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PERSONAGENS – O “EU” QUE EXISTE EM CADA HOMEM

Universo feminino

A relação do “eu” personagem ou do “eu” narrador com o universo feminino reflete-se e


assume-se na cumplicidade de uma manifesta atração/rejeição, no entendimento silencioso da
vida pacificada pela comunhão com a mulher, no reconhecimento de uma superioridade
feminina não apenas pela sensibilidade e inclinação para a introspeção, mas pela sua
identificação com a Ordem do mundo (origem).

A mãe – é a personagem cuja presença se manifesta pela ausência. A mãe, ao preferir o irmão
mais novo, rouba uma parte do amor que deveria pertencer a Alberto, operando, assim, a
ausência sempre viva que o empurra para a Mulher como uma forma de encontrar a Presença
perdida da infância.

Da presença da mãe, apenas as imagens de uma velhice marcada pelo cansaço, desilusão,
bondade, revolvendo as cinzas do passado. A sua Presença manifestar-se-á pelo silêncio
quando já tinha aprendido a sua voz, e torna-se uma verdade na ceia de Natal que só ambos
partilham como num encontro longamente esperado e para o qual a mãe se “vestira de festa”,
a festa da união com a Ordem – “Eis-nos pois testemunhas do nosso próprio destino…”.

Pela Páscoa, o seu olhar “torna-se espesso de sonho, mas vivo de ânsia, de sorriso longínquo,
envelhece […] Agita-se pela casa, que centra ao seu mando, ordena a vida para a morte”. O
filho é já uma ausência que assume – “mesmo presente, é como se fosse ausente, porque a
ausência assumida, assimilada à velha ordem, é o mundo ou dele parece”.

Ana – a importância desta personagem é marcada desde o início da ação – “conhecia a mulher
do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha os cabelos longos e lisos, a face magra de energia e ânsia, o
olhar vivo de estoque… O lábio superior abria-se com uma irregularidade de um dente”. A
ansiedade da sua inquietação permanente, a sua vivacidade de espírito, o fascínio que exerce
sobre Alberto estão denunciados na evocação repetida do seu nome.

Os deuses que a povoam, as inquietações sobre a vida, as interrogações, a sua beleza, a


sexualidade das formas do seu corpo são os elos de união ao protagonista que nada destruirá
– “E eu projetava-me todo, fascinado, por aquela pessoa inteira, fechada no limite dos seus
seios fortes, das suas ancas volumosas e solenes como a noite germinadora, das suas mãos
imóveis, do seu dente ingénuo de imperfeição”. Este dente importa que tenha a imperfeição
da infância, a sua pureza, a sua ingenuidade, mas, porque é marca da imperfeição, impede que
a personagem seja uma deusa.

Ana é uma eleita, mas só é uma deusa para o marido – “porque a minha Anicas, em coisas de
livros, de cultura é uma deusa”. O protagonista oscila quanto a esta superioridade divina,
quanto ao tudo ou ao nada – “Mas então eu fui necessário”. De seguida, a contradição – “Mas
eu não te ensinei nada”. A contradição é apenas aparente. Ana tinha a sabedoria, também ela
pensava ter resolvido os seus problemas com os deuses, faltava-lhe apenas a “palavra”, o dom
de comunicar o pensamento. É Alberto que lhe ensina a palavra. São as suas palavras que
aprenderá para dizer ou silenciar aos outros as suas inquietações.

A viagem/busca que ambos empreendem une-os desde um tempo de origens, daí a


cumplicidade manifesta nos primeiros encontros como se se conhecessem desde sempre; é
ainda Cristina que os une. Ana vê em Cristina a filha de uma fecundidade perdida para sempre,
mas também vê a irmã, igual em termos de eleição. Considera-se irmã de Cristina e de Alberto
– irmãos de predestinação –: “Sou irmã dela, Eu […] “Sou irmã dela e de você e ‘disto’ que
anda aqui neste grande silêncio […] Só sei que vejo”.

Ambos em união desde sempre e para sempre? Com uma diferença. Ana, depois da morte de
Cristina, encontra uma certa paz e uma certa necessidade do divino que não sabe explicar –
“Sou pequena e sei que a grandeza existe”.

Na última imagem que temos de Ana, esta encontra uma certa paz – a leitura parece ser a sua
catarse. Passa a usar óculos – “os óculos a situá-la num mundo de resignação, de outra idade,
as duas crianças brincando sob a paz do seu olhar”. Alberto procurará a catarse pela escrita,
encontrará a paz pela presença silenciosa da mulher.

