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BELÉM - PA 2015

IX Congresso Internacional da ABRALIN


25 a 28 de fevereiro de 2015

Universidade Federal do Pará


Belém - Pará - Brasil

http://ixcongresso.abralin.com.br
ANAIS DO IX CONGRESSO
INTERNACIONAL DA ABRALIN

Organizadores
Larissa Lima
Marília Ferreira
Eunice Braga
Jaqueline Reis
Zerben Aguiar

Belém-PA
2015
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) –
Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA

_______________________________________________

Congresso Internacional da Abralin (9.: 2015: Belém, PA)


C749 Anais do IX Congresso Internacional da Abralin / Larissa Lima [et al.]
(organizadores). --- Belém : ABRALIN; PPGL. UFPA, 2015.
1 CD-ROM : color. ; 43/4 pol.

Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira


Netto da Universidade Federal do Pará, no período de 25 a 28 de janeiro de 2015.
Texto em português.
Inclui bibliografias.
ISSN: 2179-7145
1. Linguística - Congressos. I. Lima, Larissa, org. II. Título.

CDD-22. ed. 410


________________________________________________
COMISSÃO ORGANIZADORA - SECRETARIA

Danilo Mercês Freitas – UFPA


Fabíola Azevedo Baraúna - UFPA
Gabriela de Andrade Batista – UFPA
Izadora Cristina Ramos Rodrigues – UFPA
Jaqueline de Andrade Reis – UFPA
Larissa Wendel Afonso de Lima – UFPA
Murilo Coelho de Moura – UFPA
Pedro Teixeira Lisboa Neto – UFPA
Sara Vasconcelos Ferreira – UFPA
Sérgio Wellington Ferreira da Silva – UFPA
Sheyla da Conceição Ayan – UFPA
Tereza Tayná Coutinho Lopes – UFPA
Veridiana Valente Pinheiro – UFPA

COMISSÃO DE APOIO

Aliny Cristina Ramos de Sousa - UFPA


Beatriz Nazaré Pessoa – CESUPA
Bianca Castro Rodrigues - UFPA
Caio Mendes Aparício Fernandes - UFPA
Diego Michel Nascimento – UFPA
Elaine Patrícia do Nascimento Modesto – UFPA
Jeniffer Yara Jesus da Silva - UFPA
José Adauto Santos Bitencourt Filho - UFPA
Luciana Renata dos Santos Vieira - UFPA
Marília Fernandes Pereira de Freitas – UFPA
Nandra Ribeiro Silva – UFPA
Natali Nóbrega de Abreu – UFPA
Profª Drª Andréa Oliveira - UFPA
Profª. Drª. Ângela Fabíola Alves Chagas – UFPA
Profª. MSc. Eunice Braga Pereira – UFPA
Profª MSc. Maria de Nazaré Moraes da Silva
Zerben Nathaly Wariss de Aguiar Barata – UFPA

COMISSÃO CIENTÍFICA

Prof. Dr. Abdelhak Razky - UFPA


Prof. Dr. Adair Bonini - UFSC
Prof. Dr. Adair Vieira Gonçalves - UFGD
Prof. Dr. Alcides Fernandes de Lima - UFPA
Profª. Drª. Alessandra del Re - UNESP
Profª. Drª. Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt - UFRJ
Profª. Drª. Ana Paula Scher - USP
Profª. Drª. Ana Vilacy Galúcio - MPEG
Prof. Dr. Antonio Carlos dos Santos Xavier - UFPE
Profª. Drª. Carmem Lúcia Reis Rodrigues - UFPA
Profª. Drª. Cristina Martins Fargetti - UNESP/Araraquara
Profª. Drª. Del Carmen Daher - UFF
Profª. Drª. Eliana Melo Machado Moraes - UFG
Profª. Drª. Enilde Leite de Jesus Faulstich - UNB
Profª. Drª. Flávia Bezerra de Menezes Hirata-Vale - UFSCar
Prof. Dr. Frantomé Pacheco - UFAM
Prof. Dr. Gabriel de Avila Othero - UFRGS
Prof. Dr. Geraldo Vicente Martins - UFMS
Profª. Drª. Gessiane de Fátima Lobato Picanço - UFPA
Prof. Dr. Guilherme Fromm - UFU
Prof. Dr. Hugo Mari - UFMG
Prof. Dr. José Carlos Cunha - UFPA
Prof. Dr. José Sueli Magalhães - UFU
Profª. Drª. Juciane dos Santos Cavalheiro - UEAM
Profª. Drª. Karylleila Andrade Klinger - UFT
Profª. Drª. Kazuê Saito Monteiro de Barros - UFPE
Profª. Drª. Kristine Stenzel - UFRJ
Profª. Drª. Laura Maria Silva Araújo Alves - UFPA
Profª. Drª. Leonor Cabral Scliar - UFRJ
Profª. Drª. Lindinalva Chaves - UFAC
Profª. Dra. Luciana Racanello Storto - USP
Prof. Dr. Márcio Martins Leitão - UFPB
Profª. Drª. Maria Candida Drumond Mendes Barros - MPEG
Profª. Drª. Maria da Glória di Fanti – PUC - RS
Profª. Drª. Maria das Graças Soares Rodrigues - UFRN
Profª. Drª. Maria do Carmo Lourenço Gomes - UFRJ
Profª. Drª. Maria Eulália Sobral Toscano - UFPA
Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry - UNICAMP
Profª. Drª. Maria Odileiz Sousa Cruz - UFRR
Profª. Drª. Marinalva Vieira Barbosa - UFTM
Prof. Dr. Mario Eduardo Viaro - USP
Profª. Drª. Mónica Graciela Zoppi Fontana - UNICAMP
Profª. Drª. Myriam Crestian Chaves da Cunha - UFPA
Profª. Drª. Nilsa Brito Ribeiro - UNIFESSPA
Profª. Drª. Raynice Geraldine Pereira da Silva - UFAM
Profª. Drª. Regina Célia Fernandes Cruz - UFPA
Profª. Drª. Rita de Cássia Aparecida Pacheco Limberti - UFGD
Profª. Drª. Rosângela Hammes Rodrigues - UFSC
Prof. Dr. Sidney Facundes - UFPA
Profª. Drª. Silvana Aguiar dos Santos - UFSC
Profª. Drª. Telma Vianna Magalhães - UFAL
Prof. Dr. Tony Berber Sardinha – PUC-SP
Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto - USP
Profª. Drª. Vanderci de Andrade Aguilera - UEL
Profª. Drª. Vanice Maria Oliveira Sargentini - UFSCar
Profª. Drª. Vera Lúcia Vasilévski Santos - UEPG
Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva - UFT
Profª. Drª. Walkyria Alydia Grahl Passos Magno e Silva - UFPA
Prof. Dr. Xóan Carlos Lagares Diez – UFF
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

Prof. Dr. Carlos Edilson de Almeida Maneschy


Reitor

Prof. Dr. Horácio Schneider


Vice-Reitor

Profa. Dra. Maria Lúcia Harada


Pró-Reitoria de Ensino e Graduação

Prof. Dr.Emmanuel Zagury Tourinho


Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

Prof. Dr. Fernando Arthur de Freitas Neves


Pró-Reitoria de Extensão

Prof. MsC. Edson Ortiz de Matos


Pró-Reitoria de Administração

Edilziete Eduardo Pinheiro de Aragão


Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal

Raquel Trindade Borges


Pró-Reitoria de Planejamento

Instituto de Letras e Comunicação

Prof. Dr. OtacílioAmaral Filho


Diretor Geral

Profa. Dra. Fátima Pessoa


Diretora Adjunta

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Dra. Germana Maria Araújo Sales


Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Dra. Marília de N. de Oliveira Ferreira


Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Universidade Federal do Pará

Instituto de Letras e Comunicação

Programa de Pós-Graduação em Letras


Cidade Universitária Professor José da Silveira Neto
Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá.
CEP 66075-900, Belém-PA
Fone-Fax: (91) 3201-7499
E-mail: mletras@ufpa.br Site: www.ppgl.ufpa.br
APRESENTAÇÃO

Os Anais ora publicados reúnem 249 trabalhos completos resultantes de comunicações individuais
apresentadas nos simpósios temáticos e de pôsteres dos diferentes Eixos existentes no IX Congres-
so Internacional da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).
A publicação dos presentes Anais do IX Congresso Internacional da ABRALIN marca a gestão de
2013-2015, quando, pela primeira vez, em seus 46 anos de existência, a Diretoria da ABRALIN esteve
sediada na Região Norte do Brasil, na Universidade Federal do Pará, em Belém.
Os textos aqui apresentados foram elaborados por graduandos, graduados, especialistas, mestran-
dos, mestres, doutorandos, doutores e professores pesquisadores, cuja atenção está centrada em
algum aspecto da linguagem, que reflete as inumeráveis possiblidades de estudo desse fenômeno
tão inerente à humanidade.
A Diretoria da ABRALIN, gestão 2013-2015, tem a alegria de partilhar esta publicação com todos os
participantes do IX Congresso Internacional da ABRALIN e com toda comunidade acadêmica da área
de estudos da linguagem.

Profa. Dra. Marília de N. de O. Ferreira


Presidente da ABRALIN
(Gestão 2013-2015)
SUMÁRIO

AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM DE REVISÃO E


REESCRITA: PROCESSOS DE INTERAÇÃO NO PIBID PAG. 17
UNESPAR
Adriana Beloti
Renilson José Menegassi

#BOMDIA #POSITIVIDADE #ALEGRIA: MANIFESTAÇÕES


DE OTIMISMO NO FACEBOOK PAG. 25
Aline de Caldas Costa dos Santos
Edvania Gomes da Silva

COMPREENSÃO DE TEXTOS ARGUMENTATIVOS: PAG. 32


REESCRITURA NO ENSINO FUNDAMENTAL
Antonia Valdelice de Sousa

NOÇÕES DE GRAMÁTICA E ANÁLISE LINGUÍSTICA NO


DISCURSO DE PROFESSORES DE LÍNGUA MATERNA
DO ENSINO BÁSICO NA CIDADE DE ARAGUAÍNA
TOCANTINS
Aurílio Soares da Silva
Janete Silva dos Santos

DE OBJETOS DE ENSINO À CONSTITUIÇÃO DE IMAGENS PAG. 52


DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS
Bruna Dias da Silva
Nilsa Brito Ribeiro

FÁBRICA DE TEXTOS: A PRODUÇÃO TEXTUAL A PARTIR PAG. 17


DAS SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS
Bruna Kellen Almeida Tavares
Kelren Gomes Nascimento
Uriel Jonathas Freitas da Silva Penha

ENSINO-APRENDIZAGEM DA LÍNGUA BRASILEIRA DE


SINAIS: EXPERIÊNCIAS DOS PROJETOS “ESCOLIBRAS” PAG. 67
17
E “NA PALMA DA MÃO”
Carlos Rodrigo Moraes de Souza
Huber Kline Guedes Lobato
Arlete Marinho Gonçalves

O EXAME DE PROFICIÊNCIA EM LÍNGUA PORTUGUESA


(EPLP) NAS GRADUAÇÕES DA PUCPR: OBJETIVOS
INSTITUCIONAIS E PRESSUPOSTOS TEÓRICO- PAG. 72
17
METODOLÓGICOS
Cristina Yukie Miyaki

VARIAÇÕES E MUDANÇAS LINGUÍSTICAS NA LÍNGUA


BRASILEIRA DE SINAIS: um estudo das transformações
PAG. 85
e da resistência ao novo na comunidade surda
Fernanda Grazielle Aparecida Soares de Castro
Terezinha Cristina da Costa Rocha
Rosani Kristine Paraíso Garcia
A LÍNGUA COMO BEM CULTURAL E IDENTITÁRIO:
A MULTIPLICIDADE DE SISTEMAS A SERVIÇO PAG. 92
DAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
Geysa Andrade da Silva

ALTEAMENTO DAS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS


NO PORTUGUÊS DA AMAZÔNIA PARAENSE:
O DIALETO DOS MIGRANTES MARANHENSES
FRENTE AO DIALETO FALADO EM BELÉM/PA PAG. 100
Giselda da Rocha Fagundes

ANÁLISE DE INFERÊNCIAS LINGUÍSTICAS


CULTURAIS EM INTERPRETAÇÕES PARA LÍNGUA PAG. 107
BRASILEIRA DE SINAIS
Hector Renan da Silveira Calixto

MÉTODO DE ENSINO DE AMPLIAÇÃO DE


VOCABULÁRIO DA LIBRAS: UMA EXPERIÊNCIA
NO CURSO DE LETRAS LIBRAS / PORTUGUÊS (L2) PAG. 257
Huber Kline Guedes Lobato
José Anchieta de Oliveira Bentes

PRÁTICAS DE ESCRITA DE FANFICTIONS NA


ESCOLA: CAMINHOS ALTERNATIVOS PARA PAG. 121
ATIVIDADES DE PRODUÇÃO TEXTUAL
Larissa Giacometti Paris

PUBLICIDADE HÍBRIDA E HUMOR POLÍTICO: O


RISO COMO ESTRATÉGIA MULTISSEMIÓTICA
PARA ENTRETER, PERSUADIR E MOTIVAR A PAG. 131
INTERAÇÃO
Leonardo Mozdzenski

AS VOGAIS PRETÔNICAS NOS FALARES PAG. 151


NORDESTINOS: DADOS DO ALiB
Maria do Socorro Silva de Aragão

ACÚSTICA versus PROSÓDIA: UM ESTUDO DO


PORTUGUÊS FALADO EM MOCAJUBA PAG. 158
Maria Sebastiana da Silva Costa

UMA GRAMÁTICA PARA A LEITURA E PARA A PAG. 165


ESCRITA NA EJA
Maria Teresa Gonçalves Pereira

DISCURSO COMO CONJUNTO DE ESTRATÉGIAS:


A PERSPECTIVA FOUCAULTIANA EM A VERDADA PAG. 184
E AS FORMAS JURÍDICAS
Najara Neves de Oliveira e Silva
EXPRESSIVIDADE ORAL DE LEITURA: AVALIAÇÃO PAG. 173
ATRAVÉS DE UMA ESCALA MULTIDIMENSIONAL
Nair Sauaia Vansiler

GÊNEROS TEXTUAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES:


UMA PROPOSTA PARA REFLETIR, DESENVOLVER E
IMPLEMENTAR SEQUÊNCIA DIDÁTICA NO ENSINO DE PAG. 192
LÍNGUAS
Paulo da Silva Lima
Tânia Maria Moreira

POR UMA ABORDAGEM ENUNCIATIVA DO DISCURSO PAG. 198


RELATADO
Paulo Eduardo A. de Sá Barreto Batista

A CARTOGRAFIA FUNCIONAL DA SENTENÇA E


OS UNIVERSAIS LINGUÍSTICOS: PROJEÇÕES DE PAG. 206
CATEGORIAS VERBAIS NO CAMPO DO IP
Paulo Pereira

LETRAMENTO VISUAL EM CURSOS ONLINE: UMA


PRÁTICA DEMANDADA NA ELABORAÇÃO DE MATERIAL PAG. 212
DIDÁTICO
Regina Cláudia Pinheiro

ANÁLISE DIATÓPICA E DIASTRÁTICA PARA “CIGARRO


DE PALHA” E “TOCO DE CIGARRO” NO ATLAS PAG. 219
LINGUÍSTICO DO AMAPÁ
Romário Duarte Sanches
Abdelhak Razky

A IDENTIDADE DOS MIGRANTES INTERIORANOS DO


ESTADO DO AMAZONAS A PARTIR DO LÉXICO: um PAG. 224
estudo sociogeolinguístico
Sandra Maria Godinho Gonçalves

ESCRITA PROCESSUAL DE UMA REVISTA POR PAG. 234


PROFESSORES EM FORMAÇÃO
Sara de Paula Lima
Vládia Maria Cabral Borges

TENSÕES ENTRE AS LÍNGUAS DE TIMOR-LESTE EM


PRÓLOGOS DO DICIONÁRIO PORTUGUÊS-TÉTUM E DO PAG. 242
CATECISMO DA DOUTRINA CHRISTÃ EM TÉTUM
Simone Michelle Silvestre

MOTIVAÇÕES E ATITUDES DE UMA EDUCADORA DE


ESCOLA PÚBLICA: REALISMO CRÍTICO E ANÁLISE PAG. 250
CRÍTICA DO DISCURSO
Solange Maria de BARROS
OPERAÇÕES DE PRESSUPOSIÇÃO E O PROCESSO PAG. 257
DE AQUISIÇÃO DA TECNOLOGIA DA ESCRITA
Suelen Érica Costa da Silva

SAÍMOS DO FACEBOOK: UMA ANÁLISE DOS


EFEITOS DAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS NAS
MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013 NA PAG. 265
PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE/CAOS
Valdir Silva
Rodrigo De Santana Silva

CIRCUITO CURRICULAR MEDIADO POR GÊNEROS:


PRÁTICAS DE LEITURA E ANÁLISE LINGUÍSTICA PAG. 273
Vera Barros Brandão Rodrigues Garcia
Wagner Rodrigues Silva

A COMPREENSÃO DO MITO POR MEIO DAS


NARRATIVAS POPULARE DA CULTURA INDÍGENA PAG. 281
Walmir Nogueira Moraes
AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM DE REVISÃO E REESCRITA: PROCESSOS DE
INTERAÇÃO NO PIBID UNESPAR
Adriana Beloti
Renilson José Menegassi

RESUMO 1. Introdução

Este trabalho reflete sobre a formação teóri- Neste trabalho, refletimos sobre a formação te-
co-metodológica das práticas de linguagem de órico-metodológica das práticas de linguagem
revisão e reescrita na formação docente inicial de revisão e de reescrita na formação docente
com acadêmicos do PIBID, a fim de compreen- inicial com acadêmicos participantes do Pro-
der os elementos internalizados por tais sujeitos grama Institucional de Bolsa de Iniciação à Do-
em relação às práticas pedagógicas de trabalho cência – PIBID, do subprojeto de Língua Portu-
com a escrita no ensino e aprendizagem. O es- guesa do Curso de Letras, da Unespar/Campus
copo teórico sustenta-se na teoria enunciativo de Campo Mourão. O objetivo é compreender
discursiva e na concepção dialógica de lingua- os elementos internalizados por tais sujeitos
gem, dos trabalhos do Círculo de Bakhtin; na em relação às práticas pedagógicas de trabalho
linguagem como processo de interação, quando com a escrita no processo de ensino e apren-
pensada nas práticas discursivas no processo de dizagem. Nossa pesquisa permite-nos obser-
ensino e aprendizagem; na concepção de escri- var como os participantes do PIBID conseguem
ta como trabalho (FIAD; MAYRINK-SABINSON, posicionar-se e atuar como professores e como
1991); nas reflexões sobre revisão e reescrita, os encontros de formação e as intervenções da
a partir de estudos de Menegassi (1998) e Ruiz coordenadora ainda são necessários e levam
(2010). A metodologia ancora-se nas proposi- ao desenvolvimento dos conceitos atrelados às
ções da Linguística Aplicada e da pesquisa-ação, práticas de escrita. Assim, buscamos contribuir
devido às reflexões teóricas e encaminhamen- com estudos sobre o trabalho de escrita em sala
tos metodológicos e práticos quanto à escrita de aula e com as reflexões sobre a formação do-
junto aos participantes. Neste trabalho, analisa- cente inicial, refletindo sobre as interações es-
mos as atividades de escrita preparadas pelos tabelecidas pelo projeto.
acadêmicos para serem realizadas nas turmas Esta pesquisa ancora-se sobre a teoria enun-
do PIBID nas escolas parceiras, considerando: ciativo-discursiva e a concepção dialógica de
a) a relação entre o planejamento e as ativida- linguagem, enunciada pelo Círculo de Bakhtin;
des e b) as diferentes versões das propostas: a concepção de escrita como trabalho, discutida
a primeira, sem intervenções, a segunda, após por Fiad e Mayrink-Sabinson (1991); os proces-
orientações da supervisora, e a partir da tercei- sos de revisão e de reescrita, conforme Mene-
ra, com apontamentos da coordenadora. Para gassi (1998), e os tipos de correção estudados
tais análises, consideramos as Diretrizes Cur- por Ruiz (2010). Além disso, quando pensamos
riculares da Educação Básica (PARANÁ, 2008) no processo de ensino e aprendizagem de língua
e as pesquisas sobre o trabalho com a escrita, portuguesa, recuperamos a concepção de lin-
estudadas nos encontros de formação. A partir guagem como processo de interação (GERALDI,
deste trabalho, observamos como os participan- 2004) e as orientações das Diretrizes Curricu-
tes do PIBID conseguem posicionar-se e atuar lares da Educação Básica (PARANÁ, 2008), do-
como professores e como os encontros de for- cumento norteador do trabalho pedagógico nas
mação e as intervenções da coordenadora ain- escolas em que os participantes desta pesquisa
da são necessários e levam ao desenvolvimento atuaram como docentes.
dos conceitos atrelados às práticas de escrita. Em relação à metodologia do trabalho, nosso
Contribuímos com estudos sobre o trabalho de ponto de sustentação é nas proposições da Lin-
escrita em sala de aula e com as reflexões sobre guística Aplicada – LA (MOITA LOPES, 1996), de-
a formação docente inicial, refletindo sobre as senvolvendo uma pesquisa-ação, conforme as
interações estabelecidas pelo projeto. proposições de Thiollent (2005) e Tripp (2005).
PALAVRAS-CHAVE: PIBID; Formação teórico- Os dados deste trabalho foram gerados e cole-
-metodológica; Revisão e reescrita. tados no período de março a outubro de 2014, a
partir dos encontros de formação teórico-meto-

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dológica do PIBID e dos materiais, planejamento compreendermos os elementos internalizados
e atividades, produzidos por uma dupla de pro- em relação às práticas pedagógicas de trabalho
fessores em formação inicial, que integram o com a escrita no processo de ensino e apren-
grupo e constituem-se como sujeitos da pesqui- dizagem, constituímos como objeto de estudo,
sa. Neste trabalho, analisamos as atividades de neste trabalho, as atividades de escrita prepa-
escrita preparadas por tais professores para se- radas pelos participantes do PIBID para serem
rem realizadas nas turmas do PIBID nas esco- realizadas nas turmas do Programa nas escolas
las parceiras, considerando: a) a relação entre parceiras.
o planejamento e as atividades; b) as diferentes O período total de geração e coleta dos dados é
versões das propostas. compreendido entre os meses de março de 2014
A partir de nossos objetivos, expomos na sequ- a julho de 2015. Para as análises empreendias
ência, a constituição do nosso objeto de estudo, neste trabalho, consideramos: a) a relação entre
sistematizando o processo de geração e de co- o planejamento e as atividades e b) as diferentes
leta de dados; em seguida, marcamos o escopo versões das propostas: a primeira, sem inter-
teórico da pesquisa, destacando os principais venções; a segunda, após orientações da super-
conceitos que proporcionam nossas reflexões; visora, e a partir da terceira, com apontamentos
por fim, apresentamos os dados, analisando-os da coordenadora. Para tais análises, tomamos
em dois momentos: da produção do planeja- as Diretrizes Curriculares da Educação Básica
mento e da produção das atividades. (PARANÁ, 2008) e as pesquisas sobre a prática
discursiva de escrita, estudadas nos encontros
2. As atividades de escrita como objeto de estu- de formação. Assim, os meses de março a se-
do: os caminhos da pesquisa tembro de 2014, que compõem o momento de
formação teórico-metodológica, e o mês de ou-
Para a constituição do objeto de estudo deste tubro de 2014, período de desenvolvimento do
trabalho, lançamos mão das proposições da LA, planejamento e das atividades, marcam o inter-
caracterizando a pesquisa como qualitativo-in- valo específico do objeto de análise deste traba-
terpretativa, de cunho etnográfico e aplicado, e lho.
da pesquisa-ação, devido às reflexões teóricas Do processo de formação, destacamos os con-
e encaminhamentos metodológicos e práticos ceitos e textos estudados no período, na sequ-
realizados junto aos participantes. ência: inicialmente, discutimos sobre aspectos
A vinculação à LA explica-se pelo fato de estu- gerais da educação, a partir do texto Sobre a na-
darmos a linguagem em situação social deter- tureza e especificidade da educação (SAVIANI,
minada, considerando o contexto aplicado dos 2003); estudamos os documentos oficiais rela-
sujeitos participantes. Assim, além de gerar e cionados à educação: a Lei de Diretrizes e Ba-
coletar os dados, os descrevemos e analisamos, ses da Educação – LDB – n. 9394/1996 (BRASIL,
para além de uma perspectiva quantitativa. Por 1996) e as Diretrizes Curriculares Estaduais da
esse caráter aplicado, qualitativo e interpreta- Educação Básica – DCE (PARANÁ, 2008); traba-
tivo, os dados são interpretados pelo pesquisa- lhamos com textos teórico-metodológicos so-
dor, tomando, especialmente, como aspecto ne- bre as concepções de linguagem (ZANINI, 1999;
cessário o contexto de investigação. PERFEITO, 2010); estudamos sobre o processo
Nesse sentido, o viés etnográfico está presente, de produção textual, incluindo as concepções
porque as interações entre pesquisadora/coor- de escrita (GERALDI, 2004; KOCH; ELIAS, 2011;
denadora e professores em formação inicial, SERCUNDES, 2004; FIAD; MAYRINK-SABINSON,
participantes do PIBID, constituem o processo 1991) e sobre os processos de revisão e de re-
de geração dos dados e são consideradas para escrita (ANTUNES, 2006; RUIZ, 2010; JESUS,
as análises. Assim, a pesquisa-ação também 2004).
sustenta a base epistemológica de desenvolvi- Ao considerarmos os encontros de formação,
mento da pesquisa, pois há um caráter media- além de justificarmos a perspectiva metodoló-
dor nesse processo, que proporciona reflexões gica da pesquisa, entendemos a influência do
teóricas, encaminhamentos metodológicos e contexto aplicado para a compreensão de como
práticos com os participantes. tem sido a formação teórico-metodológica das
A partir de tal sustentação, para refletirmos so- práticas de linguagem de revisão e de reescrita
bre a formação teórico-metodológica das práti- dos sujeitos participantes. Todo esse contexto
cas de linguagem de revisão e de reescrita na de geração, descrição e análise de dados possi-
formação desses sujeitos, com o objetivo de bilita-nos observar como os participantes posi-

