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ESPAÇO E SUBJETIVIDADE

Narrativas da
consciência:
a representação
da subjetividade
nas linguagens
literária e teatral
e sua transposição
para o cinema ESTE TEXTO TEM um ponto de partida bem
determinado: o ensaio La conciencia y la no-
RESUMO vela, do romancista, roteirista de TV e críti-
O presente artigo tem como ponto de partida o ensaio “La co inglês David Lodge, que aborda brilhan-
conciencia y la novela”, do David Lodge, que aborda as temente as relações entre a literatura e a
relações entre literatura e representação da subjetividade hu- representação da interioridade dos seres
mana. Uma de suas afirmações contudo, choca-se com ava- humanos. Uma de suas afirmações, contu-
liações vindas da dramaturgia, especialmente por “Mestres do – a de que o romance moderno burguês
do teatro”, de John Gassner, e “Hamlet – poema ilimitado”, inaugurou a representação da consciência,
de Harold Bloom. A partir deste choque de opiniões, procu- ao posicionar o indivíduo como figura cen-
ramos refletir sobre como o cinema trabalha a representação tral na narrativa e procurar desvendar seus
da consciência. Para tanto, elegemos algumas versões de pensamentos e emoções –, entra em choque
“Hamlet” como nosso objeto de estudo. contra outras avaliações, vindas da área
dramatúrgica, especialmente Mestres do tea-
ABSTRACT tro, de John Gassner, e Hamlet – poema ilimi-
This text reflects upon the representation of conscience by tado, de Harold Bloom, em que o autor
the cinema, studyng yhe story of “Hamlet” according to aborda diversos aspectos da peça de
several different authors. The point of departure is David Shakespeare. Para estes dois autores, Ham-
Lodge’s essay The conscienses and the novel. let, encenada em 1600, no Globe Theatre, é
uma obra-prima porque, entre outras quali-
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) dades, proporciona um mergulho profun-
- Subjetividade (Subjectivity) do na consciência humana.
- Literatura (Literature) É claro que seria uma bobagem tentar
- Cinema (Cinema) estabelecer “quem está certo”, já que a
questão é de grande subjetividade e envol-
ve duas linguagens distintas, mas a partir
desse choque de opiniões, procuramos re-
fletir sobre os modos como o cinema, lin-
guagem herdeira das tradições literária e
teatral, trabalha a representação da consci-
ência, e elegemos algumas versões de “Ha-
mlet” como nosso objeto de estudo. Sepa-
Carlos Gerbase ramos quatro adaptações feitas do famoso
PUCRS monólogo que inicia com “Ser ou não ser”,

