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Estado e sociedade e as reconfigurações


do direito à saúde

State and society and the new configurations


of the right to health

Amélia Cohn 1

Abstract The present essay in which the au- Resumo Este ensaio resgata algumas das prin-
thor seeks to reintroduce some of the main dis- cipais discussões travadas na literatura das
cussions within the social sciences literature on ciências sociais sobre as relações entre Estado,
the relationship among state and civil society, sociedade civil e participação social nas polí-
and which can contribute for a reflection about ticas de saúde. O recorte adotado é a dimensão
social involvement in health policies. In this política propriamente dita, deixando-se à par-
regard, the focus is on the political dimension te – embora seja igualmente relevante – a par-
proper of this relationship, putting aside – de- ticipação da sociedade na provisão e produção
spite its relevance – society’s participation on de serviços de saúde. Os principais eixos de
the provision of health services. The main axes análise são as implicações sociais e políticas da
of the analysis are the social and political im- opção pela perspectiva da pobreza ou da desi-
plications in choosing the poverty or inequal- gualdade; os movimentos sociais e os direitos
ity perspective; social movements and social sociais; e a relação Estado/sociedade num con-
rights; and the state/society relationship in a texto de destituição de direitos. Privilegia-se a
context lacking basic rights. Attention is given ótica da instituição da cidadania da perspecti-
to the institutionalization of citizenship with- va da justiça e da eqüidade social frente à di-
in the perspective of justice and social equity in versidade e ao pluralismo que marcam as so-
face of the diversity and plurality of contem- ciedades contemporâneas, em especial a bra-
porary societies, especially the Brazilian, con- sileira, dadas as enormes desigualdades sociais
sidering the huge social inequalities charac- que a caracterizam. A última sessão retoma de
terizing it. The last session briefly reviews some forma sucinta alguns dos principais traços que
of the main features of social participation in vêm marcando a experiência da participação
Health Councils present in several analyses of social nos Conselhos de Saúde apontados pelas
this theme, without pursuing an evaluation of numerosas análises a respeito, sem no entanto
this literature regarding its theoretical or se fazer um balanço dessa literatura quanto aos
methodological features. marcos teóricos e metodológicos aí presentes.
1 Departamento de
Medicina Preventiva
Key words Social movements and social rights, Palavras-chave Movimentos sociais e direi-
da Faculdade de Medicina Social participation and the public sphere, Es- tos sociais, Participação social e esfera pública,
da USP e CEDEC. tablishment of social rights and the new social A constituição de direitos sociais e as novas
Rua dos Franceses 498, 411F,
Bela Vista, 01329-900
identities identidades sociais
São Paulo SP.
amelcohn@uol.com.br
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Debruçar-se sobre a nossa realidade social no des e de desregulação desses direitos –, vale di-
atual contexto da globalização constitui uma zer, a constituição e dinâmica dos novos espaços
tarefa das mais complexas, até porque de ime- da política, que não aqueles tradicionalmente
diato se é tentado pela negação dos clássicos reconhecidos. E o quarto deles diz respeito ao
paradigmas das ciências sociais que vêm nor- desafio de se buscar entender, e para tanto de-
teando nossas análises. No entanto, talvez o senvolver instrumental analítico adequado, o
maior desafio consista exatamente em mergu- Estado e os processos de formulação e imple-
lhar nessa nova realidade, que afinal não rom- mentação de políticas públicas que pratica ten-
pe de forma radical com seu processo históri- do em vista a nova configuração da sociedade.
co, mas fazê-lo “com os olhos voltados para o Claro que os pontos relacionados acima não
futuro” como alertava o mestre Florestan Fer- poderiam jamais constituir a estrutura de um
nandes, e portanto criticamente deslindar os artigo, mesmo que seu autor fosse capaz de de-
limites que os velhos modelos e conceitos clás- senvolvê-los com competência, o que não é o
sicos das ciências sociais antepõem frente a es- caso. Assim, pontuá-los teve por objetivo exata-
sa nova complexidade social. mente o oposto: diante da amplitude e da com-
A preocupação que norteia este texto não re- plexidade que a realidade das sociedades con-
side em discutir se existe ou não na atualidade temporâneas nos impõe, realçar o caráter abso-
uma crise de paradigmas nas ciências sociais, lutamente exploratório das questões que serão
mas tão somente apontar o que parece caracte- aqui abordadas, e sempre tendo por referência,
rizar a realidade social atual frente às análises explícita ou implícita, a realidade brasileira.
que até há bem pouco tempo vinham sendo
realizadas sobre ela. A referência mais imediata
será sempre a realidade brasileira, ou quando Da pobreza à desigualdade:
muito a dos “países emergentes”, e da perspec- implicações sociais e políticas
tiva, uma vez mais recorrendo ao mestre Flores-
tan, intransigente quanto à defesa dos valores A questão da pobreza vem sendo objeto fre-
democráticos e igualitários que vêm sendo tão qüente de estudos teórico-conceituais e empí-
desacreditados na atualidade diante da mística ricos por parte dos cientistas sociais. E da mes-
da eficiência do mercado versus a ineficiência ma forma que se multiplicam estudos a respei-
(igualmente atribuída) intrínseca do Estado. to, a polêmica entre os especialistas também se
Dessa perspectiva, de imediato ganham rele- torna acalorada, sobretudo repondo a velha po-
vo alguns dos principais fenômenos dessa “no- lêmica entre os “quantitativistas” e os “qualitati-
va” conjuntura, os quais deveriam constituir, de vistas”. Por outro lado, há que se reconhecer que
certa forma, a agenda de preocupações dos ci- a retomada do tema da pobreza na agenda dos
entistas sociais. O primeiro deles diz respeito a debates de natureza mais pública, sobretudo
buscar compreender as novas configurações de nos países emergentes, em grande medida foi
exclusão social presentes em nossa sociedade: se promovida pelas propostas minimalistas das
não mais prevalece o padrão de integração so- agências multilaterais, em consonância com o
cial via trabalho, e cada vez mais comprovada a ideário do Consenso de Washington.
