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CS

A CONSTRUÇÃO
DO IMPÉRIO
AMERICANO
Os séculos XX e XXI
O intervencionismo
A política externa Presidente a Presidente
O poder militar
O sonho americano
O gigante económico
A rivalidade com a China

COLABORAÇÕES DE
PERIODICIDADE BIMESTRAL

Bernardo Pires de Lima, Carlos Branco,


N.º 61 · OUTUBRO 2020
CONTINENTE – €5,00

Diana Soller, Maria Fernanda Rollo, Nuno


Severiano Teixeira e Pedro Aires Oliveira
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Dedicada exclusivamente a assuntos históricos, cada número aborda um único tema, explorando-o de diversos
ângulos e pontos de vista. Com cerca de 100 páginas e lombada colada, a revista é de uma enorme riqueza
do ponto de vista gráfico, apresente textos, fotografias, mapas e infografias de alta qualidade.

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2770-190 Paço de Arcos
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Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
Composição do Capital da Entidade
Proprietária: 10.000 euros
Principal acionista: Luís Delgado (100%)
Publisher: Mafalda Anjos

Diretora: Cláudia Lobo


Editor: Luís Almeida Martins

Textos: Bernardo Pires de Lima, Carlos Branco, Clara Teixeira,


Diana Soller, Emília Caetano, Francisco J.M. Garcia, João Gobern,
João Pacheco, Luís Almeida Martins, Maria Fernanda Rollo,
Nuno Severiano Teixeira, Pedro Aires Oliveira, Pedro Caldeira
Rodrigues, Ricardo Silva e Teresa Campos.
Imagens: Biblioteca do Congresso dos EUA; Getty Images; GPA Heróis Parada de boas-vindas a soldados americanos regressados do Iraque, nas ruas de Nova Iorque
Photo Archive.
Mapas e infografias: Álvaro Rosendo e Manuela Tomé.
Design: Teresa Sengo (editora)
Revisão: António Ribeiro
Assistentes editoriais: Ana Paula Figueiredo, Sofia Vicente, Teresa
Rodrigues e Fernando Negreira (fotografia).
Mapa Uma potência planetária 4
Cronologia A construção do império 6
Esta revista foi posta à venda em outubro de 2020

12
Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Fonte de
Caspolima, Quinta da Fonte. Edifício Fernão de Magalhães, n.º 8.
2770-190 Paço de Arcos – Tel.: 218 705 000
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Um mundo Fundação O nascimento de um gigante
Sistema político Quem guarda
MARKETING
Diretora: Marta Silva Carvalho (mscarvalho@trustinnews.pt)
Gestora de marca: Marta Pessanha (mpessanha@trustinnews.pt) ‘americano’ a democracia americana?
por Diana Soller 20

A
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Diretora: Vânia Delgado (vdelgado@trustinnews.pt);
Diretora Coordenadora: Maria João Costa (mjcosta@trustinnews.pt )
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Porto: Margarida Vasconcelos (mvasconcelos@trustinnews.p)
s eleições presidenciais nos Es- aos americanos’ 24
Assistentes: Elisabete Anacleto (eanacleto@visao.pt);
Florbela Figueiras (ffigueiras@visao.pt) tados Unidos da América de
Porto: Rita Gencsi (rgencsi@trustinnews.pt) II Guerra Mundial O momento de viragem 28
Parcerias e Novos Negócios: Diretor: Pedro Oliveira novembro de 2020 são, segu-
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(rnogueira@trustinnews.pt)
Tecnologias de Informação: João Mendes (Diretor)
Produção, Circulação e Assinaturas: Vasco Fernandez (Diretor) para o mundo nas últimas dé- A ascensão da 'pax americana'
Pedro Guilhermino (Coordenador de Produção), Nuno Carvalho, por Pedro Aires Oliveira 34
Nuno Gonçalves e Paulo Duarte (Produtores), Isabel Anton
(Coordenadora de Circulação), Helena Matoso (Coordenadora de
cadas. A verdade é que nenhum
Assinaturas),
Serviço de apoio ao assinante. Tel.: 21 870 50 50 (Dias úteis das outro país, como os EUA, tem a capaci- Plano Marshall A construção americana
9h às 19h)
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de Baixo. Distribuição: VASP MLP, Media Logistics Park, Quinta do por Maria Fernanda Rollo 37
Grajal. Venda Seca, 2739-511 Agualva-Cacém Tel.: 214 337 000.
Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt – Tel.: 808 206 545,
planeta, e por isso a política interna ame-
Fax: 808 206 133
ricana é também externa, interessando Espaço A corrida espacial 40
Tiragem média: 21 500 exemplares
Registo na ERC com o n.º 125 643
Depósito Legal n.º 276 678/08
diretamente a todos. Isso deve-se ao facto Política externa 'Senhores do mundo'
de a grande potência de além-Atlântico por Bernardo Pires de Lima 42
ter construído, ao longo dos século XX e Forças Armadas O maior poderio militar
Estatuto editorial disponível em www.visao.pt nestes 20 anos já transcorridos do século de sempre
A Trust in News não é responsável pelo conteúdo
dos anúncios nem pela exatidão das características XXI, um verdadeiro império, cujos valo- por Carlos Branco 50
e propriedade dos produtos e/ou bens anunciados.
A respetiva veracidade e conformidade com a realidade res e referências influenciam toda a gente. Opinião Nuno Severiano Teixeira
são da integral e exclusiva responsabilidade dos
anunciantes e agências ou empresas publicitárias. Depois de, há quatro anos, termos de- Um mundo pós-americano? 54
Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, dicado um número da VISÃO História Imigração A terra prometida 56
fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios e
à formação dos Estados Unidos, ana-
62
para quaisquer fins.
Economia O capital americano
lisando minuciosamente todo o longo
período que medeou entre a chegada dos Infografia Uma potência económica 68
primeiros europeus e a Guerra Hispano- Tecnologia Os intocáveis do mundo novo 70
-Americana de 1898, ponto de partida Cinema Planeta Hollywood 72
ASSINATURAS do «império», é agora a vez de nos de-
Música Cantando espalharei por toda a parte 78
Ligue já bruçarmos sobre o período de 1900 em
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colaboração de vários especialistas. Eleições Quando o mais votado sai derrotado 82

Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos, bem como os mapas e infografias, são da responsabilidade da redação
Foto da capa: Estátua da Liberdade, Getty Images

VISÃO H I S T Ó R I A 3
EUA // MUNDO
• Gronelândia

•• Islândia

• Berlim
• Reino Unido
•• Alemanha
• Trieste, Itália
• Dalmácia
• Itália
•• Bósnia

Uma potência planetária


e Herzegovina
•• Jugoslávia
•• Kosovo
• Albânia
• Macedónia
• Marrocos

• México • Jamaica
•••• Cuba ••• Haiti
•• República Dominicana
•••• Honduras • Níger
•• Caraíbas • Dominica • Senegal
•• Guatemala •• Nicarágua
• El Salvador • Grenada • Guiné-Bissau
• Venezuela • Serra Leoa
••• Panamá • Guiana Holandesa
Os EUA estiveram •• Libéria
•• Colômbia
formalmente em guerra • Costa do Marfim
com outros países 11 vezes, • Gabão
em toda a sua História,
oito das quais no século XX. • Congo
• Peru
Houve também, nos últimos
120 anos, cinco guerras não
declaradas formalmente.
As instâncias em que as suas
Forças Armadas foram usadas • Bolívia
no estrangeiro são centenas.
Até à II Guerra Mundial, terão sido
sobretudo ações para proteger cidadãos
dos EUA ou promover os interesses
do país. Aqui se assinalam os países
em que houve uso de forças
americanas, fosse numa situação • Uruguai
de guerra fosse para ajudar a salvar
um grupo de estudantes fechado
numa gruta na Tailândia

FONTE ‘Instances of Use of United States Forces Abroad, 1798-2019’,


de Barbara Salazar Torreon e Sofia Plagakis, Congressional Research Service

4 VISÃO H I S T Ó R I A
• Lituânia ALEMANHA E IMPÉRIO AUSTRO-HÚNGARO JAPÃO, ALEMANHA, ITÁLIA, BULGÁRIA,
Na I Guerra Mundial, os EUA declararam HUNGRIA E ROMÉNIA
formalmente guerra à Alemanha Na II Guerra Mundial, os EUA declararam
e ao Império Austro-Húngaro guerra a Japão, Alemanha e Itália em 1941
e aos outros três países em 1942 • Sibéria
• União Soviética

• Polónia
• Ucrânia

• Roménia
• Geórgia
•• Coreia
• Grécia ••• Turquia ••• China
•• Síria • Coreia do Sul
• Chipre ••
• Palestina Líbano •• Afeganistão
•• Iraque • Irão • Japão
•• Líbia • Jordânia
•• Kuwait • Paquistão
• Sinai (Egito) • Golfo Pérsico
•• Egito
• Bahrain
• Taiwan
• Arábia Saudita
• Laos
• Chade • Vietname
• Eritreia •• Tailândia
• Sudão •• Iémen • Filipinas
• Djibuti • Camboja
• Abissínia
• Etiópia
• Sudão do Sul • Sri Lanka
•• República Centro-Africana
• Uganda •• Somália
•• Quénia
Em outubro de 2001, no seguimento
• Ruanda do ataque às Torres Gémeas, «forças
• Zaire • Burundi americanas começam uma ação
• República Democrática do Congo de combate no Afeganistão contra
•• Tanzânia os terroristas da Al-Qaeda e os seus
apoiantes talibãs». Inicia-se a «guerra
•• Timor-Leste
ao terrorismo», que justificaria
a intervenção e a movimentação
de tropas em muitos outros países

Países aos quais os EUA declararam formalmente guerra no século XX


Países com os quais os EUA tiveram guerras não declaradas formalmente
Países onde houve uso das Forças Armadas dos EUA:
• Entre 1900 e 1918
• Entre 1919 e 1945
• Entre 1946 e 2001
• Entre 2002 e junho de 2019 INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

VISÃO H I S T Ó R I A 5
EUA // CRONOLOGIA

A construção do império
1900 Os Estados Unidos da 1915 O paquete britânico Lusitania A pandemia da pneumónica, ou
América (EUA), fundados em 1776, é afundado por um submarino «gripe espanhola», começa a fazer
contam cerca de 75 milhões de alemão, causando mais de mil sentir os seus devastadores efeitos
habitantes e estendem-se de costa mortes, muitas das quais de nos EUA e será transportada para a
a costa do continente norte-ameri- cidadãos americanos, o que é uma Europa pelos soldados.
cano. Os EUA obtêm a separação das causas da posterior entrada dos
do Panamá da Colômbia e ocupam 1908 O republicano William EUA na guerra. Os EUA ocupam 1919 O Senado rejeita os termos
a zona onde estão paradas as obras Howard Taft é eleito Presidente. o Haiti, que administrarão até 1924. do Tratado de Versalhes, que põe
do canal, por falência da empresa Arranca a «diplomacia do dólar», Estreia-se o filme O Nascimento fim à I Guerra Mundial selando a
francesa que as iniciara em 1880. uma política externa dirigida à Amé- de uma Nação, de D.W. Griffith, que derrota da Alemanha. O país não
O republicano William McKinley, que rica Latina e ao Extremo Oriente obtém o primeiro grande sucesso pertencerá à Sociedade das Nações
conduzira o país durante a guerra (multiplicam-se entretanto os tra- comercial. (SdN), de que no entanto Wilson é o
contra a Espanha que assegurara o tados com o Japão) mais baseada principal promotor. Uma emenda
domínio de Cuba, das Filipinas e de na economia do que no uso da força à Constituição estabelece a Lei
Guam, é reeleito Presidente; Theo- militar. É fundado o Bureau of Seca (Prohibition), que ilegaliza a
dore Roosevelt é o vice-presidente. Investigation (futuro FBI), o serviço produção, importação, transporte
de informações e segurança interna e venda de bebidas alcoólicas em
1901 McKinley federal. Faz a sua aparição no toda a União.
é assassinado e mercado o popular automóvel
Roosevelt assume Ford T, que será produzido pela 1920 As mulheres conquistam
a Presidência. Ford Motor Company até 1927. o direito de voto, através

1900
São assinados tratados com 1916 Wilson é reeleito Presidente. de uma emenda constitucional.
países latino-americanos. O mi- Os EUA intervêm na República A primeira emissão de radiodi-
lionário J.P. Morgan funda a United Dominicana e compram as Ilhas fusão é concretizada pela KDKA.
States Steel Corporatin (U.S. Steel). 1910 Uma lei que, para combater Virgens à Dinamarca. Os imigrantes italianos Nicola
a prostituição, criminaliza o trans- Sacco e Bartolomeo Vanzetti,
1903 Roosevelt porte de raparigas entre os estados 1917 O Telegrama Zimmerman, en- anarquistas, são condenados à
inaugura a Big ou para o exterior (Lei do Tráfico de viado pelo governo da Alemanha ao morte por dois homicídios que não
Stick Diplomacy, Escravas Brancas), compromete seu embaixador no México, propõe cometeram, num caso, considerado
caracterizada por quaisquer relações consentidas uma aliança militar dos dois países político, de grandes repercussões
«usar palavras entre adultos, mas só virá a ser contra os EUA. Os americanos internacionais. O republicano
mansas e brandir revogada sete décadas mais tarde. declaram guerra à Alemanha e Warren G. Harding é eleito Presi-
um grande cace- enviam tropas para a Europa dente, sendo Calvin Coolidge vice.
te». Começam 1911 Por entender tratar-se de um As «Sentinelas Silenciosas»,
as «Guerras das monopólio, o Supremo Tribunal 1921 Por iniciativa dos EUA,
Bananas», que decreta a divisão da Standard Oil, arranca em Washington a Confe-
se traduzem por de John D. Rockefeller, em três rência de Desarmamento, fora dos
intervenções em dezenas de novas empresas. auspícios da SdN e com a participa-
países da América ção de nove países, entre os quais
Central e das Caraíbas, nomeada- 1912 Os EUA ocupam a Nicarágua, Portugal.
mente nas Honduras. O filme onde se manterão até 1933.
The Grat Train Robbery inaugura O democrata Woodrow Wilson é 1923 Um escândalo de corrupção
a temática western no cinema. eleito Presidente. Os territórios conhecido por Teapot Dome, que
do Novo México e do Arizona adqui- envolve a Administração, é conside-
1904 Roosevelt é reeleito Presi- rem o estatuto de estados. rado o maior da história ameri-
dente. Os irmãos Wright fazem lideradas pela sufragista Alice cana antes do caso Watergate.
o primeiro voo num aparelho mais 1913 Os EUA invadem o México Paul, iniciam uma presença de dois Começa a publicar-se a revista de
pesado do que o ar. envolvendo-se na revolução ali anos consecutivos em frente da atualidade noticiosa semanal Time.
em curso. Os senadores passam Casa Branca, manifestando-se pelo
1906 Os EUA ocupam Cuba. a ser eleitos por sufrágio direto. direito das mulheres ao voto. 1924 Uma lei de imigra-
Roosevelt recebe o Prémio Nobel ção impede os asiáticos
da Paz por ter negociado o Tratado 1914 Os EUA mantêm-se, 1918 Os EUA e os aliados invadem de se fixarem no país.
de Portsmouth, que pôs fim por enquanto, fora da Grande a Rússia mergulhada na guerra Edgar Hoover é nomeado
à Guerra Russo-Japonesa. Guerra que estala na Europa. civil, combatendo os bolcheviques. diretor do Bureau of

6 VISÃO H I S T Ó R I A
Foi ao longo do século XX que George Thomas James
Washington John Adams Jefferson James Monroe
os EUA se transformaram numa 1789-1797 1797-1801 1801-1809 Madison 1817-1825
potência planetária. Em friso, todos Apartidário Federalista Democrata- 1809-1817
Democrata-
Democrata-
-Republicano -Republicano
os Presidentes, desde a fundação -Republicano

Investigation, cargo que manterá pretexto da salvaguarda da moralida- A lei conhecida por Indian New 1941 O programa económico
durante 48 anos. O republicano de, induz os produtores cinematográ- Deal reconhece o direito das designado Lend-Lease permite ao
Calvin Coolidge é eleito Presidente. ficos a exercerem autocensura. tribos índias à autonomia. Reino Unido, à União Soviética, à
China, à França e a outros países
1925 O chamado Julgamento de 1931 É terminada 1935 Os Neutrality Acts marcam aliados envolvidos no conflito
Scopes, ou Julgamento do Macaco, a construção do o isolacionismo e a neutralidade contra a Alemanha e o Japão
divide a opinião pública entre Empire State dos EUA em todos os conflitos abastecerem-se de material de
criacionistas (defensores da inter- Building, em Nova internacionais. O Bureau of guerra junto dos EUA. Principiam
pretação textual do Génesis bíblico) Iorque, que, com Investigation transforma-se em as emissões regulares de televisão,
e evolucionistas (partidários das 102 andares, será Federal Bueau of Investigation (FBI), da responsabilidade da CBS e da
teorias de Charles Darwin; pouco durante 42 anos o sempre com Hoover à frente. NBC. A 14 de agosto, os EUA e
antes, a Lei Buttler proibira o ensino edifício mais alto o Reino Unido assinam a Carta do
do evolucionismo. do mundo. 1936 FDR é reeleito Presidente.
Começa a publicar-se
1927 O aviador americano Charles 1932 Os Jogos Olímpicos a revista Life.
Lindberg concretiza o primeiro voo realizam-se em Los Angeles.
transatlântico (Nova Iorque-Paris) O democrata Franklin 1937 Morrem 35 pessoas no desas-
sem escala. Estreia-se o primeiro Delano Roosevelt (FDR) tre do dirigível alemão Hindenburg
filme sonoro, O Cantor de Jazz, de é eleito Presidente; será o à chegada a Nova Iorque.
Alan Crossland, com Al Jolson no único a obter quatro mandatos É inaugurada a Ponte de Golden
principal papel. consecutivos. Gate, en São Francisco.

1942
1928 É assinado em Paris o Pacto 1933 Para combater a Grande 1938 A per- Atlântico, definindo os contornos
Kellogg-Briand (nomes dos chefes Depressão, FDR estabelece o New sonagem do do mundo pós-II Guerra Mundial.
da diplomacia americano e francês), Deal, um programa económico Super-Ho- A 7 de dezembro, o Japão ataca
estipulando a renúncia à guerra centrado em investimento maciço mem nasce de surpresa a base aeronaval
como instrumento de política na- em obras públicas, destruição no primeiro americana de Pearl Harbor, no
cional (Portugal aderirá posterior- dos stocks agrícolas para conter número da revista Action Comics. Havai, destruindo ou danificando
mente). Herbert Hoover é eleito a queda dos preços, controlo dos A adaptação radiofónica, por duas dezenas de navios e mais
Presidente A americana Amelia preços e da produção e redução Orson Welles, do romance de 150 aviões e matando mais de
Earhart é a primeira mulher voar a da jornada de trabalho a fim de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, 2300 homens; no dia seguinte, os
solo sobre o Atlântico. Estreia-se criar novos postos; é também gera uma onda de pânico entre os EUA declaram guerra ao Japão
Steamboat Willie, o primeiro filme estabelecido um salário mínimo ouvintes, que julgam tratar-se de e três dias depois à Alemanha
de animação de Walt Disney, que e implementados seguros de uma reportagem sobre uma verda- e à Itália, entrando assim na II
introduz o Rato Mickey. desemprego e de reforma. deira invasão marciana. Guerra Mundial (em cujo quadro
Uma emenda à Constituição já colaboravam com os países
1929 Uma batalha campal entre põe termo à Lei Seca; 1939 O discurso de FDR na inau- aliados).
gangues de Chicago envolvidos na anteriormente já tinha sido guração da Feira Mundial de Nova
comercialização ilegal de bebidas, autorizada a Iorque é o primeiro a ser transmitido 1942 Os japoneses residentes nos
conhecida por Massacre de São produção e a pela televisão. Estreia-se o famoso EUA são detidos em campos de
Valentim, faz nove mortos. A 24 comercialização filme E Tudo o Vento Levou, de Victor concentração e as suas proprie-
de outubro, na «Quinta-feira negra de cerveja. Fleming, com Clark Gable, Vivien dades confiscadas. A 18 de abril
de Wall Street», dá-se o crash da O mayor Leigh, Leslie Howard e Olivia de Ha- é lançado um primeiro, e sobretudo
Bolsa de Nova Iorque, que leva de Chicago, villand. Com a invasão da Polónia simbólico, raide aéreo contra o
muitos bancos e outras empresas Anton Cermak, é pela Alemanha nazi, a 1 de setembro, Japão, em retaliação pelo ataque
à falência e desencadeia a maior assassinado pelo ítalo- começa a II Guerra Mundial; os EUA
crise económica da história dos -americano Giuseppe Zangara, mantêm de momento a neutralidade.
EUA, com repercussões em todo o num atentado em que o alvo,
mundo; começa a Grande Depres- falhado, era FDR. 1940 FDR é de novo reeleito Pre-
são, que durará 12 anos. O MOMA sidente. A McDonad’s abre o seu
(Museu de Arte Moderna) abre ao 1934 Principia o fenómeno primeiro restaurante. Nascem,
público em Nova Iorque. climático de seca e tempestades nos desenhos animados, as perso-
de areia conhecido por Dust Bowl, nagens de Tom & Jerry, Pernalonga
1930 Entra em vigor o Motion Pictu- que afetará por uma década (Bugs Bunny) e Picapau de Pau
re Production Code, legislação que, a grande parte dos EUA. (Woody Woodpecker).

VISÃO H I S T Ó R I A 7
Andrew William James Millard James
John Martin John Tyler Zachary Franklin
Jackson Henry K. Polk Fillmore Buchanan
QuincyAdams Van Buren 1841-1845 Taylor Pierce
1829-1837 Harrison 1845-1849 1850-1853 1857-1861
1825-1829 1837-1841 Whig/Apartidário 1849-1850 1853-1857
Democrata 1841-1841 Democrata Whig Democrata
Democrata- Democrata (Assasinado) Democrata
(Assasinado)
-Republicano Whig
Whig

a Pearl Harbor. De 4 a 6 de maio a Alemanha rende-se. Truman Alemã, satélite da URSS). A CIA Guerra da Coreia
é travada a Batalha do Mar de participa, com Estaline e Churchill fomenta um golpe de Estado na (o país asiático
Coral, envolvendo meios aéreos e (substituído por Clement Attlee Síria. Os EUA continuam a apoiar continua, até
navais, que se salda por uma vitória depois de perder as eleições britâ- Chiang Kai-Chek, afastado do poder hoje, dividido).
americana que barra aos japoneses nicas), na conferência de Potsdam. pelos comunistas chineses e confi- Os EUA apoiam
o caminho da Austrália. Entre Truman ordena o lançamento de nado à Taiwan. o ditador cubano
4 e 7 de junho decorre a Batalha bombas atómicas sobre as cidades Fulgencio
(também aeronaval) de Midway, que japonesas de Hiroxima e Nagasáqui. 1950 Começa o Batista contra
os americanos vencem igualmente. A 15 de agosto termina a II Guerra «maccarthysmo», os guerrilheiros de Fidel Castro.
Ainda no quadro da Guerra do Mundial, com a rendição do Japão, uma política de A CIA intervém nas eleições das
Pacífico, principia a campanha de país que ficará ocupado e adminis- suspeição e perse- Filipinas. É executado o casal
Guadalcanal, nas ilhas Salomão. trado pelos EUA até 1952. Os EUA guição de pessoas Rosenberg, sob a acusação de
Os EUA participam na Operação são anfitriões da conferência de São acusadas de espionagem pró-soviética.
Torch, o desembarque de tropas Francisco, fundadora da ONU. simpatias comunistas
aliadas no Norte de África. Es- Com o fim da guerra, a televisão tem implementada durante quatro anos 1954 Quando os franceses
treia-se o célebre filme Casablanca, um grande incremento. pelo senador republicano Joseph (auxiliados pelos americanos) são
de Michael Curtiz, com Humphrey McCarthy. Rebenta a Guerra derrotados em Dien Bien Phu, na
Bogart e Ingrid Bergman. 1947 Os EUA implementam o Plano da Coreia, entre a Coreia do Norte Indochina, Eisenhower expõe a
Marshall, para auxílio à reconstru- comunista e a Coreia do Sul capita- «teoria do dominó»: se o Vietname
1943 É inaugurado nas ção dos países europeus afetados lista, na qual os EUA lideram uma do Sul (que permanece ligado ao
imediações de Washington o pela guerra; o plano insere-se na coligação ocidental que combate Ocidente) cair em mãos comunistas,

1943
edifício do Pentágono, sede do chamada Doutrina Truman, o mesmo sucederá à totalidade do
Departamento da Defesa. que visa impedir a disse- Sueste Asiático. A CIA derruba o
FDR reúne-se com o primeiro- minação do comunismo presidente da Guatemala, Jacobo
-ministro britânico Winston numa Europa agora Arbenz, que, ao pretender realizar
Churchill nas conferências dividida pela Cortina de uma reforma agrária no seu país, en-
de Casablanca, do Cairo (esta Ferro. Sucedendo ao trara em choque com poderosas em-
também com o líder nacionalista OSS (Office of Strategic presas americanas como a United
chinês Chiang Kai-Chek) e de Services), é fundada a CIA pelo Sul, enquanto a China (com Fruit Company. McCarthy cai em
Teerão (com o líder soviético (Central Intelligence Agency), como armamento e caças MiG soviéticos) desgraça e termina o «maccarthys-
Estaline). Na conferência de serviço de informações civil desti- intervirá do lado do Norte. Inicia- mo». É emitido pela primeira vez
Dumbarton Oaks são lançadas as nado a operar no exterior. -se a publicação da tira humorística um programa de televisão a cores.
bases da futura ONU. Peanuts.
1948 Truman é eleito Presidente, 1955 A afro-americana Rosa
1944 Tropas americanas par- permanecendo assim no posto que 1951 O general Douglas MacArthur Parks recusa-se a ceder
ticipam, a 6 de junho (Dia D) no já ocupa desde a morte de FDR. é destituído por Truman do seu o lugar sentado num
desembarque na Normandia, na É fundada a Organização dos posto de comando na Coreia por ter autocarro a um
França ocupada pela Alemanha Estados Americanos, que reúne os sugerido a utilização de armamento branco, em Mont-
Delegados de 44 países participam, países das três Américas. nuclear contra a China. Principia gomery, Alabama,
em julho, na conferência de Bretton Os EUA intervêm na Costa Rica. a «era de ouro» da televisão, com desencadeando o
Woods, destinada a regular o siste- populares concursos em direto e movimento pelos
ma monetário internacional 1949 Com o deflagrar de uma séries. direitos cívicos. O tema
após a II Guerra Mundial. bomba atómica pela URSS, os EUA musical Rock Around the Clock, de
FDR é eleito Presidente pela deixam de ser a única potência 1952 Os EUA assinam com a Aus- Bill Haley & His Comets, que data
quarta vez consecutiva. nuclear. É criada a aliança militar trália e a Nova Zelândia o tratado de 1952, alcança divulgação em
ocidental NATO (Organização do militar ANZUS. A CIA fomenta todo o mundo e torna-se um hino
1945 Com a morte de FDR, a Tratado do Atlântico Norte), cujo um golpe de Estado no Irão que da juventude rebelde.
12 de abril, o vice Harry Truman principal membro são os EUA, e de derruba o governo de Mossadegh.
torna-se Presidente. A 8 de maio, que Portugal é também fundador. O republicano Dwight 1956 A frase In God We Trust (Con-
A zona de ocupação americana Eisenhower é eleito Presidente; fiamos em Deus) é adotada pelo
da Alemanha passa a fazer parte da Richard Nixon é vice. Congresso como divisa dos EUA,
agora criada República Federal da substituindo a anterior E pluribus
Alemanha (sendo a contrapartida 1953 Com a assinatura de um unum (A partir de vários, um).
desta a República Democrática armistício, termina, num impasse, a Eisenhower é reeleito Presidente

8 VISÃO H I S T Ó R I A
Andrew Rutherford Chester Benjamin William
Abraham Ulysses James Grover Grover
Johnson B. Hayes A. Arthur Harrison McKinley
Lincoln S. Grant A. Garfield Cleveland Cleveland
1861-1869 1877-1881 1881-1885 1889-1893 1897-1901
1861-1865 1869-1877 1881-1881 1885-1889 1893-1897
União Nacional/ Republicano Republicano Republicano (falecido em funções)
(Assasinado) Republicano (falecido em funções) Democrata Democrata
Não filiado Republicano
Republicano Republicano

e define uma doutrina segundo a O avião espião americano U-2 é condenado a uma pena de prisão
qual um país ameaçado por outro abatido na URSS. Os EUA envol- por evasão fiscal e irradiado.
de agressão armada pode pedir aju- vem-se na crise do Congo ex-Belga.
da económica ou militar aos EUA. O democrata John Fitzgerald 1967 Johnson reúne-se numa
Elvis Presley obtém pela primeira Kennedy (JFK) é eleito Presidente, cimeira com o chefe do governo so-
vez enorme sucesso ao interpretar derrotando o republicano Richard viético, Alexei Kosygin. Eclodem
os seus temas de rock’n’roll numa Nixon. grandes tumultos raciais em De-
emissão de TV. troit. A guerra dita do Vietname
1961 Os EUA intervêm na República estende-se ao Camboja.
1957 Uma lei garante o direito de Dominicana e cortam relações com
voto a todos os americanos. Cuba, iniciando um boicote económi- assumindo a presidência o vice 1968 No Vietname, o Vietcong
O Supremo Tribunal decide que co à ilha. É lançada a Aliança para Lyndon Johnson. O líder lança a Ofensiva do Tet, deixando os
as crianças afro-americanas podem o Progresso, um programa destinado afro-americano Martin Luther americanos em apuros.
frequentar as escolas públicas, mas a acelerar o desenvolvimento eco- King profere o célebre discurso Martin Luther King é assassinado.
os pais brancos do Sul desenca- nómico e social da América Latina Eu tenho um sonho. A CIA O senador Robert Kennedy, irmão
deiam uma campanha de resistên- e a travar a expansão do socialismo desempenha papel ativo num de JFK, é também assassinado,
cia a esta disposição, o que leva na região. A Guerra do Vietname golpe de Estado no Iraque. durante a campanha em que corria à
Eisenhower a mobilizar o exército. começa na prática, com o envio para Betty Friedan lança o livro Presidência. Os EUA subscrevem
A CIA desenvolve intensa ativi- Saigão de perto de um milhar de A Mística da Mulher, no âmbito o Tratado de Não Proliferação de
dade na Indonésia não-alinhada de conselheiros militares americanos. do movimento de libertação Armas Nucleares. O republicano
Sukarno. É inaugurada a primeira A CIA começa a desenvolver feminino. Richard Nixon é eleito Presidente.

1972
fábrica que utiliza a energia nuclear intensa atividade no Laos e gera a 1969 Os astronautas Neil Arms-
para fins pacíficos. A URSS lança instabilidade política no Brasil, que trong e Buzz Aldrin, da missão
o Sputnik, o primeiro satélite da culminará com o golpe militar de Apollo 11, são os
História, deixando os EUA atrasados 1964. Os EUA favorecem a inde- primeiros homens
em matéria espacial. pendência, sob a égide do Ocidente, a caminhar na Lua.
das colónias europeias em África, Ao mesmo tem-
o que provoca um choque com o po que bombar-
Portugal de Salazar, no ano em que 1964 A Lei dos Direitos deiam o Camboja
começa a guerra em Angola. Cívicos põe oficialmente fim à e o Laos, os EUA
discriminação racial nos EUA. encetam secreta-
1962 A instalação de mísseis sovié- Lyndon Johnson é eleito mente conversações de paz com o
ticos em Cuba deixa o mundo à bei- Presidente. O incidente naval Vietname. O festival de música de
ra de uma guerra nuclear. Depois do golfo de Tonquim leva os EUA Woodstock torna-se um símbolo
do russo Iuri Gagarine, o astronauta a envolverem-se abertamente referencial da contracultura.
John Glenn é o primeiro americano na Guerra do Vietname, com
1958 Os EUA a orbitar a Terra. A atriz Marilyn autorização do Congresso. 1971 Os EUA apoiam o golpe de
intervêm no Lí- Monroe, ícone da cultura popular, Estado de Hugo Banzer na Bolívia.
bano. É fundada morre de dose excessiva de barbi- 1965 Começa a «escalada» O direito de voto passa a poder
a NASA (National túricos. A Marvel Comics lança a americana na Guerra do Vietname. ser exercido aos 18 anos de idade.
Aeronautics and personagem do Homem Aranha. Movimentos estudantis mani- É proibida a publicidade a cigar-
Space Adminis- festam-se em Washington contra o ros na televisão e na rádio.
tration). É inventado o transístor. 1963 JFK é assassinado envolvimento. Ocorrem grandes
a tiro, em Dallas, Texas, tumultos raciais em Los Angeles. 1972 Richard Nixon visita a
1959 O Alasca e o Havai tornam-se Os EUA envolvem-se de novo República Popular da China, num
estados da União. A CIA envolve- na República Dominicana e na
-se na política iraquiana. Indonésia.