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na voz de Hamlet, considerado por Bloom “vivida” pelos que a ouviam. “Aí não há
o mais perfeito “herói da consciência” já fa- ainda nenhuma interioridade, pois ainda
bricado pela literatura. não há nenhum exterior, nenhuma alterida-
Este texto é um primeiro esboço des- de para a alma”. (Lukács, 2000, p.26).
tas reflexões, que, apesar de relacionadas Mais tarde, no tempo das tragédias (e
ao mundo do teatro, trafegam prioritaria- da filosofia), não importava a qualidade da
mente nos territórios da literatura e do ci- representação de uma suposta interiorida-
nema. Com certeza, ainda não chegamos à de de Édipo, e sim acompanhar os atos que
conclusão alguma sobre a suposta polêmi- levavam um indivíduo poderoso, líder de
ca inicial, mas talvez tenhamos evoluído uma cidade, a cair em desgraça pública.
um pouco no mapeamento e na compreen- Para Aristóteles, o grande crítico do teatro
são de um problema fundamental de mui- clássico, as personagens deveriam estar ab-
tas formas de ficção contemporâneas. solutamente submetidas à ação. Suas carac-
terísticas, portanto, tinham origem nas ne-
cessidades da trama. Não cabia a Sófocles
1 O nascimento da subjetividade criar um mundo interior para Édipo, pois o
público já sabia tudo o que precisava sobre
Para Lodge, ele. Se não há um mundo interior, não há
representação da consciência. O máximo
Os romancistas foram os primeiros que ouvimos, e ouvimos bastante, é um
ficcionistas que fingiram que seus re- “Ai de mim”.
latos jamais haviam sido contados, Na idade média, além da mitologia
que eram inteiramente novos, únicos, (sacra ou secular) ainda ser uma base im-
como é cada uma de nossas vidas de portante, não havia exatamente um “autor”
acordo com a concepção empírica, his- das histórias. Hoje sabemos, por exemplo,
tórica e individualista da vida huma- que as diversas tramas que envolvem o Rei
na (Lodge, 2004, p.42). Artur foram criadas em diversas etapas,
atendendo a interesses políticos bem espe-
Na tragédia e na epopéia gregas, as cíficos. Além disso, sabemos que o centro
personagens eram mitológicas, recriações e de qualquer narrativa medieval deveria
reciclagens de velhas histórias bem conhe- ser, por definição, a figura divina. A ausên-
cidas do público. Ninguém ouvia um aedo cia de autores específicos de obras específi-
ou ia ao teatro para se emocionar com dra- cas parece ser conseqüência direta desse
mas individuais e particulares. Os conflitos desprezo à subjetividade e ao mundo das
tinham sempre origens coletivas: o destino sensações humanas. As histórias medie-
histórico da comunidade; a dificuldade hu- vais, assim, permanecem necessariamente
mana de lidar com o anúncio desse desti- num registro exterior à consciência huma-
no, determinado pelos deuses; as diversas na.
maneiras de romper o delicado equilíbrio Tanto no teatro grego clássico quanto
desse mundo tão assustador, cometendo na idade média, conseqüentemente, não há
um erro, mesmo que involuntário, e sofrer narrativa em primeira pessoa, e muito me-
as duras conseqüências dessa transgressão. nos uma narrativa em terceira pessoa que
No mundo homérico, em que ainda se se volte seriamente para o mundo interior
vivia plenamente, em que corpo e alma não de uma determinada personagem. Resu-
haviam se separado, em que não havia dis- mindo, ainda não havia nascido qualquer
tinção entre o que está dentro e o que está forma significativa de representação da
fora do homem, em que a própria filosofia consciência na literatura e no teatro, pois o
não existia (ou todo homem era um filóso- narrador se posicionava em terceira pessoa,
fo), a epopéia de Ulisses era simplesmente fora da história e fora das mentes das per-

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sonagens. Para que a subjetividade come- prima de Shakespeare, podem ser percebi-
çasse a emergir, esse tipo de narrador teria dos claramente momentos em que, apesar
que ser trocado. do ponto de vista da peça não ser sempre o
Lodge afirma que a narrativa em pri- de Hamlet (assistimos a fatos em que ele
meira pessoa começa a aparecer nas obras não está presente), a narrativa se precipita
dos três primeiros grandes novelistas in- para a sua interioridade, e uma “primeira
gleses – Defoe (1660-1731), Richardson pessoa” emerge, fortemente subjetiva e
(1689-1761) e Fielding (c.1707-1754) - que dramaticamente humana.
usam a autobiografia ou a confissão fictícia
e contam as histórias com as palavras de O mal que espreita Elsinore não é o
uma personagem que assume um “eu”. Às regicídio não vingado, tampouco a
vezes, estes autores usavam até o artifício corrupção do ladino Cláudio, mas a
de tentar deixar a figura do autor transpa- força negativa da consciência de
rente, para que o leitor o confundisse com Hamlet. (...) Desprendido e livre,
o narrador. Para Lodge, esta equação narra- Hamlet anseia por um forte oponente,
tiva simples, do tipo “consciência em pri- mas descobre que há de ser ele mes-
meira pessoa e narração em primeira pes- mo o seu próprio oponente. É o pre-
soa”, é o início do discurso subjetivo. Mais cursor da situação em que nós mes-
tarde, em seu ensaio, ele vai explicar como mos somos levados a ser o nosso pior
funciona uma equação narrativa mais com- inimigo (Bloom, 2004, p. 121).
plexa, do tipo “consciência em primeira
pessoa e narração em terceira pessoa”. Bloom proclama Hamlet “O herói da
Em breve olharemos com mais calma consciência” e declara que a personagem é
para estes dois conceitos – consciência e a origem da autoconsciência romântica,
narração. Por enquanto, vamos lembrar que pode ser, dependendo da trama, subli-
apenas que na tragédia elisabetana há uma me, assustadora ou trágica. Ao contrário de
consciência em cena, e é aqui que rebate- Édipo, que sabe menos que o espectador,
mos o texto de Lodge. Ele afirma que “os Hamlet sabe mais. Hamlet sabe tudo, o que
romancistas foram os primeiros ficcionistas o leva a uma situação limite, em que ques-
que fingiram que seus relatos jamais havi- tiona a existência humana de um modo
am sido contados” e que estes relatos ti- muito pessimista.
nham uma “concepção individualista da
vida humana”. Ora, o Hamlet de Shakespe- Se permanecemos em um mundo hos-
are é um indivíduo original, único e domi- til, onde, a exemplo de Horácio, sofre-
nado por tamanha subjetividade que, nas remos as agruras da vida, é porque
palavras de Bloom, é o fundador da consci- ainda não estamos preparados para
ência na literatura dramática. A peça, ape- aceitar a idéia de Hamlet, de que a
sar de sua grande teatralidade (artificiali- obliteração da consciência é a felicida-
dade), atende aos requisitos propostos por de absoluta. Ele parte antes de nós,
Lodge para a representação da consciência. inesquecível como perturbação e
O fato de ser uma peça a ser encenada, e ícone (Bloom, 2004, p.132).
não uma obra para ser lida, talvez explique
a omissão de Lodge, mas esta é uma expli- Assim, Shakespeare ultrapassa, e mui-
cação simplista. Há uma distância imensa to, a literatura de sua época na questão da
entre Sófocles e Shakespeare na questão da representação da consciência. Bloom dá ao
representação da subjetividade, e esquecer dramaturgo inglês, inclusive, a responsabi-
“Hamlet” é passar por cima de algo grande lidade pela “invenção do homem”.
demais para ser ignorado.
Na leitura ou na encenação da obra- Algo em Shakespeare visa ao isola-