impossibilidade – reconhecida atualmente até No entanto, definir e problematizar a ques-
pelas agências multilaterais – de se estabelecer tão da pobreza, a par da dificuldade de se ter cla-
um padrão de integração social via mercado, reza sobre os matizes ideológicos que ela traz
resta-nos então buscar detectar os novos pa- sempre consigo, coloca em xeque toda uma sé-
drões de contratos e de solidariedade social que rie de preceitos e parâmetros tradicionais com
vêm emergindo. O segundo deles diz respeito a os quais os cientistas sociais vêm se debruçando
buscar identificar, sem divorciar o nível macro sobre a realidade social. O mais evidente, entre
do nível micro de análise, os novos atores e su- eles, diz respeito às diferenças hierárquicas e da
jeitos sociais presentes na realidade social, como condição social entre os indivíduos que com-
ainda as novas configurações de sociabilidade põem a sociedade: castas, estamentos e classes
que vêm emergindo no tecido social. O terceiro sociais, sobretudo no que se refere a esta últi-
deles, conseqüência lógica dos anteriores, diz res- ma. Em outros termos, trata-se fundamental-
peito a buscar identificar e compreender, nas so- mente de buscar sempre os mecanismos de coe-
ciedades contemporâneas, os novos espaços de são social em realidades diferenciadas e criva-
construção de identidades sociais e de direitos – das por tal divisão de interesses que, no limite,
e seu reverso, de desconstrução dessas identida- levariam à ruptura da ordem social vigente.
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As distintas formas de inserção dos indiví- tiva dos indivíduos em gradientes distintos de
duos nas sociedades modernas ocidentais eram acesso ao consumo a determinados bens e ser-
até muito recentemente analisadas sob a ótica viços. Nesses termos, pobreza e indigência, por
das classes sociais, sobretudo a partir das ver- exemplo, são definidas a partir de parâmetros
tentes weberiana e marxista, uma privilegian- relativos e não absolutos, possibilitando que se
do a classificação dos indivíduos por acesso a retome a perspectiva dialética da sua superação,
bens materiais e imateriais, e a outra privile- ao contrário do caso anterior, que circunscreve
giando a inserção dos indivíduos na produção. a pobreza ao círculo restrito de ações que “ali-
Em ambas, no entanto, o que prevalece, e aqui viem” a condição imediata de vida desses gru-
é o que importa, é o trabalho como fator social pos sociais, tal como analisam Mendonça e Sou-
fundamental para a inserção social dos indiví- to (2001).
duos, e que assim assume, como nos aponta Of- A matriz da pobreza, portanto, é radical-
fe (1989), a condição de um conceito sociológi- mente distinta da matriz da desigualdade social,
co-chave. É a partir dele que se explica a coesão tanto no que diz respeito às análises que daí se
social como um valor em si ou as forças de su- derivam sobre a própria sociedade quanto no
peração daquelas realidades sociais. que diz respeito, consequentemente, às formas
No entanto, a questão que se nos apresenta de se analisar como ela as enfrenta. Restringin-
hoje em dia é exatamente a da ausência do tra- do-se à primeira dessas dimensões, ganha des-
balho, nas sociedades contemporâneas, como taque a questão dos sujeitos sociais e o lugar
fator de inserção social dos indivíduos, e por- que ocupam nas sociedades contemporâneas,
tanto de explicação das diferenças sociais entre para o que a questão dos movimentos sociais e
eles. Sem o contraponto do trabalho, volta-se dos novos sujeitos sociais, ou dos segmentos or-
agora para a renda: a questão dos distintos graus ganizados da sociedade, passa a ser de especial
de inserção social tende então a ser pautada interesse.