1960 Os EUA apoiam a invasão de 1966 Com grande repercussão, o


Cuba por exilados políticos, mas o pugilista Muhammad Ali (Cassius
desembarque na Baía dos Porcos Clay), campeão do mundo de pe-
é rechaçado pelas forças leais ao sos-pesados, declara-se objetor de
governo de Fidel Castro, no poder consciência e recusa-se a combater
em Havana desde o ano anterior. no Vietname; no ano seguinte será

VISÃO H I S T Ó R I A 9
William Warren Herbert Harry John
Theodore Woodrow Calvin Franklin Dwight D.
Howard Taft G. Harding Hoover S. Truman F. Kennedy
Roosevelt Wilson Coolidge D. Roosevelt Eisenhower
1909-1913 1921-1923 1929-1933 1945-1953 1961-1963
1901-1909 1913-1921 1923-1929 1933-1945 1953-1961
Republicano (Assasinado) Republicano Democrata (Assasinado)
Republicano Democrata Republicano (falecido Republicano
Republicano Democrata
em funções)
Democrata

primeiro passo para normalizar as de jogos de vídeo. Estreia-se o os «contras» da Nicarágua, oposi- co, por forças federais, da sede de
relações entre Washington e Pe- primeiro filme da saga Star Wars (A tores dos revolucionários sandinistas uma seita em Waco, Texas, origina
quim. Nixon é reeleito Presidente, Guerra das Estrelas). O vaivém espacial Challenger ex- um incêndio que vitima 76 pessoas.
mas pouco depois rebenta o Caso plode logo após a partida, morrendo OS EUA intervêm militarmente
Watergate, relativo a escutas na 1979 Os EUA começam a apoiar as sete pessoas a bordo. As ilhas na Somália, com o apoio da ONU, na
sede da candidatura democrata. os jiadistas do Afeganistão em Marshall, no Pacífico, tornam-se que ficaria conhecida como Batalha
Os EUA e a URSS assinam um luta contra o governo pró-soviéti- independentes dos EUA. de Mogadíscio. Em 2006, realiza-
tratado sobre mísseis antibalísticos. co. Um acidente na central nu- riam uma segunda intervenção.
A missão lunar Apollo 17 é a clear de Three Mile Island expõe
última tripulada. à radiação os habitantes da zona. 1994 Tropas dos EUA desembar-
Enquanto decorre a revolução cam no Haiti para apoiar o regresso
1973 Os acordos de paz de Paris iraniana, 52 americanos são do Presidente democraticamente
põem fim ao envolvimento feitos reféns na embaixada eleito e entretanto afastado do
americano no Vietname. dos EUA em Teerão e assim poder, Jean-Bertrand Aristide.
A CIA fomenta o permanecerão por 444 dias.
golpe de estado que 1995 Um atentado terrorista anti-
derruba o governo 1987 Reagan e o líder -governamental num edifício federal
de Frente Popular no soviético Mikhail Gorbachev de Oklahoma City mata 168 pessoas.
Chile e coloca no poder o assinam um tratado com vista
ditador Augusto Pinochet. à eliminação dos mísseis 1996 Atlanta, na Geórgia, acolhe
O embargo petrolífero árabe nucleares de médio alcance. os Jogos Olímpicos de Verão.

1973
faz disparar os preços dos 1980 Os EUA não participam nos 1988 O republicano George Bush é Um avião da TWA explode nas
combustíveis. É lançada a Jogos Olímpicos de Moscovo, em eleito Presidente. imediações de Nova Iorque, mor-
Skylab, a primeira estação espacial protesto contra a invasão soviética rendo 230 pessoas. Bill Clinton é
americana. do Afeganistão. Washington 1989 Bush declara «guerra à dro- reeleito Presidente.
apoia o partido Solidariedade, que ga». Começa a ser emitida na TV
1974 Nixon é o primeiro Presidente contesta o governo polaco. Ocor- a série de animação The Simpsons. 1998 Um escândalo sexual envolve
dos EUA a demitir-se do cargo, re uma intervenção americana o presidente Clinton e a estagiária
antes de ser concretizado o impea- em El Salvador. O republicano 1990 É lançado o telescópio espa- da Casa Branca Monica Lewinsky; o
chment; sucede-lhe o até então Ronald Reagan é eleito Presidente. cial Hubble. processo de impeachment por per-
vice, Gerald Ford. Ford assina os júrio e obstrução à justiça arranca,
acordos de Helsínquia, sobre segu- 1983 Forças dos EUA invadem Gra- mas Clinton acaba por ser absolvi-
rança e cooperação na Europa. nada, nas Caraíbas, na sequência de do num julgamento no Senado.
um golpe de estado de inspiração
1975 Os EUA comunista. É criado o sistema 1999 Os EUA lideram uma
apoiam a UNITA defensivo estratégico chamado intervenção militar da NATO na
e a FNLA na «Guerra das Estrelas». Jugoslávia, sem o aval do Conselho
guerra civil de Segurança da ONU.
angolana. 1984 A maior parte dos países do
Com a retirada Bloco Leste boicota os Jogos Olím- 1991 Os EUA lideram, com o Reino 2000 O contratorpedeiro USS
das últimas picos de Verão, em Los Angeles (e Unido, a coligação que intervém Cole é bombardeado nas águas do
tropas dos EUA, em que o português Carlos Lopes militarmente contra o Iraque, que Iémene, morrendo 17 tripulantes.
termina a Guerra vence a maratona). Reagan é ocupara o Kuweit, na I Guerra do Os EUA envolvem-se na política
do Vietname. reeleito Presidente. Golfo (Operação Tempestade jugoslava, apoiando a oposição
no Deserto). Com a dissolução a Slobodan Milosevic. O repu-
1976 O democra- 1986 Rebenta da URSS, termina a Guerra Fria. blicano George W. Bush (filho do
ta Jimmy Carter o escândalo antigo presidente George Bush) é
é eleito Presiden- Irão-Contras, com 1992 O democrata Bill Clinton é considerado vencedor das eleições
te. Steve Jobs e Steve Wozniak figuras destacadas eleito Presidente. presidenciais pelo Supremo Tribu-
fundam a Apple. da CIA a facilita- nal, após uma eleição inconclusiva
rem o tráfico de 1993 A explosão de um camião- e uma contagem de votos confusa
1977 A CIA intervém no Zaire. armas para o Irão -bomba na garagem do World Trade no estado da Florida; o democrata
Surgem o primeiro computador (sujeito a embar- Center, de Nova Iorque, mata seis Al Gore reúne mais votos populares
pessoal (PC) e o primeiro sistema go) para financiar pessoas e fere mais de mil. O cer- mas perde o Colégio Eleitoral.

10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Richard Jimmy George George Donald
Lyndon Gerald Ronald Bill Barack
Nixon Carter H. W. Bush W. Bush Trump
B. Johnson Ford Reagan Clinton Obama
1969-1974 1977-1981 1989-1993 2001-2009 2017-Em exercício
1963-1969 1974-1981 1981-1989 1993-2001 2009-2017
Republicano Democrata Republicano Republicano Republicano
Democrata Republicano Republicano Democrata Democrata
(Resignou)

2001 A 11 de setembro, 19 ter- 2011 Osama Bin-Laden é morto 2016 O republicano Donald
roristas islamitas da organização no Paquistão por forças especiais Trump é eleito Presidente, embo-
al-Qaeda, liderada por Osama americanas. Os EUA, com o ra com votação popular inferior à
Bin-Laden, apoderam-se de quatro Reino Unido e a França, intervêm da candidata democrata, Hillary
aviões de passageiros e fazem-nos militarmente na Líbia, levando ao Clinton.
explodir contra as Torres Gémeas derrube e à morte de Muammar
do World Trade Center de Nova Gaddafi. 2017 Em Las Vegas, um atirador
Iorque (dois deles), o Pentágono e mata 58 pessoas e fere 546.
num campo da Pensilvânia; morrem
mais de 3 mil pessoas e ficam iraquiano Saddam Hussein é 2018 Donald Trump encon-
feridas mais de 6 mil; as regras de deposto e mais tarde aprisionado tra-se com o líder norte-co-
embarque e controlo de passagei- e enforcado. O vaivém espacial
ros são alteradas. Ataques com Columbia desintegra-se ao
antrax via correio matam cinco pes- reentrar na atmosfera matando
soas e infetam 17. Bush declara os sete astronautas a bordo
«guerra ao terrorismo» e os EUA e fazendo suspender por 29 meses
o programa espacial. 2012 Homens armados levam
a cabo chacinas num cinema
2004 É fundada a rede social do Colorado e numa escola do
Facebook. George W. Bush é Connecticut. Barack Obama é
reeleito Presidente. reeleito Presidente.

2020
lideram uma coligação militar que 2005 O furacão Katrina devasta a 2013 O informá- reano Kim Jong-un, em Singa-
invade o Afeganistão, na Operação Luisiana e outros estados do Sul, tico Edward pura, pondo fim a um período de
Liberdade Duradoura. A «Lei matando mais de 1800 pessoas. Snowden tensão e ameaças envolvendo o
Patriótica» (Patriot Act) confere apodera-se disparo de mísseis.
mais poderes às autoridades para 2006 Os democratas obtêm o de informação O The New York Times
conduzir investigações em casos de controlo de ambas as câmaras classificada da revela que a empresa de análise
suspeita de terrorismo. Um avião do Congresso. Agência Nacional de dados Cambridge Analytica
comercial cai em Queens, Nova de Segurança e divulga-a. trabalhou para a campanha de
Iorque, morrendo 265 pessoas. 2007 A democrata Nancy Ataques bombistas durante a Trump, criando um algoritmo a
Pelosi torna-se a primeira maratona de Boston fazem três partir de informações pessoais
2002 É criado o Departamento de mulher a presidir à Câmara dos mortos e 283 feridos. Surge o retiradas de 50 milhões de
Segurança Interna. Um primeiro Representantes. movimento Black Lives Matter, perfis pessoais do Facebook.
grupo de combatentes capturados
no Afeganistão é internado na base 2008 Com a queda das bolsas, 2019 Os EUA intervêm na crise
americana de Guantánamo, em começa uma crise financeira presidencial venezuelana, apoiando
Cuba, que se transforma em campo global; Bush assina uma lei que Juan Guaidó contra Nicolás Maduro.
de detenção de prisioneiros de cria um fundo de assistência a Uma vaga de frio atinge os EUA,
guerra e de suspeitos de terrorismo. bancos em vias de falência. com os termómetros a descerem em
Os EUA denunciam o tratado O democrata Barack Obama Chicago a 27 graus abaixo de zero.
sobre mísseis antibalísticos, de é eleito Presidente, vindo a ser o
1972. Ao longo do mês de outubro, primeiro negro a ocupar o cargo. contra a brutalidade policial e a 2020 Os EUA e a China
ataques de atiradores furtivos fazem desigualdade do sistema judicial assinam um acordo, após
19 mortos e três feridos na área 2009 Os republicanos lançam o em matéria racial. dois anos de guerra comercial.
urbana de Washington e Baltimore. movimento Tea Party, que envolve Trump é absolvido pelo Senado
protestos contra as políticas de 2015 É assinado o Acordo de das acusações de envolvimento
2003 Uma coligação militar Obama. Paris, um marco na luta contra num escândalo de pressões junto
integrada pelos EUA, o Reino Unido, as alterações climáticas, em que da Ucrânia para investigar o candi-
a Austrália e a Polónia invade o 2010 Os republicanos voltam os países se comprometem a dato à nomeação democrata para
Iraque, a pretexto da existência a conquistar a maioria na diminuir a emissão de gases efeito a presidência Joe Biden, cujo filho
ali de «armas de destruição em Câmara dos Representantes, estufa. Dois anos mais tarde, fazia parte da administração de uma
massa» (não comprovada e depois dificultando a ação de Obama. Trump anunciaria que os EUA, empresa de energia daquele país.
desmentida), concretizando-se a É fundada a rede social um dos países mais poluentes do
II Guerra do Golfo; o presidente Instagram. mundo, iam deixar o acordo. Luís Almeida Martins

VISÃO H I S T Ó R I A 11
O NASCIMENTO
DE UM GIGANTE
Antes de fundarem o seu império, os Estados
Unidos da América inventaram-se a si próprios.
Uma fascinante história de aventuras, mistério,
perplexidades, dores e alegrias
por Luís Almeida Martins
GETTY IMAGES

12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
No Oeste profundo
Por volta de 1870. uma
caravana prepara-se
para atravessar o rio
North Plate, na zona
onde pouco depois
seria criado o parque
natural de Yellowstone

VISÃO H I S T Ó R I A 13
EUA // FUNDAÇÃO

O
americano comum venera os cerca de
cem emigrantes ingleses conhecidos Entrada dos Estados na União
por Pais Peregrinos, estabelecidos Os 13 Estados fundadores, Estados admitidos na Estados admitidos De 1865 Depois
no Massachusetts em 1620, como antigas colónias britânicas União entre 1790 e 1821 de 1821 a 1865 a 1914 de 1914
os remotos fundadores do seu país.
NEW HAMPSHIRE MASSACHUSETTS
Mas, em boa verdade, cinco séculos WASHINGTON VERMONT
1889 MICHIGAN
depois da passagem dos vikings pelas costas MONTANA DAKOTA 1837 1791 MAINE
DO NORTE MINNESOTA VIRGÍNIA 1820
do Novo Mundo, não foram eles os primei- 1889 1858
OREGON 1889 OCIDENTAL
ros anglo-saxónicos a chegarem à América. 1859 DAKOTA WINSCONSIN NOVA RHODE
IDAHO ISLAND
1890 DO SUL 1848 IORQUE
A tentativa de colonização do continente pe- WYOMING 1889
1890 CONNECTICUT
los ingleses remontava a finais do século XVI. NEBRASKA IOWA PENSILVÂNIA
NEVADA 1846 OHIO NOVA JERSEY
1864 1867
Nesse primeiro ensaio, em 1885, o corsário UTAH INDIANA 1803
ILLINOIS 1816 DELAWARE
1896 COLORADO 1818
Walter Raleigh organizou uma expedição de 1876 KANSAS KENTUCKY VIRGÍNIA MARYLAND
1861 MISSOURI
colonos, todos homens, que escolheram para CALIFÓRNIA 1821 1792 CAROLINA
1850 DO NORTE DISTRITO DE COLÚMBIA
se fixar a ilha de Roanoke. Em homenagem ARIZONA OKLAHOMA TENNESSEE 1796 1791
1912 NOVO MÉXICO 1907 ARKANSAS CAROLINA
a Isabel, a «Rainha Virgem», chamaram à 1912 1836 DO SUL
região Virgínia. Dois anos depois, sob o co- ALABAMA GEÓRGIA
mando de John White, uma nova leva de TEXAS 1819
1845
colonos, incluindo mulheres, foi juntar-se à
inicial, e ali nasceu a primeira criança norte- LUISIANA MISSISSÍPI FLORIDA
1812 1817 1845
-americana de origem europeia – uma meni-
na a que puseram o nome de Virginia Dare ALASKA 1959 HAVAI 1959
INFOGRAFIA Manuela Tomé

(Virgínia Ousa). White voltou a Inglaterra


para carregar mais mantimentos mas quando landeses se fixaram, em 1638, em partes dos que se passava com as colonizações portu-
regressou a Roanoke, em 1590, verificou que atuais Delaware, Nova Jérsia e Pensilvânia. guesa e espanhola, em cuja origem estava
colónia tinha desaparecido sem deixar rasto, o Entretanto, uma leva de quakers, membros sempre a iniciativa régia. Para promover a
que desde então tem alimentado um sem-fim de uma seita protestante inglesa, estabelece- fixação de populações do outro lado do Atlân-
de especulações e de mitos urbanos. ra-se entre Nova Iorque e o Maryland. Como tico e explorar os recursos das novas terras
Mistérios à parte, para o tal americano o seu líder se chamava William Penn, deram eram fundadas empresas com a designação
comum os «pais fundadores» do seu país são, à região o nome de Pensilvânia. genérica de «companhias das índias», que
pois, os cerca de cem ingleses de ambos os se- As colónias estavam geograficamente em muitos casos contavam com apoio (e a
xos embarcados no navio Mayflower que, em afastadas entre si num país selvagem e sem coleta de impostos) do poder central. Muitos
1620, fundaram Plymouth, no Massachusetts. estradas dignas desse nome. Mas o facto de dos que embarcavam para o desconhecido
Numa época em que a Europa estava mer- se verem transplantados para um ambiente eram europeus pobres que fugiam também às
gulhada nas Guerras de Religião, eles eram hostil gerou um espírito de unidade e entrea- fomes periódicas resultantes de más colheitas,
calvinistas perseguidos pelas suas crenças. juda entre os diferentes núcleos. às epidemias e às doenças provocadas pela
Daí a poucos anos, uma outra vaga de dis- No sul dos atuais EUA, a história é dife- insalubridade.
sidentes religiosos ingleses, estes puritanos, rente. Os refugiados que fundaram a Carolina
desembarcava perto de Plymouth e fundava eram aristocratas partidários de Carlos I, O grito de revolta
Salem. Os católicos eram também persegui- deposto e decapitado pelos parlamentares Ao aproximar-se o último quartel do sécu-
dos em Inglaterra pela igreja Anglicana ofi- de Oliver Cromwell. Carolina é, pois, uma lo XVIII, a Inglaterra venceu a França na
cial, pelo que uma leva deles obteve em 1624 homenagem a Carlos. Ao contrário do que Guerra dos Sete Anos (1756-1763), de que
autorização de Carlos I para fundar a colónia se passou no Norte, não prevaleceu no Sul a a América do Norte foi um dos teatros de
de Maryland (Terra de Maria). iniciativa capitalista. Ciosos dos seus perga- operações. O triunfo inglês fora, porém,
Por essa altura, os holandeses fundaram minhos e servidos por escravos arrancados à obtido à custa de enormes despesas; daí, a
Nova Amesterdão. Pouco depois, os ingleses força da sua África natal e traficados para a necessidade de um aumento de impostos,
apoderaram-se da cidadezinha e mudaram- América, os plantadores sulistas voltaram-se mas, como o povo murmurava, Jorge III e os
-lhe o nome para Nova Iorque, em homena- para os lazeres sociais. seus ministros optaram por sobrecarregar os
gem ao duque de Iorque, futuro rei Jaime II. De uma forma geral, a colonização da Amé- colonos da América.
Os escandinavos tentaram também a sua rica do Norte ficou a dever-se à atividade de O pior foi quando o Parlamento decidiu
sorte no Novo Mundo, quando suecos e fin- empreendedores privados, ao contrário do que qualquer ato jurídico, quer em Inglaterra

14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
PINTURA DE JOHN TRUMBULL/GETTY IMAGES

A Declaração de Independência Um grupo de cinco delegados apresenta um rascunho do documento ao Congresso

quer nas colónias, teria de ser registado em vez mais enviaram representantes a um con-
papel selado. Este Stamp Act desencadeou gresso a decorrer em Filadélfia a partir de
um conflito que levaria à insurreição ame- maio de 1775. Aí, foi aprovada a Declaração
ricana. Delegados das 13 colónias existentes dos Direitos, base da teoria constitucional
reuniram-se então em Filadélfia para deba- americana, que declarou legal a recusa de
ter o imposto, concluindo que a principal importar mercadorias britânicas. O cum-
irregularidade era o facto de a lei ter sido primento desta decisão exigia a fiscaliza-
aprovada numa câmara em que não estavam ção das atividades económicas, e para esse
representados. O Stamp Act acabou por ser efeito foram criados comités em todas as 13
derrogado, mas em sua substituição Londres colónias. Para que estes comités pudessem
introduziu novos impostos alfandegários so- atuar, houve que criar milícias de proteção e
bre mercadorias importadas de Inglaterra. que instalar depósitos de armas e munições.
Os colonos reagiram limitando drasticamente Assim nasceu aquele que viria a ser o exército
as importações. Novas conversações levaram mais poderoso do mundo.
ao levantamento da maioria dessas taxas, com No dia 19 de abril de 1775, um destacamen-
exceção da que era aplicada ao chá. to inglês que tinha por missão apoderar-se
No dia 16 de dezembro de 1773, três navios de um desses arsenais, situado em Concord,
ingleses deram entrada no porto de Boston perto de Boston, entrou em combate com
carregados de caixotes de chá. Logo um grupo A 4 de julho de 1776 um grupo de milicianos. Houve mortos de
de colonos, trajando à maneira dos índios ambos os lados. Pouco depois, milhares de
Algonquinos, subiu a bordo e arremessou a
o Congresso de Filadélfia rebeldes armados entrincheiraram-se na
mercadoria à água. É o famoso episódio do aprovou a Declaração colina de Bunker Hill, onde obtiveram uma
Boston Tea Party. Já antes, em 1770, ocorre- de Independência, com um vitória sobre os britânicos. Começava assim
ra algo de grave, quando soldados ingleses preâmbulo que dizia que um conflito militar que duraria oito anos.
dispararam sobre colonos, matando cinco Entretanto, o Congresso prosseguia os
e ferindo seis.
todos os homens eram livres seus trabalhos, e ao fim de um ano aprovou
Os habitantes do Massachusetts solicita- e iguais em direitos (mas sem a Declaração de Independência, precedida
ram o apoio das outras colónias, que uma contemplar os escravos) de um preâmbulo intitulado Declaração dos

VISÃO H I S T Ó R I A 15
EUA // FUNDAÇÃO

Direitos do Homem, onde se afirma que to- Expansionismo continental entre o Atlântico os montes Alleghanies, sen-
dos os homens foram criados iguais e livres Como, também do lado americano, as despe- do o restante território, a oeste, habitado pelos
e que um governo só tem o direito de existir sas da guerra tinham de ser pagas, gerou-se no índios. Discutia-se se essas terras pertenciam
se tiver o consentimento e emanar da vonta- novo país uma crise económica e política. Não aos diferentes estados ou se eram propriedade
de dos seus governados (mas os escravos de se entendendo os estados em matéria comer- comum da União. Para regular a questão,
origem africanos não eram contemplados cial, rebentaram motins, ameaças de secessão o Congresso aprovou, em 1777, a chamada
no articulado). A data deste acontecimento, e conflitos com as «vizinhas» Inglaterra (que «Magna Carta do Oeste», segundo a qual
4 de julho de 1776, seria de futuro anualmente possuía o Canadá) e Espanha (detentora da todos os territórios a oeste do rio Ohio foram
comemorada como Dia da Independência. Florida). Fazia falta uma espécie de supergo- reconhecidos como domínio federal. Ficou
Informados da situação em Boston, os verno e uma lei que se sobrepusesse às dos estipulado que essa região seria dividida em
congressistas de Filadélfia decidiram cons- 13 estados. Um grupo de patriotas decidiu lotes e que cada um deles, aberto à imigração,
tituir uma força regular, o Exército Conti- então convocar, em 1787, uma Convenção poderia constituir-se como estado em pé de
nental, para cujo comando escolheram o Constitucional, reunida em Filadélfia sob a igualdade com os outros desde que alcançasse
sulista George Washington. Paralelamente, presidência de Washington. Aí foi elaborada uma determinada cifra populacional. Estes
nasceu uma marinha de guerra e um corpo a Constituição dos EUA. princípios foram depois aplicados a todos
de fuzileiros navais, e um pouco por toda a Embora contasse apenas 3,5 milhões de os territórios adquiridos ou colonizados pela
parte constituíam-se milícias e companhias habitantes ao obter a independência, o país União.
de voluntários. era já muito vasto (umas 20 vezes maior do Aliás, em 1803 o território do novo país
Depois de uma derrota em Nova Iorque, que Portugal), pois estendia-se do Atlântico aumentaria para cerca do dobro do tamanho.
a causa dos rebeldes parecia comprometida, ao Mississípi e dos Grandes Lagos que o sepa- Foi quando os EUA compraram à França de
mas na noite de Natal de 1776 os soldados de ravam do Canadá à Florida espanhola. Os 13 Napoleão o vasto território da Luisiana, que
Washington atravessaram o rio Delaware e estados fundadores da União cabiam porém se estendia do Canadá ao golfo do México e
caíram de surpresa sobre Trenton, a oeste chegava às Montanhas
onde puseram fora de combate Rochosas. O negócio da Louisia-
1500 mercenários hessianos (do na Purchase fechou-se por um
estado alemão de Hesse) ao ser- «preço de amigo»: 15 milhões de
viço de Jorge III. Reequilibrada dólares. É que o imperador fran-
a contenda, houve uma pausa in- cês estava mais ocupado com a
vernal para reflexão. A verdadeira projetada invasão da Grã-Bre-
natureza desta luta não pôde ser tanha do que preocupado com
bem compreendida na altura. Ao possessões na América, e além
contrário dos conflitos clássicos disso o negócio aproximava Pa-
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

do século XVIII, tratou-se de uma ris de Washington e dificultava


guerra de libertação nacional se- uma hipotética aliança anglo-
melhante às que o século XX viria -americana; além disso, havia
a conhecer. sempre o risco de os territórios
Após muitos lances que não do Oeste caírem em mãos bri-
cabe aqui descrever, a França de Pioneiros Mormon no Utah, 1847 tânicas, o que para a França era
Luís XVI envolveu-se, declarando impensável. A enorme Luisiana
guerra à Inglaterra. O modelo político abso- tinha estado durante algumas décadas em
lutista francês estava nos antípodas da nova mãos espanholas e a sua devolução à França
ideologia americana, mas foi forte a tentação preocupara os EUA, que temiam a vizinhança
de espicaçar a rival de além-Mancha. No iní- do poder napoleónico. Tudo ficou assim re-
cio de 1779, a Espanha declarou por sua vez
Em 1848 o território solvido a contento geral.
guerra à Inglaterra. dos EUA atingiu a Costa Um segundo conflito entre o Reino Unido
Finalmente, Londres resignou-se a nego- Oeste, à custa de terras e os EUA teria lugar entre junho de 1812 e
ciar. A guerra era demasiado dispendiosa para retiradas ao México, fevereiro de 1815, no quadro do fecho dos
que as colónias fossem rentáveis. Decorreram portos europeus aos navio ingleses (o Bloqueio
dois anos de negociações antes que, pelo Tra-
e caravanas de colonos Continental decretado por Napoleão). A faísca
tado de Paris, em 1783, a potência colonial partiam à «conquista» detonadora da normalmente chamada Guerra
reconhecesse os EUA. do Oeste de 1812 foi a incorporação forçada na mari-

16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

Chefes Sioux, 1905

nha britânica de marinheiros já nascidos nos


EUA, mas o apoio dos ingleses às tribos índias
ÍNDIOS E COWBOYS foram-se lá estabelecer. Em conflito com o
governo mexicano, esses colonos proclama-
Os índios eram os donos naturais
que combatiam os desbravadores de terras ram, em 1836, a independência do Texas e
das terras onde os colonos europeus
americanos ia minando as relações entre os fundaram os EUA. As autoridades em seguida pediram a sua entrada na União.
dois países. Os EUA tentaram, nessa guerra, federais consideravam as tribos O Congresso emitiu voto favorável, mas esta
apoderar-se do Canadá, mas não foram bem nações estrangeiras e assinavam decisão implicava uma rutura com o vizinho do
com elas tratados que não cumpriam.
sucedidos. Para proteger a colónia que ainda Muitas guerras foram travadas
Sul. Seguiu-se a guerra, no decorrer da qual os
mantinha, Londres fomentou a criação, a sul entre índios e tropas federais, sendo americanos entraram triunfalmente na capital
dos Grandes Lagos, de um estado-tampão de bem conhecida a batalha de Little do México e obrigaram este país a ceder-lhes
nações índias (Miami, Winnebago, Shawnee, Bighorn, aliás a única grande vitória em 1848, para além do Texas, as suas enormes
índia. O desfecho das Guerras Índias
Fox, Sauk, Delaware, Kikapoo e Wyandot), as- seria uma teórica assimilação - na províncias da Califórnia e do Novo México.
sunto em que desempenhou papel importante verdade, a marginalização dos «peles O episódio mais famoso dos conflitos rela-
Tecumseh, chefe dos Shawnee, que liderou a vermelhas» pelos «caras pálidas». cionados com o Texas e o México ocorreu em
confederação nativa. 1836, o ano da proclamação da independência
Foi ainda no contexto deste conflito, travado do território. É a defesa de Forte Álamo por
em diversas frentes terrestres e marítimas, Louisiana, mas também pela força das armas. uma guarnição de 189 americanos (entre os
que, para enfraquecer os plantadores ameri- Entre 1846 e 1848, os EUA travaram com o quais o «herói» da fronteira Davy Crockett),
canos, a Inglaterra encetou a sua campanha México uma guerra que roubou a esta antiga assediados por uma coluna de 1500 soldados
contra o tráfico esclavagista. Os incêndios de colónia espanhola (independente desde 1821) mexicanos. A resistência durou 12 dias e os de-
Washington pelos ingleses e de York (atual mais de metade do seu território e lhes garan- fensores acabaram massacrados pela cavalaria
Toronto) pelos americanos são dois lances tiu a anexação do vasto Sudoeste. do general (e futuro Presidente mexicano)
importantes da Guerra de 1812, também cha- Tudo começara com a «Revolução do Santa Ana, ou executados após a rendição.
mada Segunda Guerra da Independência. Texas», um território de limites mal definidos O forte, antiga missão religiosa espanhola, é o
A propósito de guerras, o grande aumento integrado no estado mexicano de Coahuila y local turístico mais visitado do Texas.
territorial dos EUA não se fez apenas através Tejas. Como boa parte do solo texano era favo- Já um pouco antes, em 1846, os EUA ti-
de transações comerciais como a compra da rável à cultura do algodão, colonos americanos nham obtido, por meio de negociações com a

VISÃO H I S T Ó R I A 17
EUA // FUNDAÇÃO

Inglaterra, uma parte do Oregon, a norte da


Califórnia. Assim, em meados do século XIX o
país cobria cerca de 8 milhões de quilómetros
quadrados, correspondentes a oito décimos
da superfície da Europa.
Mal a Califórnia tinha sido integrada na
União, foram descobertas minas de ouro
perto de São Francisco, então uma aldeola.
O acontecimento foi um estímulo à emigra-
ção de europeus para a América. Até 1830
os emigrantes tinham sido pouco numero-
sos, com uma média anual a rondar os 9 mil.
A América ainda era pouco conhecida na Eu-
ropa e não fazia ninguém sonhar. A partir de
1840, porém, os fatores conjugados do estabe-
lecimento do serviço regular de barcos a vapor,
da divulgação dos recursos norte-americanos
e do excesso populacional e crises políticas na
Europa determinaram um rápido crescimento
populacional dos EUA: 600 mil imigrantes
ao longo da década de 1830, quase o triplo
na de 1840, a maioria irlandeses, escoceses
e escandinavos. Graças a este afluxo, entre outro compromisso, segundo o qual cada novo travada entre forças industrializadas e com
1840 e 1860 a população saltava de 17 para 31 estado decidiria por si se pretendia ser aboli- recurso a armamento mortífero e a meios de
milhões de habitantes. O ambiente económico cionista ou esclavagista. comunicação novos como os caminhos-de-
e cultural era estimulante, as cidades cresciam Multiplicavam-se os incidentes, e enquanto -ferro. Os federais dispunham de uma grande
e o país abria-se a tudo o que era moderno, de- o velho Partido Democrata, fundado em 1792, superioridade numérica e industrial, mas os
sempenhando funções de pioneiro em várias se dividia, nascia um novo partido, o Repu- confederados tinham mais aptidões militares
áreas. Os EUA ainda não eram um império, blicano, que em 1860 fez eleger para a Presi- e possuíam os melhores generais, como o virgi-
mas já tinham peso no mundo. dência o abolicionista Abraham Lincoln. O niano Lee. Dos quase 2 mil combates travados,
resultado imediato foi a secessão dos estados mais de uma centena foram grandes batalhas.
A União interrompida do Sul, com o nome de Estados Confederados A guerra decorreu também no mar e foi nessa
Este prodigioso crescimento viu-se brusca- da América. Num discurso célebre, Lincoln altura que surgiram os navios couraçados.
mente comprometido por uma grande crise: lançou um apelo aos sulistas, afirmando que A esquadra federal, muito superior, bloqueou
a guerra civil, de quatro anos (1861-1865), a guerra estava nas mãos deles, e não nas a costa do Sul, mas, graças ao apoio britâ-
entre o Norte abolicionista da escravatura e o suas. Os secessionistas atacaram então o forte nico, os corsários confederados infligiram
Sul, esclavagista. Sempre que um estado novo Sumter, um bastião federal situado na hostil consideráveis perdas ao comércio do Norte.
aderia à União abria-se um conflito sobre o Carolina do Sul, iniciando assim aquela que Até 1863, o Sul opôs uma bem sucedida re-
regime a estabelecer nesse espaço. O equilíbrio é considerada a primeira guerra «moderna», sistência aos ataques do Norte, mas quando
entre as duas partes era mantido desde 1820 tomou a ofensiva foi travado na batalha de
pelo chamado Compromisso do Missouri, que Gettysburg, que selou a sorte da União. O
estabelecia nos territórios do Oeste uma linha general nortista (e futuro Presidente) Grant
de demarcação a norte da qual era proibida tomou depois a fortaleza confederada de Vi-
a escravatura e a sul permitida. Este estatuto cksburg, assegurando o domínio do vale do
não foi muito duradouro, pois os meios puri- Na Guerra Hispano- Mississípi. Finalmente, Sherman cortou a
tanos e economicamente mais desenvolvidos -Americana de 1898, Confederação ao meio, pondo a ferro e fogo
do Norte iniciaram por volta de 1830 uma a Espanha perdeu os a Geórgia e as Carolinas. Em abril de 1865,
campanha pró-abolicionismo de que cons- os sulistas capitulavam e dias depois Lincoln
tituiu ponto alto a publicação do romance
últimos restos do seu era assassinado por um esclavagista fanáti-
A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher império, enquanto os EUA co. Mas a escravatura foi abolida de todo o
Stowe. Em 1854, o Congresso aprovou, assim, lançaram as bases do seu território nacional.

18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Um país dividido Tropas
federais durante a Guerra
da Secessão, em 1863
(à esquerda) e a tomada
de posse de Lincoln, 1861
(ao lado)

de fevereiro de 1898, o couraçado americano


Maine explodiu acidentalmente no porto de
Havana, a capital de Cuba. A imprensa dos
EUA propalou que o navio fora torpedeado,
gerando na opinião pública um sentimento
antiespanhol. Os EUA apresentaram à Espa-
nha um ultimato para abandoar a ilha, que,
como era de prever, não foi acatado. Rebentou
assim a guerra.