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mento do mais talentoso de seus pro- Tentaremos estabelecer, então, níveis dis-
tagonistas, a fim de testar-lhes os limi- tintos (apesar de inter-relacionados) no es-
tes, no que respeita à representação tudo da narrativa da consciência.
dramática. O poeta descobriu que,
nesse particular, Hamlet não tem limi-
tes (Bloom, 2004, p.136). 2.1 O ponto de vista da narrativa (ou
foco narrativo)
A conclusão é de que “O poeta havia
descoberto a natureza do eu mesmo, a tota- David Lodge, em The art of fiction, tem capí-
lidade do segredo da representação da tulos dedicados ao ponto de vista (“Point
identidade”(Bloom, 2004, p.136). of view”), à cadeia de pensamentos (“Stre-
Talvez a omissão de Lodge tenha uma am of consciousness”), ao monólogo interi-
explicação bastante simples: desde o teatro or (“Interior monologue”) e à polifonia
clássico grego, existe a convenção de que a (“Telling in diferents voices”). Os autores
personagem, quando “fala sozinha” (diri- analisados são, respectivamente, Henry Ja-
gindo-se diretamente ao público ou não), mes, Virginia Woolf, James Joyce e Fay
está revelando o que pensa. Esta conven- Weldon (com a participação de Bakhtin).
ção, contudo, não determina que aflorem as Vamos usar estes pequenos textos de Lod-
subjetividades de Édipo ou de Antígona. ge (anteriores ao ensaio La conciencia y la
Apenas em Hamlet a convenção transcende novela) como complementos à sua reflexão.
seu caráter utilitário de fazer a trama seguir
em frente e passa a ser instrumento de des- Um evento real é, geralmente, experi-
velamento da consciência. mentado por mais de uma pessoa si-
multaneamente. Essas diferentes pers-
pectivas podem ser consideradas e
2 Níveis de análise da narrativa descritas, mas uma de cada vez. Mes-
mo um narrador ‘divino’ (onisciente e
Lodge lembra que as diversas maneiras onipresente) terá que privilegiar um
como as histórias podem ser contadas não ou dois destes pontos de vista, a par-
interessam apenas aos ficcionistas. A ciên- tir dos quais a história será contada e
cia tem lidado bastante com a questão do concentrar os eventos neles. Um ponto
ponto de vista, mesmo antes de Einstein. de vista absolutamente objetivo e im-
“A necessidade de reconciliar as versões parcial não existe na literatura (talvez
do universo que se dão em primeira e ter- exista na história e no jornalismo, mas
ceira pessoa (...) é o problema singular de também isso é discutível) (Lodge,
maior importância com que se defronta 1992, p.26)
hoje a ciência.” (Ramachandran, apud Lod-
ge, 2004, p.34). Lodge ensina que escolher o ponto de
É impossível seguir adiante sem de- vista de uma narrativa é decidir de que
terminar o que significam algumas pala- perspectiva ou perspectivas a história será
vras no âmbito deste ensaio. “Primeira pes- contada prioritariamente. Ou em torno de
soa” e “terceira pessoa” parecem ser con- quem os eventos vão acontecer. É possível
ceitos razoavelmente universais, e suas es- trocar o ponto de vista durante a história,
truturas básicas podem ser identificadas no mas quase sempre essa troca tem uma ra-
próprio texto, numa análise gramatical sim- zão estética. Fazer uma troca arbitrária de
ples. Já as expressões “ponto de vista” e ponto de vista é um dos erros mais comuns
“consciência” (que utilizamos a partir da do escritor iniciante ou preguiçoso. Outra
tradução para o espanhol feita por Miguel expressão que Lodge e outros teóricos (in-
Matinez-Lage) merecem algum cuidado. clusive Culler) utilizam como sinônimo de