quase que exclusivamente por níveis de renda,
portanto pela capacidade de os indivíduos no
âmbito da esfera privada mostrarem-se aptos – Movimentos sociais e direitos sociais
ou não – para proverem suas necessidades so-
ciais básicas. As diferenças sociais passam agora Os movimentos sociais se caracterizam por se
a ser definidas como níveis de renda, e aqueles constituírem em “novos” sujeitos coletivos no
grupos que percebem um valor mensal abaixo cenário político em distintas e diferenciadas are-
de um determinado valor arbitrariamente defi- nas e espaços que não aqueles tradicionalmen-
nido são classificados como “pobres”. E a partir te definidos pela concepção liberal clássica de
daí, no sentido descendente, classificam-se os democracia. Por outro lado, constituem igual-
“miseráveis”, ou “indigentes”, que constituem mente sintomas de conflitos presentes na pró-
aqueles que sequer são capazes de garantir por pria sociedade na medida em que se caracteri-
conta própria níveis mínimos de sobrevivência zam por um forte traço reivindicativo na luta
alimentar. por conquistas na efetivação de demandas so-
Mas ao mesmo tempo que se processa esse ciais, vale dizer, dos direitos sociais. A partir de
deslocamento das “classes” para “grupos de ren- sua especificidade e, nesse sentido, de sua parti-
da”, verifica-se a perda das identidades sociais cularidade, reivindicam direitos sociais que im-
desses sujeitos, uma vez que, ao perderem aque- plicam a igualdade de direitos associada ao di-
la sua condição, passam a ser objeto de inter- reito à diferença, e portanto à justiça social. É a
venção do Estado por meio de políticas públi- partir dessa intrincada confluência que se apre-
cas neles focalizadas. Dessa perspectiva, a con- sentam duas questões relativas à sua represen-
dição de pobreza não obedece a um gradiente tatividade quando vitoriosos na conquista de
comparativo de acesso à riqueza, embora se suas demandas – a sua origem como represen-
vincule indiretamente ao acesso a consumo de tação de interesses de determinados grupos so-
determinados bens e serviços, o que passa a ser- ciais e a natureza de sua própria legitimidade.
vir de parâmetro para a definição das linhas de No decorrer dos anos 70 e 80, quando se
pobreza. verifica um boom da produção acadêmica so-
Já a perspectiva da desigualdade social im- bre movimentos sociais, fenômeno então emer-
plica necessariamente a posição relativa dos dis- gente nas sociedades, quase sempre a eles eram
tintos segmentos sociais entre si, uma vez que atribuídas duas qualidades: sua espontaneida-
o fator nuclear reside na distribuição compara- de e seu senso de justiça, na medida em que suas
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demandas eram decididas entre pares iguais, e de oposição na construção de um novo poder,
sua independência com relação às elites, como mas como forças de oposição que se definem
analisa Cardoso (1983). Nessa mesma época como tal sem trazer em si mesmas um novo mo-
Alain Touraine (1983), por exemplo, atribuía delo de sociedade e o germe de um novo Estado.
aos movimentos sociais a condição de serem fa- Daí derivam várias propostas de definições
tos “portadores de futuro”. Note-se, no entanto, dos movimentos sociais entendidos como su-
que a discussão em torno do surgimento des- jeitos sociais: como um sistema de ação associ-
ses “novos sujeitos sociais” é regida, fundamen- ando orientações e significados plurais; como
talmente, por duas ordens de preocupação: de formas de ação coletiva baseada na solidarie-
um lado, pela dimensão do controle público da dade desenvolvendo conflito e rompendo os li-
gestão do Estado e, de outro, pela dimensão das mites do sistema em que a própria ação ocorre;
transformações na manifestação dos conflitos como suas características residindo na convi-
sociais e seu impacto sobre o sistema político. vência do conflito (relação entre atores opostos
No primeiro caso – a dimensão do controle que disputam entre si pelos mesmos objetivos)
público da gestão do Estado –, o fio condutor com a solidariedade (partilhar uma identidade
dos debates sobre os movimentos sociais reside social); ou como representando a possibilidade
no argumento de que nas sociedades pós-in- de se romperem os limites do sistema estabele-
dustriais a gestão e o controle público tendem cido no âmbito de um espectro de variações di-
a se aproximar porque os conflitos sociais ten- tado por uma estrutura já existente (Melucci,
dem a se generalizar por toda a rede societal, 1989).
verificando-se uma reaproximação entre a base No entanto, independentemente da diversi-
social das ações coletivas e suas formas de ação. dade de compreensão sobre os movimentos so-
No segundo caso – a dimensão de seu impacto ciais como fenômeno social, a referência sem-
sobre o sistema político até então vigente no pre presente nos mais diversos textos sobre o te-
que diz respeito aos canais e mecanismos de re- ma consiste no fato de eles se diferenciarem das
presentação de interesses – essas novas práticas formas clássicas de organização dos trabalha-
sociais não significariam o enfraquecimento do dores, em sindicatos e centrais sindicais, como
sistema político na medida em que a emergên- organismos centralizados de representação de
cia e generalização dos movimentos sociais to- interesses, e que reafirmam sua ação de repre-
mam forma exatamente no âmbito dos pró- sentação associada a um padrão de intervenção
prios problemas sociais, e não no da coletivida- na esfera pública (para além dos históricos vín-
de política. Ambas as dimensões se fazem pre- culos orgânicos com o Estado) através dos ca-
sentes, por exemplo, na fundamentação da pro- nais estabelecidos pelos sistemas políticos re-
posta dos Conselhos de Saúde e, posteriormen- presentativos. Haja vista, por exemplo, a sua
te, nas análises sobre seu funcionamento e sig- participação no núcleo dos processos de regula-
nificado. ção econômica e social que fundaram as bases
O desenvolvimento da reflexão e dos estu- do welfare state na Europa, o que se deu, diga-se
dos sobre os movimentos sociais cada vez mais de passagem, de forma radicalmente distinta
se consolida – mesmo quando a questão da glo- nos casos brasileiro e latino-americano quando
balização ainda não emerge de forma candente da constituição dos respectivos sistemas de pro-
na literatura produzida pelos cientistas sociais teção social, dado que na região os sindicatos
– na direção da evidência, nas sociedades con- se constituíram sob a tutela do Estado.