GPA PHOTO ARCHIVE


A Guerra Hispano-Americana foi curta e
deixou patente a esmagadora superioridade
da marinha dos EUA. Duas esquadras espa-
nholas foram aniquiladas, uma nas águas das
Filipinas e a outra nas de Cuba. Pelo trata-
A vitória do Norte consagrou também o em caso de conflito com os ingleses. Os EUA do de paz, intermediado pela França, Cuba
princípio da perpetuidade da União. A reen- acrescentavam assim um milhão e meio de tornou-se uma república independente e os
trada nesta dos estados secessionistas levan- quilómetros ao seu território. espanhóis cederam aos americanos as Filipi-
tou, contudo, graves dificuldades, a principal nas, Porto Rico e Guam. Enquanto a Espanha
das quais foi a designada «questão negra». Os Colónias das ex-colónias perdia os últimos restos do seu antigo império
sulistas recusavam-se a conceder aos escravos Se os EUA, por estarem mergulhados na colonial, os EUA lançavam as bases do seu.
libertos a igualdade política e civil, que no Guerra da Secessão, não intervieram contra Após este sucesso, os EUA planearam
entanto passou a estar consignada através a França de Napoleão III quando esta, na transformar o golfo do México e o mar das
de duas emendas constitucionais, sem que década de 1860, se imiscuiu militar e politi- Caraíbas num lago americano. Tinham pro-
os afro-americanos, desprovidos de meios camente do México, já o mesmo não sucedeu metido respeitar a independência de Cuba,
económicos e de instrução, dispusessem de três décadas mais tarde, em 1895, aquando do mas fizeram da antiga colónia espanhola um
instrumentos que lhes permitissem ser au- conflito que opôs a Venezuela à Inglaterra a protetorado – estatuto que estenderiam ao
tossuficientes. O problema apenas teria uma propósito das fronteiras da Guiana Inglesa, e Haiti, à República Dominicana, a outras ilhas
desfecho político na década de 1960, com a em que Washington tratou como sua a causa do Caribe e à zona do canal do Panamá. Mas
consagração dos direitos cívicos dos negros de Caracas. Mas, não se contentando com entrámos já no século XX: o gigante nascido
no Sul, mas o racismo continua bem visível impossibilitar qualquer ação política de uma no último quartel do século XVIII encontra-
nos nossos dias. potência europeia na América, os EUA não va-se em plena adolescência, prenunciando
Enquanto isto, continuava a marcha dos tardaram a anexar eles próprios territórios, uma vigorosa idade adulta.
imigrantes de origem europeia para o Oeste ou seja, a fundar colónias. A revolta de Cuba
«distante», o Far West. Famílias juntavam-se contra os espanhóis forneceu-lhes o pretexto.
Para saber mais:
no vale do Mississípi e, conduzidas por bate- A ilha de Cuba, principal produtora mun- VISÃO HISTÓRIA
dores, avançavam pelas toscas «pistas» da dial de açúcar, pertencia aos espanhóis, mas
pradaria em longas caravanas de carroções, estava em permanente insurreição. Quei-
que de noite dispunham em círculo para se de- xando-se de que os seus interesses estavam
fenderem dos animais selvagens e dos índios. ali ameaçados, empresários americanos cri-
A expansão fez-se também com desconti- ticavam a repressão espanhola invocando
nuidade geográfica. Em 1867, os EUA adqui- princípios humanitários. As relações entre
riram, por 7,2 milhões de dólares, o Alasca à Washington e Madrid tornaram-se tensas e
Rússia, que temia perder aquela possessão um incidente serviu de detonador. No dia 15 Número 38

VISÃO H I S T Ó R I A 19
Constituição
O respeito que
EUA // DEMOCRACIA os americanos
têm pela sua lei
fundamental
não encontra
paralelo em nenhum
outro país do mundo

frequentemente, o motivo de se votar no Par-


tido Federalista ou no Partido Democrático
Republicano estava intimamente relacionado
com razões locais. Daí que se tenha achado
justo que o vencedor estadual abarcasse todos
os votos, que se transformariam num número
determinado de delegados que representa-
vam, proporcionalmente, uma parte da popu-
lação. Estas são as razões práticas por detrás
do método de eleição do Colégio Eleitoral que
ainda hoje vigora nos Estados Unidos.

Homens virtuosos
Mas o Colégio Eleitoral não nasceu só de
razões de ordem prática. Tem uma razão
política profunda: os Pais Fundadores, que se
consideravam «homens de mérito», tinham
um desejo: que se lhes seguissem homens
igualmente virtuosos a conduzir os destinos
do novo país. Daí que, ainda que tenham re-
cusado a «hierarquia aristocrática», preferis-
sem a «democracia indireta» que impedisse
«demagogos» de chegar ao poder (Michael
Sandel, 2020). O sistema inventado por este
grupo de homens notáveis tinha de estar
GETTY IMAGES

munido de «guardiões da democracia». Caso


contrário, podia cair em mãos erradas muito
rapidamente. Os Grandes Eleitores seriam
estes guardiões que tinham a obrigação (mais

Quem guarda a
ou menos oculta) de, pela sua sabedoria e
respeito pela Constituição, evitar derivas au-
toritárias. Os Pais Fundadores achavam que a
democracia era demasiado preciosa para ser

democracia americana?
O sistema do Colégio Eleitoral suscita críticas,
desbaratada e queriam que ela tivesse quem
prevenisse o seu desaparecimento.
Estes temas voltam ao debate com alguma
frequência. Em 2000, quando George W.
sobretudo no exterior. As razões por que foi instituído Bush ganhou a Flórida a Al Gore por uma
unha negra e só depois de uma recontagem
e porque se mantém
estadual dos votos que levou o democrata
por Diana Soller* a conceder a derrota. Também nas eleições

D
de 2016, quando Donald Trump perdeu no
iz a história que quando se prepara- eleitoral e, quando terminada a contagem chamado «voto popular» mas ganhou no
vam para o primeiro ato eleitoral da dos votos, seriam enviados à Pensilvânia dois Colégio Eleitoral e se tornou o 45º Presidente
República, os Pais Fundadores dos emissários (os superdelegados) com o resul- dos Estados Unidos da América (este cenário
Estados Unidos da América confron- tado final. Escusado será dizer que levavam de um candidato vencer no voto popular e
taram-se com um problema óbvio: dias e dias e iam dois homens por precaução. perder no Colégio Eleitoral aconteceu seis
o território era grande demais e, no Se acontecesse alguma coisa a um, o outro vezes na história dos EUA).
final do século XVIII, as viagens demoravam sobreviveria para dar a notícia oficial. Há quem defenda que este método está
muito tempo. Terão decidido que cada estado Porque a maioria dos novos cidadãos nunca ultrapassado, especialmente alegando que
– nessa altura 13 – trataria do seu próprio ato teria saído do seu estado, ou faziam-no pouco acaba por beneficiar desproporcionalmente

20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Eleições no século XIX
Contagem de votos e cartazes
de propaganda eleitoral.
Apesar de se tratar
de um país com apenas
244 anos de história, os EUA
desenvolveram uma tradição
FOTOS: GETTY IMAGES

e uma prática traduzidas


numa rotina participativa
sem equivalentes. Ao lado,
cartazes de propaganda
dos finais do séc. XIX
e princípios do séc. XX

os habitantes das zonas rurais em compa- reduzido de votantes. As eleições são presi- nação está investido de uma sabedoria que
ração com os das zonas urbanas e que a denciais, mas também chegam ao pormenor dificilmente pode ser reinventada.
maneira como os Grandes Eleitores estão do condado, da cidade e da rua. Mais a mais, criar uma emenda dessa
distribuídos (com base nos censos feitos Além disso, o método eleitoral está inscrito envergadura à Constituição implicaria o
de dez em dez anos) tende a beneficiar os na Constituição. Por um lado, existe um res- voto favorável de dois terços da Câmara dos
Republicanos – cenário que se repetirá nos peito constitucional na América que não tem Representantes e do Senado e a ratificação
censos de 2020. Mas, regra geral, os ameri- paralelo. Como referiu Walter Russel Mead, de, pelo menos, 38 estados. Das centenas de
canos – para espanto do mundo – sentem-se «nenhuma unidade política europeia tem o propostas que foram entregues no Congres-
confortáveis com o método. equivalente ao love affair dos americanos pela so ao longo de mais de 200 anos de História
Até pelas razões pelas quais foi inventa- sua Constituição». Há, entre os americanos, a nenhuma teve a aprovação necessária nem
do: um boletim de voto, em cada estado da crença de que o documento fundamental da das Câmaras nem dos Estados, o que sig-
América, pode chegar a ter várias páginas. nifica que, muito provavelmente, o método
Pergunta-se quase tudo: em quem se vota de eleição manter-se-á intacto por muito
para Presidente, que congressistas se quer tempo (cf. Sieger-Lathrop, 2020).
eleger (Câmara dos Representantes), bem No entanto, e apesar de todos os cuidados
como parte dos senadores (35 este ano), dos Pais Fundadores, em 2016 os Estados
em alguns casos governadores (11 este ano), Unidos da América elegeram um demagogo.
os senadores estaduais, as assembleias le- A ‘democracia indireta’ foi A expressão «demagogo» não é escolhida ao
gislativas (em 43 estados) e outros cargos acaso. Donald Trump não pode ser descrito
executivos e judiciais. Fazem-se pequenos
escolhida para dificultar como antidemocrata – ainda que seja anti-
referendos sobre assuntos que dizem res- a tomada do poder liberal – e se tem tentações autoritárias, as
peito a condados, portanto, a um número por demagogos instituições norte-americanas, bem como a

VISÃO H I S T Ó R I A 21
EUA // DEMOCRACIA

PODER LEGISLATIVO PODER EXECUTIVO PODER JUDICIAL

Controla

Nomeia perpetuamente
Controla Controla
Veto
Capitólio suspensivo Casa Branca

Comanda Nomeia Nomeia


Nível federal

Congresso Presidente Supremo Tribunal de Justiça


(por 4 anos) 9 juízes (confirmação pelo Senado)

Câmara dos Representantes Senado Forças Armadas Secretários à frente dos


(435 representanres+ 1 presidente) (100 senadores+1 vice-presidente) departamentos (ministérios)
Tribunais Federais
538 grandes eleitores (confirmação pelo Senado)
(para ser eleito Presidente, um candidato deve obter
os votos de pelo menos 270 eleitores)

Elege Elege Elege

Povo dos Estados Unidos (sufrágio universal por maioria simples) ... e no nível dos estados federados

Elege Elege Elege


Nível estadual

Câmara dos Representantes Senado Governador Nomeado


Supremo Tribunal
do Estado Estadual
(exceto Nebraska que tem senador)
INFOGRAFIA Manuela Tomé

UM PAÍS ORIGINAL
A Constituição dos EUA instituiu, em 1789, um regime político
muito diferente dos praticados na Europa, onde o absolutismo era ainda a norma

O primeiro objetivo regular o comércio poder judicial é da poderes quase países, sobretudo do
a alcançar era a com o exterior e entre competência do absolutos, decidindo chamado «hemisfério
conciliação dos os estados e produzir Supremo Tribunal, quase tudo sozinho, à ocidental», ou seja, o
interesses, nem as leis necessárias composto por juízes frente de um governo continente americano.
sempre coincidentes, para salvaguardar «a nomeados pelo «fraco» (composto É nesta ótica que
dos 13 estados que defesa comum e a Presidente ouvido o por secretários, e não deve ser entendida a
proclamaram a prosperidade geral». Senado e inamovíveis. por ministros) cujos «Doutrina Monroe»,
independência. Cada O poder legislativo É ao Supremo Tribunal membros nunca se definida em 1823 pelo
um deles continuava federal era – e que compete, além reúnem. presidente James
a ser soberano, com é – detido por um de sanar litígios Muito patrióticos Monroe, segundo a
as suas próprias Congresso eleito entre os estados, e orgulhosos do qual «os continentes
constituições, e composto por vigiar a aplicação seu modelo de americanos, em
cabendo no entanto às duas câmaras: o da Constituição, democracia, os virtude da condição
autoridades federais Senado e a Câmara funcionando assim americanos estão livre e independente
prerrogativas como de Representantes; um pouco como os dispostos a envidar que adquiriram e
declarar a guerra, o executivo cabe ao modernos tribunais todos os esforços conservam, não
negociar tratados, Presidente, eleito constitucionais para exportá-lo, o podem voltar a ser
cobrar impostos, por quatro anos surgidos em países que dá cobertura considerados no futuro
obter empréstimos, através de um Colégio europeus. ideológica às suas como suscetíveis
cunhar moeda, manter de Eleitores cuja O Presidente, que múltiplas intervenções de colonização por
um exército e uma composição resulta não depende do nas questões nenhuma potência
marinha nacionais, do voto popular; o Congresso, tem internas de outros europeia». L.A.M.

22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
opinião pública, têm-lhe travado os intuitos.
Um demagogo é alguém que apela às emo-
ções dos votantes, nomeadamente as mais
negativas como o ressentimento, a raiva, a
angústia e o medo, culpando terceiros pelos
males que os afligem e prometendo respostas
fáceis – e, evidentemente, impossíveis de
concretizar – para ganhar as eleições. Ora,
é sabido que um demagogo tende a tratar
a democracia com um certo desprezo, con-
vencido de que sabe melhor do que as regras
institucionais o que é mais importante para
TY WRIGHT/GETTY IMAGES

o povo que o elege (cf. Frum, 2018).

Razões de uma eleição


É legítimo, então, perguntar como é que, com
tantos cuidados institucionais, a América
não elegeu «um homem sábio» no sentido Voto antecipado Em estados como o Ohio, é possível, desde 6 de outubro,
constitucional. Há duas ordens de razões: votar para a eleição de 3 de novembro
políticas e institucionais.
As primeiras estão ligadas essencialmente derada norte-americana se ter focado numa os seus líderes políticos que tinham obriga-
aos problemas da globalização e da identida- forma politicamente correta de proteger as ção de conter o demagogo. Mas, apesar das
de. Desde os anos 1980 tornou-se popular a minorias étnicas, de género, e outras, fez que falhas naturais dos sistemas imperfeitos, a
ideia de que esta forma de organizar a econo- se exacerbasse uma polarização quase tribal, Constituição e a instituições mostraram uma
mia enriqueceria o mundo globalmente. Daí que originou uma espécie de contrarrevolução resiliência notável.
que a prosperidade de uns fosse a prosperi- dirigida às elites e às minorias. Trump encon- Estas eleições presidenciais podem vir a pôr
dade de todos. Não só esta promessa falhou trou um eleitorado natural nos americanos as instituições à prova, caso Trump não ganhe.
redondamente para alguns estados do mundo descontentes com o estado do país. Até agora, o que tem falhado, além da ausência
(não todos), como criou desigualdades so- As razões institucionais são mais comple- dos guardiões são duas normas informais que
ciais profundas nos países desenvolvidos. Os xas. Steven Lewitsky e Daniel Ziblatt escreve- reforçam a constituição: a «tolerância mútua»
Estados Unidos são um dos exemplos mais ram há dois anos um livro que se tornou um e a «contenção política», ou seja, aceitar a
gritantes: a população em geral tem vindo a best-seller internacional. Em How Democra- legitimidade dos rivais, e ser contido na for-
perder poder de compra há quatro décadas e a cies Die argumentam que estes regimes nem ma como se expressam discordâncias. Nada
classe média tem encolhido paulatinamente. sempre são vítimas de golpes de estado. Mais disto parece estar de boa saúde em estados
No topo da pirâmide (sempre a parte mais frequentemente morrem devagar por falta tribalizados como os EUA. Por isso mesmo,
pequena da população) estão os mais ricos, de vigilância e de cuidados necessários. Para esta pode vir a ser uma das maiores provas
que perpetuam a sua influência guardando Donald Trump ter conseguido ser Presidente, que a democracia americana já enfrentou.
zelosamente os monopólios para si e passan- dizem os autores, falharam os «guardiães da * Diana Soller é investigadora do Instituto Português
do-o às novas gerações que se transformaram democracia». Era o Partido Republicano e de Relações Internacionais (IPRI-NOVA)
na larga maioria dos estudantes das escolas
de elite. Isso não poderia evitar um mal-estar Boletim de 2020 O si
sistema
social generalizado que se agravou em 2008, permite a votação pel
pelo correio
quando a crise do subprime lançou os seus
holofotes sobre esta realidade e o conjunto
crescente de americanos na base da pirâmide.
Simultaneamente, o governo democrata
de Barack Obama ficou colado a este pro-
blema e ao problema identitário. Há uma
crise de identidade quando a maioria sente
que a sua forma de vida está ameaçada (cf.
Fukuyama, 2018). O facto de a esquerda mo-

VISÃO H I S T Ó R I A 23
EUA // DOUTRINA MONROE

‘A América
aos americanos’
Em 1823, o presidente James Monroe expôs uma
doutrina, depois aperfeiçoada por Theodore Roosevelt,
que iria moldar a política externa de Washington
durante mais de 150 anos
por Pedro Caldeira Rodrigues

F
oi referido na última sessão que Espanha Mundo», afinal numa constatação do fim do
e Portugal estão a efetuar um grande grande período colonial europeu nas Américas.
esforço para melhorar a condição dos Esta doutrina irá reger por cerca de 150 anos os
povos desses países, e que parece estar a fundamentos da diplomacia norte-americana.
ser conduzido com extraordinária mode- Pela primeira vez, e ao considerar que o Novo
ração (...) Mas com os governos que de- Mundo e o Velho Mundo tinham diferentes
clararam a sua independência e a mantêm (....) sistemas e deveriam permanecer em esferas
apenas podemos encarar qualquer interposição distintas, a jovem república norte-americana
de qualquer potência europeia com o objetivo interpelava as monarquias conservadoras eu-
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA
de, por outra forma, oprimir ou controlar o seu ropeias unidas em torno da Santa Aliança após
destino, como uma manifestação de caráter a derrota do sonho unificador napoleónico: o
hostil face aos Estados Unidos.» conjunto do continente americano ficava vedado
Em 2 de dezembro de 1823, na sua mensagem a novas colonizações, e qualquer tentativa das
anual ao Congresso, o presidente James Monroe potências europeias em oprimir ou controlar
anunciava desta forma uma nova abordagem di- qualquer país do hemisfério ocidental era enca-
plomática dos Estados Unidos, quando diversos rada como uma ameaça à paz e à segurança. Por
países da América Latina acabavam de garantir outras palavras, «a América aos americanos».
a sua independência face ao domínio espanhol Em simultâneo, os EUA abstinham-se de
e português: a «Doutrina Monroe». intervir nos assuntos internos ou guerras entre exclusivamente europeia do continente africa-
Nesse período, a nação norte-americana países europeus – como ficará comprovado no na Conferência de Berlim (1884-1885) – e
ainda não tinha alcançado as costas do Pacífico, algumas décadas mais tarde com a partilha reconheciam as colónias e dependências que
um dos seus grandes objetivos expansionistas os europeus ainda detinham no hemisfério
em território da América do Norte – um so- ocidental, escusando qualquer interferência.
nho alimentado desde os «Pais Fundadores» e À semelhança de diversos países europeus
assente no conjunto de doutrinas do «destino que procuravam assegurar um «espaço próxi-
messiânico», mas apenas concretizado no final Em simultâneo, os EUA mo» ou «vital» sob a sua influência, os Estados
da guerra contra o México (1846-1848). Unidos consideravam-se paladinos dos jovens
No entanto, ainda antes deste decisivo acon-
abstinham-se de intervir Estados latino-americanos contra uma amea-
tecimento, a liderança política de Washington nos assuntos internos ça externa. Uma doutrina que ilustra ainda
há muito que também olhava para sul, desde ou guerras entre países o desejo de Washington em demarcar-se da
as Caraíbas até aos confins da América Latina. potência britânica após a guerra de 1812, que
A fórmula de Monroe era simples e exprimia
europeus, como ficaria assinalará uma progressiva aproximação entre
a visão do então influente chefe da diploma- comprovado mais a ex-colónia e a antiga potência colonial.
cia, John Quincy Adams, arquiteto da política tarde com a partilha Mas a Doutrina Monroe também constituiu
externa do país e que em 1825 lhe sucederá a resposta unilateral à sugestão britânica de
como sexto Presidente dos EUA: «Aos europeus
exclusivamente europeia uma declaração conjunta sobre uma «nova
o Velho Continente, aos americanos o Novo do continente africano ordem» internacional, e que confirmava a hos-

24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Poder de atração
Neste cartoon
de 1913, as pernas
do Tio Sam, a figura
que simboliza os
EUA, constituem
um iman a cuja
força centrípeta
não conseguem
resistir os outros
países do continente
americano

tilidade norte-americana a novas incursões Pouco tempo depois, alguns norte-america- guidores. Ministro plenipotenciário dos EUA
europeias no «Novo Mundo». nos já começavam a pensar no Pacífico: Hawai, em França entre 1794 e 1796, ocupará também
No seu esboço inicial, a doutrina manifes- Japão, os grandes mercados da China... durante quatro anos o cargo de embaixador
tava os receios dos EUA e da Grã-Bretanha na Grã-Bretanha, que lhe permite acumular
sobre uma tentativa das potências continen- De cadete a Presidente importante perícia diplomática. Em França, as-
tais em restaurar as colónias de Espanha na Natural do estado da Virgínia, James Monroe sume uma missão decisiva, quando se negoceia
América Latina. Em consequência, o chefe (1758-1831) envolveu-se como cadete no exér- o destino da Luisiana e das vastas planícies do
da diplomacia britânica, George Canning, cito insurgente de George Washington e aos 20 Mississípi. Napoleão Bonaparte, que se prepa-
sugeriu uma declaração conjunta anos estava graduado como oficial rava para desafiar a Inglaterra, necessitava de
EUA-Grã-Bretanha que proibisse Doutrina Monroe superior. Após a guerra regressou à dinheiro e do apoio dos EUA. Monroe conclui a
uma futura colonização na Améri- Política dos EUA universidade, onde estudou Direito, compra da Luisiana (Louisiana Purchase) por
ca Latina. Monroe foi inicialmente que se opunha sendo discípulo de Thomas Jefferson. 15 milhões de dólares, após rápidas negociações.
ao colonialismo
favorável à ideia, e os antigos pre- Foi senador da Virgínia pelo Na sua fulgurante carreira entre a elite de
europeu nas
sidentes Thomas Jefferson e James Américas Partido Republicano-Democrata Washington, torna-se de seguida secretário de
Madison deram o seu aval. Mas o e governador desse estado entre Estado (ministro dos Negócios Estrangeiros) do
secretário de Estado John Quincy Adams ar- 1799 e 1802, quando ordenou uma repressão presidente James Madison (1751-1836) e conduz
gumentou que os EUA deveriam emitir uma violenta na sequência da grande rebelião de a «segunda guerra da independência» contra o
declaração exclusiva sobre a política do país, escravos na região de Richmond, liderada Reino Unido entre 1812 e 1814, quando é desig-
e o seu argumento prevaleceu. por Gabriel, que seria executado com 25 se- nado secretário (ministro) da Guerra.

VISÃO H I S T Ó R I A 25

EUA // DOUTRINA MONROE

Não é nossa política


tomarmos parte nas
guerras das potências
europeias. Apenas
A sua fidelidade será compensada em 1816, quando os nossos

“ “
quando é oficialmente designado candidato direitos são invadidos
oficial do partido à eleição presidencial, cargo ou seriamente
que ocupará a partir do ano seguinte até 1825. Aos europeus ameaçados é que Falem
Durante o seu mandato o país continua a cres- o Velho nos ressentimos com delicadeza
cer e a Florida, então na posse da Espanha, é
Continente, das lesões ou nos mas levem
adquirida em 1819 por 5 milhões de dólares,
aos americanos preparamos para um bastão
pelo Tratado de Adams-Onís. a nossa defesa
o Novo Mundo THEODORE ROOSEVELT
JAMES MONROE Presidente dos EUA
Ameaças a norte, revoluções a sul JOHN QUINCY ADAMS Presidente dos EUA
Os oito anos de mandato de Monroe (4 de secretário de Estado de
James Monroe, e, mais tarde,
março de 1817 a 4 de março de 1825) foram Presidente dos EUA
assinalados por diversos acontecimentos
que determinam a futura configuração do
continente e a emergência do seu país com o
estatuto de potência. A norte do continente,
os cossacos tinham atravessado o estreito de
Bering e instalavam-se no Alasca, originando
preocupação sobre as ambições territoriais
russas nessa região das Américas. E a sul do no entanto mantinha importantes possessões potência mundial. Uma lista divulgada em
Rio Grande iniciava-se a revolta das colónias no Novo Mundo, em particular nas Caraíbas. 1962 pelo Departamento de Estado assinala
espanholas (e do Brasil), contra a metrópole, Ao optarem pelo status quo, as potências 103 intervenções nos assuntos internos de
com o rei de Espanha a emitir, em vão, apelos da Santa Aliança renunciavam à interven- outros países entre 1798 e 1895.
à solidariedade de Santa Aliança. ção na América do Sul, e em 1824 a Rússia No final do século XIX, os EUA vão recorrer
A Doutrina Monroe é um produto deste assinará com os Estados Unidos um tratado a este postulado para expulsar a Espanha das
contexto: surge um ano após o reconheci- pelo qual abdica de qualquer reivindicação a suas últimas colónias do hemisfério ociden-
mento oficial pelos Estados Unidos, em sul do Alasca, depois vendido pelo império tal e intervir diretamente e de forma ofensiva
1822, da independência das novas repú- russo aos norte-americanos, em 1867, por nos assuntos da América Latina, através da
blicas latino-americanas, em particular 7,2 milhões de dólares. imposição económica e militar, para além de
México, Colômbia, Peru, Argentina, Chile garantirem possessões no Pacífico e a efetiva
e Brasil, e vai constituir a pedra angular Da Doutrina ao Corolário ocupação das Filipinas espanholas.
da política externa dos EUA. Após 1870, a interpretação da Doutrina Mon- A política externa de abordagem «neu-
A América do Norte (exceto o Canadá) e roe tornou-se mais abrangente e ajudou a tral» já ocultava uma vontade de controlo,
larga parte da América do Sul deixavam de definir uma reconhecida esfera de influência, confirmada pela evolução da doutrina e que
estar submetidas à colonização europeia, que num período em que os EUA emergiam como será reinterpretada de forma mais ampla e

DO COMPROMISSO DO MISSOURI À LIBÉRIA


A «Era dos bons federal integra o Maine nos caridade instala um primeiro
sentimentos» (Era of good EUA como estado livre, e grupo de negros no golfo da
feelings), a designação oficial em simultâneo o Missouri Guiné, junto à atual Costa do
atribuída ao duplo mandato como estado esclavagista, Marfim.
de James Monroe, também mantendo a balança do poder O novo país é designado
foi confrontada com a questão entre o Norte e o Sul no Libéria, o seu novo
da escravatura, num período Senado norte-americano. estandarte decalcado da
ainda caracterizado por No âmbito deste acordo, bandeira dos EUA apenas
forte emigração europeia, assinado em 6 de março Confrontado com o problema com uma estrela, e a capital
em particular de ingleses, por Monroe após aprovação negro, James Monroe batizada de Monróvia, em
irlandeses e alemães. pelo Congresso, a legislação recorre ao Compromisso honra do presidente James
Em 1820 é estabelecido o federal proibia a escravatura do Missouri para propor o Monroe, onde é ainda
Compromisso do Missouri a norte do paralelo 36º30’, à regresso dos escravos a construída uma imitação do
pelo qual a legislação exceção do Missouri. África. Uma sociedade de Capitólio de Washington.

26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

O galo na capoeira Enquanto os EUA reinam sobre os outros países americanos, as potências europeias estão confinadas a um pequeno galinheiro,1901

intrusiva em 1904 pelo designado «Coro- assegurar que os outros países do hemisfério o Corolário deixa de ter qualquer relação
lário Roosevelt». ocidental cumprissem as suas obrigações com entre o Novo Mundo e a Europa, e servirá de
Herói da guerra contra a Espanha, vice- os credores internacionais, não violassem os justificação para sucessivas intervenções dos
-presidente do republicano William McKin- direitos dos Estados Unidos e não fomentas- EUA fora da sua área de influência.
ley (assassinado em 1901), Theodore Roo- sem «uma agressão externa em detrimento do Roosevelt também provocou a secessão do
sevelt (1858-1919) permanece o mais jovem inteiro corpo das nações americanas». Panamá (território que estava integrado na
ocupante da Casa Branca ao ser empossado A aplicação prática do Corolário implicou Colômbia e se torna numa «colónia» norte-a-
com apenas 42 anos. um crescente recurso à força militar para mericana) para construir um canal no istmo
A Doutrina Monroe é revista e passa a as- restaurar a «estabilidade» dos países da re- centro-americano e em 1906 deslocou-se ao
sumir a forma de um intervencionismo sem gião. Os EUA passavam a atuar como uma novo país para se inteirar dos trabalhos. Foi a
limites na zona latino-americana (América «força policial internacional». A longo prazo, primeira vez que um Presidente dos EUA via-
Latina e Caraíbas), na defesa dos «interes- jou ao estrangeiro no âmbito das suas funções.
ses» dos Estados Unidos. A sua mediação na Guerra Russo-Japone-
Mais confiante, o grande país já não esconde sa (1905) valeu-lhe o prémio Nobel da Paz
a intenção de se tornar um polícia regional. (1906), mesmo que fosse o adepto nas rela-
A evolução da doutrina justifica assim as inter- Depois de revista, ções externas da «Diplomacia do Bastão»,
venções no seu espaço próximo (Cuba, Panamá, como repetia com frequência: «Speak softly
Haiti, República Dominicana, Nicarágua), que a Doutrina Monroe and carry a big stick» («Falem com delica-
se tornam um efetivo «pátio das traseiras». assumiu a forma de um deza mas levem um bastão»).
Roosevelt explicitou a sua tese no seu dis- intervencionismo ilimitado As intervenções diretas ou indiretas dos EUA
curso do Estado da União em 6 de dezem- no seu «pátio das traseiras» vão prolongar-se
bro de 1904, na sequência da crise entre a dos EUA na zona latino- por todo o século XX (em 1924 as finanças
Venezuela e os seus credores (1902-1903) e americana, em defesa dos de metade dos 20 Estados latino-americanos
que suscitou o receio de uma invasão deste interesses do poderoso eram de alguma forma dirigidas por Washing-
país sul-americano por potências europeias. ton), até atingirem uma dimensão global. Mas a
O Corolário Roosevelt afirmava que os país, que assim se arvorava ingerência mais marcante talvez tenha ocorrido
EUA interviriam como último recurso para em «polícia regional» num dia 11 de setembro, no Chile, em 1973.

VISÃO H I S T Ó R I A 27
EUA // II GUERRA MUNDIAL

A VIRAGEM
DA II GUERRA MUNDIAL
Com a vitória sobre a Alemanha
e o Japão, os EUA, até então isolacionistas,
transformavam-se numa superpotência a nível global
por Ricardo Silva
GETTY IMAGES

28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Pearl Harbour,
7 de dezembro
de 1941
O ataque japonês
desferido de surpresa
contra a grande
base aeronaval
americana do Pacífico
arrastou os EUA
diretamente
para o conflito

VISÃO H I S T Ó R I A 29
EUA // II GUERRA MUNDIAL

E
nquanto, na Europa, os nazis avança-
vam imparáveis por terra, conquistan-
do meio continente com a revolucio-
nária Blitzkrieg, na China prosseguia
a longa guerra que o Japão tinha ini-
ciado em 1937, com a crueldade de
massacres como o de Nanquim. Em 1940, o
velho mundo enfrentava a II Guerra Mundial ROBERT CAPA © INTERNATIONAL CENTER OF PHOTOGRAPHY/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO
e as democracias lutavam desesperadamente
pela sobrevivência, mas do outro lado do
Atlântico os EUA mantinham-se neutrais
e boa parte da opinião pública opunha-se a
qualquer envolvimento num conflito exterior.
O isolacionismo era o resultado de uma
longa política de não-intervencionismo que
remontava à presidência de George Washin-
gton, a primeira do jovem país, e que com
raras exceções se prolongou até ao início do
século XX. Era uma ideia profundamente
enraizada na cultura diplomática america-
na e ferozmente defendida pelo Congresso,
e o presidente Franklin Delano Roosevelt
estava perfeitamente consciente dos limites
à sua ação quando, no dia 3 de setembro
de 1939, se dirigiu à nação para assegurar
o comprometimento da sua administração
com a neutralidade, sem deixar de ressalvar 'Dia D', 6 de junho de 1944 Soldados americanos participaram no desembarque nas praias
que «quando a paz é quebrada em qualquer da Normandia, abrindo uma nova frente europeia na guerra contra a Alemanha nazi
lugar, a paz de todos os países, em todos os
lugares, está em perigo». setembro de 1940, quando os EUA firmaram
O eclodir da II Guerra Mundial mostrou
as clivagens de uma sociedade norte-ameri-
NÚMEROS um acordo com o Reino Unido que previa o
arrendamento de terrenos nas suas colónias,
cana que rapidamente se dividiu entre os que e em troca fornecia 50 contratorpedeiros de
propunham o apoio material às democracias quatro chaminés que tinham servido durante
SOLDADOS AMERICANOS
e os que exigiam um estrito isolacionismo. a I Guerra Mundial.
O presidente Roosevelt era claramente pró- 1939 1945 A 29 de dezembro, Roosevelt dirigiu-se
-aliado e defendia a venda de material de
guerra, sendo a oposição representada por
334 000 12 000 000 aos norte-americanos através da rádio para
anunciar o apoio às democracias no seu
Henry Ford, o magnata que revolucionara a combate pela liberdade, com um discurso
indústria automóvel com o Modelo T, e que que ficou famoso ao definir os EUA como
também era um antissemita conhecido por «o arsenal da democracia» e marcou uma
difundir Os Protocolos dos Sábios de Sião e decisiva mudança diplomática. Das palavras
abertamente simpatizante do regime nazi. à ação foram necessários apenas três meses,
Apesar das dissidências internas, Roosevelt com a aprovação do Lend Lease, em março de
percebeu a grave crise vivida pelo Reino 1941. O programa garantia o envio gratuito de
Unido no verão de 1940, quando a vitória AVIÕES armamento, combustíveis e alimentos para o
na Batalha de Inglaterra estava longe de PRODUZIDOS NOS EUA Reino Unido e dependências francesas livres,
garantir a sobrevivência do país, e por isso acabando por ser alargado a outros aliados
decidiu agir. Os britânicos estavam a perder
1940 1944 como a China e a União Soviética. Com a
a Batalha do Atlântico e a fome ameaçava as 3 611 96 270 entrada dos EUA no conflito, o Lend Lease
ilhas Britânicas, tendo a ajuda chegado a 2 de aumentou exponencialmente e quando lhe foi

30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
OS ‘DOUGHBOYS’ NA GRANDE GUERRA
Vista do outro lado do Atlântico, a Grande Apesar de os EUA contarem com pouco
Guerra (I Guerra Mundial) que devastava mais de 100 mil soldados em 1916,
a Europa parecia ser um conflito a mobilização e o envio das Forças
longínquo entre velhos impérios que a Expedicionárias para a Europa foi feita
jovem potência deveria evitar. Uma visão em tempo recorde. Se em junho de
que foi mudando à medida que cada vez 1917 apenas 14 mil soldados tinham
mais vidas americanas eram perdidas chegado a França, em maio do ano
nos ataques de submarinos germânicos, seguinte eram mais de um milhão e o
e profundamente marcada pelo seu impacto nas trincheiras aumentou
afundamento do paquete RMS Lusitania, exponencialmente. Conhecidos como
onde 128 cidadãos dos EUA perderam a os Doughboys, os soldados americanos
vida. A Casa Branca emitiu um protesto mostraram o seu valor em batalhas
formal e a opinião pública virou-se contra como Château-Thierry, Belleau Wood e
a Tríplice Aliança, num cumular de Saint-Mihiel, sendo determinantes para
tensão que levou à declaração de guerra, acelerar a derrota dos alemães e seus
a 6 de abril de 1917. aliados.

posto fim, em setembro de 1945, tinha sido Unidos e a Grã-Bretanha, vou correr de forma do Sol Nascente revelou-se imparável, com os
responsável pelo envio de armas e equipa- selvagem e obter vitória após vitória. Mas se EUA a perderem as Filipinas, Wake e Guam.
mentos no valor de mais de 50 mil milhões a guerra continuar depois disso, não tenho Os britânicos foram incapazes de defender
de dólares, o equivalente a 565 mil milhões expectativa de sucesso.» O almirante japonês Hong Kong, a Malásia e Singapura, e por
de dólares na atualidade. Era uma forma de não se enganou, pois durante os seis meses fim chegou a vez das Índias Orientais Holan-
apoiar os Aliados sem quebrar formalmente a seguintes o avanço dos soldados do Império desas (Indonésia atual), num avanço a que
neutralidade, mas a situação era insustentável nem Portugal ficou imune, com a invasão de
e a paz uma miragem prestes a chegar ao fim. Timor em 1942.
Quatro dias após o ataque contra Pearl
O ‘Dia da Infâmia’ Harbor, a Alemanha declarou guerra aos
A 7 de dezembro de 1941, centenas de aviões EUA. Hitler considerava inevitável o con-
levantaram voo de seis porta-aviões japoneses fronto com o «Arsenal da democracia» e
e lançaram um dos mais famosos ataques- Ainda antes da entrada acreditava ter chegado o momento ideal.
-surpresa da história. O seu alvo era uma na guerra, Roosevelt Aproveitando a fragilidade daquele período,
base no Havai onde a frota do Pacífico esta- os nazis lançaram a Operação Paukenschlag,
va fundeada e a marinha norte-americana
dirigiu-se aos americanos uma ofensiva submarina contra a navegação
sofreu um rude golpe. A guerra era agora pela rádio anunciando aliada na Costa Leste dos EUA que aproveitou
uma realidade, mas pouco tempo antes de o apoio aos Aliados a virtual ausência de defesas para semear a
liderar o ataque a Pearl Harbor, o almirante morte e a destruição. Em apenas oito meses
Yamamoto expressou uma opinião que se
e definindo os EUA foram afundados quase 400 navios, com a
revelou premonitória: «Nos primeiros seis como «o arsenal trágica perda de mais de 5 mil marinhei-
a doze meses de uma guerra com os Estados das democracias» ros, e cidades como Nova Iorque, Boston e

VISÃO H I S T Ó R I A 31
EUA // II GUERRA MUNDIAL

Charleston foram forçadas a apagar as luzes


para evitar que os submarinos detetassem
os seus alvos à noite. O apagão afetou mais
de 30 milhões de habitantes e aproximou a
realidade da guerra aos norte-americanos,

GETTY IMAGES
cada vez mais conscientes do perigo para
o seu país.
Os EUA eram atacados em todas as frentes
e sofriam revezes contínuos, mas ao contrá-
rio do que Hitler e o líder nipónico Hideki
Tojo esperavam, não houve qualquer quebra
da moral do povo norte-americano. Pelo
contrário, a entrada na guerra teve um efeito
galvanizador e levou milhões de cidadãos a
alistarem-se para combater os agressores,
incluindo os nipo-americanos que estavam
a ser sujeitos a medidas repressivas e os
afro-americanos que viviam a segregação.
As numerosas comunidades imigrantes
também se juntaram ao esforço coletivo e
a portuguesa não foi exceção, com mais de
mil portugueses e largos milhares de luso-
-descendentes a alistarem-se para servir
nos vários ramos das Forças Armadas. De
apenas 334 mil militares em 1939, os Esta-
dos Unidos passaram a contar com mais de
IWM/GETTY IMAGES

12 milhões em 1945, equipados pelo vasto


GETTY IMAGES

complexo industrial-militar que se expandiu


em tempo recorde.