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cionam-se e atuam como professores. LOCHINOV, 2006). Entendemos que nos estabe-
Os materiais que analisamos neste trabalho fo- lecemos/constituímos como sujeitos na e pela
ram produzidos pelos professores em formação linguagem e, portanto, esta é o instrumento que
inicial, com o objetivo de desenvolverem ativida- possibilita a interação entre sujeitos, sócio, his-
des de escrita nas escolas participantes do PI- tórico e ideologicamente constituídos.
BID. Para isso, era preciso estabelecer a relação Essa concepção, que considera a historicidade,
entre teoria e prática constantemente, recor- leva-nos a compreender a sala de aula como
rendo aos encontros de formação para desen- espaço de interação, de produção de enuncia-
volverem suas propostas. O primeiro elemento, ções, que consideram o caráter dialógico das
a relação entre o planejamento e as atividades, situações de interação verbal social. Nesse sen-
mostra-se pertinente pelo fato de possibilitar- tido, concebemos a escrita como um processo
-nos a reflexão, justamente, quanto à relação de interação verbal entre sujeitos que têm re-
teoria e prática: o planejamento retrata qual ais necessidades para escrever e, na sala de
concepção de escrita? Como as práticas de lin- aula, como um processo contínuo de ensino e
guagem de revisão e de reescrita são abordadas aprendizagem e, então, pela concepção de es-
no planejamento? Os objetivos apresentados no crita como trabalho, constituída, também, pelas
planejamento efetivam-se nas atividades pro- práticas de linguagem de revisão e de reescrita.
postas? Por tais concepções, olhamos para todo o pro-
Por tais perguntas, analisamos, destacadamen- cesso como momentos de interação, estabele-
te, as concepções de escrita, de revisão e de cida e mantida pelas práticas de linguagem, de
reescrita, a partir dos objetivos, dos conteúdos escrita, revisão e reescrita, revelando o caráter
propostos e da descrição das atividades a serem dialógico da linguagem. Dessa forma, os concei-
realizadas. A partir dessa observação, relacio- tos de interação, dialogismo e escrita como tra-
namos às atividades e, então, temos condições balho são fundantes para esta pesquisa.
de analisar como o aporte teórico é considerado
na prática proposta. 4. Planejamento e atividades: relação teoria e
Em seguida, torna-se relevante olharmos para prática
as diferentes versões das atividades, que nos dá
a possibilidade de analisar: como os participan- O planejamento e as atividades em análise fo-
tes do PIBID conseguem posicionar-se e atuar ram produzidos no início de outubro de 2014.
como professores? Como os encontros de for- Para a organização dos dados, coletamos a pri-
mação e as intervenções da coordenadora ain- meira versão, produzida exclusivamente pelos
da são necessários e levam ao desenvolvimento professores em formação inicial. A segunda
dos conceitos atrelados às práticas de escrita? deveria conter orientações de revisão da profes-
Para alcançar nossos objetivos, analisamos os sora supervisora, porém, não houve alterações,
materiais preparados por uma dupla de profes- pois a supervisora considerou o material ade-
sores em formação inicial. Partimos das quatro quado. Então, passamos a intervir e orientar o
versões do planejamento, fazendo uma descri- planejamento das atividades a partir da segunda
ção e análise de como foi desenvolvido ao longo versão, cujo processo foi finalizado na quarta.
desse processo e destacando, para exemplo, al- No decorrer de nossas orientações, fizemos
guns aspectos mais relevantes, que evidenciam correções resolutivas e textual-interativas
a relação entre teoria e prática. Em relação às (RUIZ, 2010), em arquivo digital, e realizamos
propostas de atividades, tomamos as cinco ver- uma orientação presencial, para explicação dos
sões, realçando como os participantes foram apontamentos feitos e de como a proposta deve-
constituindo as práticas de escrita, revisão e ria ser revisada e reescrita.
reescrita, a fim de compreender os elementos Na primeira versão, o tópico do planejamento
internalizados no processo. focava no trabalho voltado para a prática dis-
cursiva de leitura, pois objetivava apresentar
3. Dialogismo e escrita como trabalho uma discussão a respeito do tema – cotas ra-
ciais nas universidades brasileiras – e de aspec-
O escopo teórico deste trabalho ancora-se, ini- tos linguístico-discursivos. Todos os objetivos
cialmente, na concepção dialógica de linguagem, eram relacionados ao gênero discursivo a ser
a partir da perspectiva enunciativo-discursiva, estudado: Entrevista. Para nós, a perspectiva do
proposta pelo Círculo de Bakhtin (VOLOCHINOV/ planejamento indica que os professores em for-
BAKHTIN, 1926; BAKHTIN, 2003; BAKHTIN/VO- mação inicial já demostravam certa constituição

19
em relação à prática de leitura, porque marca- nero, elaborar o comando de produção,
ram como foco a necessidade de desenvolver a dando todas as condições necessárias
criticidade dos estudantes sobre a temática das para configurar a escrita como traba-
aulas. O estudo do tema é um dos aspectos a ser lho. Falta isso... a proposta é boa, mas
considerado no trabalho com gêneros discursi- precisa ser complementada.”.
vos, pois se refere ao conteúdo temático, um dos
elementos para a produção textual. Esta primeira versão do planejamento indica-
Quanto à produção textual, não havia objetivo -nos a compreensão, por parte dos professores
relacionado à escrita, conteúdo que deveria ser em formação inicial, de que os textos usados
o aspecto principal das aulas. Apenas ao fim para o trabalho em sala devem ser estudados
da descrição das atividades, é que marcavam a considerando o gênero discursivo, suas caracte-
prática de produção textual: rísticas e funções. Por outro lado, sinaliza uma
lacuna quanto ao que deveria ser o principal ob-
“Após a leitura, reflexão e análise dos jetivo das aulas: trabalhar com a prática discur-
textos, os alunos assistirão a um vídeo siva de escrita, na concepção de escrita como
acerca do tópico da aula, e, posterior- trabalho, incluindo as etapas de revisão e de re-
mente darão início a sua produção es- escrita, pensando no desenvolvimento das habi-
crita, que passará pelo processo de re- lidades de escrita dos estudantes. Isso pode ser
visão e reescrita.”. explicado pelo fato de apresentar maior ênfase
no trabalho com a prática de leitura e não de es-
Na primeira intervenção da professora, em rela- crita. Para nós, isso significa que o encaminha-
ção ao tópico, foi orientado que se caracterizava mento feito, nos encontros do PIBID, ainda pre-
mais como objetivo e deveria dizer sobre o con- cisava ser retomado, a fim de marcar o objetivo
teúdo principal das aulas, que era a produção principal. Essa retomada justifica-se por não ter
textual. Em relação aos objetivos, o apontamen- havido, nesse momento, compreensão pela du-
to dizia da relevância do que havia sido aborda- pla sobre qual era a finalidade primeira das au-
do – o trabalho com o gênero em estudo, porém las. Uma possibilidade de entendimento dessa
faltava abordar o estudo sobre o tema, que de- falta de compreensão, a partir de nossa práxis
veria ser deslocado do tópico para os objetivos, e do conhecimento do contexto aplicado da pes-
além do objetivo da prática de escrita. quisa, é pelo fato de, até então, os professores
Esses dados mostram-nos que os professores em formação inicial terem realizado trabalhos
internalizaram o conceito de ter o que dizer, que focavam mais a leitura, a discussão sobre o
contemplado no tópico, e saber como dizer, tema. Por outro lado, quando descrevem a par-
mostrado nos objetivos (GERALDI, 1993; PARA- te final das atividades, há marcas de aspectos
NÁ, 2008), para a produção textual. Observamos, já proporcionados pelos encontros de formação
ainda, que em todo o planejamento era conside- do PIBID: “[...] produção escrita, que passará
rado, apenas, o gênero Entrevista, a ser estuda- pelo processo de revisão e reescrita.”, ou seja, a
do. Entretanto, os alunos produziriam, ao final descrição de parte das atividades contempla as
das aulas, um Comentário, a partir do trabalho etapas de revisão e reescrita, possibilitadas pela
desenvolvido. Considerando os conteúdos e ati- concepção de escrita como trabalho.
vidades descritas, as correções já feitas em cada Ao considerarmos o objetivo principal da pro-
item do planejamento – tópico, objetivos, conte- posta, entendemos que, por meio de nossas
údo e atividades – a coordenadora apresentou o intervenções nos materiais preparados pelos
seguinte apontamento: professores, além de orientar em termos de
conteúdo, também proporcionamos a constitui-
“Professor J e Professor F, de fato, o ção de sua escrita, possibilitando práticas de re-
que estava percebendo que falta, pela visão e de reescrita e dando exemplos de como
descrição das “atividades”, realmente podem ser feitos os apontamentos. Então, além
falta: trabalho com o gênero a ser pro- de estudar os conceitos teórico-metodológicos,
duzido. Vocês terão que dar conta disso: nossas práticas também funcionam como me-
ensinar a produzir, a escrever, o gênero canismo de desenvolvimento desses conceitos
comentário. Então, como farão? Devem na perspectiva da práxis.
levar exemplos de textos desse gênero, Na terceira versão do planejamento, após os
devem discutir as funções sociais e co- primeiros apontamentos da coordenadora, os
municativas, as características do gê- participantes do PIBID conseguiram atender às

20
orientações feitas. O tópico contemplava os gê- Pelo fato de o planejamento e as atividades se-
neros a serem estudados e a temática. Os ob- rem produzidos concomitantemente, as orien-
jetivos marcavam o trabalho com a temática, o tações feitas no planejamento iam sendo incor-
gênero em estudo, os recursos linguístico-dis- poradas às atividades, com o objetivo de fazer
cursivos, entretanto ainda não havia objetivo os dois materiais de maneira coerente, tanto na
delimitado para a prática de produção textual. proposta quanto na fundamentação teórico-me-
Embora não houvesse tal objetivo, a descrição todológica que sustentaria a prática dos profes-
das atividades, já desde a primeira versão, e dos sores em sala de aula.
conteúdos, após as orientações, atendia à ne- No geral, os apontamentos da coordenadora, na
cessidade, especificando: segunda versão, correspondiam à necessidade
de informação da fonte dos conteúdos e aspec-
“Conteúdo [...] tos de formatação. Em relação às questões, que
Produção textual escrita de um comen- orientavam a leitura e análise dos textos em
tário, para propiciar a exposição do po- estudo, as quais tratavam da temática e, então,
sicionamento e dos argumentos do alu- serviriam de conteúdo e orientação para a pro-
no de acordo com a temática; dução escrita, as intervenções, destacadamen-
Reescrita, após revisão e apontamentos te, por questionamentos e comentários, visavam
realizados pelas professoras, tendo em orientar a revisão das perguntas, a fim de dei-
vista a adequação do texto às condições xá-las mais adequadas ao estudo do gênero e
de produção.”. da temática, porque trabalhavam, apenas, com
aspectos mais estruturais e superficiais, sem
Observamos que a concepção de escrita como relacionar às funções, às significações dos ele-
trabalho subsidia a proposta materializada no mentos identificados. Ao final das perguntas, a
planejamento, incluindo as etapas de revisão professora apresentou o seguinte comentário:
e de rescrita, desde a primeira versão, sendo
melhor especificada nas demais. Os objetivos, “Professor J e Professor F, realmente
os conteúdos e a descrição das atividades cor- vocês precisam, ainda, aprofundar um
respondem à linguagem como processo de in- pouco as questões. Há muito foco na
teração, que deve nortear as aulas de Língua estrutura, na identificação de aspectos.
Portuguesa nas escolas, conforme orientação Procurem estabelecer relações, pensar
das Diretrizes Curriculares da Educação Bási- nas funções, na finalidade de um ou ou-
ca (PARANÁ, 2008). Essa proposta do planeja- tro aspecto que perguntam. Pelas nos-
mento indica como os encontros do PIBID têm sas discussões de escrita, vocês podem,
refletido na constituição desses professores, ainda, aprofundar esse trabalho. Além
especificamente, quanto à prática discursiva de de identificar, o que mais? Como essa
escrita. Após os apontamentos de revisão da co- identificação do gênero, por exemplo, é
ordenadora, é retratada a concepção de escrita importante para compreender o texto?
como trabalho, que inclui as etapas de revisão Como interfere nas reflexões?”.
e de reescrita no processo e, ainda, os objeti-
vos apresentados condizem com as atividades A organização das atividades iniciava com ques-
propostas, considerando o mesmo percurso de tões sobre o gênero discursivo Entrevista, de-
produção: apresentação da proposta e revisão pois havia perguntas que encaminhavam a lei-
das atividades, conforme as orientações da co- tura e compreensão dos textos que tratavam do
ordenadora. tema em estudo, em seguida, aquelas que rela-
cionavam os textos, aspectos do gênero, como
5. Produção das atividades: o que o processo tema e linguagem, por fim, após o vídeo de uma
mostra? entrevista, o encaminhamento para a produção
textual.
No processo de preparação das atividades, a O principal aspecto a ser revisado nas atividades
professora supervisora, em conversa com os era em relação às condições para a produção
participantes do PIBID, orientou para que uma escrita: pelo encaminhamento, haveria condi-
pergunta, relacionada ao texto em estudo fos- ções para dizer do tema, um dos elementos que
se acrescentada. No mais, tudo foi mantido, de compõem o gênero discursivo e, portanto, deve
acordo com o planejamento e a primeira versão ser trabalhado, contudo, o gênero a ser produ-
apresentada. zido, o Comentário, não era contemplado no de-

21
correr das atividades. Além disso, as perguntas Embora alguns pontos da pergunta devessem
direcionavam para uma reflexão mais super- ser revisados, havia um objetivo estabelecido ao
ficial, como por exemplo: “O texto II apresenta encontro dos estudos feitos, caracterizando, já
alguma opinião explícita a respeito da atitude nesse momento, certa constituição da formação
do aluno da Escola Municipal de Nova Iguaçu? proporcionada pelo PIBID.
Por quais motivos isso se justifica?”. Nossos A partir da primeira intervenção da coordenado-
apontamentos visavam orientar para leituras ra, os professores em formação inicial apresen-
que considerassem as relações entre os textos, taram a seguinte pergunta, revisada e reescrita:
considerando o gênero em estudo e aquele a ser
produzido, Entrevista e Comentário, e elemen- D. “PINTEI DESSA COR”, DIZ ALUNO NEGRO
tos linguísticos conforme o contexto das aulas, QUE CANSOU DE NUNCA SE VER EM PERSO-
tanto para a leitura quanto para a escrita. NAGENS BRANCOS.
Diante dos materiais, observamos que havia re-
lação entre o planejado e o que seria realizado EXPLICA RECLAMA AFIRMA CRITICA
em sala de aula. Diferente do planejamento, que
focava mais no estudo do gênero Entrevista, as Substitua o verbo sublinhado no título do texto
atividades levavam a um trabalho de leitura, que II pelos verbos apresentados nas caixas e EX-
possibilitava reflexões sobre o tema em discus- PLIQUE as alterações de sentidos que você pode
são. Destacamos, ainda, o fato de considerar compreender em cada uso, de acordo com os
alguns elementos da língua e suas funções, os seguintes critérios:
sentidos que produziam. Abaixo, a primeira ver- • Há diferenças na produção de senti-
são de uma atividade relacionada a esse conte- dos ao mudar o verbo?
údo e o respectivo apontamento da professora,
transcrito na sequência: • Quais as possíveis diferenças que você
pode perceber com o uso de cada ver-
bo?
• Os diferentes verbos interferem ou in-
fluenciam na compreensão do texto?”.

Com a questão reescrita, a coordenadora fez,


ainda, uma complementação no último ques-
Figura 1: recorte do arquivo digital da primeira versão das atividades.
tionamento: “Como direcionam as possíveis in-
“Vocês não tratam de diferentes contex- terpretações dos leitores?”. Diante da atividade,
tos de uso. Vocês tratam de diferentes nessa terceira versão, observamos a compreen-
usos, no mesmo contexto. Penso que são da revisão feita pela coordenadora, ao aten-
seja preciso discutir isso, entrando, por derem aos apontamentos e questionamentos e
exemplo, na questão da sinonímia ver- apresentar esta pergunta reescrita.
dadeira (que, na verdade, não há). É pre- Em relação à constituição das práticas de lin-
ciso especificar melhor: há diferenças guagem de escrita desses professores em for-
de sentidos ao mudar o verbo? Por quê? mação inicial, desde a primeira versão das ati-
Quais diferenças? Como esses diferen- vidades, embora não constasse especificamente
tes verbos interferem nos sentidos e na no planejamento, com objetivos delimitados, a
compreensão do texto? Repensem...”. prática de produção textual seguia as orienta-
ções da escrita como trabalho, marcando, no
Enfatizamos, dessa atividade, o trabalho com comando de produção, os elementos que dão
a linguagem conforme as diferentes enuncia- condições para a escrita do aluno:
ções e, por conseguinte, os diversos sentidos.
Pelos estudos realizados nos encontros do PI- “O tema cotas raciais é amplamen-
BID, relacionamos essa finalidade às discus- te discutido pela sociedade brasilei-
sões teórico-metodológicas sobre concepções ra, desde a sua implantação no ano de
de linguagem, em que marcamos a concepção 2000. O texto II, que lemos nesta aula,
de linguagem como processo de interação e a foi amplamente divulgado na internet,
necessidade de estudo da língua de maneira sendo que no Facebook já ultrapassou 3
contextualizada, trabalhando com a linguagem. mil compartilhamentos.

22
Você provavelmente já ouviu falar so- tanto no planejamento quanto nas atividades.
bre esse assunto em outros momentos Assim, as práticas de revisão e de reescrita são
e nessa aula você teve contato com a consideradas, como processuais e recursivas,
opinião de diversas pessoas, por meio e os objetivos do planejamento efetivam-se nas
do gênero entrevista. Assim sendo, en- atividades, que buscam encaminhar as condi-
quanto estudante que está prestes a in- ções para a produção escrita.
gressar em um curso superior, escreva Entendemos que os participantes do PIBID po-
um comentário, de no mínimo 10 e no sicionam-se como professores, pois preparam
máximo 15 linhas, que poderá ser publi- atividades com objetivos estabelecidos e apre-
cado em uma rede social, respondendo sentam uma proposta que vai ao encontro das
à seguinte questão: As cotas raciais são concepções estudadas. Destacamos, ainda, a
importantes para a inclusão da popula- importância das intervenções da coordenadora e
ção negra no ensino superior?” (desta- dos encontros de formação do projeto, pois pro-
ques no original). porcionam o desenvolvimento e a constituição
desses professores, especificamente, em rela-
A coordenadora fez duas correções resolutivas, ção à prática discursiva de escrita. Ao tomarem
quanto a concordância e pontuação. No enca- seus materiais com apontamentos de revisão
minhamento para a escrita, podemos observar pela coordenadora, não só revisam e reescre-
como os estudos realizados nos encontros de vem a proposta, como também têm condições
formação do PIBID proporcionaram a esses pro- de desenvolverem a própria prática de revisão
fessores em formação inicial compreenderem e reescrita, o que, consequentemente, interfere
as concepções que podem orientar o trabalho na maneira como trabalharão com esse proces-
com a escrita e, assim, encaminharem a ativida- so durante as aulas.
de de forma a contribuir com o desenvolvimen- Dessa forma, compreendemos o PIBID como
to dos alunos, que produzem textos, na escola, um espaço de formação teórica, metodológi-
com funções, e não simplesmente como mais ca e prática, que possibilita a práxis e, assim,
uma atividade a ser cumprida. constitui nos professores em formação inicial
as práticas de linguagem de revisão e reescri-
6. Conclusão ta, como etapas necessárias para o processo de
produção textual escrita, que vise trabalhar com
No processo de desenvolvimento do planeja- funções sociais e comunicativas dos textos pro-
mento e das atividades para serem realizadas na duzidos na escola.
escola participante do PIBID, podemos perceber
que os professores em formação inicial apre-
sentam constituições do Curso de Letras, de
outras etapas de sua formação, quando focam,
em um primeiro momento do planejamento, no
trabalho de leitura, e também do que foi propor-
cionado pelo PIBID, ao conseguirem atender aos
apontamentos de revisão da professora coorde-
nadora, além de outras atividades que revelam a
relação entre os estudos teórico-metodológicos
e as práticas propostas.
Há, tanto no planejamento quanto nas ativida-
des, uma preocupação em estabelecer a relação
entre teoria e prática, pensando no processo de
ensino e aprendizagem. Desde a primeira versão
do planejamento, a atividade de escrita contem-
plava revisão e reescrita. Com as orientações
no decorrer do processo de produção do ma-
terial, essas práticas de linguagem foram mais
bem especificadas, tanto nos objetivos, quanto
no conteúdo e nas atividades, marcando qual
a finalidade, então, de trabalhar na concepção
de escrita como trabalho, perspectiva retratada

23
7. Referências

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de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza [para fins didáticos]. Versão da língua inglesa de I. R. Titunik a
partir do original russo.

24
#BOMDIA #POSITIVIDADE #ALEGRIA:
MANIFESTAÇÕES DE OTIMISMO NO FACEBOOK
Aline de Caldas Costa dos Santos
Edvania Gomes da Silva

RESUMO O estudo apresentado se debruça sobre nar-


rativas de otimismo compartilhadas por perfis
Este trabalho tem como objetivo analisar narra- impessoais na rede social Facebook, coletadas
tivas de otimismo compartilhadas na rede social ao longo do ano de 2014, as quais são parte do
Facebook. O estudo apresenta resultados par- corpus de estudo da pesquisa de doutorado inti-
ciais da pesquisa de doutorado em andamento, tulada “Memória, otimismo e discurso religioso
a qual relaciona o otimismo a quadros sociais nas redes sociais em tempos de ética pós-mo-
de memória religiosa na internet. artigo, analisa derna”. A referida pesquisa encontra-se em an-
as frases curtas referentes aos cumprimentos damento junto ao Programa de Pós-graduação
diários que, por vezes, se estendem a votos po- em Memória: Linguagem e Sociedade da Uni-
sitivos para o mês vindouro. Essas formulações, versidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
aparentemente estabilizadas no lugar comum Partindo das ponderações teóricas de Pêcheux,
da formalidade cotidiana, permitem, nos ma- a hipótese apresentada neste artigo é de que as
teriais analisados, a observação de discursivos frases curtas utilizadas cotidianamente, princi-
apontando para distintas leituras ou desliza- palmente nas redes sociais da internet, como
mentos de sentido acerca do otimismo elemen- ferramentas de cordialidade, embora apresen-
tos imagens. O estudo se fundamenta nos apor- tem sentidos aparentemente estabilizados e
tes teóricos da Escola Francesa de Análise de sempre iguais, produzem sentidos não-estabili-
Discurso, especialmente nas reflexões apresen- zados, os quais se relacionam com o aconteci-
tadas por Michel Pêcheux acerca do discurso mento e, portanto, com o novo.
como estrutura e acontecimento. Todos os ma-
teriais que compõem o corpus foram coletados As rupturas com o sentido instituído a priori
em perfis impessoais ou comunidades de aces- foram observadas nos materiais do corpus ora
so público na referida rede social. Os resultados como ligadas a uma memória coletiva, que ali-
mostram que há deslizamentos de sentido entre menta e é alimentada por um conjunto de pes-
os textos e as imagens dos materiais do corpus. soas afiliadas a certa visão de mundo, expres-
Tais deslizamentos ora funcionam como discur- sando uma imagem de si, ora compondo um
sos de resistência ao pessimismo; ora como po- conjunto de máximas que refletem caminhos
sicionamentos indiferentes ao pessimismo em para encontrar a felicidade.
favor da praticidade solução de problemas; ora
2. O ciberespaço, o discurso e a memória cole-
como discursos ligados a uma necessidade ou a
tiva
uma obrigação de ser feliz. PALAVRAS-CHAVE:
Otimismo; Interdiscurso; Acontecimento discur-
sivo; Redes sociais. Antes de apresentar o corpus, é importante si-
tuar o contexto em que o fenômeno em estudo
1. Introdução se manifesta. De acordo com Stuart Hall (2002),
um dos traços mais marcantes da modernida-
Acerca dos discursos, há que se ter na lembran- de é a compressão espaço-tempo, impulsiona-
ça a advertência de Michel Pêcheux sobre aquilo da pela expansão dos meios de comunicação e
que costumamos considerar como “óbvio” ou de transporte. De posse de pequenos aparatos
tomar como “certezas” (1997), uma vez, que, tecnológicos, foi possível superar o efeito das
ainda segundo o referido autor, o sentido nun- distâncias entre as pessoas e borrar as frontei-
ca é óbvio, já que surge da relação entre língua ras, que então deixaram de limitar a sociabilida-
e história, e está, portanto, sujeito aos equívo- de e os deslocamentos, inclusive identitários. A
cos, às falhas, ao acontecimento. Ainda nessa intensificação das trocas alterou as formas de
perspectiva, em sua obra “O discurso: estrutura percepção sensíveis, especialmente as que se
ou acontecimento” (2006), Pêcheux apresenta referem à percepção da passagem do tempo, o
ponderações que levam o analista de discurso qual recebeu um efeito de aceleração.
a reconhecer a existência de muitas versões do Um dos locais onde esse efeito pode serbas-
“real” em funcionamento. tante notado é a internet. Um simples aparelho

25
de smartphone atualiza aos indivíduos sobre os partindo de Certeau como referência, esse su-
acontecimentos quase que em tempo real. Não jeito estabelece uma espécie de “tática”, uma
raro, nos portais de informação, ao clicar em forma de driblar as “estratégias” dos poderes
“notícias mais antigas”, o internauta encontra institucionais e, assim, põe em funcionamento
na “linha do tempo” apenas as postagens da se- outros efeitos de sentido sobre certas formu-
mana passada. Fatos ocorridos em um interva- lações discursivas que circulam intensamente
lo maior que dois anos podem não ser mais tão nas redes sociais, ainda que por um intervalo de
facilmente encontrados, pois são considerados tempo relativamente curto.
demasiadamente antigos e acabam caindo em No que diz respeito à relação entre estabilida-
literal esquecimento na rede mundial de com- de e desestruturação, Pêcheux (2006) faz alguns
putadores. apontamentos teóricos, chamando de “estrutu-
Mas é possível encontrar diversas versões para ra” o sentido “logicamente estabilizado”, o qual
os mesmos acontecimentos. Nesse sentido, constitui, por exemplo, a língua como siste-
tanto o smartphone como outros aparelhos per- ma autônomo. Nesse sentido, no caso tanto do
mitem aos usuários compartilharem informa- linguístico quanto do histórico, a estrutura diz
ções e opiniões com milhares de outros sujeitos respeito ao sentido ideologicamente marcado,
conectados a qualquer momento. Seja por meio aquele que comparece na forma do instituído.
de blogs, canais ou páginas em redes sociais, a Em paralelo a esse efeito de estabilidade dos
“cadeira” de emissor se popularizou (LEMOS, sentidos, há que se considerar uma espécie de
2004). zona de desconforto que, inesperada e inevita-
Vale destacar esse traço do que se chama ciber- velmente, pode ocorrer na forma de uma falha
cultura: o rompimento com a ideia de um emis- na elaboração linguística, pela ação, entre ou-
sor-instituição que fala, em um formato padrão, tros fatores, do inconsciente. Os atos falhos, os
para milhares de receptores. A formalização ju- chistes e outras formas de ruptura com o senti-
rídica da fonte não é mais um requisito para pro- do estável da língua são formas de equívoco que
duzir e difundir informações. No espaço virtual, levam a uma quebra da aparente estabilidade
qualquer usuário de redes sociais pode produzir da língua. A essa novidade, Pêcheux chama de
e compartilhar conteúdos. “acontecimento”.
E quanto mais conteúdo se produz, mais se ali- Nesse sentido, para o referido autor, a questão
menta um comportamento “exo-orientado”, problema é a de compreender o funcionamento
uma construção do eu voltada para os outros, dos discursos nessa dupla ação: no cruzamen-
impulsionada na forma de um espetáculo a ser to entre objetos supostamente estáveis, porém,
amplamente “curtido” nessa mídia. Paula Sibí- inevitavelmente sujeitos ao equívoco (PÊCHEUX,
lia, em sua obra intitulada O show do eu (2008), 2006).
apresenta com riqueza de detalhes esse posi- Nesse estudo, analisamos o corpus conside-
cionamento, cujo traço mais evidente é a exposi- rando a relação entre estruturas linguísticas
ção da intimidade como forma de constituir uma (aliadas às imagens), que estão ligadas a uma
personalidade que não é mais “endo-orientada”, memória coletiva; e o meio virtual em que es-
mas forjada para amealhar “seguidores”. sas formulações se inscrevem, o qual funciona
Notícias de interesse coletivo são apresentadas como o novo, a atualidade que se encontra com
em meio a experiências de desconhecidos. Mais a memória para constituir o que Pêcheux (2006)
e mais espaços são criados para divulgar em chama de acontecimento. Tal relação faz emer-
texto, imagem e vídeo as vivências do homem gir nesse corpus um jogo entre cristalização e
comum, narrativas de pessoas “normais” em desestruturação. Nesse sentido, as frases aqui
seu cotidiano, opiniões de não especialistas so- analisadas se aproximam, em alguma medida,
bre os acontecimentos do dia a dia. do que Krieg-Planque (2010) chama de fórmu-
Esse fenômeno de colocar-se em posição de la, pois, para a autora, as fórmulas são “um
enunciador por parte do homem comum instau- conjunto de formulações que, pelo fato de se-
ra um novo espaço de fala. Em meio à tradição rem empregadas em um momento e em espa-
enunciativa que parte do lugar institucional ou, ço público dados, cristalizam questões políticas
ao modo de Michel de Certeau, do lugar “pró- e sociais que essas expressões contribuem, ao
prio” (1998), surge um sujeito que não necessa- mesmo tempo para construir” (2010, p. 9). As
riamente comporta atributos específicos – for- frases do Facebook não são fórmulas, no sen-
mação educacional, cargo profissional, status tido explicado por Krieg-Planque, pois não têm
ou notório saber, por exemplo –, mas que fala todas as propriedades das fórmulas estudadas
e faz representar um grupo que o segue e mul- por ela, como, por exemplo, “Purificação étnica”
tiplica o alcance de seu discurso. Mais uma vez ou “globalização”, mas apresentam um caráter