temporâneas, de uma transformação dos con- Mais do que se diferenciarem das formas
flitos sociais: estes passam a ocorrer não mais clássicas de organização dos trabalhadores com
em nome do cidadão ou do trabalhador, con- o avançar da década de 1980, os movimentos
duzindo a grandes lutas reivindicativas contra sociais ganham intensidade, revelando-se uma
um aparelho de dominação que rege cada vez forma de organização da sociedade que acom-
mais o conjunto da sociedade orientando-a pa- panha as mudanças próprias dos processos de
ra um certo tipo de desenvolvimento, mas em globalização da economia e da reestruturação
nome da coletividade. O que de imediato reme- produtiva que lhe são próprios, deslocando o
te à necessidade de se enfrentar o desafio de di- trabalho como elemento central de inserção dos
ferenciar entre aqueles conflitos sociais de na- indivíduos na sociedade. Por outro lado, esse
tureza estrutural e aqueles ligados à mudança. processo é reafirmado pelo fato de no geral os
Em resumo, esses novos fenômenos sociais ten- movimentos sociais, sobretudo na América La-
dem a não ser mais interpretados como forças tina e no Brasil, estarem vinculados à situação
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de carência em que se encontram os indivíduos –, mas em benesses concedidas pelo Estado. Es-
neles engajados. Noutros termos, é a situação de tas, embora não menos legítimas, assumem no
carência, como um processo subjetivo e indivi- seu conjunto o significado de privilégios a de-
dual que compreende escolhas entre carências terminadas clientelas que foram capazes de im-
diversas, que acaba sendo o fator nuclear que de por sua demanda de modo específico, e nesse
um modo geral provoca a organização de deter- sentido particular, reforçando nessa dinâmica
minados grupos em movimentos sociais, e que paradoxal a tradição histórica brasileira, por
acaba por associá-los aos critérios de legitimi- exemplo, de expansão não universal dos direi-
dade política. Portanto, é a partir das distintas tos, conforme já registrado na análise clássica
situações de carências que são mediadas as for- de Santos (1979).
mas como esses grupos sociais vêem a si mes- Em conseqüência, quando se pensa nas im-
mos e aos demais, bem como as maneiras como plicações sociais e políticas da opção pela po-
imprimem significado ao fim ético do Estado. breza ou pela desigualdade como perspectiva de
Em conseqüência, os movimentos sociais análise – e consequentemente de formulação
tendem a mobilizar e organizar seus membros de políticas –, o que está em jogo é exatamente
na busca de fins materiais e não materiais que a opção de se enfrentar ou não a questão pro-
consideram injustamente negados pelo Estado posta por Marshall (1963) já no início dos anos
e suas instituições, buscando conquistar maior 60: a da tensão irredutível, no que diz respeito
autodeterminação no interior do próprio Esta- aos direitos sociais, entre o princípio da igual-
do, ou evitando-o radicalmente, a ele se contra- dade que os postula e as desigualdades ineren-
pondo. Mas de uma maneira ou de outra, aca- tes ao mercado. Essa tensão, no entanto, à época
bam por se revelar como constituintes de no- compunha uma realidade em que, como apon-
vas formas de sociabilidade que apontam para ta Santos (1997), o paradigma capitalista carac-
a transformação da sociedade civil, ampliando- terizava-se pela contradição entre os princípios
a e redefinido-a no interior das próprias regras da emancipação, apontando para a igualdade e
do jogo do poder político. Essa transformação a integração social, e o da regulação, gerindo os
ocorre, no entanto, num contexto em que en- processos de desigualdade e exclusão social pro-
tram em cena dois outros fatores: de um lado, o duzidos pelo próprio desenvolvimento capita-
progressivo debilitamento da soberania do Es- lista; já na atualidade, essa contradição deixa de
tado para a definição de suas políticas nacionais, ser criativa, constituindo-se a emancipação não
aumentando o descompasso entre as políticas mais no outro da regulação, mas no seu duplo,
econômicas e sociais que implementa, conti- gerando uma crise nos padrões de regulação e
nuando estas últimas a terem como referência o de gestão controlada do sistema de desigualda-
Estado nacional, enquanto aquelas passam a ser de e de exclusão social. Isso na medida exata em
crescentemente determinadas pela economia que se verifica nas sociedades contemporâneas
global. De outro lado, aos movimentos sociais o mercado transformando-se no fator central
que emergem e se estruturam na América Lati- de articulação e organização da sociedade, rom-
na a partir dos anos 70, e que têm como objeti- pendo-se os contratos sociais de solidariedade
vo a luta pela conquista de determinados direi- que lhe eram próprios e passando a prevalecer
tos junto ao Estado nacional, acrescentam-se os princípios e as regras da esfera privada sobre
outros no período mais recente, tendo como re- aqueles inerentes à esfera pública. E, como con-
ferência não a sociedade local mas a global, ele- seqüência, perde-se a concepção do direito de
gendo organizações de âmbito global como are- cidadania, que passa a ser subsumida pela de di-
na de atuação e sujeitos de interlocução. reito do consumidor.