O acordar do gigante
Apesar da vaga de vitórias japonesas, Yama- nos mares em redor. Uma campanha ainda mercantes e 200 de guerra, incluindo nove
moto não partilhava o mesmo otimismo do mais devastadora estava a ser realizada pelos porta-aviões.
estado-maior nipónico e terá feito um desa- submarinos que partiam de bases no Havai A luta contra a Alemanha nazi também
bafo que se revelou profético: «Receio que te- e na Austrália e combatiam de forma im- começou por se travar nos mares, onde as
nhamos acordado um gigante adormecido.» placável as frotas japonesas que navegavam contínuas perdas sofridas no Atlântico eram
De novo, o almirante não se tinha enganado. por todo o Pacífico, afundando 1300 navios rapidamente compensadas pela vasta produ-
Em maio de 1942, cinco meses depois de Pearl ção dos estaleiros americanos. Em novembro
Harbor, os japoneses tiveram um primeiro de 1942, a Operação Torch levou o exército
revés na Batalha do Mar de Coral, que impe- americano ao norte de África, onde começou
diu o desembarque em Port Moresbi, no sul por ser batido em Kasserine antes de derrotar
da Nova-Guiné, e no mês seguinte sofreram os famosos Afrika Korps do general Erwin
uma derrota estratégica na Batalha de Mi- As vitórias militares Rommel. Seguiu-se a invasão da Sicília e por
dway, com a marinha americana a afundar fim da Itália continental, que acabou com o
quatro porta-aviões e a destruir a imagem de
foram apenas parte regime de Mussolini e colocou os Aliados
invencibilidade nipónica. do sucesso americano, com um pé na Europa.
Dali em diante a iniciativa era norte-ame- traduzido também As vitórias militares eram apenas parte
ricana. O primeiro contra-ataque realizou-se do sucesso americano. Na frente interna
sobre Guadalcanal, uma pequena ilha no
na produção de grandes disparava a produção de armamento, com
arquipélago Salomão onde durante meses se quantidades de navios, aviões os estaleiros navais a produzirem 2710
travaram combates encarniçados na selva e e armamento em geral cargueiros da classe Liberty, centenas de

32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY IMAGES

Vitória Nova-iorquinos festejam na rua o final da guerra, a 7 de maio de 1945

6 de agosto de 1945 sofrer uma devastação inédita na história da


A primeira bomba humanidade. Vagas de bombardeiros B-29
atómica a ser utilizada
contra seres humanos reduziram a cinzas 67 das principais cidades
e a explosão em forma japonesas e duas bombas atómicas oblitera-
de cogumelo por ela ram Hiroxima e Nagasáqui. A outrora temível
produzida (fotos à
Marinha Imperial Japonesa era uma mera
esquerda) pulverizaram
literalmente a cidade sombra da sua antiga glória e com a queda de
japonesa de Hiroxima Iwo Jima e Okinawa ficou aberto o caminho
para a invasão da metrópole. O inevitável
contratorpedeiros e milhares de lanchas de e à abertura da segunda frente. Duas sema- chegou no dia 2 de setembro, quando o cou-
desembarque. A produção de aviões tam- nas mais tarde a Marinha japonesa perdeu raçado USS Missouri serviu de palco para a
bém foi multiplicada. Se em 1940 tinham três porta-aviões e mais de meio milhar de cerimónia de rendição que ditou o fim da II
sido construídos apenas 3611, aviões na Batalha do Mar das Fi- Guerra Mundial. Os Aliados tinham ganho
no ano seguinte esse número foi LAND LEASE lipinas, que permitiu a ocupação e os EUA surgiam como os principais ven-
triplicado e em 1944 atingiu uma Programa, das ilhas Marianas que serviriam cedores, transformados numa superpotência
cifra colossal, com 96 270 aviões aprovado em de base aos bombardeiros B-29. económica e militar que escapara à destruição
1941, que garantia
a saírem das linhas de produção. o envio gratuito Na Europa, os americanos ainda que deixara a Europa e a Ásia em ruínas.
A superioridade industrial não se de armamento, iriam enfrentar duros combates,
fazia apenas na quantidade, mas combustíveis e como a ofensiva das Ardenas, em
também na qualidade, incluindo alimentos dos EUA dezembro de 1944, e no Pacífico
para o Reino Unido Para saber mais:
avançados modelos como o bom- e dependências os ataques suicidas japoneses em VISÃO HISTÓRIA
bardeiro B-29 e o caça P-51 com francesas livres. Okinawa, mas a vitória aproxima-
que os EUA dominavam os céus Foram enviados va-se rapidamente e o III Reich
mais de 50 mil
do Japão e da Alemanha. germânico acabou por se render
milhões de dólares
Em meados de 1944, o Eixo de material incondicionalmente a 7 de maio
entrou na reta final da sua des- de 1945.
truição. No dia 4 de junho, Roma foi conquis- Os EUA podiam finalmente concentrar
tada e dois dias mais tarde o Dia D levou o todo o seu poderio industrial e militar no Pa-
exército americano às praias da Normandia cífico e bastaram poucos meses para o Japão Número 8 Número 29 Número 56

VISÃO H I S T Ó R I A 33
EUA // INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS

A ascensão Organizações internacionais


Países fundadores e signatários

da ‘Pax Americana’
Do falhanço da ordem «igualitária» preconizada por
de tratados e instituições
internacionais
● NATO -Países fundadores da NATO
(Organização do Tratado do Atlântico Norte,
Wilson ao triunfo do sistema de segurança «policiado» por vezes chamada Aliança Atlântica). Fundada em 1949
de Roosevelt e à atual «anarquia» internacional ● Outros aliados dos EUA

por Pedro Aires Oliveira* ▲ OEA - Organização dos Estados Americanos

A
● Países que assinaram a Carta das Nações Unidas em 1945

natureza do poder americano, e a for- que lhe faltava para vencer os setores mais
ma como este se manifestou ao longo reticentes da opinião americana a uma parti- NÚMERO DE ESTADOS-MEMBROS
do século XX, é um dos temas mais de- cipação militar dos EUA no conflito mundial. Organização das Nações Unidas 193
batidos pelos estudiosos das relações Essa beligerância era vista por alguns como Banco Mundial 189
Fundo Monetário Internacional 189
internacionais. As expressões «hege- imprescindível para uma afirmação mais de- NATO 29
monia», «império», «Pax Americana» sinibida dos valores e interesses americanos, INFOGRAFIA Manuela Tomé

ou «República Imperial» surgem no contexto já não confinada ao hemisfério ocidental, mas


dessas discussões, com maior ou menor senti- cada vez mais à escala planetária. Na mente
do polémico. Num ponto, porém, todos estão de Wilson e de outros estrategas americanos,
de acordo. Se há fenómeno incontornável na o descrédito que recaíra sobre a Realpolitik e EUA na guerra fora a sua determinação em
centúria passada, esse foi a ascensão dos EUA os ardis de uma diplomacia conduzida por eli- «tornar o mundo seguro para a democracia»,
a uma posição de supremacia nos mais va- tes não-democráticas deveria ser aproveitado uma frase com uma forte ressonância kantiana
riados domínios da vida internacional – um pelos EUA para lançarem os fundamentos de (a visão de uma Paz Perpétua entre repúblicas
movimento bem capturado por Henry Luce, uma ordem internacional com um outro sen- preconizada pelo filósofo iluminista alemão
o magnata de imprensa que em 1941, num tido moral. A visão dessa ordem plasmou-se em 1795). Por outras palavras, um sistema
editorial da revista Life, antecipou um «século em vários discursos célebres de Wilson e foi minimalista como a ordem de Vestefália, preo-
americano» informado pelos valores do livre parcialmente consagrada nos tratados de paz cupada em instaurar equilíbrios de poder entre
empreendedorismo e da democracia. celebrados em Paris em 1919-20, assim como estados soberanos, parecia-lhe insuficiente.
Essa trajetória ascendente teve alguns mar- no Pacto da Sociedade das Nações (SdN), a Procurou, pois, que o conceito de autodeter-
cos fundamentais, como a participação nas carta fundadora da primeira organização mul- minação se tornasse um dos ordenadores
duas guerras mundiais, sofreu alguns revezes tilateral permanente consagrada à manuten- da política do pós-guerra, convicto de que as
(como a Grande Depressão e a derrota no ção da paz e da segurança coletiva. novas repúblicas que sucederiam aos impérios
Vietname), mas conheceria depois um des- Embora o Pacto da SdN fosse agnóstico dinásticos derrotados acabariam por emular o
fecho triunfal em 1989-91, com a capitulação em relação aos regimes políticos dos estados exemplo de virtuosismo cívico oferecido pela
do principal rival geopolítico na Guerra Fria: que a integravam, Wilson proclamava que a democracia americana (ou por estados bem
a URSS. Uma das facetas-chave da posição grande motivação por detrás da entrada dos organizados como a Suíça).
dominante alcançada pelo país-continente A visão de Wilson colocava também ênfase
foi a sua capacidade para moldar as normas na liberdade de navegação e em mercados
e instituições que deram expressão aos siste- abertos, dois desígnios caros a uma potência
mas internacionais saídos dos dois grandes que evidenciava agora uma apetência cres-
conflitos globais. A primeira tentativa foi, a cente pela conquista de outlets para os seus
vários títulos, um fiasco. A segunda tem-se capitais e mercadorias. Nos finais do século
revelado notavelmente resiliente, não obstante No último século, os EUA XIX, os EUA haviam já feito deste último
o desapego que Donald Trump por ela tem ascenderam a uma posição aspeto um dos grandes pontos de fricção com
demonstrado. os poderes europeus a propósito do acesso ao
Em 1917, com um casus belli oferecido de
de supremacia nos mais mercado chinês, onde todos tinham adquirido
bandeja pelo Alto Comando alemão, o presi- variados domínios da vida posições privilegiadas graças aos «tratados
dente Woodrow Wilson conseguiu o pretexto internacional desiguais» negociados com um debilitado

34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
REINO
CANADÁ UNIDO URSS
POLÓNIA
RDA
RFA COREIA
FRANÇA DO
EUA JUGOSLÁVIA
NORTE
ITÁLIA TURQUIA JAPÃO
PORTUGAL ESPANHA COREIA
SÍRIA CHINA DO SUL
IRAQUE IRÃO PAQUISTÃO
MÉXICO EGITO ARÁBIA
CUBA CABO SAUDITA ÍNDIA
VERDE
FILIPINAS
NICARÁGUA GUINÉ-BISSAU
SERRA LEOA ETIÓPIA
VENEZUELA TOGO MALÁSIA
COSTA
DO MARFIM CONGO
BRASIL INDONÉSIA
PERU

NAMÍBIA BOTSUANA

AUSTRÁLIA
ARGENTINA
CHILE ÁFRICA NOVA
DO SUL ZELÂNDIA

«Império do Meio». Wilson esperava agora a duplicidade do Ocidente em várias partes profundamente ligados aos mercados globais,
que o enfraquecimento dos seus competidores do mundo. Fosse como fosse, as esperanças e ressentiram-se de medidas protecionistas
europeus, alguns deles imensamente endi- que Wilson depositava na edificação de uma adotadas por outros estados, ou da falência
vidados perante Washington, habilitasse os ordem internacional afeiçoada aos valores de várias instituições de crédito em países
EUA a penetrar gradualmente nas esferas de americanos seriam liquidadas poucos meses onde os capitais americanos tinham procurado
influência que as potências do Velho Conti- depois do seu regresso a Washington, com o aplicação. O democrata Franklin Delano Roo-
nente guardavam ciosamente desde o scramble «chumbo» do Tratado Versalhes pela maioria sevelt (FDR), eleito em 1932, tentou, depois de
imperialista do século XIX. republicana no Congresso. Alguns dos com- algumas hesitações iniciais, empenhar os EUA
Para conseguir «abrir» os mercados colo- promissos negociados por Wilson com os seus num relançamento do comércio internacional,
niais, Wilson não contava instigar qualquer congéneres europeus, designadamente certas desde logo baixando as notórias tarifas Smoot-
dinâmica descolonizadora. O seu «internacio- garantias quanto às cláusulas de segurança -Hawley. Mas as receitas que agora tinham
nalismo liberal», como notou o politólogo G. coletiva inscritas no Pacto, foram recebidas mais seguidores envolviam, pelo contrário,
John Ikenberry, estava firmemente ancorado com ceticismo e hostilidade por fações mais medidas protecionistas e autárcicas, sendo
em hierarquias civilizacionais, raciais e cultu- «soberanistas» das elites políticas americanas, que até a grande campeã do livre-câmbio, a
rais. A participação em instituições democráti- lideradas pelo senador Henry Cabot Lodge. Grã-Bretanha, se afastava dessa matriz em
cas era algo que não estava ainda ao alcance de benefício dos acordos de «preferência impe-
populações «bárbaras» ou «semicivilizadas». O calcanhar de Aquiles rial» e de zonas monetárias exclusivas. Apesar
Numa concessão aos poderes imperiais euro- Privada do peso estratégico que os EUA lhe dos seus resultados satisfatórios, o New Deal
peus (e ao Japão), Wilson inscreveu o conceito poderiam conferir, a SdN teria precisamente ressentiu-se destas dinâmicas de fechamento
de «tutela» no Pacto e confiou à SdN, através na manutenção da paz e da segurança interna- e apenas a eclosão de uma segunda guerra
desses poderes imperiais (ou de proxies, como cionais o seu calcanhar de Aquiles no período mundial rasgaria novos horizontes de expan-
a Austrália e a Nova Zelândia), a governação de entre-guerras, em especial após a afirmação são para o capitalismo americano.
das antigas colónias alemãs e otomanas sob das potências revisionistas totalitárias. Na Ganhar a guerra e perder a paz fora a sina de
a figura dos «mandatos internacionais». Ao década de 1930, figuras influentes do esta- Woodrow Wilson, em cuja administração FDR
mesmo tempo, as reivindicações de indianos, blishment americano começavam a refletir servira como secretário Assistente da Marinha.
coreanos, chineses e outros povos sujeitos a sobre os perigos que uma postura demasiado Por conseguinte, a construção da paz foi algo
alguma forma de dominação imperialis- «insular» poderia comportar. Apesar da sua que FDR procurou acautelar tão cedo quanto as
ta foram rejeitadas na Conferência de Paz, relativa autossuficiência em vários planos, circunstâncias o permitiam – na verdade, a pre-
alimentando fortes ressentimentos contra setores como o agrário ou o financeiro estavam paração do pós-guerra começou logo em agosto

VISÃO H I S T Ó R I A 35
EUA // INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS

de 1941, com a cimeira de Placentia Bay, com rica numa série de acordos internacionais nos
Churchill, de onde saiu a aprovação da «Carta domínios da finança e do comércio, ajuda
do Atlântico», um documento não vinculativo aos refugiados e reconstrução económica,
mas dotado de um simbolismo poderoso com as alimentação e agricultura, aviação civil, etc.,
suas referências à autodeterminação dos povos que visavam proporcionar maior segurança
e à segurança coletiva. Para além da necessidade à projeção global dos valores e dos interesses
imperiosa de derrotar, desarmar e ocupar as americanos. Nos anos subsequentes, com a
potências vencidas, e de lançar os fundamen- escalada de tensões que instituiu a Guerra
tos de uma cooperação económica mundial, a Fria, a nova arquitetura institucional cons-
grande preocupação de FDR consistia em per- truída por Washington aprofundaria a sua
suadir o povo americano a aceitar uma maior componente securitária e militar com a fun-
responsabilidade internacional, como se pode dação da NATO e de toda uma série de pactos
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depreender de várias das suas «conversas à bilaterais e multilaterais na Ásia Oriental.


lareira» proferidas durante a guerra. Garantir um enquadramento estável para
Muito embora se revisse nos desígnios in- a ascendência económica dos EUA pode ter
ternacionalistas de Wilson, Roosevelt tinha sido, como notam historiadores marxistas como
uma visão própria da ordem mundial que Perry Anderson, o desígnio prioritário de um
os EUA deveriam ajudar a construir, uma FDR mais nacionalista do que o que os seus
visão informada pela sua consciência aguda Para Wilson, a entrada dos admiradores gostam de admitir. Mas a noção
das relações de força e dos constrangimen- EUA na I Guerra Mundial de que a estabilidade do sistema dependeria
tos inerentes ao sistema político america- muito do seu sentido de legitimidade nunca foi
no. Desta feita, os principais adversários
destinou-se a tornar perdida de vista pela sua administração e pela
com que teve de se confrontar não foram o mundo seguro do sucessor, Harry Truman. A nova ordem libe-
os isolacionistas, mas os neo-wilsonianos para a democracia ral deveria ser encarada como uma espécie de
adeptos de uma SdN robustecida e baseada «sociedade de proteção mútua» (para usarmos
na premissa da igualdade soberana dos es- a expressão de Ikenberry), baseada em normas,
tados e no ideal da segurança coletiva. Esta, A legitimação da hegemonia instituições e compromissos, mas também em
contudo, era uma visão que FDR tinha por Com o seu consumado sentido pragmático, incentivos e recompensas para todos os que a
impraticável, por não levar em devida conta o Presidente dos EUA, aceitou a sugestão de ela se juntassem. As suas assimetrias e hierar-
as realidades do poder na arena internacio- transformar os «Quatro Polícias» naquilo quias davam-lhe um aspeto quase imperial.
nal. Em seu entender, a única alternativa que mais tarde se converteu no Conselho de Mas seria talvez um império consentido, visto
ao utopismo wilsoniano consistiria numa Segurança das Nações Unidas (ONU). Para por muitos como benigno, sobretudo quando
espécie de reedição do sistema do concerto Roosevelt, o invólucro da ONU era menos comparado com as suas alternativas – e daí a
das potências estabelecido em 1815, após a relevante do que a substância da sua visão, sua longevidade.
derrota da França napoleónica. assente na cooperação entre as potências Trinta anos volvidos sobre o fim da Guerra
O sistema de segurança internacional da Grande Aliança. Gradualmente, foi-se Fria, são muitas as elegias que se podem ler nos
idealizado por Roosevelt assentaria num conformando com a ideia de que a maneira órgãos dos think tanks americanos acerca do fim
consórcio de grandes potências, as quais mais eficaz de evitar que num futuro próxi- da «ordem liberal» edificada a partir de 1945.
formariam uma espécie de comité execu- mo as tendências isolacionistas voltassem Várias intervenções militares unilaterais, uma
tivo que lidaria com todas ameaças à paz a prevalecer passava por amarrar os EUA a atitude sobranceira em relação a aliados, normas
que pudessem surgir. Este diretório, que uma teia de compromissos e instituições que e instituições, a renúncia a um capitalismo com
integraria os EUA, a URSS, a Grã-Bretanha dessem textura a um sistema internacional alguma «consciência social», abalaram forte-
e a China, os chamados «Quatro Polícias», mais cooperativo. A lição da Grande Depres- mente o sentido de legitimidade da hegemonia
teria o monopólio do poder militar; todos os são foi assimilada: a abertura económica e americana. A imagem da «anarquia internacio-
outros estados seriam obrigados a renunciar uma gestão conjunta pelas grandes potên- nal» tem vindo a impor-se como especialmente
a forças armadas que pudessem representar cias dos desafios à segurança internacional apropriada para descrever um mundo onde é
uma ameaça para os vizinhos – uma ideia eram premissas fundamentais para evitar o cada vez menos evidente a apetência americana
que suscitou uma reação de repúdio entre recrudescimento do nacionalismo agressivo. por uma liderança consensualizada.
partes significativas da opinião pública, hor- Através de uma série de conferências reali-
* Pedro Aires Oliveira é diretor do Instituto
rorizada com esta imagem demasiado crua zadas em 1944 (Bretton Woods, Dumbarton de História Contemporânea da Universidade Nova
da distribuição do poder. Oaks), a sua administração envolveu a Amé- de Lisboa

36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
EDWARD MILLER/GETTY IMAGES
Açúcar para o Reino Unido Ao abrigo do Plano Marshall, a chegada de um primeiro carregamento, proveniente das Caraíbas

A ambição e a efetiva amplitude do Plano Mar-

A construção shall foram muito maiores do que a leitura dos


números suscita. O enunciado formulado por
Marshall representava o desfecho e o lançamento

americana da Europa
Sob a capa da filantropia, a ajuda americana
de um projeto a que há algum tempo se dedi-
cava um conjunto de economistas e politólogos
ligados a parte da Administração americana, no
sentido de definir o enquadramento e organizar
depois da II Guerra Mundial foi uma operação a estratégia que devia orientar a posição dos EUA
de publicidade e de propaganda no mundo do pós-guerra e, especificamente,
determinar o relacionamento e o lugar reservado
por Maria Fernanda Rollo* à Europa no novo concerto internacional.

E
É conhecida a situação em que se encontra-
m 5 de junho de 1947, o secretário de Simultaneamente, e conforme condição vam os países europeus a seguir à Guerra, a
Estado dos EUA, George Marshall, em imposta pelos americanos, os países euro- forma como conduziram os primeiros tempos
discurso proferido na Universidade de peus teriam de aceitar gerir o programa de de reconstrução e como parte dos esforços
Harvard, tornou pública a intenção ajuda solidariamente entre si e em conjunto se viram frustrados na sequência da crise de
dos EUA de apoiar os países europeus com os EUA. Essa solidariedade «imposta» comércio e pagamentos a que as instituições
depauperados pela II Guerra Mun- conduziu à criação, em 16 de abril de 1948, da financeiras não conseguiram fazer face.
dial na sua obra de recuperação económica. Organização Europeia de Cooperação Eco-
A proposta foi aceite pelos países da nómica (OECE), no seio da qual Três grandes objetivos
Europa Ocidental, que reconhece- se consagrou a ajuda americana Embora discretas, eram já claras as finalidades
ram nela a via preferível para a sua entretanto aprovada pelo Con- prosseguidas pela Administração americana
«recuperação» económica. Deu-se gresso. Ao longo dos quatro anos adepta da estratégia que o Plano Marshall
então corpo à realização de um vas- em que vigorou o ERP (European materializaria, envolvendo um ambicioso
to e complexo programa que, com Recovery Program, nome oficial esforço financeiro e organizativo destinado
uma duração prevista de quatro do chamado Plano Marshall), os a estimular o crescimento económico numa
anos, viria a estimular os países EUA canalizaram para a Europa Europa próxima da bancarrota, evitar os
participantes a romper o impasse cerca de 13 mil milhões de dólares, avanços soviéticos (apesar de as fórmulas e
económico em que se encontravam, e a auxiliar representando anualmente cerca de 1,2% do estratégias de atuação serem diferentes, os
o cumprimento do processo de reconstrução e total do Produto Nacional Bruto americano objetivos últimos da «Doutrina Truman» e
de recuperação das suas economias. entre 1948 e 1951. do Plano Marshall coincidem no essencial)

VISÃO H I S T Ó R I A 37
EUA // PLANO MARSHALL

e encorajar o desenvolvimento de uma eco-


nomia europeia saudável e estável.
As metas seriam alcançadas através de
três grandes objetivos: integração econó-
mica que permitisse a constituição de uma
comunidade de nações europeias estável e
próspera capaz de se juntar aos EUA num
sistema multilateral de comércio; cresci-
mento económico que pressupunha uma
estreita cooperação entre os países europeus
e que constituía fundamento para a har-
monia social, a sobrevivência da economia
liberal de mercado e permitiria preservar
a democracia política e reduzir a excessi-
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va expansão e intervenção do Estado nas


economias; e modernização da produção
através da assimilação das tecnologias ame-
ricanas, da introdução de reformas fiscais
e da cooperação dos empresários europeus que o ano de 1947, com todo o seu cortejo de Ao longo dos anos em que durou, a fisio-
com os respetivos governos por forma a que desapontamentos e fracassos, fez surgir no nomia do ERP foi-se alterando, refletindo as
as melhorias e os benefícios conseguidos momento próprio como tentativa definitiva tendências e os objetivos da política externa
pudessem ser repartidos de forma mais equi- para resolver o «problema europeu», viram-se dos EUA estabelecidos de acordo com a evo-
tativa pelas classes trabalhadoras. reforçados após o regresso de Marshall de lução da conjuntura internacional e acertados
Por outro lado, esbatendo o seu lado filan- Moscovo, onde tinha mantido uma decisiva em função da composição e dos interesses
trópico, através do Plano Marshall os EUA entrevista com Estaline. Dessa entrevista, das forças políticas em presença no seio da
impunham aos países europeus a sua posição pôde concluir que, na Europa, o tempo jo- Administração americana.
hegemónica a nível económico, financeiro e gava a favor dos soviéticos e que, por isso, os Em breve, e em reação à evolução da con-
tecnológico. Numa perspetiva estritamente americanos já não tinham tempo a perder juntura internacional, a «diplomacia econó-
económica, a palavra-chave era a produti- para ir em auxílio dos seus aliados ocidentais, mica», de que o Plano Marshall era a peça
vidade ou o aumento generalizado da pro- onde em alguns governos já se encontravam mais visível, foi perdendo posição: procu-
dutividade dos fatores de produção quer se comunistas no poder, se encontravam abun- rando evitar deixar o caminho totalmente
tratasse do trabalho, da terra ou do capital, dantes indícios de desorganização social, o franqueado aos que rejeitavam e vinham
por forma a que a Europa Ocidental, como desemprego grassava e onde tinham fracas- criticando o programa de reforma económica
um todo se pudesse transformar num parceiro sado as primeiras tentativas de recuperação europeia propugnado pela administração da
válido para os EUA. económica. ECA, procurou ajustar a arquitetura do ERP
O discurso de Marshall, com um enorme Os propósitos últimos do Plano Marshall à realidade emergente.
conjunto de sinais e antecedentes, foi longa eram, pois, quase inteiramente políticos Tornava-se, no entanto, impossível evitar a
e maduramente pensado. A pertinência e a embora os mecanismos usados tenham sido subordinação do ERP aos novos programas de
urgência de que se revestia a sua formulação, quase inteiramente económicos. auxílio como o desenhado no Mutual Defense
CARTAZES DO PROGRAMA WORK PROGRESS ADMINISTRATION

38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Plano em marcha
Agricultores
Em Portugal
austríacos utilizam Quanto a Portugal, o aproveitamento do
uma máquina programa de AT&P, bem como de todo o
identificada com a Plano Marshall, constituiria em boa parte
palavra «Marshall»
e (ao lado) o uma história de oportunidades perdidas.
presidente Harry Porém, o que se concretizou na área da as-
Truman. Em baixo, sistência técnica teve globalmente efeitos
cartazes do ERP, benéficos a curto e médio prazos e refletiu-se
European Recovery
Program, nome num impacto positivo de carácter duradouro
oficial do plano no percurso na economia portuguesa e no
Marshall desenvolvimento do conhecimento científico
e tecnológico nacional.
A assistência técnica de que os países euro-

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peus beneficiaram desde o início da execução
do Plano Marshall não se esgotou no AT&P
promovido diretamente pela Administração
americana – havendo que, entre outros aspe-
Assistance Act (MDAA) ou no Additional sua vocação original, confrontava-se com o tos, considerar a existência de um programa
Military Production Programme (AMP), que anúncio de um fim antecipado. multilateral de assistência técnica (na prática
visavam e apoiavam a militarização europeia, Um dos poucos programas que sobreviveu também ele propiciado pelo Plano Marshall),
num intento que reunia a vontade dos empre- foi o designado de Assistência Técnica e Pro- que, integrando um vastíssimo e diversifica-
sários americanos protecionistas e dos que dutividade (AT&P), que visava introduzir os do conjunto de iniciativas, foi desenvolvido
vinham defendendo um programa de auxílio métodos e as técnicas de produção e os mode- pela OECE e, a partir de 1953, pela Agência
ao exterior assente numa política de defesa e los de gestão americanos nas economias dos Europeia de Produtividade.
de rearmamento. países da Europa Ocidental, assumindo foros Foi através deste que também se ampliou
A invasão da Coreia do Sul pela Coreia do de uma autêntica campanha de produção e a imensa operação de publicidade e de pro-
Norte ocorreu em junho de 1950, suceden- produtividade dirigida à economia europeia, paganda que o Plano Marshall representou,
do-se, cinco meses mais tarde, a intervenção cujo termo chegaria em 1958. Assentava no fazendo a apologia dos EUA, da ajuda à Euro-
chinesa no conflito. Paulatinamente, as ações pressuposto de que a cooperação e o aumento pa, do Mundo Ocidental, do anticomunismo
de assistência económica aos países europeus dos níveis de produtividade, endogeneizando e do modelo político e económico americano.
subordinar-se-iam ao objetivo prioritário de na medida do possível o modelo tecnológico tornando os próprios europeus parceiros dessa
aumentar a produção militar europeia. Não e económico americano, conduziriam à ele- divulgação.
obstante o esforço, a ECA acabou por ser vação dos níveis de vida das populações dos Aliás, a forma como foi organizado o anún-
integrada e absorvida pelo Departamento países europeus e à estabilidade e consolida- cio da proposta americana à Europa, através
de Estado no final de 1950, perdendo a au- ção das respetivas instituições democráticas, do discurso de George Marshall, já indiciava
tonomia e a exclusividade de que até então tornando-as «imunes» ao comunismo e trans- o cuidado que seria conferido à montagem da
tinha gozado na gestão do auxílio à Europa formando a Europa no parceiro económico operação de propaganda centrada inicialmen-
Ocidental. Na prática, o Plano Marshall, na deal de que os EUA careciam. te no objetivo de «vender a ideia» da ajuda
à Europa, interna e externamente, conven-
cendo todos da bondade e da generosidade
do programa.
A avaliação do significado e do impacto do
Plano Marshall deve salientar a influência me-
nos «visível», mas porventura mais penetrante
e duradoura, inscrita no programa de Assis-
O plano fez a apologia tência Técnica e Produtividade, que, não obs-
dos EUA, da ajuda à Europa, tante a americanização implícita, constituiu
um elemento catalisador e um instrumento
do Mundo Ocidental, de inovação e crescimento no pós-guerra.
do modelo americano
* Maria Fernanda Rollo é professora catedrática
e do anticomunismo da Universidade Nova de Lisboa