26
formulaico, pois, como dito anteriormente, ten- ção ao conjunto da sociedade”. O domínio desse
dem a uma cristalização, mesmo que tempo- conjunto de características, procedimentos e
rária, já que o meio em que circulam, é, como práticas comuns permitem ao médico ocupar
dissemos, bastante efêmero, e também porque essa posição de sujeito, subjetivando-se nesse
se apresentam como referentes sociais, por isso lugar institucional e ser assim identificado pelos
são citadas tantas vezes e “curtidas” por tantos demais através de um status específico.
internautas. Contudo, é preciso esclarecer que, Não se trata de enquadrar a totalidade dos usu-
na maioria dos casos que analisamos, a crista- ários das redes sociais na instância do otimista,
lização não é consequência da citação no Fa- do pessimista etc., mas de perceber o funciona-
cebook, ela é sua causa. Ou seja, as frases são mento dos “marcos sociais de memória” apre-
“trazidas” para as redes sociais, porque já são sentados por Maurice Halbwachs. Halbwachs
célebres, porque já circulam em outros campos, foi seguidor de Emile Durkheim, bem como foi
como, por exemplo, o literário, o científico e o aluno de Henri Bergson, embora tenha apresen-
filosófico. tado críticas à teoria deste último em relação à
Esse funcionamento pode ser explicado por uma memória.
citação da Krieg-Planque em relação às fórmu- Em seu livro Os marcos sociais de memória
las. Para a autora, “se a fórmula é originária de (2004a), o autor apresenta uma elaboração te-
uma formação discursiva, deve sair dela. Ela é órica acerca da memória em semelhança ao
posta no cadinho comum do universo discursivo conceito durkheimiano de “fato social”: os mar-
para entrar em conflito com o sentido que ela cos de memória são “exteriores”, ou seja, são
tem alhures ou com outros termos” (KRIEG- criados em algum momento e então passam a
-PLANQUE, 2010, p. 96). O repertório teórico da funcionar de maneira autônoma, de modo que,
AD é muito mais desafiador do que o exposto, ao nascermos, já nos deparamos com eles,
porém, tendo em vista o objetivo do estudo, im- prontos, exercendo sobre os coletivos um tipo
porta destacar apenas mais um conceito, dessa de “coerção” de comportamento ou visão de
vez, oriundo do constructo foucaultiano, a saber, mundo. Eles sempre apresentam uma ação co-
a “posição de sujeito”. letiva, pois afetam a um e a todos em dado grupo
As selfies, as críticas ou defesas públicas e os social.
conteúdos compartilhados a partir de fã-pages
caracterizam modelos de personalidades ou, ao Nossas lembranças permanecem co-
modo de Foucault (2008), “posições de sujeitos”, letivas, e elas nos são lembradas pelos
lugares que podem vir a ser ocupados por dis- outros, mesmo que se trate de aconte-
tintos sujeitos, em distintos lugares e momen- cimentos nos quais só nós estivemos
tos. Não se trata do ego, do indivíduo, mas do envolvidos, e com objetos que só nós vi-
lugar de onde um discurso pode ser dito. mos. É porque, em realidade, nunca es-
Cada posição de sujeito carrega consigo um sta- tamos sós. Não é necessário que outros
tus – no caso do presente estudo, o status de
homens estejam lá, que se distingam
um sujeito conectado, autorizado a expressar-
materialmente de nós: porque temos
-se publicamente, único responsável por suas
sempre conosco e em nós uma quanti-
opiniões. Essas posições implicam também uma
modalidade enunciativa ou um modo de enun- dade de pessoas que não se confundem
ciar que, no caso das redes sociais, pode ser por (2004b, p. 26).
posts ou compartilhamentos de conteúdos de
terceiros. Para ele, sequer nos sonhos a memória pode-
Ainda a respeito do conceito de status, vale visi- ria se manifestar de modo individual, pois até
tar a obra “Arqueologia do saber” (1997, p. 57), nessas manifestações do inconsciente existe o
na qual Foucault expõe uma série de questões a enquadramento da linguagem, ou da língua, que
respeito da formação das modalidades discur- é um fato social, portanto, de natureza e ação
sivas, expondo a ideia de status como uma con- coletiva. Seus estudos se debruçam sobre três
dição que legitima o que pode e deve ser dito. O instâncias sociais para ilustrar sua teoria: a fa-
exemplo escolhido pelo autor é o do médico, que mília, a religião e as classes sociais.
carrega em seu status determinada linguagem, Neste artigo, o conceito de memória coletiva é
forjada por um conjunto de “critérios de com- usado para explicar o funcionamento dos gru-
petência e saber”; assim como um “sistema de pos da internet, os quais alimentam a circulação
diferenciação e de relações” por meio de atribu- de determinadas formulações, subjetivando-se,
tos, hierarquias etc.; e ainda determinadas mar- assim, em dada posição de sujeito. Esses gru-
cas que “definem seu funcionamento em rela- pos apresentam em seus “posts” as condições

27
para a existência das desestabilizações que ca- espécie de legenda de apresentação do post.
racterizam o equívoco e os diferentes efeitos de O primeiro material que integra o corpus foi co-
sentido relacionados ao tema do otimismo. Ve- letado na página Hierophant.
jamos, a seguir, como esses elementos teóricos
podem contribuir para análise do corpus sele-
cionado para este estudo.

3. Do otimismo e suas manifestações no Face-


book

Quando o termo otimismo é aqui abordado,


trata-se do estudo realizado por Artur Schope-
nhauer sobre eudemonologia - o estudo dos va-
lores e das virtudes – resultando em um traba-
lho bastante apartado do restante de sua obra, a
qual tem caráter marcadamente pessimista. Figura 1: o otimismo como simplicidade
No texto Aforismos para a sabedoria de vida
(2006), Schopenhauer faz uma apropriação da Na imagem, um café servido em pote de vidro
divisão tripartite do homem, explicada por Aris- comum, cuja tampa serviu de pires onde repou-
tóteles: o que o homem é, sua personalidade, sa a colher. Um pingo da bebida aparece sobre a
valores etc.; o que ele tem, seu conjunto de bens superfície, desprotegida de toalha ou outro apa-
ou patrimônio; o que ele representa face aos rato equivalente. Todos os elementos da ima-
demais, sua “honra, posição e glória” (SCHO- gem sinalizam, em um primeiro momento, uma
PENHAUER, 2006, p. 5, grifos do autor). Para o despreocupação com as formalidades.
autor, investir apenas sobre o ter e o aparentar Na formulação: “a alegria vibra na frequência
seria uma tentativa de encobrir com a imagem das coisas mais simples”, o otimismo se apre-
de felicidade o que em verdade “emerge da senta através da marcação do foco do enuncia-
pobreza e vacuidade mentais”. Ainda segundo dor sobre um caminho para a felicidade (alegria),
Schopenhauer, priorizar o ser, ou seja, o inte- destacando a categoria do ser, que é preconiza-
lecto, a educação e o modo de se colocar para da em relação ao ter e ao aparentar, ao modo de
o mundo seria o caminho mais apropriado para Schopenhauer.
superar os males que a ênfase sobre as demais O uso da hastag indica a transformação do cum-
instâncias podem causar: “o vazio de suas vidas primento em uma espécie de aforização, pois
interiores, a obtusidade de suas consciências e a mostra que se trata de um tema central. Além
pobreza de suas mentes” (p. 5). Por fim, no texto disso, o enunciado apresenta caráter generali-
de Schopenhauer, há uma referência a Homero, zante, nele não há mudanças de planos enun-
quando sugere deixar o futuro ao “colo dos deu- ciativos, e a enunciação está centrada no Lo-
ses”, ou seja, concentrar-se sobre o momento cutor. Segundo Maingueneau (2010, p. 13-11),
presente e considerar influências divinas sobre todas essas são características da enunciação
os acontecimentos vindouros. aforizante. Outra característica da aforização
Esses três âmbitos da vida, acrescentada da vi- presente no enunciado sob análise é que o lo-
são de mundo que concebe uma influência me- cutor do texto é alguém que “afirma valores e
tafísica sobre o desenrolar dos acontecimen- princípios perante o mundo” e “dirige-se a uma
tos, assim como os pontos de consonância com comunidade que está além dos alocutários em-
a memória coletiva são mostrados nos dados píricos que são seus destinatários” (MAINGUE-
deste artigo, com o auxílio do aparato teórico- NEAU, 2010, p. 15). Embora esse estudo não se
-metodológico da Análise de Discurso de linha enverede pelos caminhos quantitativos, há que
francesa. se chamar atenção para o grupo que mantém
O corpus foi coletado em perfis impessoais do esse material em circulação: na data da cole-
Facebook durante o ano de 2014. Com o uso do ta, esse post contava com 643 “curtidas” e 755
mecanismo de pesquisa da rede social, foram compartilhamentos. São números relativamen-
selecionadas três páginas, a saber: Hierophant, te pouco expressivos quando se toma uma rede
Caminho de otimismo e Quer café?. social em evidência mundial, mas esse dado
Os materiais aqui tratados como narrativas são assegura uma filiação grupal por afinidade com
um conjunto formado por texto e imagem. A ima- esse enunciado, portanto, revela uma memória
gem aparece compondo um plano de fundo para coletiva em atuação.
uma pequena frase ou hastag; às vezes, há uma Texto e imagem cooperam para uma leitura de

28
que o “simples” corresponde a um modo de vida boas escolhas e atentar para a “duração” desse
cujas escolhas seriam mais seguras para en- estado, não só no pontual “bom dia”, mas tam-
contrar a felicidade. Nesse elemento do corpus, bém na continuidade, marcada pela expressão
escolher o mais simples é um ato de desconfian- “ótima semana”.
ça sobre a aparência e de garantia de alegria. A formulação marca um discurso segundo o
É oportuno reportar aos apontamentos de Mi- qual o importante é priorizar apenas o neces-
chel Foucault, em especial os colocados na obra sário no campo do patrimônio, apenas o essen-
A ordem do discurso (2006) acerca da rarefação cial. A imagem associada reforça que no campo
dos discursos. O autor explica que a circulação do essencial não estão bens materiais, mas os
dos discursos é limitada, ora por mecanismos bens da natureza, os mais simples e sem cus-
externos que limitam a fala, ora por mecanis- tos: o pôr do sol e uma flor do campo. Tal discur-
mos internos que limitam a circulação. Dentre so é atravessado por uma posição de sujeito de
os últimos, o “princípio do comentário” envolve alguém que sabe fazer escolhas seguras, felizes
o enunciado em ares de novidade, embora se e duráveis.
trate de fato de algo já dito. No caso do material O terceiro material que integra o corpus foi co-
em estudo, a advertência pela escolha do mais letado na página Quer café?
simples remonta, em sua dispersão discursiva,
à Antiguidade Grega, quando Hesíodo (1995) e
Ésquilo (2005) narram a trajetória de Prometeu
para enganar Zeus: Prometeu coloca à escolha
de Zeus, de um lado, um asqueroso estômago
de boi recheado com as mais apreciadas partes
da sua carne e, de outro lado, os inúteis ossos
escondidos sob a brilhante e atraente gordura
do animal; Zeus, julgando-se o mais inteligente
entre os seres, escolhe a segunda opção e cai na
armadilha da ilusão.
Guiar-se pela aparência, tanto no post quan-
to na história de Prometeu e Zeus, é optar por Figura 03: o otimismo como praticidade
caminho perigoso. Todavia, escolher a maneira
mais simples de viver - no caso do post sob aná- Na imagem, vê-se uma personagem de tirinhas
lise, desde a primeira atividade do dia – é saber dos anos 50, criada por Charles Schulz, que fi-
ser feliz, aproveitando o essencial, em qualquer cou bastante popular com a adaptação para
condição material. desenho animado durante a década de 80. Sno-
O segundo material foi coletado na página Cami- opy é um cão de imaginação aguçada que vive
nho de otimismo. em um universo de fantasias extraordinárias, a
despeito do pessimismo e da baixa estima que
marcam seu dono, Charlie Brown. Inteligente,
conhecedor dos pensamentos e reações das
personagens com quem interage, Snoopy sem-
pre sai das situações tensas do cotidiano com
uma opção inusitada, prática e divertida para os
problemas enfrentados.
tEssa característica é reforçada pelo texto “Não
faça drama. Faça café”, que compõe a narrativa,
acompanhada da fórmula “BOM DIA! Sem dra-
mas... vamos começar esta segunda-feira”, pre-
sente na legenda.
Com expressão de serenidade e vestido com
Figura 02: o otimismo como a escolha pelo essencial elegância, Snoopy carrega consigo uma xícara
de café quente, demonstrando seguir para a es-
Observa-se aqui uma formulação semelhante querda, ou seja, no sentido de quem sai de cena
ao post anterior, caracterizando o otimismo sob ou a encerra. A narrativa, apresentada de forma
a perspectiva da resistência ao excesso e à apa- assertiva, de fato materializa efeitos de sen-
rência, sobretudo, secundarizando os âmbitos tido reconstroem uma memória coletiva acerca
do ter e do aparentar. O que é colocado em evi- do otimismo, , mas também é possível verificar
dência é o discernimento, a capacidade de fazer um ponto de deriva que permite que o texto seja

29
interpretado com base nos ideais do sujeito ilu- mas compele o leitor a transitar para a instância
minista: a racionalidade e o humanismo (HALL, oposta. Vemos também a presença de um cum-
2002). Aqui, o otimista é aquele que ocupa a po- primento rotineiro, Boa noite! Trata-se de uma
sição de sujeito de quem domina suas emoções fórmula que marca uma forma de cumprimento
e age racionalmente, com praticidade, sem re- e que materializa uma memória da noite como
correr a forças metafísicas, sorte ou coisa do momento de recomposição das energias pelo
gênero, pois confia e faz pleno uso de suas ca- descanso e pela desconexão com as dificulda-
pacidades intelectuais e criativas. des vividas durante o dia.
O mesmo se verifica no material a seguir, cole- A imagem da noite com estrelas funciona en-
tado na página Caminho de otimismo. quanto metáfora de reflexão e renovação da
crença em tempos melhores. Contudo, é inte-
ressante atentarmos para o deslizamento de
sentido que se dá entre esse conjunto (texto,
fórmula e imagem) e a narrativa de Hesíodo so-
bre Pandora. Em Os trabalhos e os dias, Hesí-
odo apresenta o instante em que Pandora abre
o jarro e espalha pelo mundo todos os males.
Todavia, ela o tampou antes que a Antecipação
também escapasse de seu interior. A passa-
gem do texto épico é significativa, pois, mesmo
convivendo com toda sorte de mazelas, aos ho-
Figura 04: O otimismo como uma escolha racional mens não foi dada a capacidade de conhecer o
porvir, de saber como se dará o futuro, que fica
O sujeito racional conhece as adversidades da então resguardado na escuridão do vaso. Em
rotina e do caminho, mas age a partir de sua li- uma leitura vulgar, a prisão da Antecipação foi
berdade e acredita em sua capacidade de tomar interpretada como a razão para o surgimento da
decisões acertadas, preferencialmente, aquelas “esperança”, pois, contrariando a existência dos
que suscitem uma imagem de si voltada para o males, permaneceu entre os mortais a capaci-
intelectual, como sugere a autoria da frase des- dade de acreditar que o futuro seria melhor do
tacada. que o presente.
Já o último material selecionado rompe com as Nesse sentido, o otimista por obrigação é uma
perspectivas anteriores. posição de sujeito que, diante de incontáveis ad-
versidades cotidianas, tem como principal es-
tratégia de sobrevivência a fé (e a necessidade
dela) enquanto recurso mobilizador de forças
para prosseguir vivo e alcançar a felicidade.

4. Considerações finais

As narrativas analisadas apontam para diferen-


tes leituras possíveis desses materiais, obser-
vando a existência de sentidos múltiplos funcio-
nando em relação. Por vezes, o sentido imediato,
Figura 05: o otimismo como obrigação aquele da “estrutura”, vincula-se, tacitamente,
a sentidos que funcionaram em distintas episte-
Se os primeiros materiais apontam para uma mes, permitindo perceber o “acontecimento” de
posição de sujeito otimista na forma de uma op- seu retorno atualizado.
ção pela simplicidade e os materiais seguintes Ao mesmo tempo, na medida em que circulam,
caracterizam um otimista indiferente aos pro- tais narrativas ganham respaldo de olhares co-
blemas cotidianos, a última narrativa apresenta letivos, intensificando a circulação dessas afori-
um otimista por obrigação. O enunciado “Nos zações, o que alimenta memórias coletivas, as
piores momentos lembre-se: quem é capaz de quais congregam mais e mais pessoas ao grupo.
sofrer intensamente, também é capaz de ser fe- Ao observar memórias coletivas em funciona-
liz intensamente” marca um locutor (e não um mento, é possível verificar a imagem de si que
enunciador, já que se trata de uma espécie de se cristaliza junto à posição de sujeito do otimis-
aforização) que reconhece a realidade contem- ta. Esse ora apresenta o status de um resisten-
porânea como sendo repleta de dores e males, te, ora de um intelectual pragmático, ora ainda o

30
de um coagido, alguém que age compelido pela pida leitura apresentada serviu de subsídio para
obrigação de ser otimista. pensar a circulação de certos enunciados em
As relações entre memória e discurso não se meio virtual.
esgotam tão rapidamente, mas, por hora, a rá-

5. REFERÊNCIAS

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Curitiba, PR: Segesta, 2012.

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gico. Trad. Luciana Salazar Salgado e Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

LEMOS, A. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina,
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MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza e Silva, Décio Rocha.
3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2004.

MAINGUENEAU, D. Aforização: enunciados sem texto? Tradução: Ana Raquel Motta. In: SOUZA-
-E-SILVA, M. C. P. de.; POSSENTI, S. (Orgs.). Doze conceitos em Análise do Discurso. São Paulo:
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PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad.: EniPulcinelliOrlandi. 3ª


Ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997
_____. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. 4ª Ed. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2006

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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tólica / Edvania Gomes da Silva. Campinas, SP: [s.n.], 2006. Disponível em http://www.bibliotecadi-
gital.unicamp.br/document/?code=vtls000408569. Acesso Jan 2014

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.

RESUMO

31
COMPREENSÃO DE TEXTOS ARGUMENTATIVOS:
REESCRITURA NO ENSINO FUNDAMENTAL

Antonia Valdelice de Sousa


Universidade Federal do Ceará (UFC)1
licesousa@terra.com.br

O presente trabalho, intitulado Compreensão gias mais sofisticadas (produção de inferências,


de Textos Argumentativos: Reescritura no En- integração de informações) para o narrativo em
sino Fundamental, examina a compreensão de relação ao argumentativo dialógico. A análise
textos a partir da análise de material produzido de (re) construção macroestrutural demons-
por vinte sujeitos que participaram como volun- trou que os leitores das reescrituras narrativas
tários na pesquisa. São objetivos específicos: revelaram menos problemas de continuidade
a) verificar a compreensão leitora dos sujeitos sequencial e progressão semântica com rela-
avaliada com base na reconstrução da macro- ção às argumentativas.
estrutura de textos narrativos e argumentativos PALAVRAS-CHAVE: Compreensão textual;
dialógicos; b) observar as estratégias utilizadas Aprendizagem; Reescrita
pelos sujeitos, a partir da reescrita da macro e
superestrutura dos textos; c) identificar as es- 1. Introdução
tratégias relacionadas aos esquemas de reco-
nhecimento da macroestrutura e da organiza- As análises que propomos neste trabalho situ-
ção global de textos narrativos e argumentativos am-se no quadro teórico que trata de esclarecer
dialógicos. Estudantes de ensino fundamental, sobre a compreensão de textos argumentativos:
na faixa etária de 13 a 15 anos, leram dois tipos reescritura no ensino fundamental a partir da
de textos argumentativos (narrativo e argumen- análise de material produzido por vinte sujeitos
tativo dialógico) e foram solicitados a produzir que participaram como voluntários na pesquisa.
reescrituras de cada um desses textos. As re- Nesta perspectiva, a discussão, tal como a con-
escrituras obtidas foram analisadas de acordo cebemos, é, na realidade, o resultado de uma
com vários aspectos (explicitude das macror- pesquisa experimental fundamentada em mo-
regras de sumarização, qualidade das estra- delos que tratam de esclarecer o aprendizado
tégias, coerência macro e superestrutural) de da escrita de textos argumentativos e analisar
modo a verificar diferenças de compreensão re- como funcionam os textos narrativos, o processo
lacionadas à recuperação da macro e superes- de negociação, as marcas de argumentação, os
trutura textual e à organização global de cada graus de argumentatividade, as macrorregras
texto reescrito. Trabalhamos com a hipótese de sumarização, as metarregras de coerência,
básica, de que leitores proficientes, ao realiza- as estratégias cognitivas, a metacognição, a re-
rem uma tarefa de reescritura, apresentariam tórica e uma visão geral da pesquisa acerca de
melhor desempenho quanto à recuperação da leitura e escrita. Assim sendo, os estudos nesta
macroestrutura textual e quanto ao reconheci- área são difundidos por Alliende (1990), Barthes
mento da organização global do texto narrativo (1970), Boissinot (1992), Cunningham (1990),
do que do argumentativo dialógico, tendo em Chambliss (1995), Charolles (1997), Dolz (1992),
vista a maior explicitude da organização interna Golder e Coirier (1994), Kintsch e van Dijk (1983,
deste primeiro tipo de texto. Nas várias análi- 1985), Labov e Waletsky (1967), Nelson e Narens
ses procedidas, foram encontradas evidências (1994), Perelman (1977), Schneuwly (1988). Por
quanto ao melhor desempenho para o narrativo fim, não nos parece, contudo, insensato esperar
em relação ao texto argumentativo dialógico. que esta análise, por modesta que seja, sirva
Quanto ao conhecimento do esquema canônico, para ampliar a aplicação prática de tais tarefas
os leitores recuperaram, respectivamente, 40% em sala de aula e, ademais, no tocante às pes-
total, 20% parcial e 40% (ausência) para o texto quisas posteriores nesta linha de trabalho, fica
narrativo a 30%, 10% e 60% para o argumen- aberta uma pesquisa que estude como essa ta-
tativo. A análise das estratégias de reescritura refa pode ser reconfigurada em outras turmas
evidenciou que os leitores utilizaram estraté- e por que não reaplicá-la em escolas públicas,

1
Doutora e Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Es-
tadual do Ceará – UECE. Graduada em Letras e História. Tem experiência em Linguística e Psicolinguística, com ênfase em Linguística
Cognitiva e Linguística Aplicada. Pesquisa os seguintes temas: capacidade argumentativa, compreensão textual, tipos de texto, marcas
de argumentação. Membro do grupo de pesquisa GELP-COLIN da UFC.

32
para comparar os dados e saber se os sujeitos de definir os conteúdos, a superestrutura e as
leitores (alunos) apresentariam ou não o mesmo configurações específicas, próprias do funcio-
desempenho. namento desses tipos. Por isso, a denominação
Em vista do acima exposto, podemos ratificar a esses gêneros também se dá como “classes
que a escolha pelo texto argumentativo dialógi- de textos”, conforme correspondem à multipli-
co, para reconstruir a macro e a superestrutu- cidade dos objetivos sociais de interação.
ra, ocorre pelo fato de apresentar várias formas Do mesmo modo, apresentamos o conjunto des-
de realização textual que não são somente uma sas classes de textos através do quadro adapta-
questão de preferência individual, mas estão do de Dolz e Schneuwly (1996), a seguir.
ligadas, também, à atualização de algumas vir-
tualidades do texto argumentativo, como, por Hipótese de classificação da diversidade dos
exemplo, colocar a ênfase no pólo pseudológico textos escritos
e demonstrativo ou no pólo dialógico e apresen- 1.Quanto ao tipo: 2. Quanto às funções: 3.Quanto ao
tar, como característica, a passagem de um es- registro:
tado inicial para um estado final de pensamento 1.1. O narrativo 2.1. O apelativo 3.1. O informal
(tese refutada e tese proposta). 1.2. O descritivo 2.2. O informativo 3.2. O formal
Cumpre observar, ainda, que selecionamos a 1.3. O expositivo 2.3. O expressivo
narração e a argumentação pelo fato de acre-
1.4. O argumentativo 2.4. O poético
ditarmos, como temos insistido (SOUSA, 2003),
1.5. O instrutivo 2.5.O metalingüístico
que o ensino de tipos e gêneros textuais deve
ser feito logo no limiar da escolarização, isto 2.6. O fático
é, a partir do primeiro ano. De fato, a sua im-
portância deriva da comprovação de que o que 4.Quanto à diversidade de gênero ou “classes de textos”:
acontece no desenvolvimento inicial é, em mui- Bula, diário, editorial, declaração, atestado, parecer, entrevista,
tas ocasiões, a base do que ocorrerá mais tarde, ofício, portaria, circular, oração, prece, prognóstico de tempo,
ou seja, adquirem a capacidade de perceber e anúncio, sermão, homilia,anedota, adivinhação, notícia, repor-
tagem, nota de falecimento etc.
lidar com a argumentação oral e escrita.
Nesse mesmo sentido, escolhemos o texto narra-
tivo, pelo fato de a narrativa apresentar uma dupla Por sua vez, notificamos que a classificação teóri-
relevância e uma dupla base, a saber: 1) trata-se ca exposta permite estabelecer um marco dentro
de uma forma discursiva que é aprendida em in- do qual os textos se definem e se delimitam fren-
teração social com outros falantes produtores de te a outros, individualizando-se como representa-
textos (orais e escritos); e 2) trata-se ainda de um tivos de uma classe particular.
modo de conhecimento de mundo. Por um lado,
como forma discursiva, os leitores aprendem as 3. Argumentatividade: representação proto-
características do gênero narrativo expressas nos típica do texto argumentativo
textos, suas formas retóricas, a estrutura de seus __Segundo Golder e Coirier (1994), podemos
enunciados e unidades. Por outro, como conhe- identificar os seguintes tipos de textos argumen-
cimento, o modo narrativo é uma forma de com- tativos, segundo o grau de argumentatividade, a
preender sua relação com as ações e intenções seguir: 1) texto pré-argumentativo com grau 0:
humanas, com as vicissitudes e consequências do nenhuma afirmativa é feita. (O muro de Berlim
transcurso da vida ao longo do tempo. foi derrubado. O evento foi televisionado. O mun-
2. Tipos e gêneros textuais do todo foi informado) e grau 1: uma afirmativa
é feita. (Esportes coletivos são mais enriquece-
Com base na variação dos textos em função dores que esportes individuais. Existe uma larga
dos contextos em que circulam, a Linguística variedade de esportes. Alguns são específicos
de orientação pragmática tem proposto e de- de certos países); 2) texto minimamente argu-
senvolvido a categoria de “gêneros textuais”, na mentativo com grau 2 (grau 1 + apoio autocen-
pretensão de caracterizar as especificidades das tralizado): uma afirmação é feita e apoiada com
manifestações culturais concernentes ao uso da um argumento autocentralizado. (Deveriam
língua e de facilitar o tratamento cognitivo desse ensinar uma língua estrangeira nas escolas de
uso, seja oral, seja escrito. primeiro grau. Isso fortaleceria os laços entre
Em vista disto, tais gêneros têm sido definidos os países. Isso me permitiria encontrar pesso-
por Dolz e Schneuwly (1996), como constituintes as de um país estrangeiro e falar com elas) e
da situação. Dessa forma, essa categoria soma- grau 3: uma afirmação é feita apoiada por um
-se a outra dos “tipos de textos”, porém amplia- argumento não centralizado. (É uma boa ideia
-a, no sentido de que é parte da situação, além oferecer aulas de direção aos dezesseis anos de