Destaque-se, porém, que o fato de no geral
os movimentos sociais estarem vinculados à
noção de carência, que se transforma no alvo de Relação Estado-sociedade num
suas ações reivindicativas, faz com que na con- contexto de destituição dos direitos
dição de sujeitos coletivos eles sejam exatamen-
te os “excluídos”, os “carentes” e os “discrimina- O fenômeno da desigualdade social ocorre de
dos”. E a partir dessa condição suas ações rei- maneira até certo ponto distinta nos países cen-
vindicativas tendem a se traduzir em conquis- trais e nos periféricos. Enquanto nos primeiros
tas não necessariamente de direitos – que im- o processo de maior fragmentação da diferen-
plicam a prestação pelo Estado de serviços legí- ciação social faz com que se passe de uma dife-
timos para cidadãos livres e iguais perante a lei renciação “dura” para uma “fluida”, dificilmente
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passível de uma codificação precisa e redun- uma outra abordagem aponta exatamente na
dando numa maior “opacidade social”, confor- direção oposta: a busca da ampliação da demo-
me analisado por Fitoussi e Rosanvallon (1996), cracia política e social como diretriz para a rear-
nos periféricos essa fragmentação retoma o ve- ticulação das relações entre Estado e sociedade
lho tema da marginalidade social dos anos 70, civil, colocando no centro do debate a questão
referida portanto fundamentalmente ao traba- da igualdade, da justiça e da solidariedade, num
lho; e atualmente, se configurando na exclusão processo de ampliação e consolidação da esfera
pura e simples de uma parcela crescente da po- pública.
pulação (Zaluar, 1997) não passível de ser glo- Enquanto a primeira vertente de certa for-
balizada, o que demanda que se mergulhe na ma recusa a característica inerente ao Estado
questão das configurações atuais da sociedade que vem a ser a política, constituindo a desmo-
civil. bilização e a despolitização do social a contra-
Assim, não é por acaso que se verifica no partida do fortalecimento da sociedade civil e
período recente o ressurgimento do tema da so- da retração das instituições políticas, a segun-
ciedade civil entre os cientistas sociais. Afirma da vertente apontaria para a ampliação da de-
Arato (1995): O notável êxito histórico da recu- mocracia política e social como instrumento
peração do conceito [de sociedade civil]... deveu- de rearticulação das relações Estado-sociedade
se ao fato de que ele prenunciava uma nova estra- civil, e tendo como eixo exatamente o fortale-
tégia dualista, radical, reformista ou revolucioná- cimento da dimensão pública da vida social no
ria, de transformação da ditadura, observada pri- próprio processo daquela rearticulação, con-
meiramente no Leste europeu e, logo depois, na forme assinalado por Grau (1996).
América Latina, para a qual convergiu e ofereceu No entanto, a atribuição de prioridade à di-
os elementos de uma compreensão intelectual. Es- mensão da esfera pública confronta-se uma vez
sa estratégia baseava-se na organização autôno- mais com um contexto social caracterizado exa-
ma da sociedade, na reconstrução de laços sociais tamente pela fragmentação da ação coletiva,
fora do Estado autoritário e na concepção de uma em grande parte decorrente da própria pulve-
esfera pública independente e separada de toda rização social e da falência dos mecanismos de
forma de comunicação oficial, estatal ou contro- regulação social até então prevalecentes, bem
lada pelos partidos. como pelo surgimento das novas formas de re-
Merecem destaque aqui três elementos apon- presentação social dos interesses dos distintos
tados pelo autor: o caráter autônomo da organi- segmentos e grupos sociais. Por outro lado, a
zação da sociedade, a reconstrução de laços so- atribuição dessa prioridade significa o reconhe-
ciais fora do Estado, e uma esfera pública inde- cimento não só da existência de uma tensão
pendente e separada de toda forma de comuni- crescente entre Estado e sociedade, mas tam-
cação oficial. Esses três elementos, sabidamente bém do fato de que a esfera estatal não se carac-
indissociáveis da totalidade à qual pertencem, teriza mais como sendo o monopólio do espa-
permitem retomar um dos problemas centrais ço de existência da esfera pública. A conseqüên-
na relação entre esses novos sujeitos sociais em cia lógica é a necessidade de que o próprio Es-
seus processos de criação de suas identidades e o tado passe a incorporar de forma ativa a socie-
Estado, qual seja, o lugar que ocupam hoje, que dade civil, conferindo espaços próprios às mo-
grupos sociais representam e qual a fonte de sua dalidades emergentes de solidariedade social. Is-
legitimidade, a definição de seus principais in- so porque, dado que se o estatal e o público não
terlocutores, e a natureza de suas demandas. se confundem, o fortalecimento da sociedade
Talvez essa perspectiva constitua uma alter- civil tem que se tornar solidário com a constru-
nativa interessante para se tentar sistematizar ção da democracia e da cidadania, implicando
as abordagens que vêm sendo propostas sobre a própria democratização do Estado. É nessa
a rearticulação das relações Estado-sociedade. rearticulação das relações do Estado com a so-
Uma delas, denominada por Grau (1996) de ciedade civil que passa a residir a possibilidade
neoconservadora, preconiza a ampliação da es- de emergência das condições para a recriação
fera de ação da sociedade civil a partir da nega- da cidadania política e a expansão da cidadania
ção do Estado, dentro das normas institucio- social, como aponta Grau (1996) em seu texto.