VISÃO H I S T Ó R I A 39
EUA // ESPAÇO

OS RUSSOS FORAM
OS PRIMEIROS…

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A colocar um animal no Espaço,
a cadela Laika, em 1957

A realizar a primeira
viagem tripulada
ao Espaço e a pôr
o primeiro homem
a viajar na órbita
da Terra (Iuri
A lançar um satélite para a órbita da Terra, Gagarine, em 1961)
o Sputnik 1, em 1957

A corrida espacial
Disputada entre os EUA e a União Soviética de 1957 a
Para combater a chamada «Crise do Sputnik»,
durante a presidência de Dwight Eisenhower
(1953-61) os EUA fundaram a Advanced Re-
search Projects Agency (ARPA), uma agência
federal com o objetivo de conduzir operações
1969, a «conquista dos cosmos» mudou a sociedade e o não militarizadas ao Espaço. Em 1958, o Con-
mundo na segunda metade do século XX gresso avançou com a criação da NASA e
por Francisco J. M. Garcia do Mercury Project, um extenso programa
que levaria à realização de voos tripulados

A
ao Espaço. No mesmo ano, foi ainda lança-
pós a II Guerra Mundial, com a Terra o satélite Sputnik 1. Neste clima de do o primeiro satélite de telecomunicações,
Guerra Fria, o mundo tornou-se entusiasmo, no mês seguinte, os soviéticos considerado uma importante demonstração
um lugar diferente. Por oposição mandaram para o Espaço o Sputnik 2 com do progresso científico e de poder dos EUA
a um conflito armado, os EUA e a a cadela Laika a bordo, que morreu algumas face à URSS.
URSS concentraram esforços numa horas após entrar em órbita. No entanto, em abril de 1959 a URSS as-
competição pelo progresso científi- Receando o sucesso soviético, o Departa- sumiu novamente a liderança da corrida, ao
co, que levou a um dos maiores marcos da mento de Defesa dos EUA valeu-se de Wer- conseguir levar à Lua o primeiro veículo sem
História da humanidade: a chegada do Ho- nher von Braun, o cientista alemão «pai» tripulação, o Luna 2, e ao realizar, em 1961,
mem à Lua. dos mísseis nazis V-2, que no final da guerra a primeira viagem tripulada ao Espaço, com
Divididos política, cultural e ideologica- fora levado para a América a fim de liderar o Yuri Gagarin a bordo da aeronave Vostok 1.
mente, tanto Washington como Moscovo chamado Explorer Program. O astronauta russo viajou na órbita da Terra
tinham por objetivo encabeçar esta nova fase Só quatro meses após o lançamento do por cerca de 1 hora e 48 minutos, tornando-se
dos «Descobrimentos», instrumentalizando Sputnik 1 é que os americanos se tornaram a o primeiro homem a fazê-lo.
cada passo dado na direção do Espaço em prol segunda potência mundial a chegar ao Espa- Numa tentativa de igualar a compe-
da afirmação da sua supremacia e prestígio ço, com o lançamento do satélite Explorer 1 a tição, um mês depois os americanos
mundial. partir do Cabo Canaveral, na Florida – local realizaram um voo suborbital com a
No primeiro dia de outubro de 1957, a até hoje predileto para lançamentos made in aeronave Mercury Freedom 7, tripu-
URSS fez a primeira grande jogada na cor- USA (e já «previsto» por Júlio Verne um sé- lada pelo astronauta Alan Shepard.
rida ao Espaço, ao lançar para a órbita da culo antes no seu romance Da Terra à Lua). E em fevereiro de 1962 o astronauta John

40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Neil
Armstrong
A colocar pisou o solo
a primeira lunar a 20 de
mulher no julho de 1969
Espaço,
Valentina
Tereshkova,
em 1963

… MAS OS
AMERICANOS
FORAM OS
PRIMEIROS
A PISAR A LUA

NASA
Glenn tornou-se o primeiro americano a Leonov tornou-se o primeiro homem a sair da Em finais da década de 1960 os EUA con-
realizar um voo na órbita da Terra. cápsula e a ficar suspenso no Espaço. quistaram então a posição de liderança na
Para ganhar terreno à URSS e reforçar os corrida à Lua, quando, em 1968, no âmbito
interesses americanos, o presidente John Ken- O triunfo americano da missão Apollo 8, os astronautas James
nedy deu progressivamente força à ideia e de- Houve, contudo, alguns fatores que rever- Lovell, Bill Anders e Frank Borman orbita-
sejo dos EUA se tornarem a primeira potência teram a favor dos projetos americanos: o ram em torno do satélite natural da Terra.
a chegar à Lua. A «corrida ao Espaço» passou avultado orçamento disponível (na ordem dos O auge do projeto Apollo foi, porém, atingi-
a ser uma questão central nos seus discursos e milhares de milhões), a elevada mão-de-obra do no ano seguinte, quando Neil Armstrong
tornou-se um forte mecanismo de propaganda especializada e instituições académicas ao se tornou o primeiro ser humano a pisar o
nacional e internacional. «Nós escolhemos ir dispor das missões Gemini e Apollo. solo lunar. A bordo do Apollo 11 iam também
à Lua», disse Kennedy num famoso discurso Buzz Aldrin (que também caminhou na Lua)
proferido em 1962 na Universidade de Rice. e Michael Collins. Mais do que uma vitória
«Decidimos ir à Lua nesta década e fazer as americana, a chegada à Lua teve um enorme
outras coisas, não porque é fácil, mas porque impacto mundial, pois foi um evento captado
é difícil, (…) porque este é um desafio que não em direto por todos os televisores do mundo.
estamos dispostos a adiar (…)». Pela primeira vez, a Humanidade uniu-se
Porém, a URSS continuava a prosperar nas pelo sentimento comum de assistir, através
suas iniciativas, e em agosto de 1962 levou dos ecrãs, a um evento que mudou o curso
em simultâneo duas aeronaves tripuladas – a da História.
NASA

Vostok 3 e a Vostok4 – para a órbita da Terra «Pelos vossos feitos, os céus tornaram-
e, em 1963, arrecadou o recorde de ter pos- -se parte dos domínios da Humanidade»,
to a primeira mulher no Espaço, Valentina disse o presidente Richard Nixon no telefo-
Tereshkova, uma engenheira que pertenceu nema que fez aos astronautas da Apollo 11,
à Força Aérea soviética e que mais tarde fez em 20 de julho de 1969, declarando que a
parte da classe política. «Decidimos ir à Lua vitória americana na corrida ao Espaço foi
Em 1964, a URSS realizou pela primeira vez um importante passo para alcançar a paz no
na História, com a astronave Voskhod 1, uma
não porque é fácil, planeta. «Um momento sem precedentes
viagem espacial tripulada por três pessoas. mas porque é difícil», na História do Homem que uniu todas as
No ano seguinte, o cosmonauta russo Alexei disse John Kennedy pessoas na Terra», reiterou.

VISÃO H I S T Ó R I A 41
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Guerra da Coreia, 1951 Marines dos EUA disparam uma barragem de morteiros contra forças comunistas chinesas

‘Senhores do mundo’
A ascensão meteórica dos EUA a superpotência
Fria (Dwight Eisenhower, Lyndon Johnson,
Richard Nixon, Gerald Ford e Jimmy Carter).
Já no quadro posterior a 1989, de triunfo
na equação bipolar, assistimos a uma longa
espargata geopolítica (Bill Clinton e George
acabou por ser um fator de estabilidade no Ocidente, W. Bush), cujos riscos de análise e impactos
integrando os grandes derrotados da II Guerra Mundial provocados por crises sistémicas, financeiras
nas suas alianças prioritárias e securitárias voltaram a retrair o músculo
da superpotência (Barack Obama), agora

A
por Bernardo Pires de Lima*
com novos competidores assumidos, com a
diferença entre a primeira me- uma competição desenfreada entre várias China à cabeça. A aceleração da retração por
tade do século XX e a segunda outras potências, mas a realidade ultra- meios bruscos, erráticos e agressivos (Donald
está na profunda alteração es- passou algumas previsões e o facto é que Trump) tem afectado alianças, organizações e
tratégica do papel dos EUA no acabou por ser um fator de estabilidade no práticas diplomáticas enraizadas, bem como
mundo. Moldadas por períodos Ocidente, integrando os grandes derrotados alterado negativamente a apreciação de mui-
de isolamento, distanciamento e da Guerra nas suas alianças prioritárias tos parceiros europeus e asiáticos, sobre a
algumas incursões geograficamente restri- (Japão, Itália e Alemanha). valorização que outrora faziam da imperativa
tas no século XIX, as intervenções decisi- A partir de 1945, ajudada pelo fator soviéti- relação com Washington. A questão que se
vas nas duas Guerras Mundiais acabaram co, o único competidor geoestratégico da nova coloca neste ciclo que agora vai a eleições é
por deslindar uma constante retração em potência global, a política externa americana se tudo não terá passado de um interlúdio
criar alianças internacionais permanen- foi marcada por uma doutrina de contenção geopolítico ou se cristalizou a política externa
tes, gerar organizações multilaterais e em à ameaça comunista, num pêndulo que os- americana por vários anos, independente-
permanecer militarmente fora das suas cilou entre atuações maximalistas (Harry mente do titular da Casa Branca. A resposta a
fronteiras. A ascensão meteórica dos EUA Truman, John F. Kennedy, Ronald Reagan) e esta pergunta só ficará deslindada a partir de
a superpotência tinha tudo para alimentar necessidades de retração ao longo da Guerra 3 de novembro de 2020.

42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Guerra do Vietname, 1972 Crianças fogem de casa depois de uma bomba de napalm ter atingido a aldeia

Metamorfoses da Guerra Fria relutâncias de Washington, que queria evitar imprescindível para que a França desistisse
A contenção do comunismo soviético foi o compromissos permanentes com a defesa do desmembramento da Alemanha e revisse
mote da grande estratégia americana dese- das democracias europeias, o que impli- a sua estratégia num sentido construtivo,
nhada por Harry Truman, George Kennan caria uma mudança profunda na política traduzida na proposta de Robert Schuman,
e Dean Acheson, e a expansão do comunis- externa americana e uma limitação da sua ministro dos Negócios Estrangeiros francês,
mo a linha imperial de Moscovo. Ambos os liberdade de ação. O Tratado de Washington, de criação da Comunidade do Carvão e do
lados tinham projetos universalistas sobre fundador da NATO, só seria assinado a 4 de Aço, dando início ao processo de integração
os quais ergueram instituições e alianças, abril de 1949, acompanhado pelo processo europeia. A Declaração Schuman, de 9 de
incentivaram movimentos subversivos em democrático de constituição da República maio de 1950, só foi possível porque a pre-
África, na América Latina, na Ásia e na Federal da Alemanha, depois da fusão das sença militar norte-americana na Europa
Europa, apoiaram ditaduras, envolveram-se três zonas de ocupação ocidentais, o que impedia a ressurgência de uma Alemanha
em guerras por procuração, até que um su- fez da Aliança Atlântica e da República hegemónica, quadro que iria definir as dé-
cumbisse ao outro. Este jogo de soma zero Federal dois pilares da nova ordem tran- cadas da Guerra Fria.
terminou em 1991, quando oficialmente satlântica. A garantia norte-americana era No mesmo ano, a Guerra da Coreia le-
a União Soviética implodiu e os EUA ce- vou a uma dupla transformação da NATO,
lebraram a superioridade do seu modelo com a criação de uma organização militar
democrático. A História, no entanto, foi permanente e a integração da Alemanha,
pintada com muitas mais cores. a qual, a par da aliança dos EUA com o Ja-
Em 1947, o ministro dos negócios estran- pão, inverteu as alianças no fim da Segunda
geiros britânico, Ernest Bevin, propôs ao seu Guerra Mundial, completando a estratégia
homólogo americano, George Marshall, a
A contenção do comunismo norte-americana de tornar os inimigos do
criação de uma aliança entre a Grã-Breta- soviético foi a grande passado recente nos seus principais aliados
nha, os Estados Unidos, o Canadá, a Fran- estratégia desenhada durante a Guerra Fria. Já em 1956, franceses
ça, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, a e britânicos, em concertação com Israel, deci-
Espanha e Portugal, mas que esbarrou nas
por Harry Truman diram invadir o Egito com o objetivo de depor

VISÃO H I S T Ó R I A 43
TEMA // CABEÇA Atentados de
11 de setembro
de 2001 O momento
em que um dos
aviões colide com
as Torres Gémeas
de Nova Iorque

SPENCER PLATT/GETTY IMAGES


DIANA WALKER/GETTY IMAGES

I Guerra do Golfo, 1991 O presidente Bush lança pequenos presentes aos soldados,
durante uma visita-relâmpago no Dia de Ação de Graças

o regime de Nasser, mas não anteciparam a militarizada na proximidade dos EUA (Baía Este regresso à mitologia imperial da Pérsia,
reação do presidente Eisenhower, o qual, na dos Porcos) ou mais longínqua (Vietname), como repulsa à aliança entre a monarquia
véspera da sua reeleição, denunciou a ação transformando mais uma vez um ciclo ma- iraniana e os EUA, mostrou não ser universal
unilateral dos dois aliados. Dessa forma, os ximalista numa necessidade retractiva, de o alcance da hegemonia americana, nem ser
Estados Unidos demonstraram que a NATO contenção do uso da força e de recursos alternativa o modelo comunista soviético
não os vinculava à defesa dos interesses colo- duradouros. Estes ciclos expansionistas e agressivamente ateu. Por outras palavras, na
niais das velhas potências europeias, nomea- de contração têm pautado a política externa evidência que 1979 trouxe sobre a existência
damente no Médio Oriente, nem os impedia americana nas últimas décadas de tonalida- de alternativas regionais à oferta ideológi-
de se opor aos aliados nas Nações Unidas, ao des menos previsíveis do que as que normal- ca bipolar, e na demonstração dos limites
lado da União Soviética, como aconteceu com mente a descrevem. A primeira pigmentação do poder hegemónico norte-americano no
a condenação formal da intervenção fran- deu-se com a abertura dos EUA à China, sob Médio Oriente visíveis nos últimos anos, so-
co-britânica em Port Said. A crise do Suez, a presidência de Richard Nixon, em 1972, bretudo nas erráticas intervenções no Iraque
que coincidiu com a intervenção soviética na e a chegada ao poder de Deng Xiaoping, e nas dificuldades em estancar guerras civis
Hungria, não levou a Grã-Bretanha nem a em 1978, abalos suficientemente grandes prolongadas na Síria ou no Iémen.
França a abandonarem a Aliança Atlântica, para agitar a balança de poder internacional. O apoio de Moscovo à unificação comunis-
mas expôs uma nova divisão ocidental, em O programa das «quatro modernizações» ta do Vietname e à intervenção cubana em
que Londres optou por reforçar a «relação de Deng – agricultura, indústria, ciência e Angola marcou, a partir de 1975, um novo
especial» com Washington e a França con- tecnologia e militar – foi simultaneamente ciclo de expansão soviética e uma crise de
solidou a aliança bilateral com a República a lápide nos anos de regressão de Mao, a confiança na Aliança Atlântica. Os aliados
Federal da Alemanha, acelerando a integra- reentrada da China na grande geopolítica e dividiram-se nas suas interpretações acerca
ção comunitária. Seis meses depois seriam o advento da ascensão imparável de Pequim do sentido da viragem iniciada com a nomea-
assinados os Tratados de Roma, criando a sentida até hoje. Em 1977, um ano após a ção de Mikhail Gorbatchov e a Perestroika,
Comunidade Económica Europeia (CEE) e morte de Mao, a China valia 0,6% da eco- e só Ronald Reagan e Margaret Thatcher
a Agência Atómica Europeia (EURATOM), nomia mundial. Em 2020 representa 18% e reconheceram a abertura de possibilida-
dando início ao processo de integração polí- é a segunda logo atrás dos EUA. A segunda des pela nova direção comunista. Gorbat-
tica na Europa do pós-guerra. coloração foi dada pela revolução islâmica chov traduziu a détente em atos concretos,
As décadas de 1960 e 1970 mostraram os no Irão, com a destituição do Xá e a chegada assinando, em dezembro de 1987, o Tra-
limites políticos à estratégia da contenção do exílio parisiense do aiatola Khomeini. tado sobre a Eliminação das Armas Nu-

44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GONÇALO ROSA DA SILVA

II Guerra do Golfo, 2003 A estátua do líder iraquiano Saddam Hussein, em Bagdade,


pouco antes de ser derrubada pelas tropas americanas

cleares Intermédias (TNI) e concluindo zar. Foram anos de crescimento económico simultaneamente a conclusão do sucesso
as negociações para a retirada das tropas norte-americano, de uma grande estratégia do caminho feito desde o pós-guerra, como
cubanas de Angola e soviéticas do Afeganis- triunfalista assente no «alargamento demo- a certeza axiológica da irreversibilidade do
tão. Um ano depois, em dezembro de 1988, crático» clintoniano, com continuidade nos modelo dali em diante. Para tal muito con-
Gorbatchov anunciou nas Nações Unidas a mandatos de George W. Bush, na consoli- tribuiu o movimento neoconservador, na
retirada unilateral de meio milhão de sol- dação e expansão das grandes instituições sua dimensão de política externa, que ao
dados das forças soviéticas estacionadas na sistémicas ocidentais – ONU, OMC, NATO, contrário do que muitos pensam nunca foi
Europa de Leste, o que constituía o grosso UE, Banco Mundial, FMI, G7 – e de uma uma exclusividade do Partido Republicano.
da capacidade ofensiva do Pacto de Varsóvia integração económica, política e securitária Aliás, nasce até da dissidência nas esquerdas
contra a Europa Ocidental. O resto é História. ocidental moldadas por uma liderança de americanas e em particular do establishment
Washington aceite como benigna. do Partido Democrata, liderado pelo senador
No pós-Guerra Fria A moralidade das intervenções humani- Henry «Scoop» Jackson nos final da década
Se num plano macro a dicotomia bipolar tárias justificou a sua proliferação e o «fim de 1970, quando contestou a détente com
caracterizou a Guerra Fria, estabilizando da História» reforçou o princípio kantiano a União Soviética definida por Kissinger e
o reconhecimento de polos hegemónicos e da improbabilidade de conflito entre demo- Nixon, ou quando apregoou uma estratégia
agregadores, na prática o sistema foi progres- cracias consolidadas. Esta era de otimismo mais agressiva de expansão da democra-
sivamente regionalizando as suas micro-or- em redor do «consenso de Washington» era cia e ação americana no exterior do que as
dens, nem sempre inteiramente compatíveis traçadas por Ford e Carter, com o apoio de
entre si ou com esses dois centros assumidos figuras como Paul Wolfowitz, Richard Perle
de poder. Mas se 1991 oficializou o fim da ou Douglas Feith, nomes que mais tarde
bipolaridade e o advento da unipolaridade, assumiriam protagonismo nas administra-
2008 foi o ano em que ficou mais claro que a ções Reagan e Bush filho. Com Bush pai, os
hegemonia americana sem rival poderia não As décadas de 1960 e 1970 neocons criticaram o não aproveitamento
ter passado de um longo momento de 17 anos. mostraram os limites do momento unipolar saído da implosão
A década de 1990 foi claramente influenciada políticos à estatégia da União Soviética e presente na Guerra do
pela liderança dos EUA na ordem internacio- Golfo. Com Clinton foram ideologicamente
nal e a contestação a essa primazia não teve da contenção militarizada próximos do wilsonianismo dos New De-
nenhum ator estatal capaz de a protagoni- nas imediações dos EUA mocrats e com Bush filho, sobretudo com a

VISÃO H I S T Ó R I A 45
TEMA // CABEÇA
MARCO DI LAURO/GETTY IMAGES

Guerra do Afeganistão, 2009 Num conflito iniciado em 2001 e que ainda dura, tornando-o no mais longo da história dos EUA, soldados
americanos num posto de vigilância implantado na zona de maior domínio dos talibãs

ferida aberta pelo 11 de Setembro, subiram milhões da miséria e gerar uma nova classe federal estava já nos 2,8% do PIB, a atividade
ao leme na tentativa de redefinir o papel dos média com escala para forçar desequilíbrios económica tinha estabelecido um recorde
EUA no mundo, das organizações interna- internos e impactos tectónicos regionais. no crescimento sustentado do emprego pelo
cionais e das alianças que, na sua perspetiva, A sua dinâmica económica traduziu-se numa 63.º mês consecutivo, muito alavancado no
amarravam em demasia a superpotência, nova autonomia nacional, no reforço das li- setor privado, como vimos anteriormente.
na esperança de transformar o xadrez do deranças políticas que a protagonizaram e na A promessa de fazer regressar a quase tota-
Grande Médio Oriente, esse nó górdio da desenvoltura com que passaram a negociar lidade das tropas do Iraque e do Afeganistão
insegurança internacional, do poder ener- os grandes temas da política internacional tinha sido cumprida, e o desanuviamento
gético e do berço do extremismo jihadista. contemporânea, como o comércio, a sobera- bilateral com alguns Estados passou a ser a
Os neoconservadores, como os New Demo- nia, os recursos energéticos, o terrorismo ou pedra de toque da política externa. Mas se o
crats de Bill Clinton, foram e são acima de as alterações climáticas. Os BRICS foram a Irão, a China, Cuba e a Birmânia encaixam
tudo contra o statu quo. A sua revolução vanguarda desta emergência, mas a verdade nessa dinâmica, de fora ficaram a Rússia,
pós-Guerra Fria apontou contra o excesso é que não teria existido nenhum advento a Arábia Saudita, a Turquia e até Israel, os
de realismo de Bush pai, contra a inação do deste «resto» sem a galopante ascensão da quais, com as devidas nuances, foram pro-
imenso poder americano perante ditaduras China, responsável por 75% do crescimen- gressivamente invertendo alguns bons ofícios
e contra um acanhamento que os ataques às to económico deste grupo. E em 2008, em de Washington ou entrando em clivagem
Torres Gémeas poderiam ter causado. Mas plena campanha presidencial, a crise do com os seus comportamentos. Não se pode
como tudo o que é voluntarista, mal calcu- subprime assoberbou a América. dizer que a política externa de Obama tenha
lado e em excesso, teve uma fatura pesada. Quando Obama tomou posse, em 2009, a sido um sucesso, mas é preciso responder a
Durante este momento unipolar evi- taxa de desemprego estava nos 10% e o défice uma questão: se qualquer presidente herda
dente, o dinamismo económico do «resto» federal nos 9,8% do PIB. Não vale a pena os fracassos e os sucessos dos seus anteces-
tornou-se mais explícito, em sintonia com lembrar o pânico bancário ou sequer a fadiga sores, que poderia Obama ter feito melhor?
as práticas ocidentais que influenciaram das guerras do Iraque e do Afeganistão, sendo O erro de Bush foi combater o terrorismo
a globalização. China, Índia, Brasil, Tur- esta mesmo a mais prolongada da história apocalíptico islâmico numa frente demasiado
quia, Rússia, Indonésia, México, Coreia do dos EUA. A credibilidade da Casa Branca em alargada, assente em longas e distantes perma-
Sul, África do Sul, Nigéria ou Angola foram casa e no exterior estava muito delapidada e nências de tropas, pagando um preço financei-
protagonistas de alterações nos rendimen- foi este o racional de Obama: restaurar para ro e político demasiado caro. Obama corrigiu
tos dos seus cidadãos suficientes para tirar transformar. À entrada para 2016, o défice o tiro de partida. Congelou as «mudanças de

46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AMEER ALHALBI/GETTY IMAGES
Guerra da Síria, 2016 Homens põem bebés a salvo depois de um bombardeamento aéreo da cidade de Alepo,
num lance de um conflito que se eterniza

regime» – com exceção da Líbia, de que estará nefícios. Agrada a uns e desagrada a outros. política externa americana, mas nem esta é
já arrependido – e o nation building para se Se a testosterona dos anos Clinton e Bush particularmente nova (os EUA são há muito
concentrar na captura dos terroristas, com mostrou os limites da hegemonia agressiva uma potência no Pacífico), nem tem sido
o sucesso que se conhece ao nível da cúpula dos EUA no mundo, o excesso de contração posta em prática de uma forma coerente e
da Al-Qaeda. Onde Bush era maximalista e traz riscos igualmente sistémicos. O Presi- perceptível. Para ser uma «grande estraté-
propunha uma visão revolucionária típica da dente que conseguir equilibrar com mestria gia» precisa de uma «grande ideia», de ser
agenda externa neoconservadora (mudar o as medidas certas dos dois comportamentos posta em ação durante o mandato presiden-
xadrez árabe, depor ditadores, usar o poder terá encontrado um legado justo e duradouro. cial e de ser capaz de lhe sobreviver. Como a
americano maciçamente), Obama foi mini- Obama ensaiou o passo, mas não chegou lá. «contenção» de Truman ou o «alargamento
malista, na defesa de uma abordagem mais Faltou-lhe sobretudo esboçar uma grande democrático» de Bill Clinton. O «pivot para
austera, privilegiando os problemas imediatos estratégia, sendo que o que mais se aproxi- o Pacífico» não é uma grande ideia, porque
de segurança face à transformação das socie- mou dos seus termos foi «o século americano nem ela é uma inovação, nem é assente em
dades que os criam. Neste sentido, há uma no Pacífico», enunciado por Hillary Clinton estacas e opções políticas evidentes.
diferença, mas não uma completa ruptura. em 2011. Contudo, ficou-se por um esboço Obama tem tanto de Lincoln e Bush pai,
O principal corte tem uma natureza mais do que pode ser uma longa prioridade na como de Lyndon Johnson e Clinton: ele é
profunda, epistemológica até. Como diz Ja- muito mais uma síntese das grandes tradições
mes Mann, autor de The Rise of the Vulcans da política americana do que fundador de
e The Obamians, Barack Obama «será visto uma doutrina.
como o primeiro Presidente que encarou se-
riamente o facto de ser impossível aos EUA Trumpismo: intervalo ou novo
manterem os termos da hegemonia detida O erro de Bush foi padrão
após a Segunda Guerra Mundial e prolongada Os limites do poder americano foram sempre
depois do fim da Guerra Fria». É um ato de
combater o terrorismo assumidos pelo presidente Obama quan-
realismo e de humildade que normaliza a numa frente demasiado do reconheceu a necessidade de arrumar a
presidência, tem impacto nas relações inter- alargada, pagando um economia interna, terminar com as longas
nacionais e efeitos na maneira como as outras guerra do grande Médio Oriente, privilegiar
potências preenchem os espaços deixados
preço financeiro os drones em vez de tropas no terreno (Líbia,
pela retração americana. Tem custos e be- e político elevado Síria, Iémen) e integrar as grandes potências

VISÃO H I S T Ó R I A 47
TEMA // CABEÇA

RONEN ZILBERMAN/GETTY IMAGES


Regresso a casa No seguimento do encontro entre Trump e Kim Jong-un em 2018, o líder coreano autorizou a transladação para os EUA
dos restos mortais de dezenas de soldados americanos mortos na Guerra da Coreia

regionais numa lógica de desanuviamento a um corpo de nomeações políticas leais sem sem pudor em namorar o iliberalismo, as
diplomático construtivo. Foi assim com a paralelo na história do Departamento de fundações da ordem liberal descapitalizadas
Rússia de Medvedev, a China, o Brasil e a Estado. O caos metodológico na feitura de nos seus valores, e as alianças multilaterais
Índia. O facto de Hillary Clinton ser parte políticas públicas na Casa Branca é anterior que garantiram o sucesso integrado do Oci-
da escola maximalista da política externa à pandemia da covid-19, mas os números da dente submetidas aos ditames de autocratas,
abriu caminho a uma separação de águas em crise económica, do desemprego e de mor- populistas e nacionalistas encartados.
benefício de alguém, como Donald Trump, tos só provam a falta de qualidade política Dificilmente os efeitos provocados nas
que não só disputava todos esses axiomas da administração Trump, mais próxima do instituições americanas e nas relações in-
como defendia um projeto claro de nacio- exercício autoritário de poder do que de uma ternacionais passarão subitamente caso
nalismo identitário. Mais: a sua linha é de democracia saudável. Trump perca para Joe Biden. Com um estilo
corte profundo com algumas importantes Vinte e sete anos depois da Queda do diametralmente diferente e profundamen-
tradições do Partido Republicano – defesa Muro, num outro 9 de novembro, o Ocidente te ligado à feitura da política externa de
do comércio-livre, estabilidade das alianças, assistiu a um choque igualmente tectónico, Obama, como seu vice-presidente, Biden
limites ao papel do Estado, solidariedades desta vez de início de regressão da ordem tem muito para recompor na relação com
democráticas no exterior, respeito pelas li- vigente: a vitória de um roteiro político as- os aliados, com a reconstrução multilateral,
berdades – recuperando a interpretação ul- sente num ódio social legitimado a partir com a capitalização de uma globalização
tra-restrita do interesse nacional, por exem- da Casa Branca, um líder do «mundo livre» mais regulada e sustentável. Mas nem a
plo, do antigo presidente Andrew Jackson. China, nem a Rússia, nem mesmo os aliados
O que temos visto nestes últimos quatro europeus farão da América um farol de com-
anos é a aplicação de um modelo assumida- petitividade inatingível, de resposta rápida a
mente transacionável nas relações interna- provocações de segurança, de cumplicidade
cionais, revendo unilateralmente tratados e dependência estratégicas. O trumpismo é
comerciais (NAFTA), dinamitando outros A Obama faltou anterior a Trump e sobreviver-lhe-á, mesmo
(TPP, TTIP) ou procurando uns mais assen- perdendo as eleições. Caso vença, mais vale
tes na força negocial americana do que num sobretudo esboçar uma apertar os cintos: já estivemos mais longe
tronco de interesses comuns. O potencial de grande estratégia. de olhar para «o mundo de ontem» como
tensão comercial tem sido enorme, sem dis- O que mais se aproximou Stefan Zweig.
tinção entre parceiros, aliados e adversários.
O bullying político e comercial esvazia o pa- foi «o século americano * Bernardo Pires de Lima é investigador associado
do Instituto Português de Relações Internacionais
pel da diplomacia americana, hoje entregue no Pacífico» (IPRI/NOVA)

48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A SUA SAÚDE É O MAISS IMPORTANTE

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Dias úteis das 9h às 19h
EUA // FORÇAS ARMADAS

O maior poderio atua no continente africano e o Comando


Central (U.S. CENTCOM) ocupa-se dos ter-
ritórios na interseção de três continentes
(África, Europa e Ásia). Este tem por missão,

militar de sempre
Sem contar com as missões secretas, os EUA
entre outras, assegurar a livre circulação no
mar e nos corredores aéreos e garantir a
integridade dos pipelines e das rotas ter-
restres; vai do Egito ao Médio Oriente e
têm mais de 240 mil soldados espalhados à Ásia Central e do Sul. O Comando Euro-
por mais de 400 bases em pelo menos 172 países. peu (U.S. EUCOM) engloba na sua área de
Bombas nucleares na Europa são 150 responsabilidade todo o território europeu,
incluindo o da Federação Russa, e o Levante.

t
por Carlos Branco*
O Comando do Indo-Pacífico (U.S. INDO-
iOs Estados Unidos dispõem, indiscu- Ao contrário do que se diz, a Administração PACOM) cobre a região onde se encontram
tivelmente, das Forças Armadas (FA) Trump continua profundamente empenha- duas das três maiores economias do mundo,
mais poderosas do mundo. Um poder da na afirmação da hegemonia americana. e onde se localizam as linhas de comunicação
militar assim, jamais visto na Histó- O mito do desinvestimento estratégico não marítimas com maior intensidade de tráfego
ria da humanidade, foi decisivo para passa de retórica não consubstanciada pelos do planeta; China e Índia estão inseridos na
a afirmação do projeto hegemónico factos. O declínio da hegemonia norte-ame- sua área de responsabilidade. O Comando do
norte-americano. Para além da respon- ricana não se aplica ao setor militar, onde os Norte (U.S. NORTHCOM) está orientado
sabilidade de defenderem o território na- EUA continuam sem competidores à altura. para o Norte do continente americano en-
cional, as FA dos EUA foram concebidas e Contudo, esse poder avassalador não im- globando os EUA, Alasca, Canadá e México.
desenhadas para concretizar esse projeto pediu essa fabulosa máquina de guerra de O comando do Sul (U.S. SOUTHCOM) tem
através de uma presença global massiva. somar mais derrotas do que vitórias. Desde a América Central (a sul do México) e do Sul
O mundo é a sua área de responsabilidade. a II Guerra Mundial apenas ganhou uma como área de responsabilidade.
Mais de um em cada 10 dos cerca de 1,3 mi- guerra (a do Golfo, em 1991) e «empatou»
lhões de soldados das FA norte-americanas outra (a da Coreia, em 1953). Presença no mundo
encontra-se estacionado fora do território Para cobrir o globo operacionalmente – são O poderio militar norte-americano mani-
americano. as únicas FA com capacidade para o fazer festa-se também através da implantação de
O poderio militar dos EUA manifesta-se – encontram-se organizadas em 11 coman- instalações e unidades militares (aéreas, na-
de diversas formas, em particular na quan- dos de combate, seis orientados para o co- vais e terrestres) em vários locais do mundo,
tidade e na qualidade dos seus equipamento mando e controlo dos meios que lhe forem próximos dos seus competidores estratégicos.
e armamento, tecnologicamente superiores atribuídos, a serem empregues em regiões Segundo o New York Times, os EUA, perma-
aos dos seus competidores, e na capacidade geográficas específicas, e cinco (Cibernéti- nentemente em guerra a seguir aos ataques
para intervir simultaneamente em vários co, Espaço, Operações Especiais, Comando do «11 de Setembro» (de 2001), têm mais de
teatros de operações, em lugares distantes do Estratégico e Transportes) com missões de 240 mil soldados em pelo menos 172 países,
globo, apenas possível graças a «generosos» natureza funcional, preparados para apoiar não incluindo as dezenas de milhares com
orçamentos de defesa. Segundo o Stockholm os primeiros, em qualquer região do mundo. missões secretas em lugares «desconheci-
International Peace Research Institute (SI- O Comando para África (U.S. AFRICOM) dos». Embora os números divirjam consoan-
PRI), em 2019 o orçamento do Ministério da te o critério utilizado, podemos afirmar, que,
Defesa dos EUA atingiu um valor de 732 mil por defeito, os EUA possuem mais de 400
milhões de dólares (3,4% do PIB), superando bases militares em todos os continentes,
o somatório dos gastos com defesa dos dez excetuando a Antártida. São usadas para
seguintes países mais gastadores. A China, o treinar e/ou estacionar tropas, testar siste-
mais direto competidor, gastou apenas 261 O mundo é a sua área mas de armas e prestar apoio operacional
mil milhões de dólares (1,9% do PIB), cerca de responsabilidade. em regiões estrategicamente importantes,
de um terço. Mais de 1 em cada 10 soldados nomeadamente no Médio Oriente, Sudeste
Esse poderio revela-se na organização ado- Asiático e Europa.
tada pelas FA dos EUA para operarem glo-
americanos encontra-se No Médio Oriente, os maiores contingentes
balmente, e na ampla e poderosa rede de uni- estacionado fora (com efetivos superiores a 5 mil soldados)
dades e bases militares existentes no mundo. do território dos EUA estão localizados no Bahrain, no Iraque, no

