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ANPUH – Associação Nacional de História / Núcleo Regional de Pernambuco

O COTIDIANO BRASILEIRO DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DAS IMAGENS DE


RUGENDAS.
Élcia Bandeira / Luiz Aragão / Mário Ribeiro
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O COTIDIANO BRASILEIRO DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DAS IMAGENS DE


RUGENDAS.
Élcia de Torres Bandeira, profª UFRPE História do Brasil
elciabandeira@terra.com.br
Luiz Adriano Lucena Aragão, graduando em História UFRPE
adriano_lucena@hotmail.com
Mário Ribeiro dos Santos, graduando em História UFRPE
mariorisan@yahoo.com.br
EMENTA

A pesquisa tem como principal finalidade resgatar a importância artística e histórica da


documentação iconográfica produzida pelo pintor alemão Johann Moritz Rugendas na sua
passagem pelo Brasil, na primeira metade do século XIX, e sua possível utilização como recurso
didático alternativo. Considerando a importância no tocante à diversidade das informações
contidas nas obras desse cientista das artes, adotaremos uma divisão para o trabalho em três
momentos distintos: primeiro, a biografia do artista; segundo, a análise descritiva da obra com a
respectiva inserção no contexto histórico e, por fim, a importância da análise iconográfica para
pesquisadores das diversas áreas do conhecimento.

BIOGRAFIA DE JOHANN MORITZ RUGENDAS

Johann Moritz Rugendas nasceu em 29 de março de 1802, na cidade de Augusburgo, na