Sofia – a primeira imagem da personagem é transmitida pelo pai (“A minha Sofia, que também
faz versos…”), evidenciando pelo advérbio “também” uma comunhão com Alberto. De
imediato, o protagonista, como gosta de fazer no ato da escrita, passa à evocação: primeiro
pela sua sensualidade, “o corpo esguio”, “o seu olhar ácido de pecado”; depois pela força do
canto, um canto que ilumina de loucura, que transcende o real – “o canto não era nela senão o
anúncio de que estava viva, de que estava presente na terra”.

Sofia é desde o início da narrativa a personagem complexa e contraditória. Tem algo que toca
a divindade – “Os céus estremeciam à anunciação da tua divindade”. No rosto tinha
estampado o “mistério da vitória e do desastre, da violência do sangue”.

É a que se julga excecional e por isso se veste em perfeição, evidenciando a sua beleza sensual
que seduz irresistivelmente e, tal como Circe, mortifica como um veneno – “És bela, Sofia.
Bela. Como um veneno”. Talvez por isso, para Alfredo, não seja uma mulher, mas um demónio.

Sofia joga sempre no universo das contradições, até nas relações com os outros. Seduz e
sujeita. Adula e humilha. Deseja e despreza. O protagonista é vítima do jogo, entra nele como
se sempre lá tivesse estado, mesmo antes de se conhecerem, como se esse fosse um jogo de
ancestralidade, que lhe permite compreender as atitudes inesperadas e inexplicáveis. A poesia
não era a única verdade a uni-los. Também Sofia descobrira “a vertigem da vida, da sua
pessoa, da gratuitidade desse absurdo milagre, da interrogação para o amanhã: “Eu já
conhecia tudo”.

Tal como em relação a Ana, a presença de Alberto serve-lhe pelo menos para ver melhor ou de
forma mais aguda a grande interrogação do futuro. Também para ela o Presente se fratura em
Passado e Futuro. O presente é apenas o que resta de ontem – “Queimar no dia a dia os restos
de ontem. Ser só aberta para amanhã”.

A sua sexualidade e o seu desafio ao mundo fantástico que a habita só poderiam soar-lhe a
“uma união trágica e blasfema” e, ao tomá-la nos braços, o mesmo sentimento se apodera de
ambos, sentem-se “perdidos de aflição”, o amor é um sentimento de “dois condenados à
morte”. É uma relação impossível condenada pelas afinidades, condenada pelas diferenças
que marcam essas afinidades. Ambos interpelativos, ambos eleitos na capacidade de
interpelação, mas diferentes nos processos. A busca que Alberto empreende faz-se pela rigidez
do silogismo. A busca de Sofia é intempestiva, dolorosa de desespero e de coragem. É pela
contradição entre o desespero (os seus cantos de desvario) e a coragem “sem ilusões” que
tenta o suicídio.
A relação com Carolino é provocação a Alberto, mas é a atração da loucura e da morte, é ter o
outro lado do protagonista, aquele em que a lógica dos sofismas não atuava, aquele que
poderia cumprir a sua escolha – a morte.

Cristina – 7 anos (número da perfeição). Filha da moral. Morre “quando os campos estalam de
fecundidade”, morre pelo Carnaval como uma espécie de desagravo, de sacrifício ao Senhor.
Morre enquanto o pai cantava na Sé, desagravando pelo canto o Senhor dos pecados do
Carnaval.

Cristina é a imagem da Ordem/Presença (Verdade original). Ela é a voz mais perfeita (a


verdade) de tudo o que aconteceu ao protagonista. Depois de morta, continua Presente pela
música – “Na obra do lençol tu tocavas, Cristina, para ti e para mim. Música do fim”, mas essa
“música” do fim pode ser a do ciclo que se fecha, reencontrando a Ordem.

Cristina representa a verdade, o inextinguível, a grandeza, a plenitude, a pureza, a perfeição –


a Ordem –, por isso o protagonista a guarda na memória como um nascimento, a aparição de
“uma verdade inacessível”. É mais do que uma eleita. É a própria Ordem. A sua protagonista:
configura-se, assim, como tentada a justificação da vida perante a morte.

Assim,

O universo feminino é um universo de eleição. A Mulher, porque ligada à fecundidade, à


natureza, representa o topo da hierarquia do “ser”, permitindo o reencontro, a revelação
ainda que fugaz a Presença, da Ordem. Até a tia Dulce transportava consigo a fascinação do
tempo – “o sinal que nos transcende”.

O sentido de humanidade da Mulher ajusta-se ao protagonista – “O meu humanismo não quer


apenas um bocado de pão; quer uma consciência e uma plenitude”.

PINA, Julieta Moreno, 1997. Para uma leitura de Aparição de Vergílio Ferreira. Lisboa: Presença
(2.ª ed.)

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