50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Arsenal bélico impressionante Um caça Super Hornet e, em baixo, o veículo de assalto M1150, de deteção de minas e explosivos

Kuwait e no Qatar, a que se acrescentam Trump, na tentativa de diminuir a hiperex- A lista de tratados de assistência mútua é
contingentes significativos na Arábia Saudi- tensão estratégica das forças americanas, extensa. Salientamos, pela sua importância es-
ta e nos Emirados Árabes Unidos. O Qatar existem 29 bases militares em 15 países, que tratégica, o acordo de Assistência Mútua com
alberga os quartéis-generais avançados do vão de uma à outra ponta do continente, com a Arábia Saudita (1951), o primeiro diploma
U.S. CENTCOM e do USAFCENTCOM, maior concentração na região do Sahel, na formal no campo da defesa estabelecido entre
entre outras unidades, que apoiam as forças parte oeste do continente, assim como no as duas nações. Em 1974, os EUA acordaram
militares americanas a combater no Afeganis- Corno de África. proteger militarmente os campos de petróleo
tão. Também aqui, os EUA mantêm material Outra expressão desse poder encontra-se sauditas, na condição de Riade vender o seu
e equipamento militar preposicionado. No nos numerosos acordos de defesa, de nature- petróleo em dólares; e o acordo de cooperação
Sudeste Asiático, os contingentes mais volu- za diversa, celebrados pelos Estados Unidos, sobre armas nucleares celebrado com o Reino
mosos (efetivos superiores a 5 mil soldados) uns multilaterais outros bilaterais, tanto no Unido em 1958. Em 2020, verificaram-se
encontram-se no Japão, na Coreia do Sul e em âmbito da defesa coletiva, como da coope- desenvolvimentos interessantes no domínio
Guam, aos quais se adicionam outros contin- ração militar e assistência mútua. No que da cooperação de defesa, como, por exemplo,
gentes de menor expressão na Austrália, em respeita à defesa coletiva, falamos da NATO o acordo com a Polónia sobre cooperação
Singapura, na Tailândia e nas Filipinas. Os (1949), do Tratado do Rio (1947, abandonado reforçada de defesa, ou, mais recentemente,
EUA preparam-se para instalar nesta região em diferentes momentos pelo México, Bo- o acordo com as Maldivas.
um escudo de defesa antimíssil semelhante ao lívia, Nicarágua, Venezuela e Equador), da
existente no flanco leste da NATO. Na Europa, SEATO (1954, extinta em 1977) e, no plano Força Espacial, novo ramo das FA
os maiores contingentes (com mais de 10 mil bilateral, das Filipinas (1951), Austrália e O Espaço e o nuclear são dimensões in-
efetivos) localizam-se na Alemanha, na Itália Nova Zelândia (1951), Coreia do Sul (1953) contornáveis desse poder, sobretudo no
e no Reino Unido, a que se juntam as tropas e Japão (1969). ambiente estratégico «pós-hegemonia».
em Espanha, na Turquia e na Bélgica. Tam- A substituição do terrorismo pela China e
bém na Europa, os EUA pré-posicionaram p
pela Rússia como principais ameaças obrigou
quantidades significativas de equipamento e a uma redefinição de forças e armamentos
têm aproximadamente 150 bombas nucleares para enfrentar estes novos desafios perce-
p
estacionadas em cinco países (Bélgica, Alema- bidos, numa lógica de conflito peer-to-peer.
b
nha, Holanda, Itália e Turquia). A transformação do Espaço num domínio
Apesar de a África não ter a importância de operações militares faz parte desta abor-
d
estratégica das regiões mencionadas, isso dagem, conferindo uma nova expressão ao
d
não impede que ali exista também uma vasta poderio militar americano. Significa que a
p
rede de bases militares. Não obstante a signi- batalha decisiva poderá não ser travada na
b
ficativa redução operada pela Administração terra, mas no Espaço. Falamos agora de wea-
te

VISÃO H I S T Ó R I A 51
EUA // FORÇAS ARMADAS

Força de ataque OS EUA FORAM


RESPONSÁVEIS EM 2019 POR

38%
EUA RÚSSIA CHINA

FORÇAS ARMADAS
Os EUA possuem as mais bem apetrechadas forças militares do mundo
DA DESPESA MILITAR
ARSENAL CONVENCIONAL MUNDIAL
EM 2017

Porta-aviões Helicópteros Lança-misseis balísticos Aviões táticos Artilharia


de combate intercontinentais

11 793 400 3 424 13 420


313
1 966 6 894
376 5 293
246 1 112
1 1 70
FONTE Le Monde

PRESENÇA MILITAR NO ESTRANGEIRO FORÇAS DE ‘DISSUASÃO’


O número de ativos destacados para o exterior A China entrou tarde na corrida Ogivas nucleares
tem vindo a diminuir desde 2010 ao armamento nuclear

NÚMERO DE MILITARES ATIVOS FORA DOS EUA ARSENAL NUCLEAR: 6 185 6 500
EM MILHARES DE PESSOAS NÚMERO DE OGIVAS
EM 2017
FONTE Le Monde

1 200
290

1 000
800
600
400 83,4 92,1
1949
42,1 47,3 54,6
200 177 14,1 14,9
0
1960 1970 1980 1990 2000 2010 2019
FONTE Defense Manpower Data Center 1950 1955 1960 1965 1970 1975

52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
TOP 10 DOS GASTADORES DESPESAS MILITARES ponization em vez de militarização do Espaço,
POR HABITANTE da colocação de armas em órbita (nucleares,
OS DEZ PAÍSES COM MAIOR DESPESA MILITAR EM DÓLARES, EM 2019 feixes de partículas e/ou armas a laser). Para
EM MILHARES DE MILHÕES DE DÓLARES, EM 2019
concretizar esta ideia, a Administração Trump
criou uma Força Espacial, um novo Ramo das

20
FA, onde foram concentradas as capacidades

19 de combate espacial anteriormente dispersas


pelos ramos tradicionais das FA, com o objeti-
L

44 EUA
DIA

vo de não ter apenas uma presença no espaço,


2 232
UN

COREIA
mas o seu domínio, como afirmou Trump.
SA M

EUA DO SUL
Também as armas nucleares assumiram

732
DESPE

um papel de relevo na nova grande estratégia


RÚSSIA americana, conforme expresso na Revisão da
65 Postura Nuclear (NPR), de 2018, voltando a
ser o seu centro nevrálgico. A NPR atribui
ARÁBIA 50 50 prioridade à modernização do arsenal nuclear,
SAUDITA REINO ALEMANHA
com especial ênfase para as ogivas nucleares
62 UNIDO
e respetivos meios de lançamento, ao longo
INDIA 48 da chamada tríade (submarinos armados com
71 CHINA
JAPÃO
PORTUGAL 441 mísseis balísticos; mísseis balísticos intercon-
FO

261
tinentais lançados de terra; e bombardeiros
NT
E

estratégicos transportando bombas de gra-


SI

FRANÇA CHINA 182


PR
I

50 FONTE SIPRI
vidade e mísseis cruzeiro) e das designadas
«forças nucleares não-estratégicas».
Embora de forma não explícita, o documen-
2019 to prevê a expansão das situações em que os
738,0 731,8 EUA podem recorrer ao emprego de armas
nucleares táticas. Não serão, em princípio,
usadas contra os territórios russo ou chinês,
633,8 mas para dissuadir a invasão de territórios
de países aliados, atacando rapidamente as
forças convencionais ou nucleares táticas
533,2 invasoras, impedindo assim a sua ocupação
(ataque da China e/ou da Rússia a Taiwan
e/ou aos Estados Bálticos, respetivamente).
A opção nuclear tática está também pensada
para confrontos de âmbito regional, contra
o Irão e/ou a Coreia do Norte (ameaças de
325,1 320,1
272,2 295,9 DINHEIRO PARA A DEFESA segunda ordem, de acordo com a Estratégia de
Segurança Nacional), onde se consideram de-
As despesas militares nos EUA saconselhadas as intervenções convencionais.
desceram a partir de 2011, Também nestes dois domínios – Espaço
mas voltaram aumentar desde 2016
e nuclear – a supremacia nuclear norte-a-
DESPESAS MILITARES DOS EUA mericana é evidente. A China, o país mais
EM MILHARES DE MILHÕES DE DÓLARES apetrechado para concorrer com os EUA
143,7 nestes dois domínios, terá de percorrer ainda
um longo caminho. A supremacia militar
americana está longe de ser beliscada.
FONTE Le Monde INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

* Carlos Branco é major-general do Exército, na


reserva, e investigador associado do Instituto de
1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015 2019 Defesa Nacional

VISÃO H I S T Ó R I A 53
EUA // OPINIÃO

Um mundo
pós-americano?
O século XX foi o século americano.
Será o século XXI o século chinês?

É
cedo para afirmar se o século XXI vai ser o século Donald Trump rompeu com essa tradição e adotou a
chinês, mas se o quisermos entrever teremos de fórmula jacksoniana da «América primeiro». E não
olhar para as grandes tendências das relações só abandonou o objetivo de hegemonia internacional
internacionais. E que significado político poderá como atacou os próprios princípios da ordem liberal
ter para o futuro da ordem internacional? Não o que os Estados Unidos tinham construído desde o
sabemos ainda. Mas sabemos já que a pandemia segundo pós-guerra: o livre comércio, as alianças
está a funcionar como um acelerador de tendências. militares permanentes e o multilateralismo. Em
NUNO SEVERIANO A potenciar e a antecipar grandes linhas geopolíticas 2017 a Estratégia de Segurança Nacional americana
TEIXEIRA que se adivinhavam já no passado e, nesse sentido, a declarava o regresso à rivalidade entre as grandes
é professor
funcionar como um revelador do futuro. potências e considerava a China como ameaça à
Catedrático da
Universidade A ordem internacional, pré-pandémica, vinha segurança dos Estados Unidos. As duas estratégias
NOVA de Lisboa sendo marcada por uma tripla dinâmica: o trânsito chocaram frontalmente. A rivalidade aprofundou-se
e diretor do de um mundo unipolar para um outro multipolar; a e atingiu patamares sucessivos.
Instituto Português
crise da ordem liberal e a emergência de potências

T
de Relações
Internacionais regionais portadoras de uma ordem internacional udo começou com uma guerra comercial, mas
(IPRI) pós-democrática; e, finalmente, a sua manifestação rapidamente o patamar subiu para uma guerra
concreta – a rivalidade entre os Estados Unidos e a tecnológica. Não era só uma questão de tarifas
China. O choque estratégico da pandemia aprofun- alfandegárias sobre produtos agrícolas ou industriais
dou e acelerou essa dinâmica e o resultado final da que estava em causa, era também uma guerra digital
rivalidade sino-americana terá, certamente, um im- pela liderança da nova geração da rede sem fios: a
pacto decisivo sobre o futuro da ordem internacional. tecnologia 5G. O conflito a propósito da tecnológica
A chegada ao poder de Xi Jinping, em 2013, marca chinesa Huawei foi o ponto mais alto dessa guerra.
uma alteração de fundo na política chinesa. O reforço E, mais recentemente, o episódio Tik Tok.
do autoritarismo na política interna e a afirmação O outro patamar da rivalidade é o das chamadas
internacional na política externa. Por fim, uma es- «esferas de influência». Aproveitando o retraimento
tratégia revisionista que definiu como o objetivo final estratégico americano, a China procurou alargar
da China a hegemonia global em 2049. a sua área de influência geopolítica. Consolidou a
Por outro lado, a chegada ao poder de Donald sua posição no continente africano e estendeu a sua
Trump, em 2016, marca uma viragem não menos influência ao continente sul-americano, em particu-
significativa na política americana. O nacionalismo lar à Venezuela. Mas não ficou por aí e lançou um
populista e o nativismo protecionista da sua adminis- gigantesco e ambicioso plano de investimentos num
tração fecharam o país sobre si próprio e operaram arco geopolítico que liga a Ásia Central, o Médio
uma mudança radical na política externa. Desde o Oriente e se estende até ao continente europeu: a
segundo pós-guerra que os Estados Unidos, quer chamada «nova rota da seda».
sob a forma hamiltoniana da defesa de interesses

Q
quer sob a forma wilsoniana da exportação de va- ue a pandemia constitui um choque estratégico
lores, perseguiram sempre o objetivo da liderança de grande dimensão, não há a menor dúvida.
mundial. Foram líderes da ordem ocidental durante Mas qual o seu verdadeiro impacto sobre esta
a Guerra Fria e líderes globais no pós-Guerra Fria. rivalidade em movimento? Até agora, o efeito mais

54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
visível da pandemia foi o de aprofundar e acelerar o acordos multilaterais e o consequente reforço da
confronto sino-americano. Não há memória de um influência internacional chinesa.
desacordo na comunidade internacional quando Significará isto, em definitivo, o declínio da po-
se tratou de mobilizar esforços na luta contra uma tência americana e a ascensão da hegemonia chine-
pandemia. Mesmo durante a Guerra Fria, Estados sa? Isto é, a entrada num mundo pós-americano?
Unidos e União Soviética encontraram um con- É cedo para o dizer. A crise está longe do seu fim e o
senso para a investigação na descoberta da vacina futuro da ordem internacional dependerá, em boa
contra a poliomielite. E, já no pós-Guerra Fria, foi parte, do desfecho da crise. Dependerá, certamente,
igualmente possível alcançar consensos, no plano do balanço final da pandemia no que respeita ao
mundial contra a sida ou contra a crise do ébola. número de casos e ao número
Desta vez, pelo contrário, Estados Unidos e China de mortos. Dependerá, tam-
envolveram-se num blame game internacional que bém, da rapidez e da eficácia
não só inviabilizou qualquer acordo para uma re- com que forem capazes de
solução no Conselho de Segurança da ONU, como fazer a recuperação eco-
deixou a crise, literalmente, sem liderança. nómica. E dependerá,
As duas potências seguiram estratégias diferentes finalmente, de um facto
na gestão da crise, não só do ponto de vista interno, real, mas que terá um
como do ponto de vista internacional. Os Estados extraordinário efeito
Unidos fizeram uma gestão interna errática, entre simbólico: quem des-
a saúde pública e os interesse económicos, de pola- cobre a vacina?
rização social e confrontação política, entre o poder Quem descobrir
federal e alguns Estados federados. E uma gestão a vacina e a ofe-
internacional de isolamento, «egoísmo nacional» recer, sem custos,
e visão de curto prazo. A China, pelo contrário, fez ao resto do mundo,
uma gestão interna autoritária mas eficaz e uma será, politicamente, o
gestão internacional de maior abertura e visão de grande vencedor.
longo prazo. Tentou utilizar o soft power ao serviço Por ora, sem certezas,
de uma pretensa ajuda internacional e construiu três cenários parecem, teo-
uma narrativa de propaganda de que era, assim, ricamente, possíveis. O pri-
a única potência útil. Isto é, tentou ocupar o vazio meiro seria o business as
estratégico deixado pelo abandono da liderança usual, isto é, a pandemia não
americana e tornar-se o líder global. Por ora, não é alterava o essencial do equilí-
certo que o tenha conseguido. Uma coisa, porém, brio estratégico internacional e a rivalidade entre
ficou clara: a pandemia agravou o confronto entre as os Estados Unidos e a China regressava ao ponto O PRIMEIRO-MINISTRO CHINÊS
duas potências e, em certo sentido, entrou num outro pré-crise. Não parece o mais provável. E O PRESIDENTE AMERICANO

patamar e alterou a sua natureza da sua rivalidade. O segundo seria o da confirmação da tendência
aparente, isto é, o declínio dos Estados Unidos e Com a
S
e até à pandemia essa rivalidade era essencial- a ascensão da China como potência dominante.
mente económica e tecnológica, atingiu agora Significaria o fim da ordem multilateral e a entrada pandemia, a
um patamar claramente político e diplomático. numa ordem internacional pós-democrática. China tentou
A pandemia acelerou também essa tendência e a E o terceiro, uma inversão da tendência e uma
gestão da crise mostrou claramente dois modelos forte reação americana. A crise funcionaria como
ocupar
políticos em confronto. E, mais do que isso, a luta uma «vacina», não contra o vírus, mas contra o o vazio
pela influência global. Em particular, pela influên- retraimento estratégico americano. Implicaria o re- estratégico
cia nas organizações multilaterais de que a disputa gresso dos Estados Unidos ao objetivo da hegemonia
sobre o papel da Organização Mundial de Saúde, internacional e ao princípio do multilateralismo. E, deixado pelo
durante a crise pandémica, foi o exemplo paradig- claro está, a mudança da administração nas próxi- abandono
mático. Exemplo de uma outra tendência já em mas eleições. E uma aliança com as democracias no
movimento e que, agora, parece em aceleração: mundo. Significaria, enfim, a reinvenção da ordem da liderança
a retirada americana de organizações, agências e internacional liberal. americana
VISÃO H I S T Ó R I A 55
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A TERRA
PROMETIDA
Hoje um país com 330 milhões de habitantes,
À espera de entrar
Em 1907, só a Ellis
Island chegariam um
milhão de 250 mil
os Estados Unidos têm sido pátria de acolhimento pessoas (foto sem data)

para muitos dos que fogem à pobreza, a perseguições


políticas ou religiosas. Mas que sempre teve dificuldades
em conviver com a sua diversidade
por Emíia Caetano

BIBLIOTECA DO CONGRESSO EUA

VISÃO H I S T Ó R I A 57
EUA // POPULAÇÃO

E
m junho de 1885 chegava ao porto de
Nova Iorque, dispersa por mais de duas
centenas de caixotes, uma carga inédita
e longamente aguardada. Lá dentro,
desfeita em 350 pedaços, chegava a Es-
tátua da Liberdade, vinda de França.
Assim, tal como os milhões de pessoas que
iria acolher dali por diante, também ela não
era dali e fizera a viagem de barco. A constru-
ção da estátua fora iniciativa de um grupo de
intelectuais liberais franceses, desejosos de
ver o governo autocrático de Napoleão III
substituído por uma democracia semelhante
à americana. As relações entre os dois países
eram estreitas. Aliás, a Constituição resultante
da Revolução Francesa fora grandemente ins-
pirada pela americana, uma e outra redigidas
por filhos da Luzes. Não se tornou, por isso,
difícil ganhar apoios em França para oferecer
aos EUA uma estátua a assinalar o centenário
da Declaração da Independência.
A origem estrangeira do monumento mais
icónico dos EUA ajustava-se à medida ao que
fora até aí e ao que continuaria a ser a América
– um país de onde ninguém era, construído
por ondas sucessivas de imigrantes à procura
de uma vida melhor. Os americanos gostam
de dizer que nem os índios eram de lá, teriam
vindo da Ásia, atravessando uma língua de
terra, talvez durante a última Idade do Gelo.
GETTY IMAGES

Se a estátua fora oferecida pela França, já


o pedestal ficara a cargo dos americanos, que
nele gravariam um poema pedido a Emma
Lazarus. A «mãe dos exilados» teria por mis- América à vista Emigrantes chegados a Nova Iorque de barco saúdam a Estátua da Liberdade,
por volta de 1905
são dar «as boas-vindas a todo o mundo»,
em termos que não poderiam ser mais aco- Daí que as autoridades pensassem na ne- O pesadelo começava logo na viagem, que
lhedores: «Tragam-me os vossos exaustos, os cessidade de criar uma grande estação para podia demorar de duas semanas a mais de
vossos pobres, as vossas multidões sequio- inspeção de imigrantes. A escolha iria recair um mês, consoante o navio e as condições
sas de respirar liberdade», «mandem-me sobre um forte militar desativado em Ellis atmosféricas. A grande maioria dos passa-
os sem-abrigo atingidos pela tempestade», Island, já que uma ilha permitiria fazer o geiros viajava no porão, a parte mais baixa
que «eu ergo a minha luz junto ao portão de controlo sanitário mesmo antes da entrada do navio, onde se acumulavam às centenas e,
ouro». Lady Liberty chegara atrasada. Devido na cidade. Se a estátua ficaria como símbolo por vezes, mais do que isso, sem locais para
a dificuldades de financiamento, falhara o dos braços que a América abria ao mundo, se lavarem ou sequer dormirem – teriam de
centenário da Declaração de Independência, a estação de Ellis Island, mesmo ali ao lado, estender-se onde conseguissem. Cerca de 10%
que se festejara em 1876. E já ao longo desse era um amontoado de restrições e dificulda- dos passageiros morriam na viagem.
século tinha sido precisa para acolher uma des para muitos dos que chegavam. Entre a Mas, se já antes o número de chegadas vi-
grande massa de imigração. A maioria entrava ilha da esperança e a ilha das lágrimas, como nha progressivamente a crescer, o século XX
pelo porto de Nova Iorque, que sempre fora o ficaria conhecida, decidia-se o futuro de cada iria assistir às grandes emigrações em massa
preferido pelas grandes linhas de navegação, imigrante. Inaugurada em 1892, iria funcionar para a América. Logo 1907 seria o ano do
ainda que, depois, muitos recém-chegados ao longo de 62 anos, depois de por lá passarem pico de entradas: só através de Ellis Island,
seguissem para outros destinos. mais de 12 milhões de pessoas. um milhão e 250 mil pessoas. E a primeira

58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
na América. A chegada era, assim, pouco
auspiciosa, mas mesmo assim, segundo os
registos oficiais de Ellis Island, só em 2%
LEWIS HINE, BIBLIOTECA DO CONGRESSO EUA

dos casos era recusada.

O sonho americano
Quando Thomas Jefferson redigira a Decla-
ração de Independência, deixara claros os
princípios básicos que orientariam o novo
país. Quem ali se acolhesse teria direito «à
vida, à liberdade e à persecução da felicidade».
Mas para milhões de pessoas em quase
Terra de oportunidades Manuel Sousa, 12 anos (no centro da foto, de braços cruzados),
com a sua família, em 1912, residentes em New Bedford, Massachussets; todo o mundo a persecução da felicidade
e uma escola primária para imigrantes, em Boston, 1909 significava a fuga à pobreza, fosse nos campos
ou nas cidades. Fora assim com a chamada
«fome da batata», na Irlanda, na década de
1840, e com outras crises na agricultura,
incluindo na Alemanha ou na Rússia. Ali se
acolheram também as massas de desempre-
gados que a Revolução Industrial deixara nas
cidades inglesas.
E Portugal teve também direito à sua parte
do sonho americano. Os registos de Ellis Is-
land mostram Portugal entre os 25 países que
mais emigrantes para ali enviaram. Muitos
LEWIS HINE, BIBLIOTECA DO CONGRESSO EUA

deles iriam seguir para norte, para a Nova


Inglaterra, juntar-se às comunidades portu-
guesas, que cresciam em cidades como New
Bedford e Fall River desde que os baleeiros
americanos começaram a fazer escala para
abastecimento nos Açores.
Mais recente é a comunidade de Newark,
em Nova Jersey, formada no final da década
de 1960 e sobretudo de 1970, oriunda espe-
cialmente da Murtosa, no distrito de Aveiro.
visão que tinham da América, a Estátua da É dessa localidade Augusto Amador, o pri-
Liberdade, costumava deixá-los em silêncio, meiro vereador que, em 1998, a comunidade
porque «era como uma deusa», na expressão portuguesa conseguiu eleger para Newark.
de um imigrante mencionada em Ellis Island, Mas para muitos outros a «persecução da
hoje o Museu da Imigração. Mais a mais, es- felicidade» era a fuga a perseguições políti-
tavam agora tão perto da cidade que, rezavam cas. Foi assim com os arménios que tentavam
as lendas, tinha as ruas pavimentadas a ouro. escapar aos turcos ou com os judeus que
Se os passageiros com bilhetes de 1ª e 2ª fugiam dos russos. E, por volta dos anos de
classes eram inspecionados a bordo, já os 1930, ali se acolheram muitos dos foragidos
do porão teriam Ellis Island a aguardá-los. aos fascismos que se consolidavam em Itália,
Aí seguiam-se rigorosos exames médicos e, na Alemanha, ou em Espanha. Em Portugal,
Por Ellis Island por vezes, quarentenas prolongadas, para se bem que o grosso dos exilados tenha ido
entrariam, ao longo excluir a hipótese de doenças infecciosas ou para a Europa, alguns foram também aco-
mentais. Havia que evitar que os imigrantes lher-se do outro lado do Atlântico, mesmo
de 62 anos, mais se tornassem um encargo público, fosse por antes da ditadura. Eulália Mendes, a portu-
de 12 milhões de pessoas doença ou por falta de meios para iniciar vida guesa que seria deportada de New Bedford

VISÃO H I S T Ó R I A 59
EUA // POPULAÇÃO

MARUARET BOURKE-WHITE
para a Polónia durante o «maccarthismo»,
era filha de um anarquista português que fora
para a América no início do século.

Gente a menos ou a mais?


Ao contrário da Europa, os EUA tinham desde
o início uma persistente falta de mão-de-obra,
sobretudo para a agricultura, mas também
para as fábricas. No século XIX a construção
do caminho-de-ferro, que atravessaria todo
o país, precisou de imensos trabalhadores a
baixos salários, uma situação que se repetiu
com o boom de industrialização que o país
conheceu na viragem para o século XX.
E no entanto… desde muito cedo havia
quem defendesse que estavam a chegar imi-
grantes demais, depressa demais. A linha do
tempo na história da imigração para os EUA
revela um constante abrir e fechar de portas
a estrangeiros. País fundado sobretudo por
GETTY IMAGES

imigrantes europeus, reagia particularmente


mal à chegada dos «não brancos.»
Os chineses, que tinham chegado para
trabalhar na garimpa do ouro na Califórnia Duas Américas Fila para a distribuição de comida, em Louisville, Kentucky, 1937 (em cima),
e, depois, nas obras do caminho-de-ferro, e uma imagem de promoção do modelo Lincoln 1951

60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
seriam o primeiro grupo nacional a ser alvo de
discriminação específica por motivos raciais.
VON BRAUN E OS OUTROS
Aprovado em 1882, o Chinese Exclusion Act Ao longo do século XX, os EUA atraíram «cérebros» de outros países. Hoje,
continuam a acolher nas suas universidades estudantes de todas as latitudes
vedava-lhes o acesso à naturalização e proi-
bia-lhes até o recurso aos tribunais. Albert Einstein, o físico alemão que Quanto a Von Braun, iria tornar-se nos
Ao longo dos tempos a América foi fechan- criaria a Teoria da Relatividade, EUA um herói da Guerra Fria. Foi ele a
do as portas a prostitutas, «lunáticos» ou encontrava-se de visita aos EUA lançar o programa espacial americano
«radicais» políticos. Mas, inesperadamente, quando, em 1933, Hitler subiu ao poder. e, depois, já como diretor do Marshall
Pertencente a uma família judia, já não Space Flight Center da NASA, dirigiria a
partiria de um grupo de intelectuais licen- voltou ao seu país e pediria a cidadania construção do Saturno V, o foguetão que
ciados em Harvard a criação, em 1894, da americana. Além disso, avisou o lançaria a nave com que os primeiros
Immigration Restriction League. Seria por presidente Roosevelt de que o seu país homens aterraram na Lua.
sua influência e do lóbi anti-imigração que estaria a preparar poderosas
formaram em Washington que começaram a armas de novo tipo.
Mas nem todos os génios da
ser exigidos, por exemplo, testes de literacia ciência alemã dessa época
aos imigrantes. E a legislação iria apertando foram tão voluntariamente
até que, em 1924, seria aprovado o sistema de para os EUA. O caso
quotas, em função dos países de origem, um mais destacado seria o
sistema que duraria até 1965. Durante essas de Wernher von Braun, o
engenheiro aeroespacial que
décadas os únicos portugueses autorizados a liderava o fabrico dos mísseis
entrar seriam os açorianos afetados pela erup- V-2, com que Hitler atacou a
ção do vulcão dos Capelinhos (1957 e 1958), Inglaterra e outros países.
uma exceção conseguida por John Kennedy, Num artigo publicado em Naturalizados americanos
então ainda senador por Massachusetts, onde 2019, a Time dá a versão de Wernher von Braun e Albert Einstein
que Von Braun se rendeu às
a comunidade portuguesa crescera. tropas norte-americanas quando viu que Ao longo do século XX, os EUA abriram
a guerra estava perdida. Mas reconhece as suas universidades a estudantes
‘American way of life’ que ele e a sua equipa pertenciam ao de todo o mundo, o que lhes permitiu
Ao longo de século XX, a Europa iria tornar- grupo de 120 cientistas alemães a quem aumentar a sua influência política,
-se, como ironizam alguns americanos, the foi dado escolher entre irem trabalhar comercial e académica. As elites do
para os EUA ou ficarem a contas com a Médio Oriente e de alguns países
lifestyle superpower, a superpotência do estilo Justiça dos Aliados, uma prática de que a asiáticos mandavam os filhos estudar
de vida, onde há direito a um mês de férias URSS também se socorreu. para os EUA. Só para citar alguns
pagas e boa percentagem do PIB é gasta em Enquanto os EUA se recusavam casos: Benazir Bhuto, falecida
proteção social. oficialmente, no pós-guerra, a acolher primeira-ministra do Paquistão,
Em contraponto a isto, iria impor-se nos nazis, os serviços secretos levavam a formara-se em Harvard; Benjamin
cabo na Alemanha a Operação Paperclip Netanyahu, primeiro-ministro de Israel,
EUA o american way of life, um conceito (Operação Clip) que, segundo um trabalho estudou no MIT; e o rei Abdullah II da
vago, em que o ascensor social está apenas divulgado pelo Canal História em 2014, Jordânia fez parte da sua formação
previsto para quem se empenhe, sem contar envolveu 1600 cientistas e as famílias. militar nos EUA.
com grandes ajudas do Estado. A «persecução
da felicidade» é um caminho individual.
O sonho americano era agora um sonho por Aleksandr Soljenitsin, autor do famo- dos negros só tenham avançado na déca-
de classe média. Durante a Guerra Fria, so Arquipélago Gulag. Ou dos refugiados da de 1960. Ou que, em muitos estados,
a publicidade e o cinema mostravam ho- cubanos que, depois da chegada ao poder ainda vigore a pena de morte. Ou que uma
mens e também já mulheres a conduzir de Fidel Castro, foram para Miami, onde interpretação duvidosa dessas liberdades
bons automóveis. Ao mesmo tempo, donas formaram uma comunidade numerosa e faça que, na entrada deste século, ainda
de casa sorridentes dispunham agora de próspera. Com a Europa devastada pelas existisse pelo menos uma arma em mais
espantosos eletrodomésticos, tradução do- guerras, os EUA tornaram-se também um de metade dos lares americanos.
méstica do progresso tecnológico acelerado polo de atração para muitos intelectuais. Thomas Paine, que muito influenciou a
por duas guerras mundiais. Ao longo do O Novo Mundo era agora o centro da ino- Declaração de Independência, escreveria um
século XX também a imigração por razões vação na Ciência, no Ensino ou nas Artes. dia, numa passagem inúmeras vezes citada:
políticas iria intensificar-se. A América Para isso terá contribuído também a fama «Temos em nosso poder começar o mundo
tornou-se a pátria de eleição dos que fu- que ganharam como país das liberdades outra vez.» E assim tem sido, para o pior e
giam aos regimes de Leste, simbolizados individuais. Se bem que os direitos civis o melhor.