Alemanha. Filho primogênito do gravador, editor e diretor da escola de desenho de Ausburgo
Johann Lorenz Rugendas, com quem aprendeu desde a infância a dar os primeiros traços no
papel.
Os Rugendas havia se estabelecido na cidade de Augsburgo já no início do século XVII,
onde foram ganhando prestígio, primeiro como fabricantes de relógios e depois como pintores e
gravadores.
Com vistas a assumir o ateliê familiar, Rugendas iniciou nas artes desenhando gravuras de
animais e naturezas-mortas, com peças de caça e depois complexas cenas de batalhas – um
assunto que constituía especialidade do trabalho de Rugendas.
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Essa tendência às cenas bélicas, deve-se a sua formação inicial com o pintor de batalhas
Albrecht Adam, que lhe ensinou com grande maestria, traçar detalhadamente, cavalos, uniformes
militares e paisagens.
Foi nesse momento da formação profissional do pintor que surgiu a oportunidade para
integrar, como desenhista, o projeto de reconhecimento científico do interior do Brasil,
organizado por Georg Heinrich von Langsdorff – cientista renomado da Universidade de Gotinga
e cônsul geral da Rússia a serviço do czar Alexandre I, no Brasil.
No Brasil, a sua chegada aconteceu no Rio de Janeiro em 3 de março de 1822, e seu
primeiro destino foi a Fazenda da Mandioca, localizada no interior do Rio de Janeiro, de
propriedade de Langsdorff e reduto de importantes pesquisas agrícolas. Foi daí que nasceram os
primeiros trabalhos sobre escravos e mão-de-obra livre, além das primeiras cenas que
caracterizavam o cotidiano da cidade.
Rugendas viu o Brasil para muito além de suas flora e fauna “exóticas”. Acompanhou
toda a efervescência política que acontecia no Brasil, já que em setembro de 1822 chegou a
assistir a independência do Brasil e a coroação de D.Pedro I. Entrou em contato também com
uma realidade social desconhecida: o cativeiro dos negros, os navios negreiros, passando pelo
desembarque dos escravos, mercados de escravos, cenas de torturas e até mesmo o registro da
sensualidade das negras africanas em terras brasileiras.
Ele chegou ao Brasil ainda muito jovem, com apenas 19 anos e durante os primeiros
meses permaneceu ligado a Langsdorff. Porém, pouco tempo depois de sua chegada,
desvinculou-se da expedição por intervir violentamente a favor do colega e zoólogo Ménétriès,
sobre pagamentos e entregas de materiais ao barão Langsdorff. Depois de muitos insultos e
acusações de ambas as partes, concluía-se uma relação iniciada há quase três anos, a partir do
contrato firmado na Alemanha em 1821. Nesta ocasião, provavelmente estava se ligando a outros
artistas da Missão Artística Francesa que havia chegado ao Brasil em 1816 para a fundação da
Academia de Belas-Artes.
Conforme o relato de viagem escrito por Langsdorff, a expedição já havia passado pelo
interior das províncias de São Paulo, Minas Gerais, entre outros lugares como Barbacena, São
João Del Rei, Ouro Preto, Sabará e Diamantina. Foi neste caminho que Rugendas desvinculou-se
da expedição, faltando pouco para que a rota desta fosse concluída.
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Na capital brasileira, estabeleceu relações com outros artistas, notadamente com Jean-
Baptiste Debret, com a família de Nicolas Antoine Taunay e com Aymé Adrien, que o
substituiria na expedição de Langsdorff a partir de 1825.
Este ambiente foi muito importante para o pintor, pois criou condições para que ele
refletisse sobre o que significava o “Novo Mundo”. Estes amigos proporcionaram os primeiros
contatos, facilitando a Rugendas acesso ao mundo cultural francês quando retornou a Europa em
1825.
Apesar dos desacertos iniciais ligados à expedição, o pintor alemão continuou de forma
independente com o seu trabalho. Ele passou a fixar imagens de paisagens e tipos humanos ainda
pouco conhecidos na Europa. Porém, a rota que Rugendas teria realizado depois de 1º de
novembro é motivo para numerosas especulações. Alguns estudiosos como Gertrud Richert
sugere que o artista passou pelas províncias de Minas Gerais, Mato Grosso, Espírito Santo e
Bahia.
De volta à Europa, Rugendas tratou de reunir cem dos seus desenhos no Brasil e publicá-
los numa obra suntuosa intitulada, Viagem pitoresca através do Brasil, cuja primeira edição saiu
simultaneamente em alemão e francês, editada pela litografia de Engelmann & Cia.
Rugendas também teve uma passagem pela América do Sul e o México onde desenhou e
pintou aspectos daquelas regiões. Quando retornou à Europa, semelhante ao que fez no Brasil,
publicou uma obra reunindo suas pinturas. Na época o rei da Prússia também lhe encomendou
algumas telas sobre as paisagens da América do Sul.
Depois de sua morte, em 1858 na cidade de Wilheim, muitos de seus desenhos foram para
o museu de Munich na Alemanha. Em 1928, após uma grave crise financeira, o museu vendeu
inúmeras obras e desenhos de Rugendas a Clovis Ribeiro e Wath Rodrigues que compraram
algumas e as trouxeram para o Brasil (São Paulo), onde outros colecionadores também
adquiriram as obras do pintor no que resultou na dispersão do material iconográfico.
No entanto, é lamentável tendo em vista a grandiosidade de sua obra, que não se tenha
ainda realizado um estudo mais detalhado, para não dizer completo, sobre este artista que
registrou romântica e sabiamente cenas de um Brasil oitocentista.
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ANÁLISE DA PINTURA PUNIÇÕES PÚBLICAS

Figura 1. Rugendas. Punições públicas. www.nascente.com.br


A gravura tem o negro como personagem central em muitos aspectos. Numa de suas obras
mais conhecidas, “Punições públicas”, datada do início do século XIX, Rugendas captou com
grande sensibilidade uma das cenas mais comum numa sociedade escravista: o açoite em praça
pública.
Por quase quatro séculos, o castigo foi peça básica para o pleno funcionamento e
manutenção da escravidão no Brasil. Seios furados, dentes quebrados, mutilações, queimaduras,
máscara de flandres, dedo de anjo, gargalheiras, pelourinho, tronco, viramundo, dentre outros
castigos mais atrozes e desumanos.
Partindo primeiramente da observação minuciosa da obra e da premissa de que a imagem
é uma representação simbólica do real, segundo a concepção do renomado professor Boris
Kossoy, ex-diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, podemos verificar que a
cena acontece no centro de um vilarejo com o objetivo de que o povo possa presenciar o fato,
mesmo com comportamentos diferentes: uns calmos e tranqüilos (brancos); outros, agitados e
apreensivos (negros).
O povo assiste à habilidade do carrasco ao aplicar os golpes de chicote no negro que está
sendo açoitado. O chicote tem cinco ou mais tiras de couro cru bastante espessas e retorcidas que
a cada golpe produz um efeito desastroso, deixando em carne viva o corpo do escravo.
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Embora fortemente amarrado ao “pau da paciência”, como se chama o pelourinho, a dor