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ponto de vista é “foco narrativo”. Seja qual (b) Modos de cada um dos pontos de vista
for a palavra utilizada o texto costuma utilizados
avançar sob certas regras fixadas pelo autor
em relação ao universo diegético, e isso é (b.1) modo objetivo, sem vinculação direta
bem diferente de discutir se a narrativa está a uma personagem, e, portanto, muito lon-
em primeira ou terceira pessoa. ge de desvelar uma consciência humana;
As decisões do autor em relação ao (b.2) subjetivo, vinculado à consciência de
ponto de vista parecem ser, por ordem: uma personagem, que é desvelada (em
maior ou menor grau) pela narrativa;
(a) Quantidade de pontos de vista (b.3) misto (alternam-se pontos de vista ob-
jetivos e subjetivos).
Usar um ou mais pontos de vista? Ou, uti-
lizando os conceitos de Bakhtin (perigoso, Culler fala em três variantes princi-
pois ele faz uma metáfora com o som, que pais na questão da focalização (quem ele
por sua vez parece estar mais ligado à voz também chama de “quem vê”):
narrativa que ao ponto de vista), a narrativa
será monológica ou dialógica, monofônica - variante temporal (como a narração se
ou polifônica? posiciona temporalmente em relação aos
Em tempo: o mesmo recurso pode ser fatos narrados – na época em que aconte-
aplicado no cinema. No meu filme Deus Ex- cem, logo depois ou muito depois?);
Machina (curta-metragem , 1996), que tem - variante de distância e velocidade (avança
quatro capítulos, cada um deles gira em lentamente e é cheia de detalhes, ou avança
torno do ponto de vista de uma persona- rapidamente, cheia de elipses?);
gem. O teórico russo Mikhail Bakhtin cha- - variante de limitações de conhecimento (a
ma essa técnica de polifonia, ou, alternati- narrativa tem uma perspectiva objetiva,
vamente, dialogismo. A linguagem das po- como a lente de uma câmara, ou tem acesso
esias épica e lírica tradicionais é “monoló- aos pensamentos dos personagens?).
gica” (uma única visão, ou interpretação,
do mundo, o que leva a um único estilo Esta última variante é a que estamos
narrativo). Já o romance seria o terreno do chamando de “modos de ponto de vista”.
dialogismo, que incorpora diferentes vo-
zes, ou estilos, além de discursos que estão
“fora do texto”, como a cultura e a socieda- 2.2 A voz narrativa
de.
Há várias maneiras de fazer isso: al- A narração literária em primeira pessoa
ternando a voz do narrador com as vozes surge com o romance, mas isso não signifi-
das personagens; pelo estilo livre indire- ca que, já em Defoe e Richardson, havia
to (combinação da voz do narrador com uma desvelamento da consciência, pois o
as vozes das personagens); ou dando à “eu” que narrava se mantinha no plano dos
voz do narrador um estilo que não tem fatos. Somente o romance moderno, no sen-
nada a ver com a personagem (Bakhtin tido de modernista (Conrad, Joyce, Virginia
chamaria essa técnica de discurso dupla- Woolf, D.H. Lawrence), manifesta uma ten-
mente orientado). Para Bakhtin, a lingua- dência clara de representação de pensa-
gem de um romance não é uma lingua- mentos subjetivos e de sentimentos (Lod-
gem, mas uma combinação de estilos e ge, 1994, p.56).
vozes, o que torna o romance uma forma Qual a relação entre ponto de vista e
literária democrática, antitotalitária, em voz narrativa? Não é tão simples quanto
que nenhuma posição moral ou ideológi- parece ser. Um ponto de vista objetivo pa-
ca está livre de mudanças. rece solicitar uma voz narrativa em terceira