VISÃO H I S T Ó R I A 61
EUA // ECONOMIA

O capital americano
Ameaçado por duas guerras mundiais
piramidais Ponzi». Mas, em 1926, a oferta
superou a procura, ao mesmo tempo que a
época dos furacões se revelava particularmen-
te destrutiva. O preço dos terrenos estabilizou
e desceu, afastando os especuladores.
e duas depressões profundas, o capitalismo americano Apesar do colapso imobiliário na Florida,
teve de se reinventar para sobreviver. E fê-lo quase os tempos aconselhavam tudo menos mo-
sempre à sombra tutelar do Estado deração. A partir de 1927, a bolsa de Wall
Street registou valorizações recorde. A subida

J.
por Clara Teixeira
do preço das ações atraía ricos, remediados
P. Morgan, o banqueiro mais pode- Numa economia de mercado como a dos e pobres. Todos queriam entrar no jogo do
roso do seu tempo, ocupa um lugar EUA, as crises e recessões são muitas vezes dinheiro fácil. A 24 de outubro de 1929, numa
especial na história dos desastres impossíveis de prever, mas têm quase sempre quinta-feira «negra», as cotações caíram ver-
financeiros que marcaram o século efeitos catastróficos. Como o capitalismo ame- tiginosamente e, na terça-feira seguinte, dia
XX nos Estados Unidos da América ricano sobreviveu às crises nos últimos 120 29, a bolsa entrou em colapso. Depois, veio
(EUA). Em 1907, quando uma crise anos é o que vamos tentar analisar. a Grande Depressão, que se alastrou às res-
financeira ameaçou derrubar a banca, convo- No arranque do século XX, a I Guerra tantes economias industrializadas.
cou os banqueiros mais influentes de Nova Mundial (1914-18) alterou os equilíbrios en-
Iorque para uma reunião na sua biblioteca tre nações grandes e pequenas, ricas e pobres. Crise, depressão e ‘New Deal’
particular, num sábado à noite. Quando lhes Nenhum outro país tirou tanto partido dessa Com a crise, o desemprego nos EUA atingiu
pediu que apoiassem, com o seu dinheiro, uma nova ordem mundial como os EUA. Enquanto quase 25% da força de trabalho em 1932. Em
das instituições em dificuldades, a Trust Com- parte da Europa resistia a virar a página de novembro desse ano, quando Franklin De-
pany of America, os convidados recusaram e um sistema ainda dominado pela aristocracia lano Roosevelt (FDR) foi eleito para a Casa
começaram a discutir formas alternativas de fundiária, do outro lado do Atlântico nascia Branca, cerca de 12,8 milhões de americanos
auxílio. Já de madrugada, aperceberam-se uma potência económica. O medo da hiperin- estavam sem ocupação. Em março de 1933,
de que o anfitrião os tinha fechado à chave o padrão-ouro foi suspenso, as taxas de juro
na biblioteca e lançado um ultimato: ou aju- subiram e a estabilidade cambial da moeda
davam o banco em questão ou enfrentavam foi abandonada, tornando inevitável a des-
as consequências da falência e o pânico que valorização do dólar. Seguiu-se uma onda de
se seguiria. A reunião só terminou às 4 e 45 A subida do preço falências que afetou particularmente o setor
de domingo, depois de todos terem assinado bancário, deixando a economia sem liquidez.
um acordo de auxílio mútuo.
dos terrenos na costa Determinado a resgatar o país da depres-
Passados 101 anos, também num sábado, o da Florida, nos anos 1920, são em que mergulhara, o novo Presidente
secretário do Tesouro, Henry «Hank» Paul- foi o primeiro sinal de crise construiu as fundações do New Deal nos
son, tentou um acordo igualmente arriscado. primeiros cem dias de governo, entre 9 de
A 13 de setembro de 2008, quando o Lehman março e 16 de junho de 1933. Em três meses
Brothers avançava a passos largos para o pre- flação, que asfixiava países como a Alemanha de atividade política intensa foram aprova-
cipício, Paulson reuniu a elite financeira ame- e a Áustria, ajudou a desviar grandes quanti- das 16 leis fundamentais, o que faz dessa ses-
ricana num gabinete da Reserva Federal, em dades de ouro e de capital para a criação de são legislativa a mais produtiva de sempre.
Manhattan, para lançar um sério aviso sobre novas indústrias e para a expansão do cami- O brain trust de Roosevelt, formado por
as consequências de uma nova crise financeira nho-de-ferro em solo americano. um grupo de conselheiros muito jovens,
caso o quarto maior banco de investimento dos Nos «loucos anos 20», um ambiente espe- oriundos das universidades, maioritaria-
EUA não viesse a ser salvo. Mas as suas pala- culativo começou a manifestar-se com a subi- mente da de Columbia (Nova Iorque), de-
vras não tiveram a mesma eficácia que a porta da do preço dos terrenos na costa da Florida, fendia a criação de um Estado centralizado
trancada da biblioteca de J. P. Morgan. A jogada cobiçada pelos veraneantes e reformados inspirado nas teorias do economista inglês
para repetir o exemplo do banqueiro, como abastados. Quem investia apostava numa John Maynard Keynes. Apesar do esforço,
sabemos, falhou. Muito do que sucedeu a seguir valorização quase instantânea, vendendo de muitas iniciativas legislativas saldaram-se
era provavelmente inevitável, mas a rapidez e seguida com lucro. O negócio estendeu-se pelo fracasso. Alguns programas eram con-
a dimensão da crise financeira resultaram das até ao norte do Estado, à cidade de Jack- traditórios e foram anulados pelo Supremo
ondas de choque que o surpreendente colapso sonville, atraindo a atenção de «predadores» Tribunal de Justiça, como o National Re-
do Lehman lançou nos mercados. como Charles Ponzi, o «pai» dos «esquemas covery Act (NRA) e o Agricultural Adjust-

62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Pânico na bolsa
Uma multidão
concentrou-se na bolsa
de Nova Iorque durante
a «terça-feira negra» de
1929 (em baixo). Cem
anos depois, os crashs
ainda acontecem, mas

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as emoções são mais
contidas

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EUA // ECONOMIA

Grande Depressão
O presidente Franklin
D. Roosevelt com
jovens desempregados
mobilizados para tarefas de
reflorestamento, durante
o New Deal. Em baixo,
crianças desalojadas
por grandes cheias
no Arkansas, em 1937,
esperam por comida

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ment Administration (AAA), mas outros
produziram efeitos até à atualidade, como
o que deu origem à criação da Security and
Exchange Comission (SEC), a polícia da
WALKER EVANS/BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

bolsa nova-iorquina.
Ao abrigo de um ambicioso conjunto
de reformas económicas e sociais, assente
O New Deal
na intervenção do Estado na economia, de Roosevelt
foram realizadas grandes obras públicas, ajudou os mais
reformado o mercado de trabalho com a
semana das 40 horas e a proibição do tra-
desfavorecidos,
balho infantil, fortalecidos os sindicatos mas a depressão
e lançadas as bases da Segurança Social só terminaria
através da criação de um sistema de pensões
de velhice e outro de seguros de desemprego
com a II Guerra
que beneficiaram cerca de 52 milhões de O esforço de guerra centralizado parecia ser a tendência do futuro
americanos. Outras medidas passaram pelo A entrada na II Guerra Mundial trouxe gi- e o Estado expandia-se enormemente.
controlo da produção agrícola e industrial e gantescos orçamentos estatais e um controlo Ao mesmo tempo, tornava-se necessário
pela fixação de preços do carvão, petróleo e ainda mais apertado da economia, com fixação desenhar o futuro sistema financeiro inter-
cereais, visando a estabilidade dos preços. de preços e salários por decreto, racionamen- nacional. Em julho de 1944, um mês depois
O New Deal, cujo nome se inspirou nos to e controlo de importações e exportações. do desembarque dos Aliados na Normandia,
populares jogos de cartas dos anos 1920, sal- A produção em grande escala de material bélico, Bretton Woods, no estado de New Hampshire,
vou milhões do desemprego e ajudou os mais como tanques, aviões, navios, armas e munições acolheu uma das mais célebres conferências
desfavorecidos, mas nem a forte intervenção eliminou o desemprego. A mão-de-obra dispo- do século XX. Durante 22 dias, 730 delegados
do Estado foi suficiente para tirar os EUA da nível, que incluía as mulheres recém-integradas de 44 países conceberam um novo regime
depressão económica, que só viria a terminar no mercado de trabalho, foi integralmente ca- monetário e cambial, apoiado na estabilida-
com a participação na II Guerra Mundial. Na nalizada para o esforço de guerra. de do dólar para travar a desvalorização das
década de 1930, o PIB recuou cerca de 30% Os EUA entravam, assim, num período outras moedas e, assim, evitar a repetição
e o índice de preços acusou uma quebra de de pleno emprego e de prosperidade. Entre dos desastres económicos da I Guerra e da
33%, conduzindo o país a uma situação de 1939 e 1944, o PIB quase duplicou, subindo Grande Depressão. Para cumprir o espírito
deflação. Mas, para os americanos, o novo de 320 mil para 569 mil milhões de dólares, de Bretton Woods, foram criados o Fundo
Presidente tinha-lhes devolvido a esperança, o desemprego regrediu de 17,2% para 1,2% da Monetário Internacional (FMI) e o Banco
o elemento principal para a recuperação. população ativa, o consumo acelerou apesar Internacional para a Reconstrução e Desen-
E deixou obra: 650 mil milhas de estradas, do racionamento de bens, e os preços manti- volvimento (BIRD), um dos pilares do grupo
78 mil pontes, 125 mil edifícios… veram-se estáveis. O planeamento económico Banco Mundial.

64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
No final do conflito, a Europa precisava JOHN D. ROCKEFELLER
de reerguer as infraestruturas e as indústrias
destruídas pela guerra. O problema residia O PRIMEIRO BILIONÁRIO E FILANTROPO
em saber como adquirir as matérias-primas
e os equipamentos e, também, como pagá- O primeiro bilionário da América, dono de
-los. Os cofres, esvaziados pelo esforço mili- uma fortuna igual a 2% do PIB, foi também
tar, não tornariam a encher-se enquanto os o fundador das bases do filantropismo
moderno e o patriarca de uma das mais
países europeus não produzissem algo para famosas dinastias de negócios dos Estados
vender. Para os americanos, só havia uma Unidos. Nada disso retira a John Davison
saída: dar-lhes o dinheiro para investir nos Rockefeller o rótulo de homem enigmático e
controverso, tendo sido acusado de recorrer
fatores de produção. Em 1947, foi lançado o
a práticas monopolistas para transformar
Plano Marshall (ver texto nesta edição), ao uma pequena empresa num vasto império
abrigo do qual terão sido canalizados mais de chamado Standard Oil Company.
13 mil milhões de dólares para uma retoma John D., nascido em 1839, foi o segundo de
seis filhos de uma família de agricultores
planificada da economia. No início do «século
remediados de Richford, Nova Iorque, que
americano», os EUA davam mais um passo em 1853 se mudaria para Cleveland, no
para consolidarem o estatuto de superpotên- Ohio. Terminados os estudos, conseguiu

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cia mundial – e, ao mesmo tempo, travar o juntar mil dólares num primeiro emprego
como guarda-livros, pediu outros mil
avanço do «inimigo» comunista. dólares emprestados ao pai e, com um
Com a chegada à Casa Branca de John F. sócio, investiu no negócio do petróleo,
Kennedy, em 1961, a economia crescia a um à medida que a cidade de Cleveland se
ritmo saudável, o desemprego era reduzido e transformava num centro refinador para As 38 companhias então autonomizadas
toda a costa leste dos EUA. da empresa-mãe estiveram na origem de
a inflação, embora a subir, estava controlada. Em 1872, a Standard Oil Company, fundada grandes petrolíferas como a ExxonMobil e a
A sua Administração procurou moderar as dois anos antes com um capital de 1 milhão Chevron, entre outras.
reivindicações dos sindicatos mais poderosos, de dólares, já controlava praticamente todas Embora tivesse mantido o cargo de
as refinarias de Cleveland, além de outras presidente da Standard Oil até ao
como o dos Trabalhadores do Aço. Impunha-se
duas perto de Nova Iorque. desmembramento, John D. afastou-se
a contenção dos salários e, por essa via, dos A procura de petróleo crescia a bom ritmo, do mundo dos negócios em 1896, quando
preços, para evitar que a inflação disparasse com a descoberta de novas aplicações contava apenas 56 anos. Passou os 40 anos
num contexto de elevado nível de emprego. como o querosene para iluminação e os seguintes a lançar as bases da filantropia
combustíveis para os automóveis, dando moderna, através de generosas doações à
Apesar da aparente prosperidade, um gran-
origem à concentração de todos os negócios Igreja Baptista, da qual era um fervoroso
de número de americanos continuava a ser na Standard Oil Trust, com um capital crente, do financiamento de ações de
extremamente pobre. A luta pelos direitos de 70 milhões de dólares e 42 sócios no total. educação da população afro-americana
cívicos da população negra chamou a atenção Mas a companhia de John D. Rockefeller e, por fim, da criação da Universidade de
estava a ficar demasiado grande, adotando Chicago, uma iniciativa da American Baptist
para as desigualdades. Foi criado o Programa práticas predatórias de preços que Education Society.
de Combate à Pobreza, com resultados apre- dificultavam a vida à concorrência. Nos anos Já com a colaboração do filho John D. Jr.,
ciáveis, mas no final da década os recursos 1890, a Standard Oil controlava 90% do aplicou parte da sua fortuna na criação de
públicos foram desviados para a guerra do negócio do petróleo nos EUA. Os jornais da instituições como o Rockefeller Institute
época referiam-se-lhe como «O Polvo». for Medical Research (hoje Universidade
Vietname. Os EUA entravam na era dos défices Depois de uma longa batalha judicial, o Rockefeller) e a Fundação Rockefeller, com
orçamentais, que ainda não constituíam uma Supremo Tribunal dos EUA considerou, em iniciativas diversas no campo da ciência e da
preocupação para o governo americano. Até 1911, que o cartel violava as leis anti-trust medicina. Até à sua morte, aos 97 anos, terá
que algo começou a mudar nos anos 1970. e determinou o desmantelamento para aplicado cerca de 540 milhões de dólares
reduzir o seu poder dominante de mercado. em ações de filantropia.

As ‘Reaganomics’ liberais
O aumento do desemprego, o crescimento económico» impediu a reeleição de Jimmy nómica confortável, conheceram um momen-
fraco e a subida da inflação fizeram os EUA Carter para um segundo mandato presidencial to alto durante os dois mandatos de aparente
entrar na era da «estagflação» – uma economia e estendeu a passadeira vermelha da Casa prosperidade de Reagan, nos anos 80. Descida
estagnada, fustigada pelo desemprego e pelo Branca a Ronald Reagan. As linhas econó- dos impostos para os mais ricos (para estimular
aumento de preços alimentado pelos dois cho- micas que orientaram o seu mandato tradu- a iniciativa privada e o investimento), gastos
ques petrolíferos que marcaram a década. Em ziram-se numa palavra: desregulamentação. com defesa (contra o «perigo» comunista),
dezembro de 1979, os preços tinham subido As ideias liberais, com grande aceitação junto enfraquecimento dos sindicatos (que levou ao
13,3% em termos homólogos. O «mal estar do eleitorado que gozava de uma situação eco- fracasso da greve dos controladores aéreos),

VISÃO H I S T Ó R I A 65
défice orçamental e dívida pública crescentes,
especulação imobiliária nos centros urbanos,
manipulação financeira com junk bonds (obri-
gações de alto risco), falência de centenas de
instituições de poupança e crédito (conhecidas
como Savings & Loans). As teses monetaristas
de Milton Friedman e dos liberais da Escola de
Chicago acabaram por conduzir os EUA a uma
recessão no início dos anos 1990. Mas o fim da
União Soviética e do modelo socialista, assim
como as transformações na China com a ado-
ção do «socialismo de mercado», reforçaram a

FUNDAÇÃO FORD
ideia de que o capitalismo americano triunfara,
apesar de todas as suas falhas, crises e recessões.
Do outro lado do mundo, o Japão entrava
Icónico Henry Ford e o seu popular modelo T de 1921
nos anos de 1980 dentro de uma bolha espe-
culativa centrada no imobiliário e na bolsa,
HENRY FORD fruto dos juros baixos e da desregulação. O
índice bolsista Nikkei subiu dos 10 mil para
O ESPÍRITO DA AMÉRICA INDUSTRIAL os 40 mil pontos e os preços das proprieda-
des quase duplicaram ao longo da década.
Não haverá ninguém melhor do que O êxito foi tão grande que em 1914 Henry
Dizia-se que os terrenos do Palácio Imperial
Henry Ford para encarnar o espírito da Ford duplicou, para cinco dólares, o salário
industrialização que transformou a América diário dos operários, atraindo assim os de Tóquio valiam tanto quanto a Califórnia.
numa potência mundial. Filho de imigrantes melhores e mais experientes. Além de A escassez de oferta fez que os japoneses
irlandeses, nasceu no Michigan em 1863. recompensar o seu esforço, estava também começassem a aplicar o seu dinheiro nos
Deixou a escola aos 15 anos e deu asas ao a ajudá-los a concretizarem o sonho de
EUA, atingindo o «coração» de Nova Iorque
espírito empreendedor. Em 1896 construiu poderem adquirir automóvel próprio. Em
uma espécie de automóvel motorizado, a 1926 decretou a semana das 40 horas de com a compra do emblemático Rockefeller
partir de um chassis de carrinho de bebé e de trabalho, mas nunca se mostrou amigo dos Center em 1989, escassas semanas após a
umas rodas de bicicleta. Radicado em Detroit, sindicatos e sempre fez tudo para quebrar transferência dos míticos estúdios de cinema
uma cidade industrial de 200 mil habitantes os movimentos grevistas. Aos trabalhadores
na região dos Grandes Lagos, fundou a Ford impunha um estilo de gestão moralista e
Columbia para o universo Sony.
Motor Company em 1903. O mítico Modelo T, paternalista, exigindo-lhes uma entrega e Ultrapassada a recessão de 1990-91 e o pe-
lançado em 1908 e rapidamente catapultado dedicação totais. A relação patrão- rigo nipónico – o Japão entrara, entretanto, na
para o sucesso, vendeu cerca de 15 milhões -empregado, o processo de fabrico sua «Década Perdida» –, os EUA regressaram
de unidades até o fabrico ser descontinuado totalmente mecanizado, os preços de venda e
em 1927. O objetivo enunciado por Henry os salários acima da média foram o segredo ao crescimento elevado e a uma taxa de infla-
Ford, de «pôr a América sobre rodas», do êxito do fordismo. ção baixa, ultrapassando praticamente sem
começava a ganhar forma. Henry Ford morreu em 1947, meses antes de dor as crises regionais que se abateram sobre
A popularidade do Modelo T tornou possível completar 84 anos, na sua propriedade de os países emergentes da Ásia e da América
uma revolução nas técnicas de gestão e de Fair Lane, não muito longe de Detroit, para
produção em massa, através da instalação de onde foi residir com a mulher, Clara, depois Latina e a Rússia. À beira do ano 2000, surgia
cadeias da montagem na indústria automóvel. de fundar a Ford Motor Company. uma nova bolha, alimentada pelas empresas de
A sistematização, mecanização Internet e de tecnologia de Silicon Valley – a
e divisão do trabalho – processo
chamada Nova Economia. Quando a euforia
mais tarde conhecido como
«fordismo» – permitiram aumentos acabou e o mercado de ações «crashou», o
significativos na produção. efeito foi moderado. Apesar de milhares de
O tempo médio de fabrico caiu de dotcom terem ido à falência, sobreviveram as
14 horas para apenas 93 minutos
que hoje são conhecidas como big tech: Goo-
por veículo, o que permitiu colocar
automóveis no mercado a preços gle, Amazon, Apple e Microsoft (ver texto nas
cada vez mais baixos. No final páginas seguintes).
da sua vida, o Modelo T custava
apenas 300 dólares, quase um
terço do preço das primeiras
Crise e Grande Recessão
viaturas saídas da fábrica de Com taxas de juro em mínimos históricos
Detroit cerca de 20 anos antes. desde o «11 de Setembro», não tardou a

66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Crise do subprime
A desregulação atingiu
o auge em 2007, quando
milhares de pessoas
começaram a perder as suas
casas. O fotógrafo Anthony
Suau cristalizou essa perda
na imagem que ganhou
o World Press Photo
em 2009, de um polícia
entrando numa casa
em Cleveland, Ohio,
depois de uma execução
de hipoteca
ANTHONY SUAU

formar-se nova bolha no setor imobiliário. nos não os tivessem apoiado com enormes ras, entre setembro de 2008 e março de 2012.
Economistas como Nouriel Roubini deram o somas de dinheiro dos contribuintes. Para a A Reserva Federal cortou as taxas de juro para
alarme, mas não foram levados a sério. Mo- história, o ano de 2008 ficou marcado por níveis próximos do zero, limpou o balanço dos
vidos pela ganância, os «génios financeiros» uma crise financeira que colocou boa parte das bancos trocando obrigações do Tesouro por
de Wall Street começaram a «empacotar» economias capitalistas debaixo de uma Grande ativos tóxicos e garantiu depósitos. O governo
créditos hipotecários de alto risco, sob a for- Recessão. Da qual só saíram a muito custo. tornou-se acionista de bancos e empresas em
ma de CDS (credit default swaps) e outros dificuldades, e lançou um ambicioso plano de
ativos tóxicos, e a transacioná-los com lucro O regresso de Keynes estímulos à economia. A vigilância sobre o mer-
debaixo dos olhos sonolentos de regulado- Quando a crise se instalou, os velhos ma- cado financeiro apertou, embora não tenha ido
res e supervisores como a Reserva Federal, nuais de economia foram tirados dos baús tão longe como esperado. Algumas das medidas
liderada por Alan Greenspan até ao início empoeirados e as ideias de Keynes, Schum- prometidas pela administração Obama nunca
de 2006. As agências de avaliação de risco de peter, Minsky e Marx relidas para se perceber saíram do papel. Mas a estratégia resultou e o
crédito (rating) – Fitch, Moody’s e Standard & como salvar o mundo da Grande Recessão. capitalismo não entrou em colapso.
Poor’s – podiam ter alertado, mas em vez disso À frente da Reserva Federal encontrava-se A mudança política veio a seguir à recessão,
ajudaram à festa. Quando, no final de 2006, Ben Bernanke, um dos mais conhecidos num terreno fértil para o crescimento de mo-
a oferta ultrapassou a procura e os preços das estudiosos da Grande Depressão de 1929. vimentos populistas de extrema-direita. Do-
habitações estabilizaram, fazendo que muitos E à Casa Branca chegava, em janeiro de 2009, nald Trump, eleito em 2016, reduziu impostos,
devedores entrassem em incumprimento, Barack Obama. reforçou a desregulação e iniciou uma guerra
as instituições especializadas em crédito hi- Para conter os danos, o Tesouro norte-a- comercial contra Pequim, não só para redu-
potecário começaram a entrar em colapso. mericano injetou 700 mil milhões de dólares zir o défice comercial abissal mas, também,
No verão de 2007, dois fundos que tinham (cerca de 500 mil milhões de euros, ao câmbio para travar a ambição da China de se tornar
investido no segmento do subprime, geridos da altura) em mais de 90 instituições financei- na maior potência industrial e tecnológica
pelo Bear Sterns, faliram. Em agosto, o pânico a nível mundial. As tentativas de camuflar
instalou-se e a tempestade abateu-se com o declínio dos Estados Unidos, na política e
toda a sua força sobre este estranho mercado. na economia, têm sido apontadas insistente-
O pior ainda estava para vir. Depois da falên- mente como um sinal do «mal americano»,
cia de mais de 300 instituições hipotecárias não mas, apesar dos efeitos da atual pandemia
bancárias, os bancos de investimento ficaram de covid-19, os EUA continuam a ser a maior
sem liquidez e entraram em agonia. Ao Bear economia do planeta, valendo cerca de 25%
Sterns seguiu-se, a 15 de setembro de 2008, do PIB mundial, e o dólar ainda desempenha
o centenário Lehman Brothers. As ondas de Inspiradores A visão intervencionista o papel de reserva de moeda internacional.
choque propagaram-se ao resto do mundo. de Keynes, que ajudou a América a sair Parafraseando Mark Twain, talvez as notícias
da Grande Depressão, foi substituída
A vertigem era total. Muito mais bancos teriam pelas teses monetaristas de Milton Friedman sobre a decadência da América sejam mani-
falido, nos EUA como na Europa, se os gover- a partir dos anos 80 festamente exageradas.

VISÃO H I S T Ó R I A 67
EUA // ECONOMIA

Uma superpotência económica


EUA LIDERAM A RIQUEZA MUNDIAL… ... COM A CHINA À ESPREITA
Os EUA continuam a ser a maior economia, com cerca O «salto em frente» da China, nas últimas décadas, vai
de um quarto da riqueza mundial. A China, por sua vez, permitir-lhe destronar os EUA já a partir deste ano, de acordo
contribui com uma parcela de 16% para o PIB global com o PIB medido em paridade de poder de compra*

PESO POR PAÍS NO PIB MUNDIAL EVOLUÇÃO DO PIB EM PARIDADE DE PODER DE COMPRA
4,42
EM 2019 (EM %) EM BILIÕES DE DÓLARES
,34

FONTE Banco Mundial


a 16

EUA

1990 2000 2010 2020


Chin
Coreia do Sul 1,87

,79
1,28

Índia 3,28
Rússia 1,94

Japão 5

EUA
5,96 10,25 14,99 29,47
Indonésia

,98
dá 1

,04
Cana

,59
a1
and

8
a1

2,2 China
Hol

nh

9 3,70 12,40 22,32


3,0
a
Esp

ia 2
3,2
l
Itá nça 1,12
Fra ni do
Rei
noU
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,38
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Alem FONTE Banco Mundial

1,43
ÁSIA

DO N ÉRICA
E

* Paridade de poder de compra – indicador


ORT

co
Méxi
AM

que compara o nível de vida em ambos

R OP
A
Brasil
2,1 os países a partir da quantidade de bens
e serviços que os seus habitantes conseguem
EU
a 1,59
adquirir com os respetivos rendimentos
ICA
AMÉRSUL
O
Austráli Outros 22,3
8
D
OCEÂNIA

RESTO DO
MUNDO

1969
1963 Homem
1947 Assassinato na Lua
Guerra Fria de JFK
1941 1966
Pearl Harbour e Plano Marshall
1933 Guerra
Eleição de Roosevelt e entrada na II Guerra 1944 1950 do Vietname
e New Deal Mundial Conferência Guerra da Coreia
1929 de Bretton Woods
Crash bolsista 2,87 3,26
e Grande Depressão 2,33 0,67
0,85 1,02 0,99 1,33
0,67
2,29

1920 1925 1930 1935 1940 1945 1950 1955 1960 1965

68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CHINA, POTÊNCIA COMERCIAL... ... E INDUSTRIAL
O défice comercial que coloca os EUA atrás A produção industrial chinesa
da China cresce de ano para ano, apesar da «guerra» supera em quase duas vezes a dos EUA
às importações declarada pelo presidente Trump

DÉFICE COMERCIAL DOS EUA COM A CHINA PRODUÇÃO INDUSTRIAL EM 2019


EM MIL MILHÕES DE DÓLARES EM BILIÕES DE DÓLARES
FONTE U.S. Census Bureau FONTE U.S. Census Bureau

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

EUA China

227 2,3 4
273
295
315 318
344 347
367 2007 2008 2017
375 Crise Crise Redução de impostos
do subprime financeira com Trump
19,12
420 2003
Guerra 17,39
do Iraque
2001 – Ataque 15,60
às Torres Gémeas 14,91
2000
1987 1989 Bolha da Nova 13,13
Segunda-feira Japoneses Economia
negra em compram
Wall Street Rockfeller Center 10,63
1973 1981 9,37
Choque petrolífero Reaganomics
e abandono 7,95 ERA UMA VEZ NA AMÉRICA...
do padrão-ouro
6,76 Valores do PIB real (em biliões de dólares)
5,65 nos últimos cem anos, cruzados com
os principais acontecimentos económicos

1970 FONTE National Bureau of Economic Research

4,95 Períodos em recessão económica

INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015 2020

VISÃO H I S T Ó R I A 69
EUA // TECNOLOGIA

Os intocáveis
do novo mundo
Verdadeiros colossos sem rival, os gigantes da tecnologia
contam-se pelos dedos de uma mão e nem a pandemia
os abalou. Tudo em pouco mais de década e meia
por Teresa Campos

H
arvard, outubro de 2003. Numa mais personalizada do utilizador. Mas, a par-
noite de bebedeira, a tentar curar tir de meados da década, a fatura haveria de
uma desilusão amorosa, um jovem nos ser apresentada com juros.
estudante resolve socorrer-se da base
de dados da universidade para com- Cerco aos gigantes
pilar um site com a cara de todas as Nessa altura, já a Google comprara o Youtube,
raparigas do campus — e depois sujeitá-lo a o Facebook tornara-se o dono do Instagram
uma votação para eleger a mais bonita. Em e do WhatsApp, e tanto a Amazon como a
poucas horas, o sucesso do desafio é tal que Apple também somavam vitórias – como tados das eleições foi muito maior do que o
arrasa o sistema de comunicações interno. quem diz, uma já lançara o seu primeiro iPho- esperado, ultrapassando de largo os meios de
É quando surge na cabeça de Mark Zucker- ne, a outra vendia milhões de kindles, o dis- comunicação tradicionais. Ou o momento a
berg e de alguns colegas a ideia de criar aquilo positivo para ler livros digitais. O mundo vivia partir do qual se começou a refutar a alegação
que hoje conhecemos como Facebook. A mais os tempos da Internet das Coisas, expressão maior de Mark Zuckerberg: não, o Facebook
revolucionária e concorrida das redes sociais criada para designar a ligação virtual dos não é apenas uma plataforma tecnológica,
que se há de espalhar pelo mundo como um objetos à nossa volta. Em meia dúzia de anos, mas antes uma poderosa ferramenta de me-
vírus. E que fará do seu criador o mais jovem tornava-se claro que estas empresas estavam dia. O fenómeno crescente das fake news era
milionário da História. a mudar irremediavelmente o mundo – mas só uma das (muitas...) provas disso.
Mas, como também bem lembrava o mote a dada altura começou a ser questionável se O ano de 2017 haveria então de ser mar-
de A Rede Social, o filme de 2010 realizado era para melhor. Há muito que a sua prática cado pela primeira iniciativa de alguns go-
por David Fincher, não se fazem 500 milhões diária contribuía para a desigualdade e de- vernos para aplicar sanções financeiras às
de amigos sem nenhum inimigo. O sucesso gradação do discurso público. plataformas do género que não impedissem,
de algo que começou como uma brincadeira Ainda assim, só depois da eleição de Do- ou prevenissem, a publicação de notícias
entre universitários com várias traições à nald Trump, em novembro de 2016, é que os falsas e discursos de ódio. Uma primeira
mistura teve, obviamente, o seu preço. analistas de serviço começaram a ganhar al- proposta da Alemanha pedia mesmo multas
A crise financeira rebentara entretanto, guma noção do poder imenso destes gigantes até 50 milhões de euros. As gigantes tecno-
mas naquele ano de 2010 os hoje conhecidos da net. Sobretudo quando perceberam que lógicas reagiram de imediato, e anunciaram
como intocáveis do novo mundo já davam um a influência do Facebook e afins nos resul- investimentos de milhões para contrariar o
ar da sua graça. Por exemplo, a Google era rumo dos acontecimentos.
a companhia que mais empresas comprara. Mas à medida que o tempo avançava,
Qualquer coisa como 23 outros negócios, dissipavam-se cada vez mais as dúvidas que
contabilizou então a CB Insights, consultora pudesse haver sobre o caso — já Bruxelas,
especializada em análise de mercado. E tam- na anterior edição da Web Summit, deixara
bém se tornara líder de mercado. Jeff Bezos, Bill Gates o aviso. «Está na hora de deixarmos de ser
Eram os tempos áureos da Web 3.0, a e Mark Zuckerberg ingénuos», sublinhou Ann Mettler, líder
chamada rede inteligente, porque ajustava do Centro de Estratégia Política Europeia
as suas respostas ao nosso comportamento,
acumularam mais de Bruxelas.
apresentando uma informação mais orga- de 350 mil milhões de Foi então que explodiu o caso que ficou
nizada. Tudo para permitir uma experiência euros em riqueza pessoal conhecido pelo nome da empresa que o pro-

70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Fundadores do Facebook
Chris Hughes (à esquerda)
e Mark Zuckerberg (à direita)
em 2005, dois anos depois de terem
tido a ideia de criar a rede social

forma. Mas nessa altura já o The Guardian nhias do género. Em conjunto, dizia-se que
revelara que o Facebook sabia daquela vio- valiam qualquer coisa como 2,2 biliões de
lação da sua segurança havia um par de anos euros, um número que leva doze – 12! –
e nada fizera para proteger os utilizadores. zeros. Mas, apesar do lucro, sucediam-se as
A fogueira seria depois alimentada por uma acusações de evasão de divisas. E, no final
série de executivos de Silicon Valley, como desse 2017, começa oficialmente a batalha
Elon Musk, que apagou as páginas das suas pela tributação dos colossos da tecnologia –
empresas do Facebook, e por Brian Acton, um processo que dá voltas e voltas.
ex-Yahoo e cofundador do WhatsApp, que Um ano depois, já um pouco por todo
logo se manifestou a favor da #ApagaOFa- o globo se assumia a desilusão com este
cebook, a hashtag do momento. «It’s time», admirável mundo novo. 2019 terminou
escreveu no Twitter. com a promessa de uma «marcação cer-
Muitas empresas cancelaram, entretanto, rada» à desinformação, mas o propósito
as suas campanhas de publicidade. No pico acabou por revelar-se aquém das expec-
da polémica, a marca perdeu, em apenas tativas. A investigação iniciada há um ano
dois dias, cerca de 64 milhões de euros em nos EUA, quando procuradores-gerais de
bolsa. Zuckerberg haveria de tentar mudar vários estados americanos decidiram abrir
o rumo dos acontecimentos a seu favor, ao inquéritos para apurar se os GAFA agiram
anunciar mais mudanças na plataforma antes de forma irregular no mercado, sufocan-
da entrada em vigor do novo regulamento do a concorrência e ferindo os direitos dos
europeu para a proteção de dados — e que consumidores, ainda não deu frutos. «É
pedia aos utilizadores para reverem as suas preciso aferir se as suas ações colocam em
tagonizou – e que ficará para a história como definições de privacidade. perigo os dados dos consumidores, reduzem
uma das maiores invasões de privacidade nas a qualidade das escolhas ou aumentam de-
redes sociais. Em causa na ação da Cambri- ‘GAFA deve pagar!’ sequilibradamente o preço dos anúncios»,
dge Analytica estava a permissão dada pelo Numa outra frente, havia mais quem apon- salientou Letitia James, a procuradora de
Facebook para o acesso indevido a 87 milhões tasse o dedo aos gigantes da tecnologia, co- Nova Iorque. «Estas plataformas devem
de perfis. Tudo para influenciar os resultados nhecidos, entretanto, como GAFA, termo que seguir a lei», rematou.
da campanha de Trump – e também do refe- surgira pela primeira vez na imprensa a 20 Não que os GAFA não tenham sido várias
rendo sobre a saída do Reino Unido da União de dezembro de 2012, no diário francês Le vezes condenados a pagar as mais variadas
Europeia. Só em Portugal, foram envolvidas Monde. Era o acrónimo de «Google Amazon multas. Só a Google recebeu ordem para
63 mil contas e na Europa estima-se que Facebook Apple», as quatro maiores compa- pagar 170 milhões de euros em 2019, depois
tenha afetado mais de 2,5 milhões de perfis. dos 4300 milhões no ano anterior. Já o Fa-
Segundo a investigação conduzida pelo cebook foi convocado a pagar, em 2019, a
The New York Times e pelo The Observer, Um top muito especial multa recorde de 4,2 mil milhões de dólares.
um pesquisador externo recolheu dados do Estão entre as 50 que mais vendem no No início deste verão, os GAFA voltaram
Facebook – tal como do Google, Twitter, mundo, à frente de empresas como Disney, a ser criticados publicamente, depois de
Instagram e WhatsApp – para um suposto Pfizer ou American Express. Eis as contas chamados pelo Congresso. «Vão sair desta
fim académico. Mas, soube-se depois, a in- da Fortune 500 (em milhares de milhões) pandemia ainda mais fortes», denunciou o
tenção era criar um algoritmo que cruzasse democrata David Cicilline. Os números já
os dados para criar perfis psicológicos e €238, 996 2º LUGAR conhecidos parecem confirmar a tendência.
agrupá-los com fins específicos. Entre a Enquanto a economia mundial se contraía,
informação recolhida estava não só a roti- as empresas fechavam e o desemprego au-
na diária em termos geográficos como os € 222,074 4º LUGAR mentava, as gigantes da tecnologia melhora-
contactos feitos, o nível cultural, extratos ram ainda mais os seus resultados. Seguem
bancários e outras preferências bem mais € 138,154 11º LUGAR no topo do ranking das maiores empresas
subtis, entre medos, desejos e aflições. do planeta e os seus líderes estão na lista
€ 107,414 21º LUGAR da Forbes que elenca as pessoas mais ricas
Apagar, a palavra de ordem do planeta. Até agora, Jeff Bezos (Amazon),
Em resposta, a empresa de Zuckerberg fez € 60,344 46º LUGAR Bill Gates (Microsoft) e Mark Zuckerberg
saber que banira a Cambridge Analytica e a (Facebook), acumularam mais de 350 mil
proibira de fazer publicidade na sua plata- Fonte: https://fortune.com/fortune500/2020 milhões de euros em riqueza pessoal.