33
idade. Isso permitiria que os jovens motoristas de é válida. Enfim, os fatos indicam os argumen-
tivessem acesso a apólices de seguro mais ba- tos em favor da conclusão.
ratas: eles também teriam menos acidentes); Boissinot (1992: 38) assevera que o texto ar-
3) texto argumentativo elaborado: grau 4: uma gumentativo caracteriza-se pela passagem de
afirmativa é feita e apoiada com um argumen- um estado inicial de pensamento (tese refuta-
to geral mais uma ou duas marcas de restrição. da) para um estado final de pensamento (tese
(Muitos pais sentem que a televisão é má para proposta) mediante um processo de argumen-
os filhos. Ela informa sem exigir que eles pen- tação através do qual se apresentam evidências
sem. Isso nem sempre é verdadeiro. Algumas (argumentos) que são suficientes para o con-
vezes há documentários históricos ou científicos vencimento do leitor. Diante disto, o autor deixa
eminentemente instrutivos na TV) e grau 5: uma patente o caráter dinâmico e polêmico do tex-
afirmativa é feita e apoiada por um argumento to argumentativo, isto é, o texto argumentativo
geral mais uma marca de endosso de seu autor. ocupa o lugar do discurso contraditório sobre
(Eu acho, eu sinto etc), (Os donos de loja acham aquilo que é real, onde dois pontos de vista se
que a propaganda é inútil. Acredito que ela é cruzam exprimindo-se de modo mais ou menos
altamente útil para o consultor. Muitas pesso- claro, surgindo de um lado o argumentador e
as evitam fazer más compras através da prévia de outro, os detentores da tese que ele trata de
comparação de produtos, seus preços e carac- refutar. Assim, o traço definidor do texto argu-
terísticas). mentativo passa a ser o seu caráter polêmico.
Importa destacar, para melhor esclarecimen- Deste modo, esse traço é justamente o que faz a
to, que as marcas de argumentação nas produ- distinção entre o texto argumentativo e o expo-
ções escritas, conforme definidas por Golder e sitivo. Enfim, este último é caracterizado por ter
Coirier (1994), são: 1) contra-argumentos: um seu ponto de vista unificado e por apresentar o
argumento a favor de uma dada conclusão é desenvolvimento constante de um tema.
apresentado como sendo mais forte que uma O texto argumentativo apresenta um modo
inicialmente apresentada a favor de uma con- de realização podendo variar de acordo com a
clusão oposta (conectivos concessivos e apo- estratégia argumentativa utilizada, produzindo,
sitivos tais como mesmo se, contudo etc., são assim, vários tipos argumentativos, como por
indicadores linguísticos de contra-argumenta- exemplo, o argumentativo de tendência dialó-
ção); 2) formas prescritivas: que definem uma gica, expositiva e demonstrativa. O primeiro co-
obrigação moral ou constitucional (não se deve, loca como plano essencial o aspecto polêmico
deve-se...) e formas axiológicas que expressem da argumentação, manifestado através do con-
uma avaliação subjetiva de fatos ou um julga- traste de diferentes “vozes” ou pontos de vista
mento de valores (é bom, é estúpido); 3) expres- acerca de um tópico. O segundo, ainda que pro-
sões de graus de certeza: aquele que fala indica pondo uma tese, tem sua estruturação baseada
o alcance de seu julgamento (talvez, certamen- numa progressão da informação. E, finalmente,
te); 4) endosso do locutor e expressão: o sujeito o terceiro organiza-se segundo procedimento
indica a fonte enunciativa de uma declaração e de raciocínio clássico, como a indução, a dedu-
mantém alguma distância do próprio discurso ção e as analogias, de modo a se chegar à tese
ou está disposto a ser tido como responsável por proposta.
ele (creio que, em minha opinião).
5. O processo argumentativo escrito
4. O texto argumentativo e sua estrutura
O discurso argumentativo elaborado só é domi-
De acordo com Van Dijk (1978), a superestrutura nado relativamente tarde. Assim, existem diver-
do texto argumentativo pode ser descrita com sas razões para as quais as crianças podem ter
base em um esquema hierárquico (argumen- dificuldades em argumentar por escrito. Deste
tação, justificativa, conclusão, marco, circuns- modo, escrever requer não somente a mudança
tância, pontos de partida, fatos, legitimidade e de uma situação de diálogo para uma de mo-
reforço), que relaciona uma justificativa e uma nólogo (é sempre mais fácil considerar a outra
conclusão. De fato, a categoria justificativa é pessoa quando ele ou ela está presente), isso
subdividida em várias outras de diferentes ní- também requer a mudança de um texto não
veis. Por esta forma, há, ainda, a legitimidade muito elaborado para um ‘’texto estendido’’. A
que consiste numa regra geral que autoriza a produção de tais textos envolve o uso de opera-
conclusão que se afirma, podendo vir acompa- ções hierárquicas tais como o planejamento de
nhada de uma elucidação minuciosa dessa re- ideias sem um modelo externo organizado (“or-
gra de legitimidade. Ademais, o marco indica a ganização autosustentada”, McCutchen, 1987).
situação ou contexto em que a regra legitimida- Por conseguinte, Voss, Green, Post e Penner

34
(1983) apontaram problemas adicionais, criados apoia e negocia suas declarações). Por fim, as
pela indefinição dos domínios argumentativos, representações de textos argumentativos pelas
tornando-os de difícil organização conceitual. crianças deveriam refletir seu desenvolvimento.
Outra dificuldade importante é a necessidade de
conduzir simultaneamente diversas operações 6. O texto argumentativo
(Bereiter, 1989; Hayes e Flower, 1980). Dessa
forma, o simples pensar nos argumentos que o Lembra Boissinot (1992), que a noção de gênero
ouvinte pode vir a ter não é suficiente, pois eles se inscreve na tradição dos estudos literários, a
devem ser incorporados no texto por meio de do tipo de texto se prende à linguística e às am-
formas concessivas, e assim por diante. Neste bições classificatórias do estruturalismo. Sob o
caso, restrições de planejamento e transcrição modelo da dicotomia saussureana língua/fala,
interagem. trata-se de pesquisas considerando o conjunto
Do mesmo modo, percebemos que o resultado de produções textuais – e até discursos – dos
acima exposto, levou os autores a formular as arquétipos que podem surgir de uma descrição
seguintes hipóteses gerais: os obstáculos que sistemática.
as crianças encontram ao escrever textos argu- Ao definir o texto argumentativo, Boissinot
mentativos elaborados não existem num nível (1992), salienta que ainda que se disponha de
argumentativo básico (apoio, considerando o ou- vários modelos que formalizam o funcionamen-
vinte numa situação de diálogo), porque os míni- to dos textos narrativos ou descritivos, contenta-
mos processos argumentativos são dominados -se, muito frequentemente, tratando-se do texto
em idade muito tenra. As dificuldades que sur- argumentativo, de caracterizá-lo por sua fina-
gem estão de fato relacionadas especificamente lidade, ou seja, em referência ao esquema de
aos processos negociadores da argumentação. Jackobson, por sua função impressiva: o texto
Enfim, é feita a hipótese de que o desenvolvi- argumentativo seria o que serve para convencer
mento deste processo com a idade é ligado às o receptor. De fato, essa abordagem é contestá-
habilidades do escritor nos três domínios: a) ha- vel: um texto narrativo também pode servir para
bilidades de composição de texto, que incluem convencer. Assim, ela não deveria dispensar a
todas as operações tais como planejamento, tentativa de identificar os traços de organização
criação de tópicos, e coesão, são necessárias dos textos argumentativos. Ademais, tentare-
para a composição de textos grandes e coeren- mos fazê-lo, utilizando, na medida do possível,
tes. Estas operações não são específicas para a critérios coerentes de acordo com os que são
escrita de textos argumentativos, mas devido à empregados para concretizar os textos narrati-
sua complexidade conceitual, coerência e coe- vos e descritivos.
são são realmente fatores muito cruciais, como Boissinot (1992) salienta que outro traço apro-
mostram os resultados de McCutchen (1987); b) xima o texto argumentativo do descritivo. Assim
domínio de escritos específicos para situações sendo, este, que é o inventário dos elementos de
de argumentação. Por analogia com as máximas um objeto no espaço (e não no tempo, como o
conversacionais de Grice (1979), podemos pro- texto narrativo), pode, na verdade, desenvolver-
por (Charolles, 1980) um número de regras que -se por uma enumeração não limitada de ele-
são específicas para o discurso argumentativo mentos a partir de um tema inicial. Enfim, esse
e que refletem as inferências pragmáticas que desenvolvimento, quando vem interromper o
podem ser feitas em situações onde a discus- desenrolar de uma narrativa, constitui uma es-
são é apropriada. Assim, estas regras incluem a pécie de parada.
adesão daquele que conduz o discurso à opinião Da mesma forma, o texto argumentativo se de-
que está sendo defendida, a suposição deste de senvolve, propondo um número, a priori, não de-
que o ouvinte é capaz de mudar de opinião, e as- finido de argumentos: sabe-se que a escolha do
sim por diante; c) a representação prototípica número de argumentos utilizados se determina
do texto argumentativo. Da mesma forma, vê-se de modo empírico, em função das circunstân-
como os estágios propostos por Botvin e Sutton- cias, e oscila entre muito pouco (que se arrisca
-Smith (1977) para descrever o desenvolvimento não ser suficiente para convencer) e demais (o
nas crianças da estrutura narrativa usada para que arriscaria deixar ou suscitar dúvidas sobre o
a produção de estórias, postulam a existência de valor de cada argumento tomado isoladamente).
“estágios argumentativos”, começando por um O texto argumentativo aparece como a combi-
estágio de não argumentação (o interlocutor não nação de um desenrolar dinâmico (permitindo
fornece argumentos de apoio, e pode até não fa- passar de uma tese à outra) e de um desenvolvi-
zer qualquer afirmação) e terminando em um mento que organiza em uma espécie de circuito
estágio argumentativo elaborado (o interlocutor argumentativo certo número de argumentos.
Segundo Boissinot (1992), a observação e in-

35
terpretação dos índices permitem confirmar as e complexas). A essa representação semânti-
hipóteses sobre a significação global do texto. ca Kintsch e van Dijk (1983; 1985) denominam
Neste caso, uma análise mais refinada permite texto-base, ou seja, o conjunto das proposições
identificar os argumentos. ou sequências de proposições que encerram o
Cabe assinalar, entretanto, que na perspectiva significado do texto, pois uma proposição é o
que adotamos neste trabalho, consideramos correspondente semântico de uma sentença
como argumento todo elemento do texto que se simples (período simples) ou complexa (período
deixa vincular diretamente a uma ou outra tese composto).
em questão.Note-se que, sob esse ponto de vis- O processo de construção do texto-base ocorre
ta, a distinção entre argumento e contra-argu- paralelamente à ativa, na memória, de um mo-
mento é pouco útil, pois supõe que as duas teses delo de situação, que constitui “uma represen-
sejam explicitamente formuladas. Ora, em um tação cognitiva de eventos, ações, pessoas e, em
texto argumentativo, essa simetria é raramente geral, a situação de que trata um texto” Kintsch
respeitada. Por outro lado, um argumento em e van Dijk (1983: 11-2), podendo, ainda, incluir
favor de uma tese é, muitas vezes, um contra- informações prévias sobre outros textos simila-
-argumento contra a tese oposta. res, bem como conhecimentos mais gerais so-
bre a situação em foco. Logo, esse modelo de
7. Processamento e reconstrução mental do situação orienta o leitor na busca das informa-
texto ções relevantes para o estabelecimento da coe-
rência (compreensão) do texto. Assim, à medida
Dentre os vários modelos de compreensão exis- que se vai construindo, o chamado texto-base é
tentes, o modelo estratégico de compreensão de continuamente comparado com o modelo de si-
Kintsch e van Dijk (1983, 1985) além de fornecer tuação.
uma elucidação ampla do processo de compre- De acordo com Kintsch e van Dijk (1983; 1985),
ensão do discurso em geral e do texto escrito o processo acima descrito é relevante, por dois
em particular, constitui talvez, o único constru- motivos. Por um lado, porque limita a quantida-
to teórico que integra em suas formulações o de de informações implicadas na compreensão
resumo de textos como parte essencial desse do texto, ou seja, durante a leitura, o leitor não
processo. Nesse sentido, daremos uma visão de precisa lidar com todas as informações dispo-
conjunto do modelo de compreensão referido, níveis em sua memória, mas apenas a porção
situando nele, o processo de resumir textos. dessas informações pertinentes ao texto que se
O modelo de compreensão de Kintsch e van Dijk está lendo e que estão incluídas no modelo de
(1983, 1985) parte do pressuposto fundamental situação momentaneamente ativado. Por outro
de que, na tentativa de compreender o discurso lado, permite atribuir ao texto tanto o seu sig-
ou texto, o leitor opera estrategicamente, ou seja, nificado conceitual, ou seja, o significado das
de forma finalística, flexível e interativa, com in- proposições expressas no texto, como também
formações de diversos níveis, quer linguístico o seu significado referencial, isto é, o significado
(morfofonológicas, sintáticas, semânticas etc.), em referência a um modelo de situação especí-
quer cognitivo (conhecimento episódico, conhe- fico.
cimento semântico geral, conhecimento semân- O modelo de Kintsch e van Dijk faz previsões
tico sobre o texto etc.), quer contextual (contexto acerca de um poderoso sistema de controle
situacional, interacional e pragmático etc.). Em geral, que supervisiona ou monitora todo o pro-
outros termos, o leitor lança mão de qualquer cesso do texto, de modo a garantir que todas as
informação disponível importante, de qualquer informações e estratégias necessárias à com-
ordem e em qualquer momento para dar signifi- preensão sejam adequadamente ativadas e atu-
cado ao texto (ou fragmento deste), formulando, alizadas.
destarte, hipóteses provisórias acerca de sua Do ponto de vista propriamente linguístico, o
estrutura e significado. Portanto, tais hipóte- modelo em consideração propõe-se a descrever
ses podem ser ratificadas, descartadas ou reto- a estrutura semântica do discurso ou da recons-
madas, até que se obtenha uma representação trução formal da informação ou do conteúdo do
mental efetiva do texto ou fragmento em consi- discurso com base em três níveis de represen-
deração. tação: microestrutura, macroestrutura e supe-
De forma geral, o modelo postula que o proces- restrutura (Kintsch e van Dijk,1983, 1985).
samento de um texto ocorre mediante a atuação O nível microestrutural ou microestrutura cor-
de uma estratégia geral de compreensão, que responde às representações semânticas (pro-
é responsável pela construção de uma repre- posições) estabelecidas para sentenças ou se-
sentação semântica mental do texto a partir do quência de sentenças, sendo assim, responsável
input linguístico (palavras, sentenças simples pela organização sequencial e pela coerência

36
local do discurso. ou contexto forneça uma pista sobre a superes-
O nível macroestrutural ou macroestrutura re- trutura relevante; d) estratégias estilísticas e
fere-se ao significado ou conteúdo global do dis- retóricas: estratégias auxiliares na construção
curso, implicado nas relações explícitas entre de representações semânticas; as estratégias
suas proposições, determinando assim a orga- estilísticas dizem respeito ao estabelecimento
nização temática e a coerência global do discur- de inferências acerca de características do texto
so. quanto ao registro, grau de formalidade, tipo de
O nível superestrutural ou superestrutura indi- contexto etc.; estratégias retóricas, por sua vez,
ca as formas específicas de certos tipos de dis- dizem respeito à interpretação de mecanismos
curso (narração, exposição, argumentação etc.). retóricos (figuras de linguagem, por exemplo)
Trata-se de uma sintaxe global que define as ca- responsáveis pela eficácia persuasiva do texto.
tegorias gerais esquemáticas das várias formas Em vista disto, tais estratégias garantem a infe-
de discurso. rência de macroproposições, que podem estar
O processamento de um texto através desses ou não sinalizadas na superfície textual. Quanto
três níveis estruturais dá-se de forma integrada mais intensa for a sinalização textual mais fácil
e interativa, mediante três processos linguísti- e rápida será a compreensão, uma vez que tal
co- conceituais (Kintsch e van Dijk, 1985: 806): sinalização limita as possíveis interpretações,
1) a decodificação do texto em palavras, sintag- apontando ao leitor as informações mais rele-
mas, ou seja, a análise propriamente linguística; vantes do texto. Portanto, títulos, subtítulos,
2) a inferência de proposições (microproposi- sentenças, mudança de parágrafo, introdução
ções) a partir desse material linguístico, ou seja, de novos agentes, de ações, resumos introdu-
a construção do significado conceitual a partir tórios ou finais são alguns dos elementos que
do texto verbal; 3) a organização das proposi- sinalizam macroestruturas em muitos textos.
ções microestruturais em unidades de ordem O estabelecimento de superestruturas, em par-
mais alta (macroproposições). ticular, exerce um papel relevante na compre-
Ao longo desses processos operam diferentes ensão do discurso. Segundo Kintsch e van Dijk
tipos de estratégias que, segundo Kintsch e van (1985), além da definição do conteúdo global ou
Dijk (1983) operam inconscientemente e repre- de suas macroestruturas semânticas, o proces-
sentam o conhecimento procedural que temos samento exige a organização dessas macroes-
sobre a compreensão do discurso, dentre as truturas em categorias conhecidas, sendo este,
quais: a) estratégias de coerência local: estra- o papel das superestruturas, isto é, funcionar
tégias visando ao estabelecimento de conexões como categorias convencionalizadas para o con-
significativas entre as sentenças sucessivas no teúdo do discurso.
discurso; busca de possíveis ligações entre os As categorias esquemáticas são inferidas a par-
fatos denotados pelas proposições, mediante tir das macroestruturas semânticas. Dessa for-
recurso, por exemplo, a co-referência; b) ma- ma, se a macroestrutura de um texto narrativo
croestratégias: estratégias visando à inferência contém uma ou mais macroproposições iniciais
de macroproposições a partir da sequência de que descrevem tempo, lugar, participantes de
proposições expressas localmente pelo texto; uma situação, tal ou tais macroproposições po-
operam mediante recurso a vários tipos de infor- dem ser designadas como a categoria esque-
mações (títulos, palavras temáticas, sentenças mática cenário. Do ponto de vista estratégico,
temáticas iniciais, conhecimentos do modelo si- as categorias superestruturais são também de-
tuacional e do contexto); podem ser subdivididas finidas mediante recurso a informações textu-
em dois tipos: b)1 macroestratégias contextuais: ais e contextuais, podendo estar sinalizadas na
relacionadas ao conhecimento de mundo e ao própria superfície textual. A fórmula prototípica
conhecimento dos tipos de discurso; o primeiro, Era uma vez, assinala, por exemplo, a mesma
fornece possíveis tópicos (temas) para o texto; categoria superestrutural acima indicada me-
o segundo, impõe restrições tópicas conforme diante recurso ao conteúdo macroproposicional
o tipo de texto; b)2 macroestratégias textuais: das sentenças iniciais de uma suposta narrativa.
relacionadas à interpretação de palavras, sen- Kintsch e van Dijk (1983: 251) ratificam que as
tenças e sequências de sentenças, através de superestruturas, assim, “fornecem uma orga-
inferências semânticas, pistas sintáticas ou de nização adicional para o texto”, repercutindo tal
informações sobre a estrutura particular do dis- organização sobre a compreensão desse texto,
curso; c) estratégias esquemáticas: estratégias isto é, “uma vez que a compreensão implica en-
de organização das macroproposições em cate- contrar uma organização apropriada para um
gorias mais globais, constituindo a superestru- texto, quanto mais possibilidades houver para
tura do texto; são ativadas tão logo o tipo de texto organizar um texto, mais fácil esta tarefa deve-

37
ria ser”. ro lugar, selecionamos os sujeitos da pesquisa,
A ênfase de modelo de Kintsch e van Dijk esbo- mediante a aplicação da técnica do Cloze, sepa-
çada acima, em última instância, recai sobre os rando leitores proficientes de leitores não profi-
processos e estratégias de formação do texto- cientes; b) numa segunda etapa, buscamos ve-
-base e da macroestrutura textual. Além disso, rificar se os leitores proficientes, ao realizarem
fornece como mencionamos, uma base teórica uma tarefa de reescritura, apresentam melhor
consistente para a abordagem da atividade de desempenho quanto à recuperação da macroes-
resumir um texto. trutura textual e quanto ao reconhecimento da
Em vista disto, para os autores, o resumo é a organização global do texto narrativo do que do
expressão de uma possível macroestrutura de texto argumentativo dialógico, tendo em vista a
um texto-base, ou seja, a expressão de seu con- maior explicitude da organização interna deste
teúdo global. Destarte, “enquanto o texto-base primeiro tipo de texto. Diante disto, os sujeitos
representa o significado de um texto em todos realizaram uma tarefa de leitura e reescritura
os seus detalhes, a macroestrutura diz respeito de um texto narrativo e, em seguida, de um tex-
apenas aos pontos essenciais do texto.” (Kintsch to argumentativo dialógico. Por fim, os vinte (20)
e van Dijk, 1983: 52). leitores, ou seja, dez (10) de cada texto, foram
Cabe assinalar, entretanto, que para chegar a solicitados a ler os textos e reescrevê-los.
essa macroestrutura, segundo os mesmos auto-
res, leitores experientes lançam mão de certas 9. A compreensão de textos argumentativos
regras – macrorregras – aplicadas, automática
e inconsistentemente, sobre o significado das No que tange à compreensão de textos argu-
sentenças ou de sentenças (microproposições) mentativos: reecritura no ensino fundamental,
expressas no texto, suprimindo-as ou combi- os resultados demonstram que, na reescritu-
nando sob certas condições, gerando assim, ra, as macrorregras não foram apreendidas de
macroproposições, ou seja, unidades semânti- forma homogênea por todos os sujeitos. Assim
cas que encerram o significado global do tex- sendo, acreditamos que a percepção destas
to. Diante disto, tais macrorregras constituem macrorregras está condicionada à intenção co-
operações mentais de redução e (re) organiza- municativa do autor, ao propósito da leitura, ao
ção que possibilitam ao lidar de forma seletiva e tipo de situação em que se processa a leitura e
global com a grande quantidade de informações aos esquemas do sujeito leitor. Diante disto, tais
de um texto-base. condicionamentos e esquemas, têm forte influ-
Kintsch e van Dijk (1983, 1985) citam as seguin- ência sobre a compreensão e, destarte, sobre
tes macrorregras como regras de sumarização: a reescritura. Enfim, de posse desses conhe-
a) apagamento: apagamento de todo material cimentos e das macrorregras, o leitor poderá
linguístico que indica propriedades secundárias compreender melhor as informações dos textos.
do referente do discurso se estas constituírem Os dados levantados relativos à identificação
condição de interpretação para outra proposi- dessas estratégias, indicam que há uma ten-
ção subsequente; b) seleção: apagamento de dência maior de uso satisfatório dos textos nar-
proposições que representam condições, com- rativos em relação aos argumentativos. Neste
ponentes ou consequências normais de um fato sentido é que, por exemplo, quanto maior for a
expresso em outra proposição, mantendo, as- compreensão, maior será a adequação da rees-
sim, somente esta; c) generalização (ou supe- critura, pois o sujeito só pode reescrever aquilo
rordenação): substituição de uma sequência de que for de seu conhecimento. Por esta forma,
itens ou eventos em um único termo ou even- tal compreensão deve ser atribuída à habilidade
to superordenado; d) construção (ou invenção): de apreender a macro e superestrutura textual.
substituição de uma sequência de proposições Ademais, o baixo desempenho dos textos argu-
que tem condições normais, componentes ou mentativos ocorre, ainda, devido à ausência de
consequências por uma macroproposição. um trabalho centrado nesta tipologia. Logo, as
ocorrências sinalizam que as estratégias podem
8. Metodologia da pesquisa ser desenvolvidas e até modificadas pela inter-
venção pedagógica, indicando, portanto, que
O presente trabalho baseia-se nos resultados da essas estratégias não funcionam como norma
análise de parte dos dados colhidos através de para ordenar uma ação ou sequências de pro-
uma pesquisa experimental com estudantes do posições, mas possibilitam avançar seu curso
9º ano do Ensino Fundamental, de uma escola em função de critérios de eficácia textual, de in-
particular, que atende a alunos de classe média tensificação e compreensão do que foi lido, de
de Fortaleza. Neste sentido, realizamos a pes- detecção das possíveis falhas de compreensão
quisa em duas etapas, a saber.: a) em primei- responsáveis pela construção de uma interpre-

38
tação para o texto. tanta discrepância, principalmente, no que se
Cabe assinalar, ainda, que outro resultado que refere à identificação total e parcial, pois veri-
corrobora esta discussão é o fato de que essas ficamos nas reescrituras dos textos narrativos,
metarregras não dão conta, sozinhas, de todas que quarenta por cento dos sujeitos recupera-
as condições necessárias para um texto ser ava- ram plenamente os componentes superestrutu-
liado como bem formado. Em tal situação, perce- rais em relação a trinta por cento dos textos ar-
bemos que para a construção do sentido de um gumentativos. De fato, o desempenho, por parte
texto, muitos elementos se entrelaçam e muitos dos sujeitos, comprova que vinte por cento des-
caminhos são tomados para que o leitor consiga ses leitores recuperaram parcialmente esses
atingir o propósito de leitura e, assim, desenvol- componentes superestruturais no que diz res-
ver habilidades inferenciais e argumentativas peito à narrativa e dez por cento à argumentati-
associadas à capacidade de compreensão, pois va. Todavia, os que não conseguiram recuperar
só se fala daquilo que se compreende. Por fim, os componentes, oscilaram entre quarenta por
os resultados demonstraram que os sujeitos da cento para a primeira e sessenta para a segunda
pesquisa reescreveram apenas aquilo que foi de tipologia em questão.
sua compreensão textual. De acordo com os resultados obtidos, podemos
No que diz respeito à superestrutura do tex- afirmar que houve melhor desempenho em re-
to argumentativo dialógico, a consideração de lação à superestrutura para os textos narrativos
aspectos superestruturais foi realizada com o do que para os textos argumentativos dialógi-
objetivo de verificar a validade de uma das hi- cos. Enfim, com relação à organização global, a
póteses apresentadas neste trabalho. Por esta atenção deve ser centrada em todos os compo-
forma, o esquema superestrutural desta tipo- nentes que foram minimamente identificados.
logia textual proposto por Boissinot (1992) cor- Os dados mostram que a presença dos compo-
responde aos seguintes componentes mínimos, nentes estruturais em maior ou menor núme-
a saber: 1) tese proposta (corresponde ao ponto ro, depende da maneira como o sujeito leitor
de vista privilegiado no texto); 2) tese refutada opera com vários recursos linguísticos de que
(indica um ponto de vista contrário ao da tese dispõe, bem como da importância do esque-
proposta); 3) justificativa (corresponde aos ar- ma textual para a produção ou a compreensão.
gumentos, fatos, exemplos que fundamentam Dito isto, concordamos com van Dijk e Kintsch
a tese proposta); 4) conclusão (consiste na re- (1983) ao ratificar que a construção de um texto
afirmação da tese proposta mediante um argu- é resultado da capacidade de usar os recursos
mento de caráter genérico). Portanto, a ordem disponíveis para construir um macroplano, cuja
seguida na realização textual desse esquema, execução depende da construção do texto base
pode ser descrita, ainda, por evidência, justifi- (representação semântica do input discursivo na
cativa e tese. memória episódica), por meio de subestratégias
No mesmo sentido, não devemos preterir as re- responsáveis pelo estabelecimento da coerência
escrituras com percentual macro ou superes- semântica, global e local. Enfim, o entendimen-
trutural insatisfatório, mas principalmente, en- to acerca dos componentes superestruturais se
tender até que ponto eles refletiram acerca do dá, a partir do conhecimento demonstrado da
texto. Por isso, os resultados demonstram que tipologia textual.
os esquemas cognitivos que permitem as infe- Com base nas ocorrências obtidas, os dados
rências necessárias para depreender a macro e mostram que o baixo desempenho com relação
superestrutura dos textos, em termos de cálcu- aos textos argumentativos dialógicos pode ser
los cognitivos, não foram os mesmos acionados atribuído a ausência de familiaridade dos sujei-
pelas tipologias em questão, indicando por que tos leitores com esses tipos textuais em sala de
as leituras e reescrituras são extremamente va- aula. Dito isto, percebemos que os sujeitos re-
riáveis. cuperaram mais facilmente os componentes su-
Em vista disto, os resultados sugerem que os perestruturais do texto narrativo. Nesta direção,
dois grupos de sujeitos apresentam um desem- Dolz (1992) ratifica que essa tipologia passou a
penho diferenciado na recuperação dos compo- ser mais trabalhada com os estudantes em sala
nentes superestruturais de cada texto, confir- de aula e, assim, passou a ser mais familiar. En-
mando a primeira hipótese secundária de que o fim, como salientamos anteriormente (SOUSA,
conhecimento mínimo do esquema canônico dos 2003), o ensino de tipos e gêneros textuais deve
textos será o fator determinante para uma me- ser feito a partir do primeiro ano, possibilitando,
lhor compreensão das formas de estruturação desta forma, que o sujeito leitor apreenda a lidar
dessas tipologias. Por conseguinte, do ponto de com a argumentação oral e escrita.
vista quantitativo, essa diferença não apresenta