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pessoa (tragédias gregas, epopéias, históri- decisiva na questão da consciência. Tanto o
as medievais), enquanto um ponto de vista “eu” como o “ele” narrativo são capazes de
subjetivo estaria sempre em primeira pes- penetrar na mente de uma personagem, ou
soa (os primeiros romances epistolares). optar por manter-se fora dela.
Mas aí começa a surgir uma maior sofisti-
cação na representação da consciência na li-
teratura, e a coisa se complica. 2.3 Invasão da consciência
Segundo Lodge, Henry James (1843-
1916) é o grande inovador neste território. Na Ilíada, sabemos o que Aquiles pensa so-
Por exemplo, em As asas da pomba (1902) só bre Agamenon depois que este lhe rouba
vemos e sentimos o que Kate é consciente uma escrava? Na Odisséia, podemos sentir o
de ver e sentir”. Está presente uma “consci- desespero de Ulisses à medida que ele pa-
ência” do mundo, um ponto de vista parti- rece estar cada vez mais distante de seu lar
cular. Mas não é Kate quem conta a histó- e de sua esposa Penélope? A resposta é
ria. É um narrador não especificado, uma sim. Aquiles pensa que Agamenon é um
“voz autoral”, que descreve a experiência idiota e não merece comandar todos os gre-
de Kate desde o lado de fora e desde den- gos, e Ulisses sente que tudo conspira con-
tro. Esse discurso, portanto, é ao mesmo tra ele, mas mantém a esperança de voltar
tempo objetivo e subjetivo. É misto. para casa.
Mas, tentando mais uma vez criar Assim, as primeiras narrativas da li-
compartimentos estanques (tarefa ingra- teratura ocidental já representam senti-
ta...), as decisões do autor em relação às vo- mentos, emoções e desejos humanos. É
zes narrativas parecem ser, por ordem: quase impensável uma narrativa que não
lide com o mundo interior de suas perso-
(a) Quantidade de vozes narrativas nagens. Mas sabemos do mundo interior
de Aquiles e Ulisses de forma indireta:
Uma ou várias? A quantidade depende da pelo que eles dizem, pelo que as outras
quantidade de pontos de vista? Não neces- personagens dizem deles e pela maneira
sariamente. Pode haver um único ponto de como a trama evolui. O leitor infere emo-
vista e mais de uma voz narrativa (ou uma ções a partir das ações.
voz narrativa mista, o estilo livre indireto). O mesmo pode ser dito dos tormen-
De qualquer modo, valem as observações tos de Édipo. Não há, na Grécia antiga ou
de Bakhtin sobre polifonia e dialogismo. na idade média, uma representação mais
Não pode haver polifonia se há apenas um direta da consciência das personagens,
ponto de vista e uma única voz narrativa. pois o narrador não penetra em suas
mentes. Isso só começa a acontecer na
(b) Tipos de vozes narrativas (gramaticais) modernidade. Temos, portanto, dois ti-
pos de narrações quanto à invasão da
(b.1) primeira pessoa – narração que parte consciência:
de um “eu” enunciador;
(b.2) segunda pessoa – narração que parte (a) Narração não-invasiva – descreve ape-
de um “ele” enunciador; nas ações disponíveis aos cinco sentidos
humanos, sem representar nem discorrer
“Eu fui ao jogo” e “Eu pensei em me ma- diretamente sobre processos mentais; o lei-
tar” são frases que utilizam a primeira pes- tor infere ou deduz os sentimentos das per-
soa. “Ele foi ao jogo” e “Ele pensou em se sonagens a partir de diálogos e aconteci-
matar” estão na terceira pessoa. Até aí, é mentos.
fácil. Mas será preciso transcender a ques-
tão gramatical, do pronome, pois ela não é (b) Narração invasiva – descreve e/ou re-