nais vigentes. Neste caso, como aponta Lechner Dessa perspectiva ganha relevância a pro-
(1981), a conseqüência seria uma desmobiliza- posta de Cohen e Arato (1992) de se distinguir
ção e uma despolitização sociais decorrentes do entre sociedade civil como movimento e socie-
próprio fortalecimento da sociedade civil. Já dade civil como instituição, a primeira confi-
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gurando-se como uma sociedade civil consti- de relação entre Estado e sociedade civil sofrem
tuinte, que cria a segunda, sua versão constituí- mudanças, altera-se a condição de os sujeitos
da e institucionalizada, em que pese o fato de, coletivos se definirem e agirem pautados pelos
como alertam os autores, a relação temporal quesitos normativos envolvidos na cidadania.
entre ambas nem sempre ser evidente. Também Em primeiro lugar, pela própria pulverização
é oportuno que se registre a proposta dos auto- dos espaços de construção dessa identidade “ci-
res de se distinguir, para fins analíticos, entre dadão”, não mais como antes referida única e
uma sociedade econômica, caracterizada por exclusivamente ao Estado. Em segundo lugar,
relações ditadas pelas formas de propriedade e porque ela implica hoje a reconstrução de redes
associações de cunho puramente econômico; associativas sob novas condições de igualdade,
uma sociedade política, fundada nos partidos e justiça e liberdade, sendo que os sujeitos coleti-
no sufrágio; e uma sociedade civil, fundada em vos – como segmentos organizados da socieda-
direitos de comunicação, associação e movi- de – na grande maioria dos casos pautam suas
mentos civis. Para os autores essa distinção per- atividades por interesses particularistas; em
mitiria superar o tradicional dualismo entre Es- terceiro lugar, porque em sociedades dos países
tado e sociedade, e imprimir, ao mesmo tempo, “emergentes”, como é o caso brasileiro, as deter-
ênfase à dimensão normativa da vida coletiva, minações ditadas pelos constrangimentos eco-
sem que à “colonização do mundo da vida” – tal nômicos que lhes são impostos pelo processo
como apontado por Habermas – seja atribuída de globalização, dada a opção política de inser-
a fatalidade da falência da integração social. ção econômica na nova ordem global dos anos
Em decorrência, as novas configurações das mais recentes, não só agravam a pulverização e
relações entre Estado e sociedade civil são pas- a fragmentação social, e portanto a diferencia-
síveis de serem pensadas a partir da capacidade ção social, dificultando assim a criação de redes
de a ordem instituída integrar no processo de- associativas, como agravam a desigualdade so-
cisório os múltiplos atores sociais presentes no cial, radicalizando a segmentação entre os “in-
novo cenário das sociedades contemporâneas, cluídos”, ou passíveis de o serem, e os “excluí-
preservando-se as condições para a possibili- dos”, conforme analisa Fiori (1993), sem qual-
dade de institucionalização das aspirações nor- quer alternativa de inserção social sustentável a
mativas desses atores, que dessa forma se trans- médio e longo prazos que não seja através da
formam em projetos. Mas isso, por sua vez, im- ação estatal.
plica que os movimentos sociais transitem de Essa situação, por sua vez, contrapõe-se a
uma prática política defensiva para uma prática duas outras forças presentes nas nossas socie-
política ofensiva, pondo em relevo a necessida- dades contemporâneas: uma delas consiste na
de de desenvolverem uma política de influên- tendência e na pressão para que o mercado im-
cia sobre o Estado para que este, segundo Grau ponha sua dinâmica e sua lógica como padrão
(1996), abra o universo do discurso político a no- organizador da sociedade, transferindo a res-
vas identidades e a normas articuladas, de ma- ponsabilidade da provisão das necessidades so-
neira igualitária, na sociedade. ciais para a esfera individual ou familiar, vale
Resgata-se dessa forma a dimensão política dizer, para a esfera privada, como analisa Lau-
do Estado, propondo-se a diferenciação entre a rell (2001) ao tratar das reformas das políticas
esfera pública e a esfera estatal, ao mesmo tem- sociais mexicanas no período recente. A segun-
po que se enfatiza a esfera pública na sua di- da força aponta no sentido oposto, e conflui pa-
mensão social, portanto como uma entidade ra a perspectiva analítica até o momento apre-
sempre em construção através da dinâmica de sentada, e diz respeito à demanda e/ou expec-
os sujeitos coletivos buscarem participar de tativa excessiva sobre esses “novos” sujeitos so-
forma ativa das decisões estatais. A proposição ciais, para que sua prática esteja voltada para as
dessa perspectiva, no entanto, confronta-se no- necessidades e demandas coletivas – a univer-
vamente com a realidade da atual conjuntura salidade dos direitos – e não para suas necessi-
marcada pela fragmentação e pulverização so- dades imediatas e particulares. Como afirmam
cial, e conseqüente mudança dos padrões clássi- Kymlicka e Norman (1996): Os teóricos da so-
cos de representação de interesses dos distintos ciedade civil demandam demasiado das organi-
segmentos sociais, bem como dos mecanismos zações voluntárias quando esperam que sejam a
e dinâmicas de construção das novas identida- principal escola... da cidadania democrática. Se
des sociais como sujeitos coletivos. Noutros ter- bem essas associações possam ensinar as virtudes
mos, da mesma forma que os padrões clássicos cívicas, esta não é sua razão de ser... Seu objetivo
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é fundamentalmente pôr em prática certos valo- te invadindo o espaço da política, e a política


res e desfrutar de certos bens, e isto pode ter pouco dos cidadãos contrapondo-se às duas anterio-
a ver com a promoção da cidadania. Em resumo, res, por aí prevalecerem o debate público e a
verifica-se na atualidade a presença de duas for- participação comunitária, neste caso sendo es-
ças opostas e não equivalentes: uma, que enfati- tratégica a educação dos cidadãos no sentido de
za o âmbito individual e a dimensão privada do valorizarem o diálogo e a busca do consenso co-
plano do mundo da vida, e outra, que enfatiza mo meio de resolução de conflitos e de organi-
o âmbito coletivo e a dimensão pública daque- zação da vida.