39
10. Considerações finais do texto. Por fim, ao trabalharmos com as tipo-
logias mencionadas, poderemos contribuir no
A contribuição deste corpo de reflexões ocorre sentido de instigar o sujeito leitor a pensar, re-
no sentido de se pensar a compreensão de textos fletir e compreender o que está nas entrelinhas.
argumentativos: reescritura no ensino funda- Em vista disto, a reescritura a partir do texto
mental, a partir da análise da macro e superes- base, revela o domínio da habilidade de expres-
trutura desses tipos textuais, obtidos mediante são escrita e, simultaneamente, o desenvolvi-
a tarefa de reescritura e de testes de leitura do mento integrado das duas habilidades envolvi-
tipo Cloze. Neste sentido, investigamos até que das na atividade escolar, ou seja, a leitura e a
ponto as reescrituras por leitores do ensino fun- escrita.
damental refletiam a compreensão adequada Com relação às macrorregras de sumarização
da macroestrutura textual e do reconhecimento propostas neste trabalho, embora apresentem
da organização global dessas tipologias. Deste limitações, deixam uma contribuição ao ensino
modo, os textos selecionados estão organizados que é o quadro teórico apresentando os critérios
segundo diferentes formas de estruturação, ou para avaliação de reescrituras produzidas pelos
seja, um narrativo e outro argumentativo dia- sujeitos em tarefas oriundas de sala de aula e,
lógico. Neste caso, o primeiro apresenta maior destarte, subsidiando-os no que diz respeito às
explicitude da organização interna, tendo sido informações básicas do texto, pois a compre-
por isso, considerado mais familiar e favorável ensão varia de leitor para leitor. Neste sentido,
ao processamento do que o texto argumentativo o leitor constrói um processo de sumarização
dialógico, apresentando-se complexo do ponto durante a leitura no momento de elencar os
de vista de sua estrutura global, organizado se- elementos essenciais do texto e, desta forma,
gundo um esquema de confronto de teses, isto a compreensão apresenta resultados extrema-
é, tese proposta e tese refutada mediante um mente variáveis. Enfim, os resultados sumariza-
processo de argumentação. dos, embora frutos de uma pesquisa experimen-
Importa destacar, ainda, que estabelecemos tal de rigor científico, não podem ser entendidos
como hipótese básica que leitores proficientes, como conclusivos, mas contribuir para uma me-
ao realizarem uma tarefa de reescritura, apre- lhor compreensão acerca dos textos abordados
sentam melhor desempenho quanto à recupe- além de servir de ponto de partida para outras
ração da macroestrutura textual e quanto ao pesquisas.
reconhecimento da organização global do texto
narrativo do que do texto argumentativo dialógi-
co, tendo em vista a maior explicitude da organi-
zação interna deste primeiro tipo de texto.
Dentre essas perspectivas teóricas, os resul-
tados das avaliações ratificaram a hipótese bá-
sica. Ademais, o desempenho dos sujeitos da
amostra variou de acordo com o tipo textual e
as estratégias cognitivas utilizadas no proces-
samento. Assim, as análises demonstraram
melhor desempenho quanto à recuperação da
macroestrutura textual e do reconhecimento de
organização global dos textos narrativos com-
parado aos textos argumentativos dialógicos.
No tocante às diferenças dos componentes
superestruturais, percebemos que não basta
sugerir que o texto narrativo seria propício ao
processamento e de fácil compreensão, dada a
maior familiaridade de sua estrutura do que o
texto argumentativo dialógicos, mas principal-
mente, perceber o que o leitor compreendeu
do texto. De fato, o foco não deve ser centrado
no melhor ou menos hábil, pois a compreensão
do processo de leitura não termina na produção
de reescrituras, mas na compreensão, pois não
basta só o sujeito compreender o texto do au-
tor, ele deve fazer uma releitura crítica acerca

40
REFERÊNCIAS

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41
NOÇÕES DE GRAMÁTICA E ANÁLISE LINGUÍSTICA NO DISCURSO DE
PROFESSORES DE LÍNGUA MATERNA DO ENSINO BÁSICO NA CIDADE DE
ARAGUAÍNA TOCANTINS
Aurílio Soares da Silva1
Janete Silva dos Santos2

RESUMO versas interações sociais é sempre permeada


por um gênero específico (SILVA, 2012, p. 390).
Este trabalho é uma investigação em andamen- Na realidade tocantinense não é diferente. Ape-
to de cunho qualitativo interpretativista em que sar dos Referenciais Curriculares (RC-TO) para
buscamos caracterizar noções de gramática e o Ensino Fundamental, Tocantins (2008), enfa-
análise linguística no discurso de professores tizarem a necessidade de um ensino de Língua
de Língua Materna do ensino básico na cidade Portuguesa norteado pela “Prática de escuta e
de Araguaína-TO. Iniciamos primeiramente por de leitura de textos, Prática de produção de tex-
uma revisão bibliográfica sobre os documentos tos orais e escritos, Prática de análise linguísti-
referenciais vigentes da educação básica. Poste- ca” (p. 251-253), ressaltando ainda a indispen-
riormente realizamos uma análise de um ques- sabilidade de se trabalhar com gêneros textuais
tionário acerca da pesquisa no qual constata- e contexto, ainda é vigorante o exercício do ensi-
mos que as respostas apresentadas se dirigem no tradicional, com grande realce na gramática
aos ideais postos pelos documentos referenciais normativa. Além do mais, mesmo em eventuais
da educação básica analisados. Contudo, veri- casos em que há pretensão para desenvolver
ficamos que as respostas apresentadas eram inovações nas práticas pedagógicas, como fica
fragmentos de textos da internet ou já publica- evidenciado em Silva (2012), “os saberes docen-
dos em revistas/periódicos. tes, informados pela prática do ensino tradicio-
PALAVRAS-CHAVE: Referenciais curriculares; nal, continuam orientando de forma significativa
Formação docente; Gramática e Ensino. o trabalho do professor de língua materna” (SIL-
VA, 2009, p. 143).
1. INTRODUÇÃO Em vista dessa problemática, pretendemos, a
partir das exigências das diretrizes curriculares
Presenciamos atualmente um contexto prolífe- educacionais vigentes, por exemplo, os Parâ-
ro em epistemologias que colocam em debate metros Curriculares Nacionais (PCN);caracte-
o ensino de língua materna na educação bási- rizar noções de gramática e análise linguística
ca. Toda a discussão parte do pressuposto que no discurso de professores de Língua Materna
o ensino de português nos moldes tradicionais do ensino básico na cidade de Araguaína. Sen-
não supre nem mesmo as necessidades mais do assim, esta investigação1, de cunho qualita-
elementares requisitadas para o ensino fun- tivo interpretativista, está balizada previamente
damental e médio, tais como as habilidades de em concepções da Análise do Discurso (AD), da
reflexão sobre a língua, por exemplo, havendo Análise Linguística (AL), de Referenciais Curri-
um descompasso entre aquilo que está sendo culares (RC), tais como os já mencionados ante-
ensinado e o que é proposto nas diretrizes cur- riormente, e em estudiosos como Mattos e Silva
riculares vigentes. (2002), Neves (2006), Silva (2011), entre outros.
A partir daí, é sugerido um ensino de português Os procedimentos metodológicos da pesquisa se
reflexivo e contextualizado, propondo que sejam deram, primeiramente, por uma revisão biblio-
feitas análises linguísticas, em detrimento do gráfica sobre os referenciais atuais da educação
tradicionalismo gramatical, dentro de contextos básica no que se refere à gramática e análise
de usos reais da língua (BRASIL, 1998, p. 28-29). linguística. Posteriormente fizemos análise dos
Neste sentido, há um enfoque na importância primeiros questionários acerca da temática da
dos gêneros textuais para o ensino de língua pesquisa realizada, no qual constatamos que as
materna, visto que a atividade humana nas di- respostas apresentadas se dirigem aos ideais

1
Aluno do curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e bolsista PIBIC/CNPq, e-mail: auriliosoares@hotmail.com. 2Pro-
fessora da graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Tocantins (UFT), e-mail: janetesantos35@yahoo.com.br. 3Esclarece-
mos que este trabalho é uma divulgação parcial, portanto, não conclusa, dos primeiros resultados do projeto de pesquisa do Programa
de Bolsas de Iniciação Cientifica – PIBIC/CNPq 2014/2015.

42
postos pelos documentos referenciais da educa- de produção social e material do texto
ção básica analisados. Contudo, verificamos que (…) e selecionar, a partir disso, os gêne-
as respostas apresentadas eram fragmentos de ros adequados para a produção do texto,
textos da internet ou já publicados em revistas/ operando sobre as dimensões pragmá-
periódicos. tica, semântica e gramatical. (BRASIL,
1998, p. 49).
2. O QUE DIZEM AS DIRETRIZES E REFEREN-
CIAIS CURRICULARES DA EDUCAÇÃO BÁSICA Neste sentido, os PCN, ao priorizar os gêneros
SOBRE O ENSINO DE GRAMÁTICA E ANÁLISE textuais como ponto de partida para a análise
LINGUÍSTICA. linguística, partilha do pressuposto de que o en-
sino de gramática deve está articulado a nível
Já faz algum tempo que os estudiosos da área
textual. Com isso, condenam terminantemente
de linguagem no Brasil vêm enfatizando a ne-
o ensino costumeiro de gramática pautado na
cessidade de mudanças significativas para o
“definição, classificação e exercitação” que ob-
ensino aprendizado de língua materna, princi-
jetiva apenas o bom desempenho do aluno na
palmente na educação básica. Advindos, em sua
avaliação escolar. Sendo assim, não se busca
maioria, dos teóricos aplicados, estes estudos
atender “às imposições de organização clássica
compreendem que o ensino de língua não deve
de conteúdos na gramática escolar, mas aos as-
ser guiado apenas pela metalinguagem. Assim,
pectos que precisam ser tematizados em função
surge nos finais dos anos de 1970 a concepção
das necessidades apresentadas pelos alunos
de análise linguística, fortalecendo-se na déca-
nas atividades de produção, leitura e escuta de
da seguintes (1980) quando a “Linguística, ainda
textos.” (BRASIL, 1998, p. 29).
no meio acadêmico brasileiro, começa a se pre-
ocupar com questões de ensino de língua ma- 2.2. AS ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O
terna.” (BEZERRA; REINALDO, 2013, p. 13). ENSINO MÉDIO – OCEM
Ainda de acordo com essas autoras, a prática de
análise linguística, principalmente nas universi- Percebermos que os PCN para o Ensino Médio,
dades, foi imprescindível na elaboração dos do- Brasil (2000), aparenta não ter sido suficientes
cumentos parametrizadores da área de Língua para elencar as atividades necessárias ao ensino
Portuguesa, sobretudo no que se refere ao ensi- de segundo grau. Acreditamos que isso se deve
no pautado nos estudos linguísticos, contrapon- aos objetivos da proposta desse documento que
do-se ao essencialismo gramatical (BEZERRA; visava implantar, através de uma renovação, um
REINALDO, 2013, p. 14-15). Consequentemente, novo Ensino Médio. Nesse sentido, a reforma
presenciou-se, em seguida, nos anos de 1990, proposta por tais PCN para o ensino de segundo
com a publicação dos Parâmetros Curriculares grau tem como meta, mais a integração do alu-
Nacionais do Ensino Fundamental - PCN - BRA- no no mundo contemporâneo como cidadão, que
SIL, 1997 (séries iniciais) e 1998 (séries finais), sistematização de conteúdos curriculares. Para
o surgimento dos primeiros referenciais nortea- isso, priorizam um ensino/aprendizado perfilado
dores para o ensino/aprendizado de Língua Por- na contextualização e interdisciplinaridade, es-
tuguesa no Brasil. timulando a reflexão e a capacidade de aprendi-
zagem do aluno. (BRASIL, 2000, p. 4).
2.1. OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIO- No que se refere às finalidades de ensi-
NAIS – PCN no de língua portuguesa para o Ensino Médio, os
PCN propõem o desenvolvimento de habilidades
Assim como se percebe nas diversas demandas
do aluno diante dos elementos sígnicos que per-
teóricas atuais para o ensino de língua materna,
meia o social, visto que a sociedade contemporâ-
os PCN preconizam um ensino de língua reflexi-
nea é constituída, em seus diversos segmentos,
vo, pautado na análise linguística, tanto em rela-
pelo simbólico. Então, a integração produtiva do
ção à leitura e escrita, quanto em relação à fala
cidadão a essa sociedade requer o domínio efe-
e escuta de textos reais e fictícios, nos diversos
tivo das diversas linguagens que sobrepõem os
contextos sociais. Portanto, os objetivos desse
significados que dão sentido a realidade. Além
documento prever um conjunto de conteúdos
disso, enfatiza a necessidade de reflexão acer-
e atividades, organizados no seio escolar, que
ca dos códigos e sistemas comunicativos, visto
possibilite ao educando
que a articulação eficiente destes pelo cidadão
é “uma garantia de participação ativa na vida
desenvolver o domínio da expressão oral social, a cidadania desejada.” (BRASIL, 2000, p.
e escrita em situações de uso público da 20).
linguagem, levando em conta a situação

43
Em busca de melhorar o direcionamen- de das (e nas) práticas de língua(gem) (BRASIL,
to dos conteúdos nos três anos finais do ensino 2006, p. 37-39). Enfatiza que cada eixo desses é
básico, foram lançadas, em 2006, as Orienta- apenas a base em que as escolas estruturarão
ções Curriculares para o Ensino Médio – OCEM, seu projeto de ensino. Assim sendo, em ambos
Brasil (2006).Com uma proposta mais focalizada os eixos são apresentados os procedimentos
na organização dos saberes a serem ministra- metodológicos viáveis para conduzir o processo
dos nesse período escolar, as OCEM destacam, de aprendizado no trabalho pedagógico. Além
além da organização curricular, as atribuições disso, trazem uma série de exemplos práticos
pedagógicas ao Ensino Médio, respaldadas no de análise linguística em textos de diversifica-
Art. 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação dos gêneros em função do que está sendo pro-
Nacional (nº. 9394/96), defendendo: posto em cada seção.
Acerca do ensino de gramática, as OCEM, ao
apontar o ensino de língua com base nas prá-
o aprimoramento do educando como ser ticas sociais, nas relações entre falantes, cons-
humano, sua formação ética, desenvol- tituídas por objetivos específicos e não descon-
vimento de sua autonomia intelectual textualizadas, deixam subentendido um ensino
e de seu pensamento crítico, sua pre- de gramática balizado na análise e reflexão das
paração para o mundo do trabalho e o relações gramaticais em vista dos sentidos que
desenvolvimento de competências para constituem. Neste caso, o ensino de língua na
continuar seu aprendizado. (BRASIL, escola visa, com relação à gramática, “… a refle-
2006, p. 7). xão sobre os vários conjuntos de normas – gra-
maticais e sociopragmáticas – sem os quais é
Há, no entanto, uma alertar para que as OCEM impossível atuar, de forma bem-sucedida, nas
não sejam tomadas como “receitas” ou “solu- práticas sociais de uso da língua de nossa socie-
ções” para os obstáculos e as dificuldades no dade.” (BRASIL, 2006, p. 30).
ensino de Língua Portuguesa. Por isso, enfa-
2.3. OS REFERENCIAIS CURRICULARES DO ES-
tizam a necessidade de que sejam discutidas,
TADO DO TOCANTINS – RC-TO
compreendidas e (re)significadas de acordo
com as necessidades apresentadas na escola, Os Referenciais Curriculares do estado do To-
servindo assim de instrumentos referenciais a cantins (RC-TO), aqui analisados, datam de 2008
serem utilizadas no exercício do ensino/apren- e são direcionados ao Ensino Fundamental.
dizado da educação básica.(BRASIL, 2006, p. 17). Esse documento apresenta uma acentuada se-
Referente ao ensino de Língua Portuguesa, as melhança em relação às OCEM, em vista da sis-
OCEM pautam, além das recomendações dos tematicidade do conteúdo e dos direcionamen-
PCN, incluindo aí as habilidades de leitura e de tos propostos. Assim, os RC-TO concebem, em
escrita, de fala e de escuta; uma educação que termos gerais, o ensino de língua portuguesa
possa promover ao aluno requisitos necessários como uma atividade que busca desenvolver no
para prosseguir nos estudos, ser incluído em aluno capacidades de observar, descobrir, infe-
atividades trabalhista e ao exercício consciente rir, refletir sobre o mundo e interagir conscien-
e constante da cidadania. Neste sentido, essas temente com outras pessoas, por meio do uso
Orientações Curriculares argumentam ainda funcional da linguagem; ou seja, “o desenvolvi-
que os objetivos do ensino de língua materna no mento de conhecimentos discursivos e linguísti-
segundo grau são promover gradativamente ao cos” que faça com que o aluno aprenda se mani-
educando os saberes sobre textos em diversi- festar adequadamente em diversas situações de
ficados ambientes semióticos, aprimorando as comunicação. (TOCANTINS, 2008, p. 250).
habilidades de interpretar e se expressar ade- Partindo desta perspectiva, os objetivos elenca-
quadamente. “Isso implica tanto a ampliação dos para o ensino de língua materna no Ensino
contínua de saberes relativos à configuração, ao Fundamental se dão em vista da “ampliação da
funcionamento e à circulação dos textos quan- competência discursiva” do aluno no sentido de
to ao desenvolvimento da capacidade de refle- inseri-lo no mundo da linguagem oral e escri-
xão sistemática sobre a língua e a linguagem.” ta, estendendo a viabilidade de atuação social e
(BRASIL, 2006, p. 18). prática da cidadania, como é requisitado tam-
Em vista da sistematização dos conteúdos, as bém nas OCEM. Assim é que, fazendo um elo
OCEM trazem dois eixos com uma proposta de com os PCN (BRASIL, 1998, p.32 e 33), os RC-TO
organização das atividades de língua portugue- apresentam os eixos organizadores do ensino
sa, sendo um voltado para práticas de linguagem alicerçado nos procedimentos de uso e ação:
e outro para análise dos fatores de variabilida- “prática de escuta e de leitura de textos, prática

44
de produção de textos orais e escritos, e práti- da crescente em pesquisas que abordam essa
ca de análise linguística” (TOCANTINS, 2008, p. temática na busca de trazer soluções para res-
262-263). ponder aos índices alarmantes do fracasso es-
Em se tratando de gramática, os RC-TO não colar no ensino de língua atual. Segue que a
fazem referência diretamente ao seu ensino, discussão maior se estabelecer em relação ao
contudo, há um realce acentuado em procedi- ensino de gramática, visto que se condenam, na
mentos de análise linguística, o que nos levar maior parte, o tradicionalismo gramatical em
a entender que rejeitam o ensino tradicional de favor da análise linguística. Isso vai corroborar
base prescritivista e normalizador. Sendo assim, com as orientações curriculares do ensino de
trazem como relevante a prática de reflexão to- língua, como constatamos anteriormente.
mando o texto como unidade de ensino, visto Acontece que mesmo depois de divulgados os
que o enfoque gira em torno, tanto da dimensão documentos parametrizadores sobre o ensino
gramatical, quanto das dimensões pragmático/ de língua, que apresentam, como metodologia,
semânticas da linguagem. Isso porque “É atra- a reflexão sobre a linguagem em diversos segui-
vés da prática da reflexão sobre a Língua que se mentos, por exemplo, a análise dos elementos
dá a construção de instrumentos que permiti- que determinam os sentidos dos textos; ainda
rão ao aluno o desenvolvimento da competência persiste, relutantemente, uma didática voltada
discursiva para falar, escutar, ler e escrever nas para ordenação e classificação de termos gra-
diversas situações de interação.” (TOCANTINS, maticais, característico do ensino tradicional.
2008, p. 331-332). Neste sentido, mesmo naqueles procedimentos
Então, esses referenciais curriculares assina- que buscam cumprir com os ideais dos PCN,
lam ainda, mesmo que de modo vago, uma didá- como mostra Aparício (2010) em pesquisa com
tica que leva em consideração os gêneros textu- professores de ensino fundamental do estado
ais, pois de São Paulo, “é possível vislumbrar as difi-
culdades que esses professores enfrentam ao
o trabalho de reflexão sobre a Língua desenvolverem o árduo trabalho de articulação
consiste em discutir os diferentes senti- dos discursos oficiais inovadores sobre a língua
dos atribuídos aos textos, a intencionali- e ensino de língua (…)” (APARICIO, 2010, p. 905).
dade do autor, as características de cada Portanto, surgem, assim, vários trabalhos, pré
gênero textual, o suporte, a linguagem e pós PCN, que trazem em foco metodologias
utilizada, os marcadores linguísticos, a inovadoras na tentativa de reconfigurar o mode-
presença ou ausência de elementos que lo de ensino de língua em sala de aula. Em sua
maioria, essas concepções, normalmente, refu-
estabeleçam a organização das ideias
tam o ensino tradicional de gramática, trazendo,
e a articulação adequadas às partes do
em contrapartida, como proposta, a exploração
texto. (TOCANTINS, 2008, p. 332).
do texto como unidade de análise, surgindo daí
a denominada análise linguística, proposto por
Por fim, entendemos, com base no RC-TO, que Geraldi desde a década de 1980. (SILVA; MO-
essa reflexão e análise da língua precisam ser RAIS, 2011, p. 19-20).
articuladas de modo a explicitar os saberes la- A título de referência, apontamos como propos-
tentes em cada aluno, desenvolvendo suas ca- tas que buscam inovar o ensino de língua, além
pacidades em relação à linguagem. Assim, a de O texto em sala de aula, de Geraldi, e suas
sistematização dos conteúdos precisa ser rea- várias edições e revisões, Silva (2011), que as-
lizada em vista de colocar o aluno em contexto sinala a necessidade de se trabalhar com texto
real de uso da linguagem no processo de ensino, nas aulas de língua do ensino básico, realçando
para que, a partir daí, se desenvolva um apren- a importância dos gêneros textuais como fator
dizado que possa contribuir para a vida social do de distinção das diversas funções linguístico/
discente. textuais. Esse trabalho se destaca por trazer
uma metodologia de como se trabalhar com
3. ALGUNS IDEAIS DAS DEMANDAS TEÓRICO/ gêneros em sala de aula e as funções linguís-
CIENTÍFICAS ATUAIS PARA ENSINO DE LÍNGUA ticas que eles direcionam. Além dessas, temos
MATERNA. Antunes (2010); Silva (2012); Bezerra e Reinaldo
(2013) para apontar algumas mais.
Presenciamos, nos dias atuais, uma intensa dis-
cussão sobre o ensino de língua materna nos 4 - ANLGUNS RESULTADOS DOS DADOS COLE-
cursos de formação de professores no que diz TADOS
respeito à inovação das metodologias de ensi-
no na educação básico. Isso se deve à deman- Faremos, então, alguns posicionamentos diante

45
de alguns dos questionários que aplicamos aos sor acerca dos PCN, quanto a forma como esse
professores da educação básica. Esse material conhecimento possivelmente se torna aplicável
nos chamou a atenção pela peculiaridade com nas aulas de língua materna da ensino básico.
que foi respondido. O resultado é um material Quanto da aplicação dos questionários, os pro-
que poderá trazer inúmeros questionamentos, fessores se recusavam a responder à pesquisa,
dúvidas e possíveis conclusões, mesmo que par- justificando-se pela falta de tempo. Contudo,
ciais, acerca do ensino básico, alguns dos quais aqueles que se dispusera a contribuir, quase
são colocados por nós aqui. todos, exigiam que fosse levado o questionaria
As cinco (05) questões que integram o questio- para responder em casa. Fomos obrigados a ce-
nário são bem simples e diretas ao assunto a der a essa exigência, até porque, em se tratando
que nos propomos a pesquisar na primeira fase de uma pesquisa qualitativa, todos os tipos de
de nossa investigação. São as seguintes: respostas são passíveis de interpretações.
No questionário aqui analisado, o professor, que
• Qual a concepção de ensino de lín-
respondeu em casa, nos devolveu as respostas
gua presente nos cursos de forma-
redigidas em uma folha à parte das questões,
ção continuada que você já partici- enumeradas de acordo com a ordem das per-
pou? guntas, como pode ser observado abaixo:
• O que você entende por estudo de
gramática e de análise linguística?
• Como você concebe a relação entre
o ensino de gramática e de análise
linguística na educação básica?
• Qual a função da gramática e da
análise linguística no ensino de Lín-
gua Materna?
• Como você entende o posiciona-
mento dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) Brasil 1998 sobre o
ensino de língua materna?

Entendemos que, mesmo sendo um questioná-


rio que o professor pode responder em parti-
cular, fazendo consultas a outros materiais ou
pessoais (o que foge ao nosso controle), e en-
tregar depois, suas respostas correspondem ao
imaginário que possuem sobre a temática, o que
será melhor discutido em outro momento da
pesquisa. Desse modo, com a questão de núme-
ro 1 objetivamos relacionar aquilo que o profes-
sor responderia nas próximas perguntas acerca No confronto entre a pergunta do questionário
do ensino de gramática, observando a influência e a resposta dada pelo professor é sugestivo, à
que os cursos de formação continuada exercem primeira vista, que houve um embasamento, por
no ensino básico. A questão 2 foca diretamen- parte do voluntário, em textos de pesquisas da
te o objetivo da pesquisa, em que esperávamos área que aborda a temática. Assim, na primeira
que o professor delineasse sobre aquilo que ele questão, Qual a concepção de ensino de língua
entende por gramática e análise linguística. A presente nos cursos de formação continuada
questão 3, por sua vez, poderia nos proporcio- que você já participou, o professor apresentou
nar instrumentos para perceber de que forma como resposta:
o professor lida com a gramática em relação a
análise linguística. A pergunta de número 4 se
Devido a língua ter um caráter dinâmico
volta mais para as questões práticas de ensino,
no meio social, a concepção de ensino
levando o professor a apresentar uma reflexão
de língua é heterogênea, variável e só-
acerca das funções gramaticais e linguísticas
que ele vivencia na escola. Por fim, a questão 5 cio–historicamente constituída.
objetiva saber tanto o conhecimento do profes-

46
Há uma distorção do foco da questão, pois essa linguística na educação básica, o professor vo-
concepção dada pelo professor é normalmente luntário apresenta a seguinte ideia:
utilizada para referir-se ao conceito de língua e
não ao seu ensino. Isso nos levou a questionar: Gramática e análise linguística estão
será que o professor não entendeu a questão ou relacionadas mutuamente. O estudo
não soube realmente respondê-la? gramatical na educação básica precisa
Não acreditamos na hipótese de que o profes- tomar como referências pressupostos
sor não tenha entendido a pergunta, pois, além lingüístico: a capacidade de o educando
de nos parecer relativamente clara e direta, o ler, interpretar e produzir enunciados.
voluntário poderia ter optando por não respon- Além disso, reconhecer as variedades
dê-la, alegando a não assimilação da mesma.
lingüísticas e perceber o preconceito
Isso nos direciona, então, à outra hipótese, ou
lingüístico, mas também, ter o domínio
seja, de que o professor não conseguiu articular
da língua culta padrão quanto à identi-
claramente as concepções de ensino de língua
apresentada nos cursos de formação continu- ficação de qual e quando a utilização na
ada que participou. Além do mais, verificamos situação adequada.
que essa resposta apresentada é um fragmento
retirado do texto de Baronas e Gonçalves (2013, Nesta resposta, tal como na anterior, o docente
p. 243, no resumo). traz em pauta um argumento refletido nos ide-
Na segunda questão, em que perguntamos O ais dos documentos parametrizadores. Assim,
que você entende por estudo de gramática e de focaliza a gramática com base nos pressupos-
análise linguística, o professor apresenta a se- tos linguísticos. Apesar de não está claro quais
guinte resposta: são esses pressupostos, mostra o resultado al-
mejado, que é “a capacidade de o educando ler,
Em relação à gramática, o ensino siste- interpretar e produzir enunciados”. Além dis-
so, foca a importância da variedade linguística
mático, metódico e isolado está propen-
e sua utilização, incluindo também a variedade
so ao fracasso, e também, o uso de tex-
culta. Isso nos mostra, mais uma vez, que o en-
to como o “pretexto” para uma análise
tendimento do professor acerca de gramática
metalingüística. O estudo da gramática e análise linguística está voltado para os estu-
deve habilitar os alunos a usarem ade- dos atuais e relacionados com os referenciai da
quadamente os recursos lingüísticos e educação básica. No entanto, comprovamos que
procurar adotar uma abordagem mais essa resposta foi elaborada a partir de recortes
produtiva usando gêneros textuais di- de outro texto, a saber, Pilati; Naves; Vicente;
versos. Já a análise lingüística é uma Salles (2011, p. 395, no resumo).
proposta que associam “reflexão” e Na questão quatro (04) Qual a função da gramá-
“uso”, através das atividades de análise tica e da análise linguística no ensino de Língua
lingüísticas, o professor poderá levar os Materna, o professor apresenta a seguinte res-
alunos a compreender os aspectos sis- posta:
temáticos da língua e utilizar consciente
e eficientemente os recursos da língua. A função da gramática veio a ter com a
linguística moderna, mais do que a vin-
Nesta questão, o professor traz uma concepção culação de classes a esquemas sintá-
de gramática desvinculada do tradicionalismo ao ticos das frases, tornou-se pertinente
enfatizar “uma abordagem produtiva” com uso identificar as unidades capazes de ocu-
dos gêneros textuais. Em relação à análise lin- parem o espaço funcional dos chama-
guística, apesar da confusão de ideias, o docente dos “sujeitos”. Por outro lado a função
aponta para uma concepção de ensino baseada da análise lingüística toma o texto como
na “reflexão e uso”, na compreensão do siste- unidade de ensino assumindo uma con-
ma para “utilizar consciente e eficientemente os tradição gramatical que analisa unida-
recursos da língua”, ideal que é proposto pelo des menores – fonemas, palavras, frase
PCN, OCEM e RC-TO. Contudo, confirmamos
etc. – reproduzem a metodologia de de-
que esta resposta também é formulada a partir
finição, classificação e exercitação.
de trechos retirados de um outro artigo, desta
vez, de Teixeira (2011, p. 163-164).
Na terceira questão: Como você concebe a re- Percebe-se que essa resposta também se dire-
lação entre o ensino de gramática e de análise ciona para aquilo que é enfatizado nos documen-
tos oficiais apresentados anteriormente. Assim,

