversidade sonora, muitas vezes fonte de discussões e disputas
entre diferentes estilos (ou “escolas”) de saxofone, represente uma interessante abertura
para os instrumentistas e compositores, assim como para o público em geral.
Na música mista dita erudita européia contemporânea com sax, encontramos um enorme
contraste do repertório atual com o inicial, de apenas 30 anos atrás. Isso se deve não só
pelo desenvolvimento das técnicas estendidas (que muito se disseminaram no meio
saxofonístico nos últimos anos), mas também pelo crescente interesse dos compositores,
e pela popularização da tecnologia digital na produção mista e eletroacústica.
Como Kientzy enfatizou recentemente [17], foi por influência dos sons eletrônicos que
ele começou suas pesquisas. O músico nos explica que essas novas “formas de tocar”
(em francês “modes de jeux”) não foram invenções, mas explorações sobre novos
modos de expressão no sax, impulsionados pela variedade de sons produzidos
eletronicamente no início dos anos 80, inclusive na música pop.
Se naquela época as técnicas estendidas no sax tiveram de ser “desbravadas”, hoje elas
são bastante utilizadas, e por isso não podemos mais chamá-las de “novas
técnicas” [18]. Isso se deve também graças a uma certa institucionalização do
repertório, através do ensino nos conservatórios e escolas de música, da imposição de
determinadas peças em concursos, e da publicação de livros e partituras [19].
Se até no início dos anos 90 a maioria esmagadora das peças mistas para sax eram
realizadas com sons fixos (sejam eles fita magnética, CD ou arquivos digitais em disco
rígido), hoje os músicos podem contar com diversas possibilidades na programação de
transformações sonoras [20]. Queremos com isso chamar a atenção para o alargamento
de perspectivas pela tecnologia digital (principalmente pela aceleração do tratamento de
sinal), e não fazemos aqui nenhum julgamento de valor das obras musicais de acordo
com o seu modo de produção.
Em “Ossia”, 2006, para sax soprano, sax barítono e eletrônica, Nicolas Tzortzis explora
a forma aberta delegando decisões ao computador. A partitura apresenta bifurcações
(FIG.1) que o saxofonista deve seguir de acordo com a escolha aleatória para a qual o
computador foi programado. O “caminho” é indicado por convenções sonoras pré-
gravadas, conhecidas pelo saxofonista. Há então oito peças em uma (quatro para sax
soprano e 4 para sax barítono, com inicio no sax soprano). Ao começar a tocar, o
instrumentista não sabe qual versão será escolhida pelo computador. Além disso,
durante a peça há diversas transformações simultâneas assim como sons fixos que são
acionados pelo compositor, sempre seguindo o saxofonista durante o concerto.
Figura 1. As bifurcações em Ossia (2006) de Nicolas Tzortzis, a serem seguidas pelo
saxofonista.
Figura 2. Medusa de Lumbre (2006) de Juan Camilo Hernandez Sanchez. As três vozes
inferiores representam os efeitos da eletrônica controlados pelas nuances do sax.
Percebemos nos exemplos acima que a interação entre as fontes sonoras acústicas e
eletrônicas foram realizadas de formas distintas, com variados níveis de controle (do
saxofonista e do compositor), seguindo estratégias específicas. As múltiplas situações
propostas pelas músicas mistas podem quebrar o dualismo entre nota e som. Para
ultrapassar essa dualidade (ou para ir além dela), as funcionalidades particulares de cada
categoria devem ser articuladas.
CONCLUSÃO
A pesquisa sobre novas formas de expressão nas músicas mistas escritas para saxofone
explora então o terreno fértil que representa o trabalho coletivo de compositores,
instrumentistas e também técnicos de som, tendo em vista a articulação dos avanços na
área informática com as consolidadas técnicas estendidas no sax, preenchendo uma
lacuna na musicologia contemporânea.