le plano. O maior ou menor equilíbrio entre Por outro lado, Costa (1994) retoma em seus
ambas certamente é determinado pelo patamar artigos a relação entre as formas de organização
dos níveis de carência presentes na sociedade, e de interesses no âmbito da sociedade civil (no
sua dinâmica estará igualmente determinada seu caso especificamente os movimentos so-
pelo resgate da dimensão política do Estado. ciais) e a emergência de suas demandas no âm-
Marcada não só pela crescente diferenciação bito da esfera pública, transportando assim para
e pluralidade de sujeitos e atores sociais com o plano público as “situações-problema” emer-
distintos graus na consolidação de sua identi- gentes no âmbito das relações cotidianas, e por-
dade social, mas concomitantemente pela ten- tanto no âmbito do mundo da vida. Neste caso,
são entre as esferas pública e privada como prin- à institucionalização de múltiplas cidadanias
cipal elemento organizador da vida em socieda- corresponde o reconhecimento da emergência
de, a realidade atual acaba levando a que a ques- de múltiplos sujeitos sociais que como grupos
tão dos direitos e da cidadania se apresente nos de interesse se organizam e se apresentam de
estudos mais recentes da perspectiva de se bus- formas diversas no âmbito da esfera pública.
car compatibilizar gradações e possibilidades Nesse processo, como aponta o autor, a ação di-
distintas de cidadania, uma vez que segundo ferenciada desses sujeitos sociais deve consistir
Vieira (2001) A cidadania, no âmbito deste es- “a um só tempo na busca da devolução do ca-
forço coletivo, não pode mais ser vista como um ráter privado às esferas privadas e da natureza
conjunto de direitos formais, mas como um modo pública às questões públicas”, contrapondo-se
de incorporação de indivíduos e grupos ao con- exatamente à tendência à “feudalização” dos es-
texto social. Nesse sentido, a institucionalização paços públicos por determinados grupos de in-
de múltiplas cidadanias apontaria para a garan- teresses desproporcionalmente poderosos que
tia da justiça e da eqüidade social, que devem se fazem presentes nos centros decisórios.
levar em conta a heterogeneidade e a multipli-
cidade das identidades sociais, neste caso enfa-
tizando-se a dimensão cultural, tal como pro- Apontamentos sobre a experiência
posto por Kymlicka e Norman (1996). recente da saúde no Brasil
Outros autores, no entanto, privilegiam a
dimensão política da cidadania, como é o caso O percurso aqui realizado remete a uma ques-
de Walzer (1992), analisando a sociedade civil tão central, agora referida especificamente às
da perspectiva do conflito e do enfrentamento propostas para o setor da saúde como um pro-
de interesses diferenciados. Assim, para o autor, cesso de reformulação institucional do sistema
é por permitir o enfrentamento crítico das di- de saúde – o Sistema Único de Saúde – que traz
versas reivindicações sociais que a sociedade ci- consigo uma nova institucionalidade da parti-
vil desempenha sua tarefa de gerar civilidade, já cipação da sociedade no processo de tomada de
que o respeito à diversidade e ao pluralismo é decisões políticas através da constituição dos
que funda o discurso da cidadania. Conselhos de Saúde como instâncias delibera-
Traduzida para o caso brasileiro, essa pers- tivas.
pectiva pode ser reforçada pela análise apre- É abundante a literatura a respeito das ex-
sentada por Nogueira (2001), que, ao partir da periências dessa modalidade de participação da
perspectiva da política como uma aposta na sociedade no processo de formulação das polí-
possibilidade de um diálogo construtivo entre ticas de saúde, não sendo pertinente portanto
as pessoas, distingue a política dos políticos, a apresentar aqui mais um balanço sobre elas,
política dos técnicos e a política dos cidadãos. A mas simplesmente pontuar algumas das princi-
política dos políticos caracterizando-se por ser pais questões que daí emergem tendo em vista
universal e permanente, a dos técnicos caracte- a perspectiva aqui adotada. Em resumo, o que
rizando-se pela racionalização e crescentemen- está em jogo é se indagar sobre até que ponto e
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em que sentido essa modalidade de participa- Mas retomando-se a dimensão da política


ção de distintos segmentos organizados da so- dos cidadãos, e resgatando a tendência já apon-
ciedade nessas instâncias efetivamente avançam tada anteriormente de no geral se demandar em
no processo de “democratização da democra- demasia dos movimentos e organizações sociais
cia”, parafraseando Costa, ou reforçam a pre- quanto a serem a principal escola da cidadania
sença da dimensão privada e particularista no democrática, o fato de essas experiências de con-
processo de formulação das políticas de saúde trole público através da participação da socie-
dados os diferentes interesses aí presentes. dade nos Conselhos de Saúde ocorrerem num
Dessa perspectiva ganham destaque algu- contexto de destituição dos direitos sociais, as-
mas características que a dinâmica de tal expe- sociado ao altíssimo grau de desigualdade social
riência vem apresentando. A primeira delas diz da nossa realidade, faz com que se acentuem,
respeito à evidência da baixa rotatividade dos de um lado, uma maior aproximação entre esse
seus membros, traduzindo provavelmente uma próprio controle e a gestão do Estado, e de ou-
insuficiência do exercício democrático no âm- tro a proeminência da política dos técnicos so-
bito da própria sociedade civil, que assim per- bre a política dos cidadãos, agravando a tendên-
mite que se cristalizem determinados sujeitos cia a uma progressiva tecnificação das políticas
sociais como representantes dos distintos inte- sociais, conforme análise de Cohn (2000).