47
apesar de se perceber uma certa confusão ao de outro texto, desta vez de Santos, et. al. (2011,
conceituar a função de analise linguística, tem a p. 161).
gramática como sendo mais do que “vinculação A partir do que foi apresentado anteriormen-
de classes a esquemas sintáticos das frases”. te, nos questionamos acerca da postura desse
Porém, como presenciado nas respostas ante- docente diante da pesquisa com ele realizada,
riores, esta também é fragmento de dois textos perguntamo-nos: será que as repostas apre-
encontra na internet, a saber, Fonseca (Função sentadas pelo professor realmente contemplam
gramatical) e Manini (Ensino de gramática: o que aquilo que ele pensa acerca da gramática e aná-
propõem os PCNS, o que trazem os ldps). Vale lise linguística ou não?
lembrar aqui que a definição e/ou prática de AL As respostas apresentadas, como interpreta-
vai depender de que perspectiva ela é toma- mos, sinalizam para as concepções focalizadas
da pelo que a defende: pode ser estruturalista nos documentos parametrizadores que aborda-
(análise sintática como foco) ou funcionalista mos anteriormente, o que em termos normais
(qualquer forma linguística e suas implicações seria o ideal almejado. No entanto, ao apresen-
para o sentido do enunciado), tradicional (a par- tar ideias de outrem, inclusive fazendo recorte
tir de frases ideais ou de excertos de textos es- do texto original, sem apresentar referência
critos com usos restritos a essa modalidade de adequada desses textos, colocamos em dúvida a
linguagem, a certo gênero e a certa camada de opinião do professor acerca de suas respostas.
pessoas) ou inovadora (textos reais, de gêneros O que leva um educador, que deveria reforçar a
orais ou escritos, como ponto de partida) etc. ética autoral, a cometer esse deslize? O que leva
Por fim, na quinta e última questão, na qual per- o professor a acreditar que isso passaria des-
guntamos: Como você entende o posicionamen- percebido aos olhos de um grupo de pesquisa?
to dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) Acreditamos que a resposta para essas pergun-
Brasil 1998 sobre o ensino de língua materna, o tas é simples: o professor não está ainda prepa-
professor traz como alternativa de resposta, rado para lidar com as questões apresentadas.
A visão desse docente se aproxima, de certo
A perspectiva do ensino de língua ma- modo, a práticas que se observam em alunos do
terna era única, não compreendia as va- ensino básico, de que não há problema em se
riações lingüísticas, discutia-se apenas fazer “Ctrl+C e Ctrl+V” (copiando e colando no
a norma culta da língua. O ensino não computador) textos da internet e usá-los sem
considerava os usos sociais da escrita. fazer as devidas referências da fonte proceden-
A prática de linguagem real se processa te. Nesse sentido, não há como se esperar que
em gêneros textuais diversos e em di- esse professor ensine a seu aluno as normas
adequadas de referenciação se ele próprio não
versas situações de comunicação (con-
as observa ou não sabe para si mesmo. Isso não
textualização), diferentemente, a escola
é o foco de nossa pesquisa, mas cremos ser uma
trabalhava com textos construídos pela
reflexão importante, que remete à necessidade
e para escola, sem buscar o letrar do de se discutir de modo mais incisivo questões
sujeito, esse que também carrega con- como essa junto ao professor nos encontros
sigo um conhecimento prévio - de mun- de formação continuada dos quais participa ou
do (texto). Enfim, encerra-se, então, a pode vir a participar.
excessiva valorização gramatical e fre- Certamente, não se pode e nem se deve gene-
qüentes preconceitos contra as formas ralizar o fato ocorrido no questionário apresen-
de oralidade, ensino descontextualizado, tado aqui, no sentido de julgar a classe docente
normalmente, associados a exercícios do ensino básico pelo que foi analisado anterior-
mecânicos e fragmentados para dar lu- mente. Contudo, não se pode ignorar a proble-
gar à contextualização. matização aqui feita, pois essa postura do pro-
fessor pode se refletir naquilo que ele realizará
Como nas respostas anteriores, esta apresenta em sala de aula. A bem da verdade e do imagi-
uma visão inovada acerca do ensino de língua, nário sobre a profissão, espera-se do professor,
baseada nos referenciais analisados. Contudo, entre outras coisas, que ele seja capaz de domi-
observamos que há uma fuga do foco da ques- nar conhecimentos e apresentar habilidades su-
tão, pois esperava-se que o professor se posi- ficientes para ampliar o aprendizado do aluno,
cionasse diante das orientações postas pelos imaginário que parece ter se fragilizado pelas
PCN e não se ativesse a descrever o que eles respostas ao questionário em análise.
expressam, como se observa na resposta dada. Além disso, o professor parece não ter noção
Nesta questão, também, presenciamos recortes clara acerca das leis de direitos autorais e plá-

48
gio no Brasil. Por exemplo, lei nº 9.610, de 19 transgressão que não o favorece ao infringir
de fevereiro de 1998, que em sua essência vem as leis de autoria, lei nº 9.610, de 1998 e lei nº
regular os direitos autorais, alterada através da 12.853, de 2013, sugerindo que para si tais pre-
lei nº 12.853, de 14 de agosto de 2013, atualizada ceitos são irrelevantes.
e consolidando ainda mais a legislação sobre di- Por fim, acreditamos que no decorrer desta pes-
reitos autorais, dá outras providências referen- quisa, ainda em andamento, poderemos trazer
tes ao assunto (BRASIL, lei nº 12.853, de 2013), outros dados importantes sobre a concepção do
leis que inclusive apresentam como punição aos professor de educação básica do município de
infratores plagistas multa de três meses a um Araguaína acerca do ensino de língua mater-
ano de retenção. na. Conquanto as observações aqui tenham se
voltado para o descumprimento do professor às
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, que é um segmento da pesquisa de


iniciação científica em andamento, inserida em
investigação mais ampla, fizemos inicialmente
uma prévia revisão acerca dos referenciais vi-
gentes da educação básica, tais como os PCN,
as OCEM e RC-TO. O objetivo era perceber como
é tratado o ensino de gramática e análise lin-
guística em tais documentos. Além disso, fize-
mos a análise de um questionário da pesquisa
que está sendo realizada.
Percebemos, então, que os documentos para-
metrizadores da educação básica, em termos
gerais, assinalam para um ensino de língua
reflexivo com respaldo na realidade concreta.
Neste sentido, o ensino de gramática é voltado
para a análise da língua, em que o fundamen-
to do estudo gramatical direciona-se para a(s)
construção(ões) de sentido(s) que ela venha a
provocar no texto.
Além disso, em referência à pesquisa, perce-
bemos no questionário analisado que o posicio-
namento do professor se direciona aos ideais
pautados nos referenciais da educação básica.
No entanto, identificamos que o professor, para
emitir ‘suas respostas’, infringiu as leis de auto-
ria, ao fazer recortes sem se preocupar com as
devidas referenciações, violando as normas de
autoria vigentes no Brasil.
Assim, questionamo-nos sobre as concepções
do professor acerca do ensino de língua, gra-
mática e análise linguística, visto que, se ele
fez recortes de textos de outros autores, há um
indicativo de que esse docente ainda não tem
uma opinião segura (mesmo que vivamos em
constante mudança identitária, o que inclui nos-
sas convicções, opiniões, crenças etc.) acerca
do assunto. Isso nos levou à percepção de que
este colaborador, ao não conseguir indicar que
reelabora em seu próprio discurso o discurso
ao qual se filia, pouco se apropriou de parâme-
tros bem mais aceitos para exercício atual da
docência. Além disso, se por um lado traz uma
visão atualizada de ensino de língua ao incluir
literalmente a voz alheia com ideias inovadoras
em seu enunciado, por outro, resvala para uma

49
normas de referenciação e às leis de autorias, esperamos nos próximos dados alcançar o objetivo
da pesquisa, que é a caracterização do imaginário do professor sobre o ensino de gramática e aná-
lise linguística.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nacionais. 3º. e 4º. Ciclos: Língua Portuguesa. Brasília: MEC: SEF, 1998.
BRASIL. Ministério de Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais. 1º. e 2º. Ciclos: Língua Portuguesa. Brasília: MEC: SEF, 1997.
BRASIL. Ministério de Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais. 3º. e 4º. Ciclos: Língua Portuguesa. Brasília: MEC: SEF, 1998.
BRASIL. Ministério de Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
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50
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cantins: Ensino Fundamental do 1º ao 9º ano. 2ª Edição, Palmas, 2008.

7. AGRADECIMENTOS

51
DE OBJETOS DE ENSINO À CONSTITUIÇÃO DE IMAGENS
DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS4
Bruna Dias da Silva5
Nilsa Brito Ribeiro6
(Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará)

“O presente trabalho foi realizado com o apoio education” Research Project, aims at identi-
do Conselho Nacional de Desenvolvimento fyingwhich teaching contentsare used by the
Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.” student of the program in practicum activities,
and which image of the mother tongue teacher
RESUMO is produced in the theory-practice relation. This
O Plano de trabalho “De objetos de ensino à objective is guided by the premisse that the se-
constituição de imagens do professor de Por- lection of formative contents and the approach
tuguês” vinculado ao Projeto de Pesquisa ‘Dis- applied to them subscribe the teacher and his/
curso e Ensino: o curso de Letras e a formação her practice to a given conception of mother
docente’ tem o objetivo de identificar que obje- tongue teaching. The research was conducted in
tos de ensino são referenciados pelo aluno de two classes of the Portuguese program at UFPA/
Letras em atividades de estágio e que represen- Marabá. The data consisted of: i) recordings of
tações de professor de língua materna se pro- practicum activities; ii) interviews with students;
duzem na relação teórico-prática. Tal objetivo iii) interviews with the professors that teach Tex-
se orienta pela defesa de que a eleição de conte- tual Linguistics and Reading and Textual Pro-
údos formativos e a abordagem a eles dispensa- duction, since we used the themes of these two
da inscrevem o professor e sua prática em uma disciplines to identify and analyze the theoretical
dada concepção de ensino de língua materna. A knowledge that guide practicum activities. The
pesquisa foi realizada em duas turmas de Le- Academic Program Description is also part of
tras/Português do Campus de Marabá/UFPA, the data, with special attention to the two disci-
tendo como instrumentos de composição de da- plines mentioned. The analyses are inserted into
dos: i) gravações de atividades de estágio; ii) en- a sociohistorical perspective in which language
trevistas com alunos das turmas; iii) entrevistas and subject are combined in an interplay of so-
com professores que ministram as disciplinas cial interactions.
Linguística Textual e Leitura e Produção Textu-
KEYWORDS: Portuguese; Teaching contents;
al, uma vez que delimitamos os objetos circuns-
Discourse.
critos a estas duas disciplinas, com o intuito de
identificarmos e analisarmos os conhecimentos A elaboração e a relevância do problema: apro-
teóricos que fundamentam as atividades de es-
ximação de alguns conceitos
tágio. O Projeto Pedagógico do curso também
compõe o corpus de análise, com especial aten-
A pesquisa realizada teve como problemática
ção às duas disciplinas mencionadas. As análi-
ses se inscrevem numa perspectiva sócio-histó- a formação do professor de língua materna. As
rica em que linguagem e sujeito se constituem práticas de estágio constituíram-se em lócus
no jogo das interações sociais. privilegiado para a apreensão do jogo de repre-
PALAVRAS-CHAVE: Língua Portuguesa; Objetos sentações que aí se produz, especialmente na
de ensino; Discurso. relação do aluno de Letras com conhecimentos
específicos de sua área de formação.
ABSTRACT Trabalhamos com o conceito de representação,
vinculando-o à noção de dialogismo elaborada
The work plan entitled “From teaching content pelo Círculo de Bakhtin, ao referir-se às rela-
to the constitution of images of the Portuguese ções que todo enunciado/discurso mantém com
language teacher,” linked to the “Discourse and outros enunciados anteriormente produzidos e
Teaching: the Portuguese program and teacher com enunciados futuros produzidos pelo o outro

4
Trabalho desenvolvido com o apoio do Programa PIBIC/UFPA.
5
Graduanda do curso de Letras da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. E-mail: bruna-dias2008@hotmail.com
6
Orientadora do trabalho, é docente do Campus Universitário de Marabá/Faculdade de Estudos da Linguagem. Universidade Federal do
Sul e Sudeste do Pará. E-mail: nilsa@unifesspa.edu.br

52
da interação, sob a forma de réplicas ou con- formação, é capaz encarar a profissão a partir
trapalavras. Todo discurso é atravessado pelas de um ponto de vista crítico, assim como possi-
avaliações do outro e traz ‘marcas’ (mostradas bilitar a seu aluno uma boa formação.
ou não) das representações que ele (o discurso) Tem-se na sociedade em geral uma importante
dá, em si mesmo, do outro, de seu objeto e de si imagem do papel que o professor ocupa enquan-
mesmo. Assim, o discurso não adquire sentido to formador de pessoas capazes de ler o mundo
fora da sua relação com um conjunto ilimitado criticamente e nele intervir, melhor compreen-
de outros discursos. dendo e interpretando a realidade.
Desta perspectiva discursiva, entendemos que a No entanto, como lembra Cortesão (2006), não
relação entre a formação acadêmica e os sabe- apenas a formação docente resolve toda a pro-
res elaborados no espaço da prática docente não blemática que envolve a educação. É preciso
decorre de um movimento linear em relação ao lembrar que há falhas no sistema, da educação
que se aprende na universidade e o que se en- infantil ao nível superior, implicando, assim, na
sina na escola, pois diferentes representações formação do professor. Assim, são diversos os
produzidas nos discursos do sujeito em forma- problemas que a educação vai tendo de enfren-
ção interferem na forma como se apropriam tar. Na sociedade contemporânea, o professor
dos conhecimentos acadêmicos e os ressigni- está a todo instante sendo interrogado e chama-
ficam no momento em que se deparam com as do a alterar as condições de ensino, no espaço
demandas da sala de aula. As representações escolar. Afirma ainda a autora:
construídas interagem com: as expectativas
que a sociedade cultiva em relação ao papel Os professores também se sentem
do professor; ao valores socialmente atribu- mal, e também se interrogam sobre
ídos aos conteúdos de ensino selecionados; os qual é o seu papel nesta escola. Per-
alunos da escola básica com os quais passam a deram aquilo que, em tempos, foi um
lidar durante os estágios etc. ‘‘público garantido’’ submisso, disponí-
Sendo assim, nosso interesse é ampliar a refle- vel para aprender o que lhe era exigido
xão para além dos conteúdos em si, conside- e enfrentam alunos que não gostam de
rando que as escolhas e definições de discipli- estar na escola, até porque, fora dela,
nas e de objetos de ensino de uma área sofrem têm acesso a divertimentos e mesmo a
orientações históricas e políticas. fontes de informações muito mais ali-
A relevância do trabalho pode estar em propi- ciantes do que as que podem ser ofere-
cidas pelos professores. Por seu turno,
ciar a apreensão de sentidos produzidos na re-
os professores, mais ou menos pacien-
lação do aluno com o aparato teórico e metodo-
tes, geralmente em situações de grande
lógico durante as atividades de estágio, em que
isolamento profissional, tentas manter
a formação do professor é problematizada. a ordem, tenta transmitir saberes e ex-
plicar as lições que preparam.’’ (COR-
A formação docente e a construção de identida-
TESÃO, 2006, p. 29).
des do professor de Português

Cortesão (2006), ao discutir a questão da forma- Face às demandas que são a cada dia endereça-
ção do professor, nos diz que a profissão docente das ao professor, espera-se que este tenha uma
passa por um grande desprestígio na sociedade preparação ao longo de sua formação e não ape-
contemporânea, estando até mesmo ameaçada nas em momentos pontuais.
de extinção pelos modernos meios de comuni- Conduzindo nossa reflexão para a formação es-
cação que estão hoje à disposição da sociedade. pecífica do professor de Português, interessa-
Segundo a autora, deve ser ‘‘ central e cons- -nos refletir sobre o movimento discursivo dos
tante a preocupação de analisar os problemas conhecimentos próprios da área os quais man-
educativos no seu contexto espácio-temporal’’ têm contato com a constituição da identidade
(CORTESÃO, 2006, p. 13). No momento em que deste profissional.
a sociedade muda o professor também tende a Aderimos a pressupostos teóricos que conce-
mudar, atualizando suas concepções de língua bem a identidade como uma construção a partir
e de linguagem, devendo tornar-se cada vez da interação entre o eu e o restante da socieda-
mais capaz de compreender as diferentes con- de, numa relação de completude mútua e nem
cepções de linguagem e de ensino de língua. A sempre harmônica, posto que os processos de
autora adverte que o professor, tendo uma boa interação social guardam os revezes das condi-
ções sócio-históricas em que os sujeitos se en-

53
contram. Assim, compreendemos a identidade 1980 se verifica a entrada de uma nova aborda-
como representações discursivas e não como gem de ensino de língua materna na escola, não
uma essência que surge conosco desde o nosso mais centrada na “gramática tradicional”, mas
nascimento e que se desenvolve dando forma numa nova perspectiva de língua, linguagem e
ao que se chama de individualidade. Lembra- escrita. O autor afirma: ‘‘ A maioria dos livros di-
-nos Bauman que : dáticos− sobretudo do primeiro grau−organizam
suas lições em torno de textos curtos, que são
[...] o “pertencimento” e a “identidade” tomados como pretexto para introduzir ques-
não têm a solidez de uma rocha, não são tões de várias ordens: lexicais, gramaticais, de
garantidos para toda a vida, são bastan- história e de teoria da literatura, etc.’’ ( ILARI,
te negociáveis e revogáveis, e [...] as 1997, p .45).
decisões que o próprio indivíduo toma, O panorama traçado pelo autor nos dá a dimen-
os caminhos que percorre, a manei- são das diferentes identidades que o professor
ra como age – e a determinação de se de Letras vai construindo ao longo de sua forma-
manter firme a tudo isso – são fatores ção. É nesta direção que verificaremos a relação
cruciais tanto para o „pertencimento que o aluno de Letras do curso pesquisado esta-
quanto para a identidade” (BAUMAN., belece com os aportes teóricos priorizados em
2005, p. 17). duas disciplinas do Projeto Político Pedagógico
do curso e que valores atribuídos a conteúdos
Sem se deter à identidade do professor, mas re- subjazem ao movimento teórico-metodológico.
ferindo-se às contribuições da Linguística para a
formação do professor de Português, Ilari (1997) Do Projeto Pedagógico do Curso
deixa entrever em suas reflexões as diferentes
identidades do professor de português que se Neste item, nosso intuito é descrever objetivos
vão produzindo na relação com os conhecimen- do Projeto Pedagógico do Curso de Letras, do-
tos privilegiados a cada momento histórico de ravante PPCL, perfil docente, habilidades, com-
nosso país. petências e ementas das disciplinas Leitura e
Produção Textual e Linguística Textual.
Admitindo que o objetivo fundamental O PPCL foi aprovado em sua primeira proposta,
do professor de português é o de am- em 2006, e reformulado em 2012. No entanto,
pliar a capacidade de comunicação, ex- como as turmas das quais nos ocupamos neste
pressão e integração pela linguagem trabalho estão sob orientações do primeiro pro-
da população atingida por seu trabalho, jeto, ele será a nossa referência de análise. Des-
parece correto esperar que o currículo tacamos a seguir seu objetivo geral, objetivos
de Letras prepare o futuro professor
específicos e o perfil de profissional projetado:
para 1) avaliar as potencialidades e li-
mitações que caracterizam a expressão
Objetivo geral
e a comunicação de seus alunos; 2) fixar
para eles, com respeito a expressão e Formar licenciados em Letras para atuarem no
comunicação, objetivos viáveis; 3) exa-
Ensino Fundamental e Médio, buscando a me-
minar criticamente os recursos didáti-
lhoria da qualidade do processo ensino-apren-
cos que a indústria editorial proporcio-
dizagem na área de Língua Portuguesa e suas
na.’’ ( ILARI, 1997 p 9).
especificações teórico-práticas. (PPCL, 2006, p.
Se num dado momento histórico a identidade do 4-5).
professor de Português se constitui na relação
Objetivo específico
com a chamada “gramática tradicional”, com o
advento da ciência linguística e com a sua intro- Formar licenciados em Letras com habilida-
dução nos currículos de Letras como disciplina des para desenvolver um trabalho com a lín-
obrigatória, tem-se como um dos objetivos da gua materna numa perspectiva de professor-
ciência linguística “propiciar ao futuro professor -pesquisador, tanto de fenômenos lingüísticos
de Língua Portuguesa a oportunidade de anali- e discursivos verbais, orais e escritos, quanto
sar fatos da língua com rigor e sem preconcei- das condições de ensino-aprendizagem. (PPCL,
tos” (ILARI, 1997, p. 15).
2006, p. 6)
A Linguística foi introduzida nos currículos de
Letras a partir dos anos 1960, mas somente em

54
Perfil de docente rárias”; refletir melhor sobre as especificidades
da língua e da literatura, sentidos que traduzem
O PPCL propõe a formação de um profissional o discurso de formação de um novo profissional
capaz de: capaz de avaliar mais adequadamente”, refletir
a) analisar e avaliar mais adequada- melhor . Trata- se, portanto, de um profissional
mente as questões linguísticas e lite- com maior capacidade de refletir e encontrar
rárias advindas de uma sociedade em soluções para os possíveis problemas do ensino
transformação; de Língua Portuguesa.
No item seguinte, voltaremos nossa atenção
b) refletir melhor sobre as especificida- para as disciplinas que elegemos como obje-
des da língua e da literatura, devendo to de observação e análise durante as aulas de
esse profissional estar, portanto, in- estágio, uma vez que a compreensão e reflexão
serido na pesquisa desde a gradua- dos elementos que elas trazem em suas emen-
ção para ir descrevendo, analisando tas nos ajudarão a melhor compreender os sen-
e compreendendo os fenômenos que tidos que os alunos atribuem a estes conceitos
contribuem para uma melhor ação em seu processo de formação.
pedagógica;
c) planejar, construir e colocar em prá- Das disciplinas objeto de reflexão nas práticas
tica atividades e projetos de pesqui- de estágio: Linguística Textual e Leitura e Pro-
sa relacionados ao uso da língua e da dução Textual I
linguagem, nas modalidades oral e
escrita, considerando suas estrutu- Considerando que as disciplinas Linguística
ras, funcionamento e variedades dia- Textual e Leitura e Produção Textual são obje-
letais (regionais e locais), bem como tos de reflexão no contexto da formação docente
as diversas expressões literárias, dos alunos do curso, entendemos ser de funda-
prioritariamente em língua vernácula mental importância descrever as habilidades e
(PPCL, 2006, p. 7). competências a elas vinculadas, tendo em vista
que são as habilidades e competências que deli-
O curso propõe como linha norteadora de sua mitam, em grande medida, o que se espera que
proposta “a construção de uma atitude crítica o futuro professor venha a dominar no campo
constante por parte do educador e pesquisador específico de sua formação.
na área, tendo em vista o apoio, o desenvolvi-
Leitura e Produção Textual
mento e a consolidação da cultura local” ( PPCL,
2006, p. 8). A disciplina Leitura e Produção Textual é minis-
Como se pode depreender dos objetivos e do trada no primeiro bloco de disciplinas do curso,
perfil de profissional delineados na proposta do com carga horária de 68 horas, sob a orientação
curso, há um discurso que anuncia a superação do Núcleo de Interesse: “Formação Básica’’.
de problemas inerentes à formação do profes-
sor de Língua Portuguesa e ao ensino desta dis- a) Competências
ciplina.
- domínio teórico-prático de leitura e
Por exemplo, a proposta do curso, em seu obje-
produção textual, a partir de uma abor-
tivo, anuncia a busca de “melhoria da qualidade
dagem discursiva.
do processo ensino-aprendizagem na área de
Língua Portuguesa e suas especificações teó- b) Habilidades
rico-práticas”. Este enunciado deixa entrever
sentidos de superação de teorias e práticas su- - desenvolver estudos e reflexões so-
postamente tradicionais, com pouca capacidade bre as diferentes concepções de texto e
de alteração das condições de ensino ainda exis- leitura;
tentes. - identificar mecanismos de organiza-
Nesta mesma direção argumentativo- discur- ção textual na produção de sentidos;
siva, os perfil docente delineado na proposta
se faz sob um ‘tom’ de mudança da prática do - identificar recursos de formulação
novo profissional a ser formado. Assim se pode e reformulação do texto oral e escrito e
apreender em passagens como: “avaliar mais efeitos de sentido deles decorrentes;
adequadamente as questões linguísticas e lite- - desenvolver a prática de leitura e es-

55
crita em diferentes textos; - desenvolver tratégias de construção do texto falado.
práticas de retextualização. Articuladores textuais. Intertextualidade
e polifonia. Marcas linguísticas de argu-
c) Ementa: Questões de leitura: concep- mentação. Formas linguísticas e efeitos
ções; processo de interação verbal; as de sentido. Gêneros do discurso e a rela-
condições produção da leitura; condi- ção oral escrito.
ções sociais de acesso à leitura. Ques-
tões de escrita: concepções de texto;
texto e sentido; gêneros discursivos; Embora sejam escassas as referências diretas
mecanismos de organização textual e que os alunos fazem a temas da ementa das
produção de sentidos; problemas tex- duas disciplina, é possível dizer que há uma re-
tuais decorrentes de questões ligadas à gularidade discursiva sobre o trabalho com o
coesão e coerência do texto; processos texto e com a leitura em sala de aula. Obvia-
de argumentação e gêneros textuais; mente que não podemos estabelecer uma rela-
práticas de retextualização; leitura e ção direta entre esta discursividade e o conjunto
produção de diferentes gêneros discur- de conhecimentos circunscritos a estas duas
sivos, com ênfase nos gêneros acadêmi- disciplinas do curso, pois como nos alerta Ila-
cos: Resumos, Resenhas, Projetos, Arti- ri (1977), a partir de 1980 a Linguística produz
uma guinada teórica e metodológica no ensino
gos, adequações a normas de publicação
de língua materna, introduzindo uma nova abor-
(ABNT).
dagem de ensino que prioriza o texto em detri-
mento da “gramática tradicional”. O PPCL sob
Linguística Textual análise reflete um movimento de adesão a esta
nova abordagem de ensino de língua materna e
A disciplina Linguística Textual é trabalhada no as disciplinas que têm o texto como objeto re-
6º semestre do curso, sob a orientação do Nú- fletem, mais explicitamente, a adesão à centra-
cleo de Interesse: “Leitura, escrita e produção lidade do texto como unidade de ensino.
de sentido”. Assim, os dados coletados de situações empí-
ricas de aulas de estágio deverão nos permitir
a) Competências: confrontar objetos e conceitos que estas disci-
plinas abrangem com os saberes elaborados
- conhecimento dos principais recur- pelos anos nas atividades de estágio. A relação
sos de organização textual na produção entre teoria e prática marcada nos discursos de
de sentidos; sala de aula possivelmente nos permitirá anali-
sar sentidos que remetem a representações que
- capacidade de compreender os sen- os alunos constroem do professor de língua.
tidos do texto como processo discursivo.
Materiais e Métodos
a) Habilidades:
Situada no campo da Linguística, a centralidade
- refletir sobre os principais recursos da linguagem nesta pesquisa diz respeito tam-
linguísticos de produção textual como bém ao modo como ela (a linguagem) é conce-
efeitos de sentidos; bida na relação com a história, com os sujeitos
que a produzem, constituindo-se espaço de
- desenvolver estudos acerca de con- materialização de sentidos, mas também lugar
ceitos de texto; onde os sujeitos se constituem, socialmente or-
ganizados (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1988).
analisar o funcionamento textual-dis- Tendo em vista esta perspectiva teórica e os
cursivo de diferentes gêneros textuais; objetivos a serem alcançados, a pesquisa se
discutir sobre a relação entre texto oral desenvolveu a partir de quatro etapas de com-
e texto escrito; posição dos dados, envolvendo os respectivos
instrumentos:
refletir sobre os princípios de textua-
lidade.
a) Numa fase exploratória, de
aproximação do problema, procedemos a
C) Ementa: Conceito de texto. Princípios um estudo do Projeto Político Pedagógico
de textualidade. Processos textual-dis- do curso, tomando conhecimento das
cursivos intervenientes na produção/ ementas das referidas disciplinas e dos
compreensão de textos. Progressão conteúdos nelas descritos .
referencial. Progressão temática. Es-

56
b) Num segundo momento, passamos Exposição de conceito e
formas de composição do
a gravações e registros de aulas de Aula 10- 8º Ano – E.F Poema gênero; leitura e produção
português desenvolvidas por alunos em escrita de poemas pelos
alunos
atividades de estágio. As transcrições se Aula 11- 9º ano- E. F. Conto Leitura
aproximam das convenções do Projeto Aula 12- 9º ano- E. F. Conto Produção escrita
NURC (PRETTI, 1997). Aula13- 9º ano- E. F.
Estrutura do Exposição da estrutura do
conto conto
Aula 14 - 9º ano- E. F. Produção escrita Escrita e reescrita de contos
c) Na terceira etapa da pesquisa, pelos alunos
realizaremos entrevistas com
professores de Linguística Textual e de
Leitura e Produção Textual I e alunos de Análise DOS DADOS
duas turmas de estágio (turmas de 2008
e 2009)2. As entrevistas com professores No quadro acima elencamos os conteúdos abor-
que ministraram as referidas disciplinas dados pelos alunos em aulas de estágio, reali-
cumpriram a função de complementar zadas no segundo semestre de 2012 e primeiro
informações sobre os conteúdos semestre de 2013.
veiculados nestas duas disciplinas. Como se pode observar, dentre os conteúdos
selecionados pelos alunos durante os estágios,
podemos destacar:
Resultados
i) questões de texto: coesão, coerência
(aulas 1, 2 e 3); tipos e gêneros textuais:
Quadro1: Conteúdos abordados nas aulas de
carta, e-mail (aulas 6 e 7); gêneros
estágios
poema e conto(aulas 10, 11, 12, 13 e 14
) (aula )
ii) questões de leitura (aulas 4 e 5)
Aula Conteúdo Metodologia

Uso de um texto para


iii) questões de gramática: verbo de
Coesão
Aula1 - (1º ano- E.M1.)
referencial
levantamento de pronomes ligação (aulas 8 e 9)
referenciadores.