dá-lhe tanta energia que a vítima encontra forças para se erguer nas pontas dos pés e flexionar a
perna direita a cada chicotada. Movimento compulsivamente repetido durante todo o suplício.
Entretanto, há alguns condenados que sofrem em silêncio até a última chicotada. De volta à
prisão, a vítima é submetida a uma segunda etapa não menos dolorosa: a lavagem das chagas com
vinagre, pimenta e sal.
Muitos estudos sobre a questão revelam que os castigos aplicados não eram para corrigir o
escravo punido, mas uma forma de espalhar o terror entre os que eram forçados a assistir aos
suplícios.
Como se nota na gravura, as punições em geral, eram aplicadas por outros escravos – atrás
deles, ou ao lado, porém, ficava o feitor, sempre pronto a punir qualquer brandura ou
esmorecimento por parte do carrasco (pessoa que aplicava as chicotadas).
O pé flexionado do escravo “carrasco” representa a força utilizada por ele para bater com
mais intensidade na vítima, a o mesmo tempo que servia para manter o equilíbrio durante os
intervalos das chicotadas.
O uso de uma corda amarrada nas mãos da vítima traduz o efeito de prisioneiro, de
alguém que perdera a liberdade e estaria, talvez, prestes a perder a vida.
Ainda no primeiro plano da cena, o artista retrata bem a nudez da vítima (costume
tipicamente romano, no qual o carrasco antes de chicotear o condenado desnudava-o, ofendendo
em sua dignidade).
A agonia dos escravos que assistem à cena é algo que cria um certo movimento na tela. A
figura do negro ao lado do pelourinho sendo sustentado por outro escravo, praticamente
desfalecido com a dor e a falta de forças depois de horas de tortura, está bem representada pelo
artista como forma de dizer que naquele momento não há mais resistência.
Na Província, do ponto de vista demográfico no período abordado, é notável a quantidade
de negros superior à população branca, sutilmente mostrada pelo artista. Bem como a aparição de
alguns pretos com trajes de “fidalgo” (geralmente escravos domésticos que exibia a riqueza de
seus senhores e/ou alforriados, em oposição aos escravos do eito que trabalhavam seminus).
Finalmente, no tocante à luminosidade e as cores utilizadas, Rugendas conseguiu dar um
semblante de névoa úmida na sua obra, como se aquele dia fosse realmente cinzento, sem luz,
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como se a energia estivesse se esvaindo; as cores espelhavam a tristeza e a dor que sentia o
escravo: pobre, preso e humilhado em toda a sua essência.

ANÁLISE DA PINTURA MERCADO DE ESCRAVOS

Figura 2. Rugendas. Mercado de Escravos. www.nascente.com.br

A obra “Mercado de escravos” reforça a idéia da comercialização do homem pelo próprio


homem que existiu no Brasil desde os primórdios da colonização; o protagonista dessa história
era o escravo, oriundo da África, comprado ou trocado, e que aqui chegava depois de longos e
nefastos meses nos porões dos navios negreiros.
Uma vez no Brasil, nos diversos portos de desembarque de escravos, principalmente nas
províncias de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, o grande contingente humano era
transportado através de pequenos lotes até os lugares de comercialização, conhecidos também
como entreposto comercial ou armazéns, onde passariam por um processo de higienização,
alimentação, até que chegassem os avalistas e compradores.
A maneira como o artista representou os escravos protagonistas da cena, deitados,
conversando à beira do fogo, fumando cachimbo, dormindo, brincando, olhando a paisagem,
contrasta totalmente com a realidade da época, quando se sabe que esses mercados, assemelhados
a cocheiras, ficavam os negros amontoados durante todo o dia, misturados entre homens,
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mulheres, velhos e crianças em péssimas condições de sobrevivência com pouca ou nenhuma


resistência. Os escravos andavam praticamente nus com um pequeno pedaço de tecido
envolvendo as partes íntimas e se alimentando de feijão, mandioca, carne-seca e frutas tropicais.