Notas
[1] São exemplos de técnicas estendidas no sax : sons múltiplos (dois ou mais sons
obtidos ao mesmo tempo), slaps (sons percussivos obtidos pelo golpe curto da língua e
da coluna de ar na palheta), tong-ram (ágil golpe de língua na palheta ou no toldel,
precedido de ar), sons percussivos de chaves, growl (uso da voz ao mesmo tempo que o
sopro), sons eólios (sons de “vento”, podem ser produzidos com muitas variações, com
ou sem a boquilha), respiração circular.
[4] Termo mais abrangente que designa a produção e difusão sonora através de meios
eletrônicos (como a fita magnética ou a informática) e acústicos (qualquer objeto ou
instrumento musical). A gravação e o tratamento de sons acústicos são parte do trabalho
da eletroacústica, assim como as diversas sínteses sonoras e outras formas de escrita,
como a programação. No início dos anos 50 em Colônia, Alemanha, encontramos ainda
o termo “Elektronische Musik” (música eletrônica) para se referir à produção de sons
sinteticamente.
[5] Podemos citar o “Klavierstück XI” (1956) para piano e “Solo” (1966) para qualquer
instrumento melódico e sistema de feedback com fita magnética de Stockhausen, e
“Périples” (1978) de Paul Méfano para sax tenor. Na primeira, o instrumentista deve
escolher aleatoriamente a ordem das 19 seqüências da partitura (uma única e grande
página). Na segunda ele deve improvisar (ou escrever) frases a partir de elementos
propostos pelo compositor alemão num verdadeiro quebra-cabeças de possibilidades
para resultar num discurso polifônico, tornado possível pelas gravações da fita
magnética em vários cabeçotes (hoje substituídos por um computador). Na terceira, o
saxofonista escolhe a ordem dos movimentos a serem tocados.
[7] O musicólogo Vincent TIFFON (1994) considerou na sua tese de doutorado sobre a
música mista que as fontes sonoras instrumentais e eletroacústicas representavam dois
universos antagônicos e distintos. Em outro texto mais recente (TIFFON, 2005) o autor
relativiza essa proposta, além de incluir peças musicais realizadas em tempo real nas
suas análises.
[10] Sigurd M. Rascher (1907 Alemanha -2001 EUA) fez carreira como solista e
professor. Estreou as principais peças do repertório “clássico” para sax (Xenakis,
Donatoni, Hindemith, Glazounov, Ibert) além de fundar o Rascher Sax Quartet, hoje
ainda em atividade. Autor do livro sobre os super-agudos no sax “Top Tones for the
saxophone”, ed. Carl Fisher.
[11] Um dos “pilares” do saxofone erudito na segunda metade do século XX. Jean-
Marie Londeix prepara atualmente um voluminosos livro sobre a história mundial do
saxofone em todos os estilos, intitulado provisoriamente “Crônicas do saxofone, de
Adolph Sax aos nossos dias” (em francês: “Croniques du saxophone, d'Adolph Sax à
nos jours”). Autor de diversos métodos e obras pedagógicas para saxofone, foi durante
muitos anos professor de sax no conservatório de Bordeaux. Entre muitas outras peças,
estreou a virtuosa “Sonate” para sax alto e piano, de Edison Denisov em 1970, uma das
primeiras obras escritas a explorar técnicas estendidas do instrumento, como slaps,
glissandos, sons múltiplos e growls.
[17] Em entrevista pessoal e inédita realizada em sua casa em Paris, no dia 24 de maio
de 2007.
Referências
RISSET, Jean Claude. « Évolution des outils de création sonore », in VINET, H.,
DELALANDE, F. (org.) Interfaces homme-machine et création
musicale , Paris , Hermès Science Publications, 1999.
TIFFON, Vincent « Recherches sur les musiques mixtes ”, tese de doutorado, Aix en
Provence, 1994.
http://www.revue-chimeres.fr/drupal_chimeres/files/40chi06.pdf