Uso de fragmentos de
Aula2 - (1º ano - E.M.)
Coerência e notícias identificação de Os dados nos mostram que nas aulas observa-
coesão conjunções e as relações
coesivas estabelecidas .
das e registradas, o conteúdo de ensino privile-
Leitura e interpretação de giado é a produção escrita do aluno. Este dado
Aula3 - (1º ano- E.M.) O gênero notícia
textos. parecer ter relação com respostas dos alunos
Leitura pelos estagiários de
um texto com orientações
entrevistados. De vinte e um alunos entrevis-
Aula 4 - (3º ano I- E.M.) Leitura e escrita
para uma boa redação de tados, dezessete indicaram a leitura e escrita
vestibular
de textos como objetos selecionados para as
Leitura e interpretação de
Aula 5 - 3º ano I- E.M. Leitura
texto pela turma atividades de estágios desenvolvidas na escola
básica durante os dois semestres em que acom-
Conceitos de
Exposição dos conceitos com panhamos as turmas. Os demais apontaram a
Aula 6 - 1º ano I- E.M. texto, de gêneros
e tipos textuais
base no livro didático (L.D.) gramática (02 alunos ) e a literatura (01 aluno)
como objetos selecionados para o ensino.
Gêneros Exposição de exemplos
Aula 7- 1º Ano A- E.M. textuais: carta e extraídos do L.D e escrita de No entanto, como refletimos no início deste ar-
e-mail carta e e-mail tigo, a relação entre as escolhas de conteúdos
Aula 8- 8º Ano – E.F.2 Produção escrita
Sugestão de um tema pelos
estagiários
feitas pelos estagiários e os aportes teóricos
Estagiários selecionam 3 mobilizados em disciplinas do campo da Lin-
Verbos de
textos produzidos pelos guística ou da Literatura é complexa e não pode
Aula 9 - 8º Ano- E.F. alunos em aula anterior para
ligação
destacarem os verbos de ser apreendida como num movimento de causa
ligação e efeito. Diferentes sentidos se entrelaçam na
constituição das representações dos alunos ao

7
Lembramos que no Plano de Trabalho aprovado consta que a terceira etapa de pesquisa diz respeito a entrevistas com professores do
curso. A quarta etapa compreenderia o momento de registro e gravações de aulas de estágio. No entanto, como UMA das disciplinas cujos
conceitos serão objeto de reflexão neste trabalho só serão ofertadas a partir de fevereiro de 2013, optamos por fazer registros de algu-
mas aulas de estágio realizadas pelos alunos do curso e, somente quando as disciplinas Leitura e Produção Textual e Linguística Textual
estiverem sendo ofertadas é que entrevistaremos os professores responsáveis pelas mesmas, a fim de completarmos informações sobre
estas duas disciplinas. 8Ensino Médio. 9Ensino Fundamental.

57
tratarem das disciplinas do curso, dos conteú- no produzir ele tem que saber...porque
dos a elas vinculadas, das suas opções teóricas, assim todos os estágios que a gente fez
das expectativas em relação ao aluno da escola o que a gente usou mais foi produção
básica, etc. sempre...leitura também...então é duas
Para melhor discutirmos a complexidade que disciplinas que eu elencaria... (K)
envolve a relação entre teoria e prática, no es-
paço da formação do aluno de Letras, no item Nas duas sequências discursivas acima (1 e 2),
a seguir, pretendemos analisar representações como procedimento de análise, destacamos
veiculadas nos discursos dos alunos. duas passagens, respectivamente: i) ela ajudou
bastante a gente... quando vai é::: trabalhar a
Entre teoria e prática: representações dos alu- questão de produção textual com os alunos...; ii)
nos e a partir disso a gente vai ajudar o aluno a de-
senvolver o texto dele.
Destacamos a seguir alguns recortes extraí- Estas duas passagens remetem à centralidade
dos de entrevistas realizadas com os alunos. Os que adquire o trabalho com a com leitura e es-
recortes estão agrupados em temas que, de crita nas atividades de estágio, embora a produ-
acordo com nossas análises, parecem fornecer ção textual seja mais referenciada.
referências para as representações dos alunos. É importante observar que nestes discursos a
Assim, destacamos como temas nos quais se valorização da leitura e da escrita se volta não
ancoram as representações dos alunos: a im- apenas para uma expectativa que o futuro pro-
portância do domínio da produção escrita para fessor tem em relação ao desempenho do alu-
o ensino de Português e aspectos que justificam no da escola básica, mas também em relação
a necessidade do trabalho com o texto na sala ao seu próprio domínio da produção escrita. Ou
de aula. seja, nas representações dos alunos, o domínio
textual favorece o trabalho do professor em sala
O domínio textual como subsidio à prática de
de aula.
ensino de Português
No entanto, como todo discurso não se constitui
na sua homogeneidade, no item a seguir, traze-
mos alguns recortes que nos mostram que um
1.(...) teve uma disciplina... inclusive lei-
discurso estabelece relações dialógicas com di-
tura e produção textual I... que a gente
ferentes discursos e nesta relação interdiscur-
aprendeu a fazer resumo...resenha... a
siva produzem-se deslocamentos de sentidos.
questão de tópico frasal... coesão... co-
Assim, as representações do aluno sobre a pre-
erência... a gente aprende muito muito
sença do texto na sala de aula se ancoram em
(...) ela ajudou bastante a gente... quan-
outros sentidos mobilizados por outras condi-
do vai é::: trabalhar a questão de produ-
ções históricas e ideológicas.
ção textual com os alunos...na/nos está-
gios...a gente passa a ter outra visão...
de como que vai...a gente vai poder tra- Expectativas que sustentam a prioridade do
balhar...abordar os assuntos... enfim... trabalho com o texto
essa disciplina a gente trabalhou bas-
tante... (L.)3 As sequências discursivas abaixo movimentam
sentidos que extrapolam a relação entre o aluno
e o discurso da relação entre conhecimento e
2.para mim a disciplina teoria literária prática. Valores e expectativas da sociedade em
I e produção textual...principalmente relação ao domínio da leitura e da escrita pa-
produção textual... porque a partir des- recem dialogar com as representações que se
sa disciplina a gente vai aprender é::...a voltam para a importância do domínio da leitura
gente vai aprender a fazer... a organizar e da escrita por parte do aluno da escola básica.
uma produção... uma produção textu-
al...e a partir disso a gente vai ajudar 3.isso é importante uma vez que o alu-
o aluno a desenvolver o texto dele...e no...quando for inserido já está inserido
teoria literária I porque ensina os ele- nos contextos sociais...mais quando ele
mentos da narrativa...né?...que pro alu- saírem do ensino médio...adentrar na
universidade...adentrar no mercado de
trabalho...ele vai ter que ter habilidade

10
Cada recorte apresentado leva a inicial do nome do entrevistado

58
com relação a essa questão da leitura e mental da leitura, é necessário destacar que a
produção textual...a leitura de diversos importância atribuída à competência textual se
gêneros...e querendo ou não ele vai ter estende a diferentes espaços de interação hu-
que desenvolver esse tipo de habilida- mana e não somente às necessidades advindas
de... (A) do campo do trabalho. No entanto, o que merece
ser destacado nos discursos dos recortes 5 e 6
4.... é principalmente a de produção é a concepção de língua. A aposta é na apren-
textual...né? ela é importante pro aluno dizagem fora das condições de uso da língua,
ter uma base é::: de é:... como é que eu ou seja, aprende-se a escrever para fazer uso
te digo?...vai servir pra ele futuramen- da escrita futuramente, na vida adulta, quando
te né?...de leitura produção...ele vai se a sociedade assim exigir. As formas verbais no
beneficiar no futuro...quando ele for infinitivo remetem as demandas de letramento a
prestar um vestibular...um concurso... uma temporalidade futura: vamos nos deparar
quando ele for escolher a profissão (M.) com situações que vai exigir da gente uma certa
competência né?...; que ele venha a conseguir
Sublinhamos no recorte 3, as esferas sociais habilidade de desenvolver todos os gêneros...
hierarquicamente distribuídas como agências em diferentes situações...
de letramento propiciadoras de habilidades que Escapa a esta concepção de letramento a di-
o aluno deve adquirir para enfrentar o mundo mensão histórica da língua e seu caráter vivo e
do trabalho. Prevalece nesse discurso a função situado nas práticas sociais.
instrumental da escrita numa sociedade produ-
tiva. A adesão ao texto sob o manto da recusa à tra-
Ainda trilhando uma perspectiva instrumental dição
da leitura e da escrita, no recorte 4, mantém-se
a lógica da necessidade de letramento escolar Identificamos ainda em nossos dados a presen-
para que os indivíduos sejam mais produtivos e ça de um discurso de adesão ao trabalho com
possam atender de forma eficiente as exigên- o texto como forma de rejeição aos estudos da
cias dos setores de produção. gramática normativa. Assim vejamos:
7. A gente sabe que o curso de Letras
Habilidades e competências necessárias às
tá formando professor...e aí o objetivo é
demandas pragmáticas da vida
não usar aquele método antigo...que os
professores simplesmente por exem-
5. Eu acho que é isso... habilitar o aluno plo...toda vez que a voltava das férias
pra/pras práticas reais da vida social... eles passavam uma redação...ah:: tipo
porque é... em decorrer da nossa vida a de forma aleatória...não a gente quer
todo momento nós vamos nos deparar passar assim...de forma contextualiza-
com situações que vai exigir da gente da...assim que a gente explicou antes...
uma certa competência né?... então tra- pra eles o que como vai produzir...como
balhar esses aspectos...da leitura...tra- é que funciona pra é...eles poderem che-
balhar o aspecto do gêneros textuais... gar na produção final deles...tem todo o
que são coisas reais da nossa vida acho contexto...não de forma aleatória...que
essencial... (E.) a gente não concorda muito... (L.)

6. ...então a importância principal é ele 8. A gente mostrou pra os alunos como


venha se inserir em todos os meios... os elementos de coesão e coerência...
num sentido que ele venha a reconhe- é a gente mostrou pra os alunos como
cer os gêneros textuais... e que ele ve- os elementos de coesão e coerência
nha saber como utilizá-los...em deter- são fundamentais pra compreender
minados lugares que ele frequenta... a estrutura de um texto... (...)a gente
seja numa feira...seja num outro even- chegou a professora colocou vamos
to...na palestra...que ele venha a conse- trabalhar coesão e coerência...a gente
guir habilidade de desenvolver todos os pegou algumas atividades e levamos
gêneros...em diferentes situações... (N.) pra sala de aula...mas não no sentido de
chegar e ensinar uma nova gramática...
novos conceitos não... o que a gente
tentou foi facilitar pra o aluno quando
Em 5 e 6, embora persista a perspectiva instru-
ele pegar um texto ele conseguisse

59
entender...saber o que que o autor tá lhor compreensão dos processos formativos,
querendo dizer...através de mecanismos tanto na universidade como na escola básica.
linguísticos...através conectivos através
de verbos pronomes...foi isso que a
gente tentou fazer... (E. )
Algumas ‘marcas na materialidade linguística
dos recortes 7 e 8 indiciam avaliações negativos
e positivos que estabelecem dicotomias entre
objetos e entre práticas. O enunciado “Não usar
aquele método antigo”, ao mesmo tempo em
que recusa um método (a prática da redação es-
colar, por exemplo), marca a adesão a um novo
método (a produção textual situada nos contex-
tos sociais). Neste mesmo sentido, o enunciado
“mais não no sentido de chegar e ensinar uma
nova gramática” trabalha em direção ao silen-
ciamento ou negação de uma prática que, nas
representações dos alunos, deve ser superada.
Vejam que no discurso da sequência 8, o traba-
lho com a gramática contracena de forma oposi-
tiva com conceitos de coerência e coesão.

Considerações Finais

Neste trabalho, nossa proposta foi identificar


que objetos de ensino são referenciados pelo
aluno de Letras em atividades de estágio e que
representações de professor de língua materna
se produz na relação teórico-prática. Mobiliza-
mos em nossas análises o Projeto Pedagógico
do Curso que define seus objetivos, perfil de
profissional e habilidades e competência que
este profissional deve adquirir no percurso de
formação. Elegemos as disciplinas Linguística
Textual e Leitura e Produção Textual como re-
ferência para delimitarmos os objetos de ensino
selecionados pelos alunos durante as ações de
estágio.
Constatamos nas atividades de estágio a centra-
lidade dispensada ao trabalho com o texto em
sala de aula. A centralidade dada ao texto pelos
futuros professores de Letras, tanto para reali-
zação de práticas de leitura quanto de escrita,
coloca o sujeito numa relação com muitas vo-
zes, por isso mesmo, não se pode esperar uma
relação especular entre a teoria e a prática. De-
ferentes discursos situados em diferentes for-
mações ideológicas contracenam na constitui-
ção identitária do sujeito em formação.
A constatação em nossas análises de diferentes
discursos dialogando com o discurso do aluno
nos sinaliza que a pesquisa, não só do professor
universitário, mas também do aluno de Letras,
deve estar presente como forma de apreensão
de alguns elementos da complexidade da for-
mação docente, enquanto possibilidade de me-

60
Referências

BAKHTIN, M/VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Huicitec, 1988.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CORTESÃO, Luiza. Ser professor: um ofício em risco de extinção? 2. ed. São Paulo: Cortez/ Instituto
Paulo Freire, 2006.

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representações e construção do saber. Campinas, SP: Mercado de letras. 2005, p. 229-244.

CUNHA, Renata Barrichelo. Lembranças de escola na formação inicial de professores. In: _____ e
PRADO, Guilherme de Val Toledo (orgs.). Percursos de Autoria: exercícios de Pesquisa. Campinas,
SP: Alínea, 2007, p. 97 - 111.

GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ILARI, R. A Linguística e o ensino da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

KLEIMAN, A. As metáforas conceituais na educação linguística do professor: índices de transforma-


ção de saberes. In:_____(org.) Letramento e formação de professores: práticas discursivas, repre-
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KOCH, I. G. V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1984.

KOCH, I. G. V. A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1993.

61
FÁBRICA DE TEXTOS: A PRODUÇÃO TEXTUAL A PARTIR
DAS SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS

Bruna Kellen Almeida Tavares


Kelren Gomes Nascimento
Uriel Jonathas Freitas da Silva Penha¹
¹Universidade Federal do Amazonas-UFAM/E-mail para contato: kellem_07@hotmail.com

RESUMO 1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo apresentar aos Através de relatos de professores do ensino bá-
alunos do curso de letras e alunos do ensino bá- sico de escolas públicas e concursos de produ-
sico novas técnicas de produção de textos a par- ções de escrita realizados em Manaus, consta-
tir de pesquisas desenvolvidas pela Linguística ta-se que a cidade tem alto índice de problemas
Textual, pelos estudos dos Gêneros Textuais e em relação à produção e trabalho com Gêneros
contribuições de outras correntes relacionadas Textuais. Podemos destacar como um dos fato-
à linguagem humana, como a Análise do Discur- res que contribuem para esses problemas, a fal-
so e a Filosofia da Linguagem. ta de embasamento teórico e técnicas de ensino,
O projeto “Fábrica de Textos: a produção textual por parte dos docentes de escolas públicas.
a partir de sequências didáticas” terá como me- A partir dessa observação surgiu a ideia do
todologia de trabalho a elaboração de oficinas Programa Atividade Curricular de Extensão –
a partir de sequências didáticas, estratégia que (PACE), para formar um método de ensino desti-
vem sendo utilizada com muito êxito na Olimpía- nado aos professores do ensino básico, baseado
da de Língua Portuguesa. nos Elementos da Textualidade (Aceitabilidade,
Portanto, o projeto visa o estudo da referencia- Informatividade, Coesão, Coerência, Intertextu-
ção, das estratégias de progressão textual, os alidade, Situacionalidade e Intencionalidade).
recursos de progressão e manutenção temáti- A possibilidade para realização desse projeto
cas, assim como a apresentação de outros tó- de extensão atribui-se, também, ao apoio que
picos responsáveis pela construção da tessitura a Universidade Federal do Amazonas – (UFAM)
textual. disponibiliza a projetos que incentivam ao prin-
Com isso, os alunos de Língua Portuguesa terão cípio de indissociabilidade entre ensino, pes-
acesso às informações de grande relevância no quisa e extensão. Com isso o Prof. Msc. Claudio
que se refere à prática da redação escolar, tão Sampaio Barbosa, do departamento de Letras-
exigida nos concursos públicos para o aceso às -Língua e Literatura Portuguesa, em conjunto
instituições de ensino e para o ingresso em em- com os discentes da universidade, deram início
prego público e privado. ao programa nomeando-o “Fábrica de Textos: a
Com o projeto houve, de certa forma, uma mu- produção textual a partir das sequências didáti-
dança de paradigma: o texto passa a ser visto cas” no primeiro semestre do ano de 2013, com
não apenas na sua superfície, mas também na objetivo de apresentar os métodos aos docentes
sua pragmática. Isso significa dizer que os ex- do ensino básico, como meio diferenciado de de-
tensionistas percebem que a produção de texto senvolver o ensino e as práticas de produções
necessita de um olhar mais ampliado no que se textuais em sala de aula.
refere aos fatores de textualidade, despertando- Tendo como ponto de partida a atividade reali-
-os para a necessidade de um aprofundamento zada com os professores viu-se a necessidade
teórico contínuo. Também para os professores de colocar em prática o tripé da universidade,
que participaram acreditamos que houve um onde o ensino se tornou pesquisa e posterior-
impacto: perceberam a riqueza de possibilida- mente houve a necessidade da extensão dos
des que as recentes pesquisas linguísticas ofe- métodos para as escolas através dos Gêneros
recem ao trabalho docente do ensino básico no Textuais utilizados na Olimpíada de Língua Por-
que se refere à redação escolar, muitas vezes o tuguesa relacionando-os com os Elementos da
“calcanhar de Aquiles” dos professores de por- Textualidade, trabalhados da primeira etapa do
tuguês. programa.
Esse segmento se desenvolveu no segundo se-
PALAVRAS-CHAVE: Projeto; Textual; Linguísti- mestre de 2013, onde se formaram oficinas de
ca; Técnicas e Produção. estudos que elaboravam estratégias didáticas

62
para suprir a necessidade dos alunos de ensi- resultado foi as elaborações de textos, com os
no básico diante a produção de texto, a redação, gêneros textuais escolhidos, realizados pelos
visto como objeto complexo a se produzir, jun- alunos.
tamente com auxílio dos gêneros cobrados nas
Olimpíadas de Língua Portuguesa nas escolas 3.1- ALGUNS RELATOS PESSOAIS DOS EXTEN-
da rede pública, com intuito de apresentar aos SIONISTAS
alunos.
Participar do projeto, Fábrica de Textos: a pro-
2- MATERIAIS E MÉTODOS dução textual a partir das sequências didáticas,
me fez ver como problemas que enfrentamos
Para o desenvolvimento e realização do Pro- no ensino médio, em relação a produção textu-
grama Atividade Curricular de Extensão (PACE) al, podiam ter sido resolvidos com mais facili-
“Fábrica de Textos: a produção textual a partir dade. Que o “monstro” chamado redação não é
das sequências didáticas, as seguintes técnicas um monstro tão terrível assim. Claro, que como
são utilizadas: sempre fui amante da Língua Portuguesa, nunca
tive grandes dificuldades em relação a produção
1. Organização da equipe para pesquisar textual mas confesso que, os elementos traba-
a fundamentação teórica do projeto. lhados no PACE, ajudariam e muito no desen-
volvimento das várias redações criadas durante
2. Divisão de tópicos para cada meu ensino básico.
extensionista, visando o Destaco, ainda, minha satisfação como futura
desenvolvimento da fundamentação professora de Língua Portuguesa em poder ter
teórica mais aprofundada. ajudado, mesmo que em pequena proporção,
alguns alunos a conhecer essas técnicas para
3. Reuniões realizadas semanalmente facilitar seu desenvolvimento acadêmico. Onde
para decidir prioridades e adptar o os mesmos se mostraram, durante todo o pro-
conteúdo programático ao ensino jeto, muito interessados a aprender, a discutir,
básico. Além de definir o tipo de dar opiniões, levantar questionamentos, enfim,
atividades pedagógicas. foi uma sensação de dever cumprido vê-los tão
interessados nessa problemática, e saber que
4. Apresentação das novas abordagens
os ajudamos, pois isso faz parte da rotina deles,
e a realização de atividades teóricas e
que existe essa necessidade de uma outra for-
práticas de produção de texto. Como
ma de metodologia no que diz respeito ao ensino
a redação escolar, mas dentro do viés
de fabricação de redações.
da linguística de texto e estudo da
Claro que não poderia deixar de citar meu cres-
linguagem.
cimento como acadêmica. Obtive novos conheci-
5. Recursos materiais utilizados: slides, mentos, aprendi, juntamente com meus colegas,
internet, livros, lousa e pincel. a usar os elementos da textualidade para facili-
tar o aprendizado, para melhorar uma redação,
3. RESULTADOS para ajudar nossos futuros alunos em suas di-
ficuldades e, quem sabe, ajuda-los a entrar em
O projeto atingiu as expectativas iniciais porque universidades públicas, passar em concursos,
conseguiu despertar nos etc. Tudo isso a uma pequena iniciativa, a um
extensionistas o interesse por novas aborda- novo modo de olhar a didática de ensino. Mas
gens de produção de textos originários de cor- creio que esse é um dos princípios da aprendi-
rentes linguísticas recentes, como a Linguística zagem, estarmos sempre em desenvolvimento,
Textual e a Análise do Discurso. sempre repassando conhecimento obtido dia-
Acreditamos que esse mesmo impacto ocorreu riamente.
com os professores que participaram da apre- Kelren G. Nascimento
sentação dos extensionistas. Afirmamos isso
porque a grande maioria dos alunos se envolveu
nas tarefas indicadas pelos extensionistas, de-
mostrando interesse em assimilar aquela pers- O PACE, Fábrica de Textos: a produção textual
pectiva de produção de textos. a partir das sequências didática foi de grande
Houve interesse, também, por parte de institui- importância para o meu aprimoramento
ções de ensino fora da universidade para adotar acadêmico, pois através do projeto consolidei
o projeto em escolas do ensino básico. uma nova perspectiva de aprendizagem sobre
No segundo semestre de realização do PACE, o a produção textual que até aquele momento

63
era desconhecido e limitado a todos do grupo jeto, levando-o até as escolas. Os discentes ex-
de pesquisa. Dessa forma houve um interesse tencionistas estão nesta fotografia (Figura 1), da
pelas novas correntes linguísticas, como a realização final da primeira parte do programa.
linguística textual que auxilia na reformulação
de uma didática inovadora.

Uriel J. F. da Silva Penha

4. DISCUSSÃO

O Pace “Fábrica de Textos: a produção textual a


partir das sequências didáticas” teve início com
uma reunião de planejamento. Num segundo
momento, realizamos a pesquisa em busca de
elaborarmos uma fundamentação teórica que
estivesse de acordo com o projeto.
Após selecionarmos o material, dividimos os tó-
picos para cada extensionista, visando ao aper-
feiçoamento da fundamentação teórica. Depois Figura 1. Discentes extensionistas da primeira etapa do projeto.
Da esquerda para direita, respectivamente; Rebeca Cabral, Naya-
disso, reiniciou-se as pesquisas - nesse momen- ra de Farias, Gisele Fonseca, Uriel Penha, Kelren Nascimento,
to cada extensionista pensando somente em seu Alessandra da Costa, Suzana Aquino, Cristina Viana, Bruna Tava-
res e Érika da Cruz.
tópico – com o intuito de aprofundar e adaptar o
conteúdo programático ao ensino básico, levan-
do, portanto, em consideração apresentação aos A última etapa foi decorrente da produção do
professores do ensino médio no final do projeto. segundo semestre de 2013, a segunda parte do
A apresentação foi feita embasada nos elemen- programa. apresentação que ocorreu em insti-
tos da textualidade (Aceitabilidade, Informati- tuição de ensino básico da rede pública, com alu-
vidade, Coesão, Coerência, Intertextualidade, nos que participavam da Olimpíadas de Língua
Situacionalidade e Intencionalidade), Funda- Portuguesa. Na ocasião, a equipe apresentou
mentados na obra de Maria da Graça Costa Val, novas abordagens de produção textual a partir
Redação e Textualidade (2004), que são emba- dos estudos da Linguística Textual, em conjunto
sados na linguista textual, que foi desenvolvida com os três Gêneros Textuais mais relevantes
na Europa na década de 60, e estuda a natureza as séries indicadas, os Gêneros são: artigo de
do texto e os fatores envolvidos em sua produ- opinião, crônicas e memórias literárias. 
ção sendo referente pra quem se interessa pelo   Foi uma grande oportunidade para os alunos
trabalho com a expressão escrita na escola. Os do Curso de Língua Portuguesa da UFAM apli-
elementos da textualidade foram separados de carem o conhecimento desenvolvido ao longo do
acordo com a unidade dotada sociocomunica- período com a extensão a um ambiente real de
tiva, semântica e formal. A sociocomunicativa: sala de aula. Como evidencia o relato de alguns
tem a ver com seu funcionamento enquanto atu- extensionistas serviu bastante para eles viven-
ação informacional e comunicativa. A intencio-
nalidade, aceitabilidade, situacionalidade, infor-
matividade, e a intertextualidade. A Semântica:
trabalha a coerência do texto e a Formal: trata
da coesão.
Adotamos os elementos da textualidade exem-
plificando seus conceitos priorizando seus sig-
nificados, abrindo mão de nomenclaturas, pois
entende-se que os alunos tem certa dificuldade
em assimilar a nomenclatura, então, trabalhan-
do com seus significados fica mais fácil a com-
preensão por parte dos discentes. Assim monta-
mos as estratégias para repassar o assunto aos
professores do ensino básico, feita no auditório
da Universidade.
Em consequência dessas propostas houve con- Figura 2. Discentes extensionistas identificados da esquerda para
siderável aceitação por parte dos professores. direita, Kelren Nascimento, Diene Amaral, Adriane Oliveira, Bru-
Incentivando a equipe a dar seguimento no pro- na Tavares, Robert Rosas, Bryana Connie, Uriel Penha e Luciana
Anjos.