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presenta diretamente processos mentais, mos a personagem verbalizando seu dis-
invadindo a consciência; o leitor tem acesso curso de acordo com regras discursivas
à interioridade das personagens, seja por bastante claras, tradicionais. É uma primei-
um relato racional, seja pela transcrição – ra pessoa com um discurso estruturado
não necessariamente lógica – do que está se para ser compreendido (ou que pelo me-
passando no cérebro. nos parece desejar ser compreendido). É
um fluxo de pensamentos mediado por fra-
ses construídas racionalmente;
2.4 Estilos de desvelamento da (c.2) Cadeia de pensamentos (“stream of
consciência consciousness”). Na definição de William
James (irmão psicólogo do novelista Henry
A combinação das escolhas que o autor faz James), é o fluxo contínuo de pensamentos
em relação ao ponto de vista, à voz narrati- e sensações no cérebro humano. Na litera-
va e à invasão da consciência vai determi- tura, é o estilo que tenta colocar esse fluxo
nar a maneira como a narração tratará do no papel como se não fosse mediado pelas
mundo interior das personagens. Temos, regras gramaticais, pela estruturação frasal
na prática e historicamente, quatro tipos de clássica. Às vezes pode parecer irracional,
estilos narrativos em relação ao desvela- pois as sensações e emoções costumam
mento da consciência, considerando apenas desconstruir o discurso.
discursos monológicos:
(d) Terceira pessoa “moderna” – ponto de
(a) Terceira pessoa “clássica” – narra num vista aparentemente objetivo, desvinculado
ponto de vista objetivo, desvinculado de de personagem, mas capaz de ir além da
personagem; não desvela consciência algu- descrição de fatos e desvelar a consciência
ma; fica restrita à descrição de fatos. É um de um ou mais personagens, absorvendo,
“ele” que normalmente sabe tudo e pode muitas vezes, sua maneira de se expressar.
invadir qualquer lugar e qualquer tempo, É um “ele” que invade um “eu” (ou vários
mas não pode invadir “eu” algum; “eus”). O uso dessa terceira pessoa, combi-
nada com um ponto de vista misto parece
(b) Primeira pessoa “clássica” – ponto de ser a base do que Lodge chama de “estilo
vista subjetivo, vinculado a uma persona- livre indireto”.
gem específica, mas restrito à descrição de
fatos. É um “eu” que não invade “eu” al- Hamlet não é contado nem encenado
gum, nem o próprio “eu” que fala (o dis- em primeira pessoa. Ele é o maior dos pro-
curso não é um espelho da consciência de tagonistas, mas não conta a história. Parece
quem discursa, e sim o reflexo, mais ou que o desvelamento da sua consciência
menos direto, do que essa pessoa presen- acontece num mecanismo muito semelhan-
ciou); te, se não idêntico, ao que Lodge chama de
“estilo indireto livre”.
(c) Primeira pessoa “moderna” – ponto de
vista subjetivo, vinculado a uma persona-
gem específica e funcionando como um es- 3 Estilos de desvelamento da
pelho da sua mente. É um “eu” que invade consciência nas adaptações
o “eu” que narra, desvelando a sua consci- de Hamlet
ência. Essa primeira pessoa “moderna”
pode ser de dois tipos: Antes de mais nada, é preciso dizer que o
termo “ponto de vista” tem, no cinema, um
(c.1) Monólogo interior. O sujeito gramati- significado bem diferente daquele que uti-
cal do discurso é um “eu”, mas nós ouvi- lizamos até aqui. Na tradição da teoria lite-