VISÃO H I S T Ó R I A 71
PLANETA
HOLLYWOOD
Através dos filmes, a América manteve-se present
presente
em todo o mundo durante um século. Primeiro nonos
cinemas, depois também nos televisores
por João Pacheco
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72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A magia do cinema
Fred Astaire ensaiando
no terraço dos estúdios
da Paramount, em 1946

VISÃO H I S T Ó R I A 73
EUA // CINEMA
Charlie Chaplin Grande estrela
desde o cinema mudo,
foi um dos imigrantes que
triunfaram em Hollywood

N
ão importa a declaração de amor do franceses irmãos Lumière, com a invenção
barman. A mulher das lantejoulas do cinematógrafo em 1895.
prepara-se para beber demais em
Casablanca. A tela de cinema foi Por uma chuva de dólares
cruzada pelo homem do fato branco. Passando das invenções à massificação des-
Rick é o dono do bar – o Rick’s Café ta arte e desta forma de entretenimento, o
Américain – e está agora ocupado ao balcão, cinema americano atraiu desde o início imi-
de costas para a câmara e para a mulher das grantes, sobretudo da Europa. Alguns ficaram
lantejoulas, que lhe pergunta onde esteve ele ligados à criação de produtoras de cinema
na noite passada. «Isso foi há tanto tempo que viriam a resultar nos mega-estúdios que
que já não me lembro», responde Humphrey dominaram depois a produção cinematográ-
Bogart, aliás, Rick Blaine, o patrão do bar- fica americana durante o chamado período
man. E esta noite, hoje? O protagonista diz clássico – nas décadas de 1930, 1940 e 1950.
que nunca faz planos com tanta antecedência. Desde os primeiros anos do século, o cine-

JOHN SPRINGER COLLECTION/GETTY IMAGES


Já se sabe que teremos sempre Paris e que ma americano foi assim atraindo empresá-
haverá outras cenas mais frescas na memória de rios, realizadores, atores e técnicos de todo
muitas gerações de americanos e de pessoas de o mundo, que abandonavam os seus países
todo o mundo. Alguns lembrar-se-ão sobretudo por motivos políticos ou económicos. Con-
de quando Ingrid Bergman – aliás, Ilsa Lund tando apenas com os mais famosos, uma
– pede ao pianista do bar para tocar aquela lista resumida dos imigrantes que chegaram
canção: «Tens de te lembrar disto, um beijo a Hollywood durante o século XX ocuparia
continua a ser um beijo», canta o pianista Doo- aqui demasiadas linhas e incluiria, por exem-
ley Wilson, aliás, Sam. A canção As Time Goes plo, Alfred Hitchcock, Charlie Chaplin, Fritz
By tinha nascido anos antes para um musical Lang, Greta Garbo, Ingrid Bergman e Arnold
da Boadway e tornou-se um clássico mundial Schwarzenegger.
com este filme do estúdio Warner Bros. Já em 1928, escrevia-se assim em Portugal Nessa mesma edição também se fala da inva-
Para algumas pessoas, talvez se repita mais sobre Hollywood, na revista mensal Cine: «A são da Europa pelos filmes americanos, um
na memória a cena final, no aeroporto de metrópole do cinema é uma autêntica Torre tema recorrente para os europeus ao longo do
Casablanca. Aquela em que o chefe de polícia de Babel, pois que ali se encontram repre- século. E conta-se como Greta Garbo assina
Renault fica p or uma vez do lado certo da sentados todos os povos e todas as raças e se «quase todos os jornais e revistas de Estocol-
História, enquanto um avião levanta voo pelo falam, por consequência, todas as línguas.» mo». Informa-se também que outras estrelas
preto e branco da película em direção a Lisboa. estrangeiras radicadas em Hollywood fazem
Sem que os maus da fita o pudessem impedir. o mesmo, continuando a assinar jornais e
Por falar em nazis, o filme Casablanca revistas dos respetivos países e «encontram
estreou-se à pressa numa sessão especial em Sempre no top nessa leitura a impressão mais funda que
Nova Iorque, no final de 1942, para acom- podem receber da pátria abandonada por
Número de filmes (e coproduções) dos EUA
panhar a atualidade da II Guerra Mundial. no top 20 dos filmes com maior receita de um sonho de glória e uma chuva de dólares».
Casablanca acabara de ser tomada pelas bilheteira em todo o mundo Além do poder atrativo dos dólares, tam-
forças aliadas, passando a ser, como Lisboa, bém a I Guerra Mundial contribuiu para uma
um porto seguro para quem quisesse fugir das vagas de estrangeiros rumo a Hollywood,
20 20 19
para os Estados Unidos da América. E a 19 19 19 com a paralisação de grande parte dos polos
18 18
América representava a liberdade, a paz e 17 europeus de produção de filmes. A ascensão de
a prosperidade. Adolf Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, e
Quando Casablanca se estreou, o cine- depois a II Guerra Mundial (1939-1945) viriam
ma americano era já uma indústria muito igualmente a contribuir para a imigração de
poderosa pelo menos desde o tempo da mais talentos europeus. E para a hegemonia
I Guerra Mundial. O mundo passara a po- da produção cinematográfica americana nas
der ser filmado desde finais do século XIX, salas de cinema de grande parte do mundo.
também graças ao inventor norte-americano O início da II Guerra Mundial coincidiu
Thomas Edison. Apesar de, a nível mundial, 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 com a estreia de um dos grandes épicos ame-
os pioneiros mais decisivos terem sido os INFOGRAFIA Manuela Tomé ricanos dos anos de ouro. Apesar de ser um

74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Divina Greta Garbo durante a rodagem de Rainha Cristina, de 1933, com o realizador Rouben Mamoulian

filme histórico sobre a Guerra da Secessão, E negócio. «Havia imigrantes que vinham com
Tudo o Vento Levou transportava consigo uma grandes tradições de espetáculo – no teatro,
mensagem que faz parte do chamado sonho no circo, em artes de vários tipos – e que
americano: na América é sempre possível agarravam o cinema como uma forma de
refazer a vida, caso se seja resiliente. negócio, porque era o entretém geral. Che-
garam e fizeram, literalmente, uma guerra
Guerra Trust-independentes ao Trust. Montavam um estúdio de um dia
Décadas antes da rodagem deste épico pro- para o outro, copiando muitas vezes as ideias
tagonizado pela atriz britânica Vivien Leigh dos outros que já estavam dentro do acordo.
e pelo ator norte-americano Clark Gable, o E o Trust mandava os seus homens-de-mão
cinema americano começara na costa Leste armados destruir e assaltar aquele estúdio.
e não em Hollywood, como conta o historia- Há uma guerrilha permanente, e uma das
dor de cinema e atual diretor da Cinemateca consequências dela é Hollywood.»
Portuguesa José Manuel Costa, que olha para Em Hollywood, os chamados independen-
esse período como «uma fase fascinante da E Tudo o Vento Levou Um filme épico sobre tes ficam mais protegidos da violência do
História». a Guerra da Secessão Trust, que estava estabelecido na costa oposta.
Na primeira década do século, ainda no O local, que já tinha sido usado antes para
tempo do cinema mudo, a produção de filmes filmagens de exteriores, por ter bom clima,
tornou-se um negócio muito atrativo, com Com tanto dinheiro a ganhar, os pioneiros passou a ser a base dos que insistiam em furar
pouco investimento e muito lucro. «Fazia- tentaram criar um monopólio para blindar o monopólio dos pioneiros.
-se filmes muito depressa e com um sucesso o mercado à entrada de novos produtores. Acabam por ser estes independentes a ga-
brutal, nomeadamente junto dos emigrantes Era o chamado Trust, que declarou guerra nhar a guerra, dando origem a muitas das
recentes que não sabiam bem a língua mas aos que tentassem entrar no negócio. Mas empresas que depois de fusões sucessivas
que iam ver uma arte sobretudo visual, que o Trust não conseguia parar a concorrência resultarão nos mega-estúdios das décadas
lhes era muito mais acessível do que, por crescente de novos imigrantes que chegavam douradas de Hollywood. Por exemplo, a Me-
exemplo, o teatro.» todos os dias e montavam rapidamente um tro Goldwyn Mayer (MGM), que escolheu

VISÃO H I S T Ó R I A 75
EUA // CINEMA

MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES


EUGENE ROBERT RICHEE/GETTY IMAGES

Star-system Uma das estratégias inovadoras usadas pelos produtores independentes foi
fidelizar o público através dos atores. Em cima, Marlene Dietrich e Marilyn Monroe; ao lado,
Grace Kelly e Cary Grant com Hitchock, na rodagem de Janela Indiscreta

um leão a rugir como imagem de marca no dourada a que chamou Óscares, com que máximo figuras como Marilyn Monroe ou
início dos seus filmes, teve entre os fundado- viria a distinguir todos os anos os melhores John Wayne. À volta das estrelas mais re-
res um imigrante nascido no Império Russo. de Hollywood, promovendo um ambiente conhecidas como símbolos sexuais – fossem
Mayer mudou o nome de Eliezer Mayer para de glamour à volta desta indústria. Os es- homens ou mulheres – foi sendo alimentada
Louis Burt Mayer e foi um dos homens mais túdios de produção passaram a estabelecer a curiosidade sobre a vida privada. Cresceu
poderosos de Hollywood durante quase três contratos de longa duração com os atores tanto a popularidade trazida pelo cinema
décadas. que mais público atraíssem e o estrelato que, na década de 1980, uma antiga estrela
Para concorrer com os produtores instala- do cinema americano teve como expoente de Hollywood foi eleita para a presidência
dos e atrair mais público, os independentes dos Estados Unidos da América. Antes de
adotam estratégias inovadoras. «Começam optar pela política, Ronald Reagan tinha
a lançar os filmes com base na figura dos Mercado americano participado em 53 filmes.
atores, da vedeta, da star. E também com Os protagonistas dos filmes eram imitados
base nos géneros. São formas de fidelizar na Europa por adolescentes da América e de grande
públicos: «Gostaram de ver esta pessoa num Quota de mercado na união Europeia, em parte do mundo na maneira de vestir, de
filme? Venham já ver a mesma pessoa noutro 2018, por origem de produção dos filmes fumar e de beijar. E na vontade de consumir
filme.» A pessoa passa a ser o elo de atração. os mesmos produtos, de dançar e de se apai-
Começam a puxar pelos nomes e a criar toda xonar ao som das mesmas músicas. É que,
uma mitologia em torno dessa pessoa, o que apesar de serem produto de uma indústria de
EUA
era uma estratégia pensada de cima a baixo 63,2% entretenimento baseada no lucro, os filmes
em Hollywood e que vai ditar a forma como de Hollywood acabavam por ser também
os estúdios eram geridos. O género e o star veículos de divulgação de um modo de vida
system são duas das bases do cinema clássico americano, transportando a América e tam-
e vêm do campo dos independentes, no tempo bém um modo de ver o resto mundo para
da guerra com o Trust.» Europa os cinemas de grande parte do planeta. Ou,
O Trust viria a ser dissolvido em tribunal Outros 29,4% como pergunta o realizador alemão Wim
em 1917. E poucos anos depois do apare- 2,1% Wenders no livro Emotion Pictures, de 1986,
cimento do cinema sonoro, a própria in- «a América não será uma invenção do cine-
EUA, com investimento da Europa
dústria passou a atribuir, logo a partir de 5,4% ma? Haveria no mundo o sonho da América
1929, uns prémios em forma de estatueta FONTE Focus, European Audiovisual Observatory INFOGRAFIA Manuela Tomé sem o cinema?».

76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Casablanca
Estreado à pressa
em 1942, para
acompanhar
a atualidade
da II Guerra Mundial

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Do ecrã para a Casa
Branca Ronald Reagan
contracenando com
Bette Davies, em 1939

Máquina de fazer dinheiro a época de mudança constante dá lugar a quer ser tão ambicioso que conta quatro
A primeira longa-metragem americana de uma época de fixação, de padronização, histórias cruzadas. O filme não é um fra-
grande sucesso económico foi o épico do de convenções. Ou seja, em 1915 obtém casso, como às vezes se diz, mas não dá de
realizador D. W. Griffith O Nascimento de o tal sucesso gigantesco que ele próprio modo nenhum o mesmo lucro do primeiro e
uma Nação, de 1915. «O êxito do filme é de não esperou, e logo a seguir investe todo Griffith perde dinheiro. Num ano, passa-se
tal ordem que os lucros são gigantescos. o dinheiro que tem para fazer outro épico de um tempo em que se pensa que se pode
A partir daí há um investimento muito maior enorme, mas com uma estrutura comple- mudar o cinema todo de um filme para o
no cinema, salta para outra escala», conta tamente diferente. O Nascimento de Uma outro, para um tempo em que se percebe que
José Manuel Costa. «Estamos nos primeiros Nação era aquilo a que se pode chamar a já se está a meter tanto dinheiro no cinema
anos de Hollywood, a produção começa a base do melodrama em fundo histórico que é melhor não mudar tudo de um filme
concentrar-se na costa Oeste, e Wall Street (o eco seguinte será, mais tarde, E Tudo para o outro. É melhor rentabilizar. É como
começa a investir em Hollywood, porque per- o Vento Levou, com o mesmo tema da Guerra um modelo de automóvel de sucesso. Pode-
cebe que é uma máquina de fazer dinheiro.» da Secessão). Mas Griffith pensa que pode -se ir experimentando uns protótipos, mas
E é a entrada da banca nesta indústria que reinventar o cinema todo e um ano depois de não se muda todos os anos, senão a indústria
vai transformá-la numa máquina ainda mais O Nascimento de Uma Nação investe tudo afunda-se. E aí começa-se a fixar as coisas,
afinada de fazer dinheiro, diz José Manuel num filme experimental. Com Intolerância a trabalhar em convenções. E trabalhando
Costa. «Não é por acaso que se pode dizer em convenções vai-se percebendo que o
studio system quase como sinónimo de ‘ci- cinema se vai desenvolver enquanto tema e
nema clássico americano’. Era o sistema dos variação. Os autores que se deram bem com
estúdios, essa meia-dúzia de mega-empresas isso (e houve génios que se deram bem com
que eram tão grandes que acabaram as fusões. Hollywood começou isso, como John Ford) trabalharam durante
Já não era fácil surgirem novas empresas que décadas e os filmes tinham um ar de família
pudessem concorrer com aquelas, porque ali
com os produtores incrível, parecia que se repetia a mesma
o poderio e o investimento da banca era gi- independentes que fugiram história. Nunca era a mesma. Era o mesmo
gantesco. Fixa-se então uma maneira de fazer, da costa Leste, onde bando de atores, era a mesma situação, mas
também como forma de proteger o grande depois havia qualquer coisa diferente. E o
investimento que o cinema já tinha.»
uma espécie de máfia génio era esse, trabalhar na convenção e na
Segundo José Manuel Costa, «podemos controlava a indústria variação. O cinema clássico, no fundo, é isso
dizer que o cinema americano nasce quando do cinema e dura até aos anos de 1950.

VISÃO H I S T Ó R I A 77
EUA // MÚSICA

Cantando espalharei
por toda a parte
Desde a Guerra Fria até hoje, do jazz ao hip hop,
o Departamento de Estado subsidia concertos
no estrangeiro, para que a América mostre a sua face
liberal em ambientes «hostis»
por João Gobern

I
srael Baba é um praticante de hip-hop, ma suavizada de propaganda sociopolítica,
com a carreira sediada em Nova Ior- capaz de se estender de forma tentacular a
que, e dirige aulas e seminários a quem destinos quase surpreendentes. Só os dois
se interesse por este género musical e, músicos citados funcionaram como «envia-
num sentido mais lato, por esta verten- dos especiais» dos EUA a paragens tão insó-
te cultural. Já Bennett Konesni, criado litas como a Rússia, a Croácia, a Indonésia
no Maine, é um guitarrista e estudioso de e Taiwan, no caso de Baba, e a Ucrânia ou a
bluegrass, uma poderosa variante da música Mongólia, no que toca a Konesni.
tradicional sulista, com origem nos montes Aparentemente, este programa, o AMA,
Apalaches. Significa isto que, fixando-se nos que já convocou mais de 150 músicos e
antípodas estéticos um do outro, nada mais marcou presença em mais de cem países,
os une? Errado – com destinos diferentes segundo o Wall Street Journal, está à vista
e com aproximações distintas, ambos fize- de todos. Ao ponto de os projetos musicais
ram parte integrante de uma iniciativa que, interessados poderem candidatar-se online
desde 2005, ganhou um nome significativo: a integrá-lo, ficando sujeitos à apreciação
American Music Abroad. e decisão de um «júri independente». Os
O propósito, explicado de forma simpli- apurados sabem à partida que o Estado se
ficada, traduz-se em exportar para as zonas responsabiliza pelo pagamento das viagens, Louis Armstrong em Roma, 1949
mais inesperadas do planeta, especialmente das estadas e das refeições e despesas «in- Arregimentado para o programa Jazz
aquelas em que a imagem dos EUA, dos cidentais indispensáveis», bem como por Ambassadors, cancelou uma tournée
à União Soviética em 1957, depois
seus «valores» e do seu «modo de vida», honorários de 300 dólares por dia para cada de o presidente Eisenhower se recusar
fique longe do parecer positivo, e não é uma um dos músicos integrantes das bandas e a proteger as crianças negras ameaçadas
novidade. Desde os tempos da Guerra Fria grupos chamados a esta missão artística e quando tentavam ir à escola
que grandes figuras como Louis Armstrong diplomática. Entre as contrapartidas, in-
ou Duke Ellington viram viagens ao Leste cluem-se reuniões com membros do Depar-
europeu, à zona dominada pelo «inimigo tamento de Estado, em Washington, onde Talvez o poder das indústrias discográfica
russo», promovidas e subsidiadas pelo De- são abordadas a história e a política norte- e de espetáculos com base nos EUA prefira
partamento de Estado, já ciente de que essas -americanas, incluindo a preparação para seguir vias independentes na internacio-
investidas musicais poderiam contribuir for- a resposta a «questões hostis», bem como nalização dos artistas e na sua «adoção»
temente para o desanuviamento, junto das a realização de wokshops com especialis- pelos públicos de outros países, dispen-
populações locais. No entanto, foi preciso tas em relações públicas e de aulas sobre a sando o carimbo de «mensageiros». Talvez
esperar pelo segundo mandato do presi- «sensibilidade» dos países que surjam nos haja quem não se mostre disponível para
dente George W. Bush para que nascesse o respetivos roteiros. as «entrevistas» e «exames» promovidos
programa American Music Abroad (AMA), Talvez as somas envolvidas acabem por pelos organismos oficiais, de que – mesmo
oficialmente dotado de um orçamento anual afastar o interesse de músicos de primeira indiretamente – passam a ser porta-vozes.
de milhão e meio de dólares, verba que ficará linha, cientes de que poderão ganhar muito Certo é que a iniciativa se manteve durante
muito abaixo do investimento real nesta for- mais dinheiro com outro tipo de digressões. o consulado de Barack Obama, provando

78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Os primeiros-socorros do jazz maiores criadores e cultores do jazz da época,
Hoje, os eleitos pelo AMA repartem-se pelo com Louis Armstrong, Duke Ellington, Dizzy
jazz, pelos blues («blues not bombs» vale como Gillespie, Count Basie e Dave Brubeck a in-
palavra de ordem), pelo gospel, pelo bluegrass tegrarem o impressionante rol. A «ausência
e pelo hip-hop. Talvez a maior diferença face da barreira do idioma» foi a razão divulgada
aos antepassados esteja na recomendação para a preferência.
atual de que devem privilegiar-se os «inter- Era plausível, mas não era a única: o clima
câmbios artísticos e culturais», e os contactos de crescente violência racial que se vivia con-
com os anfitriões. Algo que estava longe do tribuía para uma forte punição nas avaliações
foco quando o mesmo Departamento de Es- que se faziam da democracia dos EUA. Se, de
tado lançou aqueles que ficaram conhecidos repente, a representação ganhasse as cores
como os Jazz Ambassadors, na época em que multirraciais, essa carga negativa acabaria por
o comandante supremo era Dwight D. Eise- ser esbatida. Gillespie foi o primeiro «recru-
nhower. Este fez aprovar, em 1954, uma lei ta», mas não perdeu a sua ironia proverbial
que previa a afetação de 5 milhões de dólares – quando lhe foi sugerido um encontro com
para custear o envio de propostas culturais membros do Departamento de Estado, para
americanas ao estrangeiro como parte da de- acertar agulhas, o trompetista respondeu: «Já
signada «diplomacia pública». Inicialmente, tenho briefings há mais de duzentos anos…».
a escolha recaiu em orquestras sinfónicas, Acabaria por subir ao palco, com as cores
grupos de teatro e cantores folk. Mas, dois norte-americanas, na Grécia, na Turquia, no
anos depois, o congressista afro-americano Paquistão e na Síria. Mas sem recuar nas suas
Adam Clayton Powell Jr. propôs que fossem convicções: «Gosto da ideia de representar a
recrutados para a linha da frente alguns dos América, mas não vou pedir desculpa pelas
políticas racistas.» Paradoxalmente, o único
incidente, registado em Damasco, não teve
nada que ver com a raça, mas com o género,
SLIM AARONS/GETTY IMAGES

uma vez que a banda de Dizzy incluía uma


trombonista, Melba Liston, e uma cantora,
Dottie Salter…
O músico de hip-hop Houve mais – e mais significativos –
Israel Baba tocou na sobressaltos. Em 1957, Louis Armstrong,
Rússia, Taiwan e Indonésia perante a recusa de Eisenhower de enviar
agentes da autoridade a Little Rock, Arkan-
que não se trata de uma questão partidária,
com viagens pagas pelo sas, para proteger nove crianças negras
mas nacional. Ainda assim, se tanto mudou, programa American Music ameaçadas quando tentaram frequentar
em tantos setores, desde a chegada à Casa Abroad, financiado pelo uma escola local, cancelou uma digressão à
Branca de Donald Trump, o AMA também União Soviética. Poucos anos depois, imedia-
confirma a mudança de maré. Bennett Ko-
Departamento de Estado tamente antes da crise dos mísseis soviéticos
nesni viu cancelada, e sem justificações, em Cuba, Benny Goodman (branco…) fez
uma nova viagem de trabalho à Mongólia, furor em «território inimigo». De tal forma,
onde já tinha conseguido, por exemplo, um que a académica Danielle Fosler-Loussier,
trabalho musical de fusão entre as canções autora do estudo Music in America’s Cold
de lenhadores do Maine e o folclore local, War Diplomacy, publicado em livro por uma
algo que até poderia tornar-se aliciante universidade californiana, não hesita em
no quadro da world music. Konesni de- referir «os primeiros-socorros» prestados
nunciou despedimentos em massa entre os pelo jazz à diplomacia do país.
responsáveis do programa e não esconde o Mudados os tempos, parecem manter-se
seu receio de que a «política cultural» (cha- algumas vontades. E, com as adaptações
memos-lhe assim…) da atual administração indispensáveis, o mesmo acontece com as
acabe por pura e simplesmente extinguir fórmulas. Sem abandonar Camões, estará
esta via de diplomacia paralela. Pelo menos aí mais um alcance para o verso «cantando
a título oficial. espalharei por toda a parte».

VISÃO H I S T Ó R I A 79
EUA // COMICS

Splash! Bang! Slam!


Com as suas onomatopeias, os comics norte-americanos
impuseram em todo o mundo imagens fortes
de uma cultura narrativa eminentemente visual
por Luís Almeida Martins

U
sam maillots justos e capas esvoa-
çantes e são dotados de sentidos mil
vezes mais apurados do que o comum
dos mortais. Os seus superpoderes
incluem normalmente uma força
prodigiosa, uma agilidade sem limi-
tes e o dom de voar. Acorrem numa fração
de segundo ao local onde são necessários
e restabelecem a lei e a ordem enquanto o as primeiras séries serem humorísti-
diabo esfrega um olho. Tal como os próprios cas), entende-se a literatura gráfica em
Estados Unidos, eles são os (super)polícias geral, nascida nos jornais americanos no
do mundo. Quem não conhece os super-he- final do século XIX e durante muito tempo
róis, imagem de marca de uma certa cultura conhecida no nosso país por «histórias aos
norte-americana e eficaz meio de propaganda quadradinhos» e mais tarde por «banda de-
«suave» da superpotência nos últimos 80 senhada», numa tradução literal do francês
anos, conhecidos em todo o mundo e divul- bande dessinée quando, à volta de 1970, esta
gados em Portugal sobretudo via publicações forma de expressão passou a ser socialmente
brasileiras? O Super-Homem (Superman), bem vista e estudada nas escolas europeias.
criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shus- Fazendo o percurso inverso do de Mickey,
ter, e o Batman, nascido no ano seguinte o Super-Homem e o Batman transitaram
do lápis de Bob Kane, são as mais célebres muitas vezes do papel para o celulóide ou,
destas personagens dos comics americanos, mais recentemente, para os novos suportes
e deram origem a uma posterior multidão digitais. Mas não foram os únicos a migrar.
de epígonos, o mais importante dos quais é Poderiam, nesta perspetiva, ser lem-
o Homem Aranha (Spiderman), já da década brados os velhos filmes «de série
de 1960, sem esquecer a Wonder Woman B» de Flash Gordon, da déca-
(Mulher Maravilha, também conhecida em da de 1930, ou os episódios
Portugal por Super-Mulher). Outra persona- televisivos de Cisco
gem, o Capitão América, ostenta mesmo no Kid, do início da
trajo e no escudo os símbolos nacionais dos de 1950. Flash
EUA. Na língua original, duas editoras – a dos parques de atrações Disney, visitados por era um herói de space opera – aventuras
DC Comics e a Marvel – disputam a liderança multidões. Um pouco esquecido está hoje o espaciais de recorte épico – criado em 1934
do mercado dos comic books, as revistas que universo dos patos (Donald, Tio Patinhas, pelo bem dotado desenhador Alex Raymond
publicam este tipo de histórias. etc.) desenvolvido por Carl Barks para a Dis- nas páginas dominicais (as Sundays) dos
Sem se tratar de um super-herói, a mais ney, que no entanto, com as suas histórias jornais americanos e que teve também, em
divulgada das figuras imaginárias made in entretecidas de fantasia, lenda, aventura e 1980, a sua grande produção cinematográfica
USA é, porém, o Rato Mickey, criado em 1928 hino ao capitalismo e à livre iniciativa, for- «de série A». O mesmo já se passara muito
por Walt Disney num filme de animação e matou a maneira de olhar o mundo de várias antes – em 1954 – com Prince Valiant, cria-
pouco depois transposto para os jornais com gerações, entre as décadas de 1950 e 1980. ção de Hal Foster difundida pelos jornais
o traço de Floyd Gotfredson. Objeto de mer- Por comics, o suporte deste género de co- de domingo e divulgado entre nós, como
chandising, o pequeno rato negro é o símbolo municação (a designação provém do facto de O Príncipe Valente, primeiro n’O Mosquito

80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mickey e companhia O popular rato «mostra» os principais títulos de comic books
conhecidos dos portugueses sobretudo via edições brasileiras

(na década de 1940) e no Mundo de Aven- maravilhosas como a que o leva ao interior de A meio caminho entre a aventura pura e a
turas (da década de 1950 em diante) e pos- um átomo. Entre a ficção científica e o poli- narrativa de guerra encontram-se as strips
teriormente, por longos anos e em quadri- cial brilha a figura hipnótica de Mandrake, de Terry e os Piratas e Steve Canyon, de
cromia, no jornal portuense O Primeiro de um poderoso ilusionista desenhado por Phil Milton Caniff, Buzz Sawyer, de Roy Crane,
Janeiro. Mas deve ser destacada a recriação Davis que nos transporta para uma espécie e Johnny Hazard, de Frank Robbins. Uma
cinematográfica de Dick Tracy, feita em 1990 de mundo de fadas ingénuo mas cativante. outra vertente desta forma de arte foi a ro-
com Warren Beaty e Madonna nos principais A personagem de Fantasma (The Phantom) mântica The Heart of Juliet Jones, criada
papéis. Desta vez, entrava pela porta larga convida-nos também para um universo em em 1953 por Stan Drake, e que teve entre
do cinema o mundo da daily strips, as tais que as referências da realidade se esbatem. nós acolhimento nas páginas de O Primeiro
«bandas desenhadas» diárias que, lidas em Tal como a quase totalidade das principais de Janeiro, com o nome de O Coração de
sequência, contam uma história. strips americanas, estas histórias foram di- Julieta, depois de uma breve aparição no
vulgadas em Portugal a partir de 1949, e até à Mundo de Aventuras. Trata-se de uma saga
As tiras diárias década de 1980, por publicações da Agência familiar «cor-de-rosa», que se desenrola em
Estas tiras diárias, hoje algo esquecidas, Portuguesa de Revistas como o Mundo de torno das aventuras sentimentais de duas
foram no entanto amplamente divulgadas Aventuras, o Condor Popular ou as coleções irmãs ainda jovens que vivem com o pai bem
na Europa a partir das décadas de 1930 e Tigre e Audácia. intencionado e naïf; a América profunda, fe-
1940. Publicavam-se originalmente nos jor- chada sobre si mesma e desviada das grandes
nais americanos de segunda-feira a sábado, cidades, é o pano de fundo do lacrimejante
saindo aos domingos uma dose reforçada, a enredo. No mesmo capítulo deve incluir-se
cores, que em certos casos dava continuidade Mary Perkins on stage, iniciada em 1957
à história contada nos restantes dias e noutros por Leonard Starr, em que a heroína é uma
desenvolvia um argumento próprio. jovem atriz da Broadway que vive aventuras
Mesmo assim, merecem ser recordadas intimistas e sentimentais mas não só, pois os
criações como a já aludida strip de Dick Tra- argumentos estendem-se às áreas policial,
cy, desenhada por Chester Gold entre 1931 de espionagem e de mistério em geral, no
e 1977, centrada no mundo do crime orga- quadro da Guerra Fria.
nizado à la Al Capone, cujo distintivo traço No início da década de 1970, o jornal
caricatural fez dela um ícone da cultura pop. A Capital chamou a si a missão de prestar
Também com argumento policial, tornou-se culto às strips americanas. Foi este diário
uma referência a elegante e refinada strip lisboeta que mais fez por aproximar do pú-
Rip Kirby, desenhada a partir de 1946 por blico nacional, no estertor da ditadura, as
Alex Raymond. Entre muitas outras bandas principais referências da cultura popular
policiais, merece ainda destaque Secret Agent americana. Em plena Guerra Fria, os EUA
X-9, inicialmente, em 1934, com argumentos não eram olhados com simpatia por grande
do escritor Dashiell Hammett e desenhos do parte de quem desempenhava o arriscado
ubíquo Alex Raymond. O Capitão América «ofício» de oposicionista ao Estado Novo,
No campo da ficção científica, para lá de ostenta no trajo mas as expressões gráficas do «império» não
Flash Gordon avulta um outro herói, Brick deixavam de veicular uma mensagem de li-
Bradford; primeiro desenhado por Clarence e no escudo os símbolos berdade individual e de igualdade perante a
Gray e depois por Paul Norris, faz viagens tão nacionais dos EUA lei. O fascínio dos desenhos fazia o resto.

VISÃO H I S T Ó R I A 81
EUA // ELEIÇÕES

Quando o mais votado sai derrotado


Desde a primeira ida às urnas, em 1789, houve cinco Presidentes dos EUA eleitos
sem terem obtido a maioria dos votos populares. O vencedor do voto popular
em cada estado arrebata a totalidade dos votos estaduais do Colégio Eleitoral, variando
o número de delegados por estado consoante a respetiva população

Vencedor: Derrotado:
1824 John Quincy Adams Andrew Jackson
Total de votos (democrata-republicano) (democrata-republicano)
do Colégio Eleitoral: 261 Obteve 113 122 votos 151 271 votos
populares (30,9%) populares (41,4%)
Número de delegados
necessário para ganhar: 131 Conquistou 99 delegados
84 delegados
Como nenhum dos candidatos conquistou o número de delegados necessário, de acordo com uma emenda constitucional
a eleição coube à Câmara dos Representantes; foi o único caso em que tal aconteceu.

1876 Vencedor: Derrotado:


Total de votos do Rutherford B. Hayes Samuel J. Tilden
Colégio Eleitoral: 369 (republicano) (democrata)
Número de delegados 4 034 142 votos 4 280 808 votos
necessário populares (47,9%) populares (50,9%)
para ganhar: 185
184 delegados
185 delegados

Vencedor: Derrotado:
1888 Benjamin Harrison Grover Cleveland
Total de votos (republicano) (democrata)
do Colégio Eleitoral: 401
5 443 892 votos 5 534 488 votos
Número de delegados populares (47,8%) populares (48,6%)
necessário para ganhar: 201
233 delegados 108 delegados

Vencedor: Derrotado:
2000 George W. Bush Al Gore
Total de votos do (republicano) (democrata)
Colégio Eleitoral: 538
50 456 002 votos 50 999 897 votos
Número de delegados populares (47,9%) populares (48,4%)
necessário
para ganhar: 270 271 delegados 266 delegados

Vencedor: Derrotado:
2016 Donald Trump Hillary Clinton
Total de votos (republicano) (democrata)
do Colégio Eleitoral: 538
62 984 828 votos 65 844 610 votos
Número de delegados populares (46,1%) populares (48,1%)
necessário para ganhar: 270
306 delegados 232 delegados

82 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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