resses econômicos e de demandas a partir de Da mesma forma, ao mesmo tempo que a
carências aí presentes. A essa baixa densidade realidade atual caracteriza-se pela presença de
do exercício democrático, herança do próprio novos espaços de construção de novos sujeitos
processo da reforma sanitária brasileira quan- e identidades sociais, expressando assim a pró-
do os grupos que a lideravam voltaram-se mais pria fragmentação social da própria realidade,
para o Estado do que para a sociedade, associa- esta é marcada por uma generalização de ca-
se uma concepção de que os Conselhos de Saú- rências que, vividas e representadas de formas
de como instâncias do exercício do controle so- específicas pelos distintos sujeitos coletivos, faz
cial, tal como incorretamente sempre foi deno- com que a base social das ações coletivas e suas
minado, constituem na sua prática cotidiana formas de ação se tornem mais próximas, difi-
instâncias de negociação regidas por uma no- cultando que suas demandas no processo polí-
ção que não diferencia bem comum de interes- tico de representação de interesses postulem a
se comum. De fato, os fundamentos que justi- condição de “interesses generalizados” e aca-
ficam não só a existência dos Conselhos, mas bem por prevalecer como “particularismos ge-
também a própria dinâmica através da qual se neralizados”, utilizando-se aqui a expressão de
dá a escolha dos seus representantes pressu- autoria de Costa (1994). Dessa perspectiva, a
põem a coincidência entre interesse comum – “democratização da democracia” vê-se pouco
no sentido de que o interesse de cada grupo enriquecida, embora do ponto de vista do ar-
coincide com o interesse dos demais – e bem cabouço institucional a implantação do SUS
comum, no sentido da garantia de que os cida- seja beneficiada ao contar com essas instâncias
dãos tenham seus interesses igualmente consi- como um fator a mais exercendo pressão para
derados nos processos de tomada de decisão. que ele se efetive. Nesse sentido, e recuperando
A segunda característica diz respeito ao a análise de Paoli e Telles (2000), o que está em
crescente distanciamento entre representados e jogo é o questionamento sobre se de fato esses
representantes, ou vice-versa, na exata medida espaços de representação, negociação e interlo-
em que a dimensão burocrático-administrati- cução efetivamente se constituem em arenas
va avança em detrimento da dimensão política públicas no processo de tomada de decisões.
propriamente dita: as pautas e discussões trava- Mas, paradoxalmente, talvez a explicação
das naqueles espaços são marcadas por questões para a tendência à burocratização e tecnificação
operacionais, e não propriamente por negocia- da agenda que comanda as pautas das reuniões
ções entre interesses divergentes ou diferencia- dessas instâncias resida no próprio fato de ne-
dos, traduzindo assim o que Nogueira aponta ao las a representação de interesses prevalecerem
distinguir a política dos técnicos da política dos como “particularismos generalizados” e não co-
cidadãos. Interessante registrar aqui que nesse mo “interesses generalizados”, o que traduziria
sentido os Conselhos constituem uma instân- que diante da ausência da política dos cidadãos
cia sui generis dado que a política dos políticos e dos políticos prevaleça a política dos técnicos.
tanto no sentido apontado por Nogueira quan- Mas é exatamente pelo fato de tal hipótese ir ao
to por Cohen e Arato aí não se faz presente. encontro do forte traço racionalizador que vem
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marcando nesta última década a trajetória in- avanços no sentido de se passar de uma prática
telectual e política dos sujeitos que constituem política defensiva para uma prática política
o campo da Saúde Coletiva no Brasil que é im- ofensiva, abrindo o universo do discurso políti-
portante se questionar até que ponto a história co para novas identidades e normas socialmen-
recente das políticas de saúde no país vem te articuladas de maneira igualitária. E até que
apontando para a construção de um padrão de ponto a produção acadêmica tem buscado con-
civilidade em nossa sociedade através da valori- templar essas dimensões sem cair na armadilha
zação política do confronto entre distintas rei- de se retomar a antinomia entre Estado e socie-
vindicações e necessidades de saúde. Noutros dade civil ou, no outro extremo, de se retomar
termos, até que ponto essa trajetória apresenta a coincidência entre ambos, confundindo-se o
público com o estatal.

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