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rária, “ponto de vista” é uma metáfora para ria, e apenas Hamlet está presente. Ele ca-
designar um “modo de ver e contar” do minha e olha para os túmulos. A câmara
narrador sobre a história. Num filme, não é descreve objetivamente as ações de Ham-
mais um termo metafórico. Temos um let, desde que ele entra na capela. Mas, em
“ponto de vista” quando a imagem forneci- diversos momentos, vemos o que ele vê (a
da ao espectador deve ser compreendida câmara funciona subjetivamente, como
como a representação da visão de uma de- seus olhos, em ponto de vista). Hamlet diz
terminada personagem. Essa convenção foi o texto falando para si mesmo, enquanto
construída nos primórdios da linguagem observa os túmulos, o que poderíamos
cinematográfica. Geralmente, antes da ima- considerar como uma narrativa em primei-
gem “em ponto de vista”, o espectador as- ra pessoa moderna.
siste uma imagem “objetiva” que lhe dará
a pista para a compreensão da imagem (b) No filme Hamlet, de Kenneth Branagh –
“subjetiva”: um plano bem fechado do per- 1996 - 242 minutos
sonagem que olha (que é chamado, em al-
gumas gramáticas, de “determinante”). A cena acontece num grande salão,
As mesmas gramáticas, a partir desta que tem uma das paredes tomada por es-
convenção, determinam dois “níveis de lin- pelhos. Um destes espelhos, na verdade, é
guagem” numa narrativa cinematográfica: uma porta para uma câmara secreta. No sa-
o objetivo, quando a câmara não assume os lão, apenas Hamlet está presente, pois Ofé-
olhos de personagem alguma, e o subjeti- lia sai antes que Hamlet apareça, enquanto
vo, quando a câmara funciona como os Cláudio e Polônio entram na câmara secre-
olhos de alguém. Na cena analisada do ta pela porta de espelho. De lá, podem ver
Hamlet de Zeffirelli, por exemplo, temos e ouvir Hamlet, mas este, supostamente,
várias vezes esta alternância de “níveis de não pode vê-los. Hamlet, durante o monó-
linguagem”. Aliás, a grande maioria dos logo, puxa uma adaga e parece ameaçar o
filmes faz, em maior ou menor grau, essa rei e seu conselheiro. A câmara descreve
troca, de um modo tão “natural” (um “na- objetivamente a ação. Há um lento trave-
tural” artificialmente composto, é claro) e lling na direção do rosto de Hamlet, que
transparente para o espectador, que este parece dirigir o seu texto (sem os versos
nem percebe que houve a mudança. finais), de forma ameaçadora, para Polônio
Já o termo “foco” ou “focalização”, e Cláudio, que estão escondidos atrás de
que na narratologia da literatura é o mes- um espelho. Assim, o monólogo transfor-
mo que “ponto de vista” (quase a mesma ma-se num diálogo em que apenas um dos
metáfora), em cinema tem um significado lados fala. Branagh permanece numa tercei-
técnico, específico. Uma imagem está “em ra pessoa clássica, pois não há monólogo
foco” ou “fora de foco”, e isso pouco ou interno.
nada tem a ver com narrativa do filme to-
mada num contexto mais amplo. Feitas es- (c) No filme Hamlet, de Campbell Scott –
tas advertências, vamos ver como quatro 2000 - 178 minutos
diferentes cineastas trataram o “Ser ou não
ser” shakespeareano. A cena acontece numa sala do castelo. No
momento do monólogo, apenas Hamlet
está presente, mas outras personagens (o
3.1 Descrição das cenas rei, a rainha, Polônio e Ofélia) acompa-
nham, escondidas, sua caminhada até a
(a) No filme Hamlet de Franco Zeffirelli – sala. No início da cena, Hamlet caminha e
1990 – 130 minutos tenta ler um livro ao mesmo tempo; contu-
A cena acontece numa capela mortuá- do, uma voz em off, misteriosa, soturna e