A IMPORTÂNCIA DA ICONOGRAFIA ENQUANTO FONTE HISTÓRICA

A historiografia tradicional defendia a idéia de que a história seria baseada apenas em


documentos escritos. Dessa forma se desprezava a pré-história e todo tipo de fonte não escrita.
Essa maneira de se escrever história apresentou limitações. Como abordar determinados temas
que não se encontram nos registros oficiais? Como reconstruir um pensamento de época, o
imaginário popular representado por aqueles que ficaram ausentes dos órgãos oficiais e dos
arquivos? Como revisitar uma imagem iconográfica estereotipada trazendo-a a luz de uma nova
interpretação histórica? Tais questionamentos só poderão ser respondidos a partir da análise de
novos recursos para estudo da história: visuais, orais, escritos etc.
A imagem enquanto fonte histórica permite o estudo das mentalidades e do cotidiano. A
iconografia trás em si múltiplas significações e cabe ao historiador lançar seu olhar crítico para a
realidade apresentada nas pinturas. Comparar, esmiuçar, identificar a simbologia que envolve
uma tela e depois desvendá-la em seu contexto histórico. Isso faz com que se comprove o
potencial da imagem como documento histórico.
No séc XIX o Brasil passou a ser observado de perto por estrangeiros, cientistas e
naturalistas europeus; isso se deve a turbulência causada pelas Guerras Napoleônicas que
resultaram na fuga do rei de Portugal D. João VI em companhia da família real para o Brasil. Ao
chegar aqui, D. João VI decreta a abertura dos portos: primeiro veio uma leva de ingleses
naturalistas: Thomas Lindley, John Mawe, Henry Koster e John Luccock fruto da tradicional
aliança de Portugal com a Inglaterra; a partir de 1816, foi a vez da Missão Francesa tomar a
frente das artes produzidas no país. Depois em 1822 é a vez da Missão Austro-Bavara dirigida
por Spix e Martius a qual trás o jovem Rugendas.
As obras de Rugendas que foram analisadas “punições públicas” e “mercado de escravos”
revelam que o autor já trazia em seu espírito imagens preconcebidas da realidade que iria
encontrar. Os viajantes, os cronistas e os artistas que aqui estiveram no séc XIX emitiam vários
juízos da nossa realidade social. Uns abominavam a escravidão, outros demonstravam ser
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favoráveis ao sistema de cativeiro, salientando as vantagens adquiridas com a manutenção do


trabalho compulsório e alguns achavam afáveis as condições de vida e de trabalho dos escravos.
Rugendas identifica nas suas obras alguns aspectos de seus personagens como o caráter e
o temperamento dos mesmos, transmitindo conceitos estereotipados: os Minas e os Angolas são
os melhores escravos, afáveis, dedicados e fáceis de instruir; os Rebolos são mais teimosos e
desanimados; os Gabanis são considerados selvagens e de pouca assimilação e os Mongolos por
serem pequenos, fracos e preguiçosos são os menos cobiçados. (Cf. KOSSOY, 1994, p. 28).
O que de fato nos interessa quando da análise das telas de Rugendas é desfazer
preconceitos e interpretar a visão oitocentista na sua realidade: excludente, exploradora e
escravocrata, além de resgatar o outro lado da imagem, ou seja, aquilo que não se encontra
explícito na iconografia. No séc XIX criou-se uma imagem brasileira que revela bem mais a
visão e o imaginário que europeu quis fixar de nosso país.
Uma vez identificada às deformações, às omissões e à profundeza do material visual
contido nas telas cria-se um campo vasto para o estudo da realidade da época, dos costumes, da
vida urbana e cotidiana, das desigualdades sociais e das mentalidades. A reconstrução de uma
imagem permite um novo recurso didático para ensino da história, as imagens deixam de ser
meras ilustrações artísticas para se tornarem fontes documentais que trazem em si distorções, mas
também a possibilidade de uma reinterpretação histórica.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA

AQUINO, Rubim Santos Leão de; et al. Sociedade brasileira: uma história através dos
movimentos sociais. 4º Ed. Rio de Janeiro: Recorde, 20001.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. 2ed. rev. São Paulo: Ática, 2003.
CHIAVENATO, Júlio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai. 2º ed. São
Paulo: Brasiliense, 1980.
DIENER, Pablo e Costa, Maria de Fátima. Rugendas e o Brasil. São Paulo: capivara, 2002.
KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu: o negro na iconografia
brasileira no séc XIX. São Paulo: Ed Edusp, 1994.
MAGALHÃES, Junior. O rio de Rugendas. S.L, 1988.
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. 8ª ed. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1979.
Http://www.nascente.com.br/rugendas/r000.Html. Acesso em 25 de Set de 2004.

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