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incompreensível, parece incomodá-lo tanto Lawrence Olivier parece estar usando
que ele joga o livro num espelho. Hamlet o estilo indireto livre de Lodge, pois a câ-
senta e novamente tenta ler, mas a voz o mara (inicialmente em terceira pessoa) lite-
perturba a ponto de fazê-lo jogar o livro ralmente “penetra” na consciência de Ham-
longe e quebrar os seus óculos. Com o caco let, abandonando a exterioridade e, a partir
de uma das lentes, faz dois cortes em seu daí, temos uma primeira pessoa cinemato-
braço esquerdo e cai no chão. Ainda deita- gráfica. “Vemos” e ouvimos (narração em
do, começa o texto, falando sozinho. De- off) a consciência de Hamlet na frase “Ser
pois levanta-se e segue o texto, até ser in- ou não ser, eis a questão”. Logo depois,
terrompido por Polônio. A câmara descre- entra em cena a primeira pessoa do teatro
ve objetivamente a cena. Entretanto, a voz (Hamlet fala sozinho). No final da cena,
que Hamlet ouve é, supostamente, uma voltamos à terceira pessoa.
voz que só ele ouve (e, portanto, é uma voz
que está em sua consciência). Hamlet diz o
texto falando sozinho. Scott utiliza a con- 3.2 Signos de desvelamento de
venção do teatro (falar sozinho), mas há consciência no cinema
uma preparação cinematográfica para a
cena, com o uso da voz soturna em off an- Repetindo e acrescentando: o estilo livre
tes de Hamlet iniciar o monólogo. Scott usa indireto, na literatura, é aquele em que o
a primeira pessoa moderna. sujeito gramatical é um “ele” (ou “ela”),
mas o estilo da prosa respeita a identidade
(d) No filme Hamlet, de Lawrence Olivier – da personagem (especialmente o vocabulá-
1948 - 155 minutos rio) e tem livre acesso à sua mente, sem
usar as convenções tradicionais do “ele
A cena acontece nas muralhas do castelo, pensou”, ou “ela perguntou a si mesmo”.
e apenas Hamlet está presente. Ele segu- Cremos que este estilo está presente no tex-
ra um punhal contra o peito (o que pode to de Shakespeare, pois, embora o ponto de
ser interpretado como um signo de suicí- vista do narrador seja objetivo e a narração
dio) e depois o joga no oceano. No início aconteça em terceira pessoa, há, nos soliló-
da cena, a câmara está num dos aposen- quios de Hamlet, uma evidente invasão de
tos inferiores do castelo e mostra Ofélia sua consciência, no que mais tarde será co-
chorando. A câmara “sobe” muitas esca- nhecido como monólogo interior. Cremos
das, até chegar nas muralhas do castelo, e também que o mesmo acontece no filme
depois, sempre subindo, até o céu. A se- Hamlet de Lawrence Olivier, mas os signos
guir, baixa até enquadrar o mar e, final- utilizados são outros, pois se trata de outra
mente, a cabeça de Hamlet, vista por forma expressiva.
cima e de trás. Então, segue na direção da Cinema, literatura e teatro são três lin-
cabeça, até que esta fica fora de foco, e o guagens distintas. Mas todas elas estão,
quadro, escuro, simulando uma “entrada quase sempre, lidando com um mesmo
na consciência” de Hamlet. Só então co- processo: a narrativa. Por isso não é surpre-
meça o texto. No início, apenas os olhos sa que as estruturas básicas que analisamos
de Hamlet estão em quadro. Ouvimos, até aqui – e que foram geradas na literatura
em off, o início do monólogo - “Ser ou e na dramaturgia – se repitam no cinema.
não ser...”; corta para as ondas do mar, Tanto o roteirista quanto o diretor tomam
que entram em foco (ponto de vista de decisões – cada um em sua própria instân-
Hamlet) e então ouvimos, ainda em off, cia autoral – que se relacionam diretamente
“Esta é a questão”. Depois vemos a boca com o ponto de vista da narrativa, em sua
de Hamlet pronunciando o resto do mo- quantidade e modos; com a voz narrativa,
nólogo. em quantidade e modos; e com a invasão

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da consciência das personagens. LODGE, David. La conciencia y la novela; crítica literaria y creación
A dupla acepção da expressão “ponto literaria. Barcelona: Ediciones Península, 2004
de vista” – no contexto geral da narrativa
fílmica ou no específico do plano – pode LODGE, David. The art of fiction. Londres: Penguin Books,
causar alguma confusão, mas nada que as- 1992
suste a quem conhece minimamente a lin-
guagem do cinema. Uma coisa é decidir a LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cida-
perspectiva principal para se contar a histó- des; Ed. 34, 2000
ria (tarefa do roteirista); outra, bem diferen-
te, é decidir a decupagem de uma determi-
nada cena (tarefa do diretor).
Restam muitas perguntas: (1) como o
cinema usa os seus meios expressivos
(imagem em movimento e som sincroniza-
dos) para fazer as mesmas operações narra-
tivas da literatura e do teatro?; (2) podemos
considerar os mesmos “estilos de desvela-
mento de consciência” na narrativa cinema-
tográfica?; (3) o que o cinema trouxe de
novo (e, talvez, especificamente seu) para o
cenário da representação da subjetividade,
criando novas operações sígnicas?; (4) no
caminho inverso, quais são as influências
do cinema sobre essa mesma representação
nas ficções literárias e nas peças teatrais do
século 20?
Pretendemos responder a estas e a ou-
tras questões complementares num próxi-
mo trabalho. Por enquanto, fica uma suges-
tão: assistir ao começo e ao fim de Laranja
Mecânica, de Kubrick, para constatar que a
imagem, ao contrário do que anunciam al-
guns, pode assumir um caráter tão subjeti-
vo quanto um texto .

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:


Martins Fontes, 2000

BLOOM, Harold. Hamlet – poema ilimitado. Rio de Janeiro: Obje-


tiva, 2004.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária; uma introdução. São Paulo:


Becca, 1999

GASSNER, John Gassner. Mestres do teatro I. São Paulo: Pers-


pectiva, 1997

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