64
ciarem a prática pedagógica de um professor e
experimentar a sensação de estar na linha de
frente da construção da educação do nosso país.
Alguns dos extensionistas participantes da se-
gunda etapa do PACE estão na fotografia (Figura
2 e 3).

Figura 5. Extensionistas de Memórias Literárias e Artigo de Opi-


nião, da esquerda para direita, Diene Amaral, Uriel Penha, Luciana
Anjos e Bryana Connie.

Figura 3. Discentes extensionistas da segunda etapa do PACE, da


esquerda da direita, Sara Barros, Neivana Rolin, Robert Rosas,
Bryana Connie, Luciana Anjos, Diene Amaral e Stephane Pires.

O trabalho com as oficinas de criação foram di-


vididas em três grupos pequenos de acordo com
as quantidades de Gêneros escolhidos, nesta
fotografia (Figura 4, 5 e 6) estão alguns discen-
tes de Memórias Literárias, Crônica e Artigo de
Opinião.
Figura 6. Extensionistas de memórias Literárias, a esquerda, Die-
ne Amaral; a frente, Luciana Anjos e a direita, Bryna Connie.

Figura 4. Discentes extensionistas de Memórias Literárias e Crôni-


ca, da esquerda para direita, Sara Barros, Bryana Connie, Luciana
Anjos, Diena Amaral e a frente, Stephane Pires.

Figura 7. Alunos do ensino básico juntamente com os extensionis-


tas.
A aceitação dos alunos de ensino básico foi mui-
to satisfatória em relação apresentação dos mé-
todos ensino de produção textual. O aprendizado O projeto teve um excelente aproveitamento.
pode ser visto nas redações produzidas por eles, Levando-se em conta as expectativas iniciais, a
e textos relacionados aos outros gêneros. Nesta experiência despertou nos extensionistas o in-
fotografia (Figura 7) estão alguns dos alunos das teresse por novas abordagens de produção de
turmas trabalhadas na instituição. textos originários de correntes linguísticas re-

65
centes, como a Linguística Textual e a Análise partir de novas abordagens linguísticas, tendo
do Discurso, ao mesmo tempo em que foi apre- como metodologia as sequências didáticas re-
sentado aos alunos do ensino básico novas pos- sultou em nível bastante satisfatório.
sibilidades de produção textual. Aprimorou o conhecimento teórico relacionado
à produção textual dos alunos de Língua Portu-
guesa por meio da Linguística Textual, dos Gê-
5. CONCLUSÃO neros Textuais e de outras correntes dos estu-
dos da linguagem. E oportunizou aos alunos de
O programa de PACE, Fábrica de Textos: a pro- Língua Portuguesa um espaço de debate sobre o
dução textual a partir de sequências didáticas conteúdo programático referente à produção de
foi desenvolvido para ajudar na metodologia de
texto no curso de Letras da UFAM.
ensino utilizada em sala de aula na produção de
textos, visto a problematização que os alunos
têm diante ao texto. 6. AGRADECIMENTOS
Com o programa de PACE, Fábrica de Textos: a
produção textual a partir de sequências didáti- Agradecimentos a Pró-Reitoria de Extensão e
cas objetiva-se garantir estratégias que contri- Interiorização (PROEXTI) da Universidade Fede-
buem para o aprendizado do aluno, que ajudem ral do Amazonas, ao Departamento de Língua
a diminuir a complexidade relatada pelos alu- e Literatura Portuguesa, aos Professores da
nos ao desenvolver uma simples redação, ou de Secretária de Estado de Educação e Qualidade
qualquer gênero. de Ensino do Amazonas – SEDUC/AM, aos dis-
Os alunos do curso de Letras- Língua e Litera- centes participantes do projeto, o coordenador,
tura Portuguesa e alunos do ensino básico, ao Claudio Sampaio Barbosa e ao vice–coordena-
utilizarem as técnicas de produção de textos a dor, Robert Langlady Lira Rosas.

7. REFERÊNCIAS

COSTA VAL, MARIA DA GRAÇA. Redação e textualidade. Ed. Martins fontes, 2004.

CLARA, REGINA ANDRADE. ALTENFELDER, ANNA HELENA. ALMEIDA, NEIDE. Se bem me lem-
bro...: caderno do professor: orientação para produção de textos. 1. Memórias (Gênero literário) 2.
Olimpíada de Língua Portuguesa 3. Textos I - São Paulo : Cenpec, 2010.

FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textual. Editora Ática, 5ªedição, 2004.

Laginestra, Maria Aparecida, Pereira, Maria Imaculada. A ocasião faz o escritor: caderno do profes-
sor: 1. Crônicas (Gênero 2. Olimpíada de Língua Portuguesa 3. Textos literário) São Paulo: Cenpec,
2010.

PLATÃO E FIORIN. Lições de texto-Leitura e redação, 5ªedição, 2006.

RANGEL, Egon de Oliveira; GAGLIARDI, Eliana, HELOÍSA, Amaral. Caderno de artigo de opinião –
Olimpíadas de português - Pontos de vista: caderno do professor: orientação para produção de
textos. São Paulo Cenpec, 2010.

66
ENSINO-APRENDIZAGEM DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS: EXPERIÊN-
CIAS DOS PROJETOS “ESCOLIBRAS” E “NA PALMA DA MÃO”

Carlos Rodrigo Moraes de Souza


Huber Kline Guedes Lobato
Arlete Marinho Gonçalves

RESUMO ocupações é conseguir que ela compreenda e


desenvolva suas habilidades intelectuais e cog-
Esta pesquisa tem como objetivo analisar as im- nitivas. As crianças por sua vez por mais recep-
plicações dos projetos “Escolibras” e “Na palma tivas que sejam tanto as ouvintes quanto as sur-
da mão”, projetos estes que possuem ações vol- das ficam visivelmente distanciadas quando não
tadas para o enriquecimento do processo ensi- é dada a elas a oportunidade de comunicação.
no-aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais No Brasil, a educação de surdos está direta-
em turmas regulares do 1º ao 5º ano do ensino mente interligada com o uso e difusão da Língua
fundamental em duas escolas públicas do mu- Brasileira de Sinais, pois é preciso que pessoas
nicípio de Breves-Pará, tais escolas são: Esco- surdas e ouvintes conheçam o universo desta
la Dr. Lauro Sodré e Escola Profª Emerentina forma de comunicação, para que assim o pro-
Moreira de Souza. A metodologia adotada foi a cesso ensino-aprendizagem ocorra de forma
pesquisa de campo de abordagem qualitativa e rica e significativa. Para Karnopp, (1994) a Lín-
estudo de caso, sendo que, os sujeitos investi- gua Brasileira de Sinais tem como função pri-
gados foram: 02 (dois) diretores escolares e 02 mordial facilitar e propiciar a pessoa surda o
(dois) coordenadores pedagógicos das referidas seu desenvolvimento linguístico-cognitivo e ser-
vir de apoio para a leitura e compreensão, além
escolas. Utilizou-se como técnica de coleta de
disso, essa língua auxilia no processo de apren-
dados a entrevista semi-estruturada. A pesqui-
dizagem, especialmente na sua escrita.
sa está ancorada nos autores: Sá (2011); Kar-
Neste sentido, apresentar a língua de sinais para
nopp (2004); Silva (2012), Albres (2012) e outros. crianças surdas e ouvintes, permite a princípio
Os resultados apontam que as metodologias após terem aprendido um grupo de sinais, cons-
adotadas nos projetos se apresentam de forma truir naturalmente sua comunicação. É notório,
diversificada, com a utilização de materiais con- que ao acontecer esse processo de interação
cretos, livros didáticos, apostilas e a lousa como ocorre a expansão do conhecimento de Libras,
recurso pedagógico. A mesma pesquisa, tam- favorecendo a comunicação entre a comunidade
bém revela que as dificuldades dos professores surda e ouvinte.
são muitas, tais como: a falta de recursos didáti- Essas experiências estão sendo possíveis nas
cos; as escolas ainda não têm recursos financei- Escolas Municipal de Ensino Fundamental Dr.
ros para a compra de materiais didáticos para o Lauro Sodré e Emerentina Moreira de Souza,
ensino de Libras e o tempo das aulas é incipien- onde a cada dia percebemos que a partir das
te. Este estudo nos mostra que as expectativas ações dos projetos “Escolibras” e “Na palma da
dos entrevistados relacionam-se a vontade das mão” surdos e ouvintes estão cada vez mais in-
ações dos projetos não serem ações isoladas, teragindo e comunicando-se no âmbito escolar.
mas que continuem nos anos posteriores e que Assim, as escolas construíram e efetivaram os
outras escolas - assim como a sociedade como projetos, que têm como principal meta propiciar
um todo - adotem a mesma iniciativa. e ampliar o conhecimento da Língua Brasileira
de Sinais a alunos surdos e ouvintes para que se
PALAVRAS – CHAVE: Ensino-Aprendizagem. possa pensar na possibilidade de efetivação de
Língua Brasileira de Sinais. Inclusão Escolar. uma escola bilíngue.
Segundo Sá (2011) a escola bilíngue é aquela
que possibilita aos surdos acesso, permanência
e sucesso educacional e que possibilita trocas
1. À GUISA DE INTRODUÇÃO culturais e o fortalecimento dos discursos dos
Quando ouvimos falar em inclusão e fazemos surdos na qual as comunidades surdas manifes-
parte desse processo como agentes intermedia- tam sua própria produção cultural e suas pró-
dores ou observamos que quando uma criança prias formas de ver o mundo.
com surdez entra na sala comum, uma das pre- Através dos projetos “Escolibras” e “Na palma

67
da mão” foi permitido que todos os alunos te- Este estudo buscou sensibilizar os educadores
nham o direito de participar de aulas de Língua e a política educacional local, para que os mes-
Brasileira de Sinais dentro do tempo escolar. mos pudessem entender que pessoas que usam
Estes projetos buscam oportunizar situações o meio de comunicação viso-espacial, precisam
que venham divulgar a utilização e o respeito ser reconhecidas no meio onde vivem. Acredita-
da Língua Brasileira de Sinais, em beneficio dos mos que somente dessa forma poderemos pen-
alunos surdos. sar na efetivação de uma escola bilíngue e na
Diante disso, chegamos ao seguinte problema: implementação da Libras como disciplina curri-
quais as percepções que diretores escolares e cular do município de Breves - Pará, principal-
coordenadores pedagógicos possuem sobre os mente no ensino fundamental.
projetos “Escolibras” e “Na palma da mão” da
Escola Dr. Lauro Sodré e Escola Emerentina
Moreira de Souza? A partir desta problemática 2. ENSINO-APRENDIZAGEM DA LÍNGUA BRASI-
surgiram outros questionamentos: quais as me- LEIRA DE SINAIS
todologias e recursos estão sendo utilizados no
processo de aprendizagem da Libras? Quais as
dificuldades e expectativas em relação aos pro-
jetos “Escolibras” e “Na palma da mão”?
Assim, esta pesquisa se desdobra no seguinte
objetivo geral: analisar as percepções que dire-
tores escolares e coordenadores pedagógicos
possuem sobre os projetos “Escolibras” e “Na
palma da mão” da Escola Dr. Lauro Sodré e Es-
cola Emerentina Moreira de Souza. E de forma
específica pretendemos: descrever as metodo-
logias e recursos que estão sendo utilizados no
processo de aprendizagem de Libras para as
crianças do 1º ao 5º ano; e identificar as dificul-
dades e expectativas em relação aos projetos
Imagem 1: ações dos projetos “Escolibras” e “Na palma da mão”
“Escolibras” e “Na palma da mão”.
Fonte: arquivo dos projetos “Escolibras” e “Na palma da mão”,
Para dar conta da pesquisa foi utilizada como
2014.
metodologia a abordagem qualitativa, com a uti-
lização do estudo de caso, pois de acordo com 2.1 Sobre o projeto Escolibras da EMEF Dr.
Gil (2002 p. 54) “consiste no estudo profundo e Lauro Sodré
exaustivo de um ou poucos objetos, de manei-
ra que permita seu amplo e detalhado conhe- O projeto Escolibras foi criado em 2010, na EMEF
cimento”. E como técnica de coleta de dados Dr. Lauro Sodré, com o intuito de contribuir com
foram utilizadas a entrevista semiestruturada, o processo de inclusão educacional de surdos
com uso de questionário aberto e a observação matriculados nas classes comuns da escola,
do cotidiano educativo com a utilização de um propiciando aos educandos surdos um ambiente
caderno de campo e o uso de uma máquina fo- bilíngue.
tográfica. Ao iniciar o projeto na escola Dr. Lauro Sodré,
Para Manzini (2003) a entrevista semiestrutura- foi feito um levantamento sobre o perfil dos alu-
da é uma maneira de buscar informações face nos surdos e o resultado apresentado apontou
a face com o entrevistado. Os sujeitos investi- que, diferente dos ouvintes, grande parte das
gados em nosso estudo serão denominados: crianças surdas entram na escola sem o conhe-
Diretor (LS), Diretor (EM), Coordenador (LS) e cimento da Libras e sem o diálogo com o alu-
Coordenador (EM). As siglas referem-se res- no ouvinte. Além disso, a maioria das crianças
pectivamente as nomenclaturas das Escolas Dr. surdas vinham de famílias de ouvintes que não
Lauro Sodré e Escola Emerentina Moreira de tinham conhecimento da Libras.
Souza. Assim, os dois professores responsáveis pelo
Para a análise foi utilizado o conteúdo temático projeto organizaram o ensino de Libras em dois
ou semântico. Esta técnica aplica-se à análise momentos: 1) os alunos do 1º ao 3º ano rece-
de textos escritos, orais, imagéticos ou gestu- bem um professor de Libras que tem como ob-
ais, permitindo uma compreensão das comuni- jetivo apresentar os sinais e ensinar a Libras em
cações no seu sentido e atribuindo-lhes signifi- forma de brincadeiras e ilustrações; 2) os alu-
cados (BARDIN, 2011). nos do 4º e 5º ano recebem instrução acerca da
Libras, levando em consideração a estrutura e

68
a gramática desta língua e fazendo com que o pe pedagógica do Centro de Atendimento Edu-
aluno conheça a língua de sinais de acordo com cacional Especializado Hallef Pinheiro Vascon-
suas regras. celos do Município de Breves e assim montam
O Projeto Escolibras, tem no seu currículo os o planejamento de ensino mensal e avaliam as
assuntos básicos sobre a Libras, facilitando o atividades do projeto.
entendimento e desenvolvimento dos alunos No final de cada semestre, os professores que
surdos e ouvintes nas atividades propostas em atuam no ensino de Libras e os que atuam em
sala de aula e como base nas regras gramaticais turmas regulares, junto com a Coordenação Pe-
de Libras. Os temas trabalhados no projeto fo- dagógica e Direção Escolar, em reunião de ava-
ram: alfabeto manual; números; escola; cores; liação, verificam por meio do diálogo os acertos
família; calendário (dia, mês e ano); frutas; ali- e falhas ocorridos no decorrer do ano letivo.
mentação; sinais bíblicos; sentimentos; verbos;
agradecimentos; cumprimentos; musicas em
Libras. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para desenvolver o trabalho pedagógico, os pro-
fessores de Libras da escola Dr. Lauro Sodré Nesta discussão ter-se-á como eixos a visão
desenvolvem as seguintes atividades: a princi- dos 04 sujeitos entrevistados acerca das ações
pio trabalham com o alfabeto manual em Libras, dos projetos “Escolibras” e “Na palma da mão”
números, frutas, verbos, datas comemorativas, da Escola Dr. Lauro Sodré e Escola Emerenti-
saudações, e alguns sinais básicos de Libras. na Moreira de Souza. Os resultados da pesquisa
As aulas são realizadas nas turmas do 1º ao 5º serão apresentados por meio das falas destes
ano, ocorrendo de segunda a quinta-feira. Os sujeitos que foram organizados a partir de um
alunos têm aulas semanalmente com duração questionário aberto contendo 03 questões que
de uma hora e trinta (1h: 30m) para cada turma foram direcionadas aos sujeitos.
e os conteúdos foram selecionados de acordo
com cada série/ano escolar.
3.1 - Percepções sobre as metodologias adota-
das nos projetos
2.2 Sobre o projeto na palma da mão da EMEF
Profª Emerentina Moreira de Souza Em relação às metodologias usadas no ensino
de Libras nos projetos, eis o que afirma o Diretor
O Projeto Na palma da mão vem sendo desen- (LS), “[...] são adequadas para as crianças des-
volvido desde o ano de 2011 na Escola Emeren- sa idade. Sempre seguem uma sequência lógi-
tina Moreira de Souza e realiza inúmeras ações ca de aprendizagem”. Para o Coordenador (LS),
durante todo o ano letivo nas diversas turmas as metodologias usadas pelos professores são
regulares da referida escola, com 45 minutos e diversificadas, pois “são utilizadas muitas dinâ-
uma vez por semana em cada turma. Entre as micas como jogos, brincadeiras, músicas, his-
atividades podemos destacar: ensino de lições tórias infantis, teatro e várias outras atividades
básicas em Libras; músicas / vídeos em Libras e lúdicas”.
encenações envolvendo os diversos aspectos da Sobre as questões metodológicas aponta o Dire-
Língua Brasileira de Sinais. tor (EM), as metodologias do projeto “integram a
O Projeto busca promover o ensino da Libras no língua oral com a língua de sinais, o que é funda-
contexto das salas de aula de 1º ao 5º anos do mental para a inclusão”. E o coordenador (EM)
ensino fundamental, contribuindo para o pro- diz que os métodos fazem com que “haja uma
cesso de inclusão escolar dos alunos surdos a maior interação entre os alunos especiais com
partir de novas atitudes pedagógicas do ensino os alunos ditos ‘normais’”.
de Libras no contexto das turmas regulares, Desta forma, Albres, (2012) aponta que:
assim como facilitando a comunicação entre
surdos e ouvintes na escola para que possam Tendo estes elementos como pressu-
ocorrer mudanças significativas no processo de postos para a prática docente, o fazer
inclusão do aluno surdo. pedagógico é favorecido por uma forma
Os professores utilizam vários recursos, tais nova de pensar a metodologia de ensi-
como: cartazes, desenhos / imagens em Libras, no de línguas em seus vários níveis de
data-show, computador, TV, minissistem, livros, complexidade que subentende também
gibis, etc. Os momentos de avaliação do projeto propostas diferentes para a formação
ocorrem em algumas sextas – feiras, em que os de professores (p. 29).
professores de Libras reúnem-se com a equi- Podemos notar que as aulas de Libras são bem

69
diversificadas para poder chamar atenção dos samento de Silva, (2012) quando nos diz que “se
alunos, por ser uma nova língua precisa de mui- o aluno dispuser de um modelo em que se possa
ta habilidade por parte dos professores de Li- orientar o material o ajudará a sanar suas di-
bras, para então, ganhar a confiança desses alu- ficuldades para que, aos poucos, se sinta mais
nos, pois sabemos que as crianças estão muito seguro nas aulas e no contato com os surdos”
envolvidas com um mundo mais inovador, isso (p.123-124). Mesmo, com tais dificuldades apre-
requer criatividade dos professores para que sentadas a Escola busca atender as expectativas
esses alunos permaneçam e aprendam a nova do ensino de Libras preparando materiais que
língua de forma prazerosa. possam ser acessíveis aos alunos.
Nas falas também percebemos a relevância do Em relação às expectativas sobre o projeto na
projeto segundo os sujeitos da pesquisa, que palma da mão salienta o Diretor (EM): “que o
acreditam que as suas ações metodológicas projeto continue realizando ações relevantes e
contribuem para o processo de inclusão edu- que expanda cada vez mais o ensino de Libras,
cacional do aluno surdo. Tais ações favorecem para que com isso o surdo seja de fato incluso”.
a comunicação surdo-ouvinte e ainda faz com E o Coordenador (EM) pontua que: “temos as
que professores e alunos valorizem a identidade melhores expectativas, pois com este projeto
e cultura da comunidade surda por meio da Li- percebemos que os alunos surdos sentem-se a
bras. Conforme a literatura, “quando se trata de vontade em nosso ambiente escolar”.
inclusão, a valorização da língua de sinais para Ao que refere-se às expectativas dos sujeitos in-
os surdos é uma das questões essenciais, como vestigados, podemos constatar que os mesmos
possibilidade de igualdade de condições de de- buscam a continuidade do projeto de Libras nos
senvolvimento entre as pessoas” (LIMA, 2011 p. anos vindouros e também em outras instituições
148). de ensino, pois suas ações, além de contribuí-
Com isso, verificamos que, os sujeitos investi- rem de maneira significativa com o processo de
gados percebem que as ações metodológicas de educação inclusiva do aluno surdo, ainda pro-
ambos os projetos priorizam a língua de sinais e movem a interação dos mesmos no ambiente
contribuem de forma significativa para o proces- escolar.
so de inclusão dos alunos com surdez, fazendo De acordo com Carvalho (2004, p. 165) “precisa-
com que a escola saiba lidar com as diferenças, mos de educadores que aceitem seu papel polí-
e que estes, sintam-se plenamente aceitos pela tico-pedagógico, transformando a sala de aula e
sociedade na qual convivem. a escola em espaços de reflexão crítica”. Acre-
ditamos que idéias e ações que surtem efeitos
positivos em determinados espaços escolares
3.2 Dificuldades e expectativas sobre os pro- precisam ser divulgadas e adotadas em novos
jetos espaços, para que haja melhoria de qualidade
no processo de escolarização inclusiva e de nos-
Neste tópico iremos apresentar as falas ou opi- so sistema educacional em geral.
niões de formas separadas. Primeiramente dis- Diante dos relatos das pessoas que vivenciam
cutiremos sobre as dificuldades apresentadas diariamente as ações dos projetos em comento,
no Projeto Escolibras de acordo com a percep- podemos observar que são muitos os desafios
ção do Diretor (LS) e Coordenador (LS). E, poste- que os profissionais encontram no seu cotidiano
riormente iremos abordar sobre as expectativas escolar, porém o que é mais recorrente é a falta
atinentes ao projeto na palma da mão a partir da de recursos didáticos na área da surdez e o tem-
percepção do Diretor (EM) e Coordenador (EM). po destinado às aulas.
Os relatos da direção sobre a execução do Pro- O que nos deixa feliz e com intensa satisfação
jeto Escolibras apontam as dificuldades encon- em fazer parte deste processo educativo, é de
tradas pela escola, pois “na maioria das vezes saber que existem perspectivas positivas em re-
é a falta de recursos didáticos que impedem os lação às ações de ambos os projetos, para que
professores de realizarem um planejamento di- estes expandam-se cada vez mais no âmbito da
versificado para o ensino de Libras”. educação brevense e com isso possam transfor-
Para o coordenador, as dificuldades encontra- mar significativamente o processo de escolari-
das na execução do Projeto Escolibras estão re- zação de nossos alunos surdos inclusos na es-
lacionadas à “insuficiência de recursos próprios cola regular, e quem sabe num futuro próximo
para a aula de Libras e a falta de recursos visu- construir uma escola verdadeiramente bilíngue
ais disponíveis como: televisão, Datashow e etc”. para surdos.
Em relação às dificuldades no processo ensino-
-aprendizagem da Libras, mencionamos o pen-

70
PARA NÃO CONCLUIR... ações isoladas, mas que continuem nos anos
posteriores e que outras escolas - assim como
Os resultados dessa pesquisa mostram a rele- a sociedade como um todo - adotem a mesma
vância das práticas educativas voltadas para o iniciativa.
ensino da Língua Brasileira de Sinais em tur- Portanto, o que parece ser mais urgente é que
mas regulares, para que desta maneira ocorra a escola receba o apoio de outras instituições e
uma comunicação expressiva entre surdos e ou- órgãos, sejam eles públicos ou não, para que a
vintes, fazendo com que os alunos com surdez política de inclusão seja mais concreta e positi-
possam vivenciar uma escola de fato inclusiva e va. Deve-se também tornar acessível aos sur-
possivelmente bilíngue, que respeite e valorize dos, independente de sua condição econômica,
suas diferenças individuais. novas tecnologias que facilitem sua vida, dessa
A pesquisa também nos mostra que as metodo- forma, deixando de responsabilizar unicamente
logias de ambos os projetos são diversificadas a escola e integrando os diversos setores sociais
e elaboradas de acordo com a faixa etária dos nas políticas inclusivas, podendo-se falar e pen-
alunos das turmas de 1º ao 5º ano, assim todos sar em uma sociedade, realmente inclusiva.
os alunos, tanto os surdos como os ouvintes ga- De forma geral podemos dizer que os resulta-
nham muito com essas metodologias adotadas. dos desta pesquisa foram bastante significativos
A mesma pesquisa, também revela que as di- e enriquecedores, pois revelaram a criatividade,
ficuldades são muitas e também são grandes, a inovação, a vontade e o prazer que os educa-
tais como: a falta de recursos didáticos; a escola dores de uma escola tão distante das áreas mais
ainda não tem recursos financeiros que possam desenvolvidas do país – como é Breves que está
estar investindo em materiais didáticos para o situada na Ilha do Marajó – possuem em promo-
ensino de Libras. Este estudo nos mostra que ver o uso e a difusão da Língua Brasileira de Si-
as expectativas dos entrevistados relacionam- nais no ensino regular.
-se ao fato das ações dos projetos não serem

REFERÊNCIAS
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gua de sinais. In: ALBRES, Neiva de Aquino. Libras em estudo: ensino-aprendizagem / (organiza-
dora). – Sao Paulo: FENEIS, 2012. p. 15 a 36.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto nº 5.626 de 22 de de-
zembro de 2005. Regulamenta a lei 10.436, de 24 de abril de 2002.
CARVALHO, Rosita Edler. Educação Inclusiva: com os pingos nos “is”. Porto Alegre: Mediação,
2004.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002.
KARNOPP, L. B. Aquisição do parâmetro configuração de mão dos sinais da Libras: estudo sobre
quatro crianças surdas filhas de pais surdos. Porto Alegre: Instituto de Letras e Artes, PUCRS.
(Dissertação de Mestrado). 1994.
LIMA, Niédja Maria Ferreira de. Inclusão escolar de surdos: o dito e o feito. In DORZIAT, Ana. Estu-
dos Surdos: Diferentes olhares. Porto Alegre: Mediação, 2011.
MANZINI, Eduardo José. Entrevista semi-estruturada: análise de objetivos e roteiros. Sepg. Anais
GT 03, 2003.
SÁ, Nídia de. Surdos: qual escola? Manaus: Editora Vale e Edua, 2011.
SILVA, Roseli Reis da. O ensino da libras para ouvintes: análise comparativa de três materiais di-
dáticos. In: ALBRES, Neiva de Aquino. Libras em estudo: ensino-aprendizagem / (organizadora). –
Sao Paulo: FENEIS, 2012. p. 104 a 127.

71
O EXAME DE PROFICIÊNCIA EM LÍNGUA PORTUGUESA (EPLP) NAS GRADU-
AÇÕES DA PUCPR: OBJETIVOS INSTITUCIONAIS E PRESSUPOSTOS TEÓRI-
CO-METODOLÓGICOS

Cristina Yukie Miyaki

RESUMO 1. O EPLP da PUCPR

O Exame de Proficiência em Língua Portuguesa O Exame de Proficiência em Língua Portuguesa


(EPLP) foi implementado na PUCPR para todos (EPLP) foi implementado na Pontifícia Universi-
os graduandos ingressantes a partir de 2013, e dade Católica do Paraná – PUCPR - para todos os
surgiu em consonância com a implementação, graduandos ingressantes a partir de 2013, tendo
em 2013, do novo Projeto Pedagógico Institucio- em vista que todo estudante de graduação, fu-
nal, e com o Exame Nacional de Desempenho dos turo profissional nas diversas áreas de atuação
Estudantes. Avalia-se a proficiência para comu- social, deve demonstrar domínio instrumental
nicar-se adequadamente em situações acadê- da língua portuguesa no exercício profissional.
micas e profissionais que exigem o emprego da Este projeto surgiu em consonância com a im-
língua portuguesa padrão, na leitura e na escrita plementação, em 2013, do novo projeto peda-
de textos de natureza expositivo-argumentativa. gógico institucional e dos projetos pedagógicos
Esse exame objetiva avaliar a competência leito- das graduações, que articulam teoria e prática,
ra de diferentes gêneros textuais de base expo- conhecimento científico, conhecimento da rea-
sitiva e argumentativa, e a competência escrita lidade social e competência para projetar ações
de gêneros acadêmicos. Optou-se por uma con- de intervenção.
cepção de linguagem e de gênero tal qual for- A educação emancipadora sustenta-se pela li-
mulada por Bakhtin (1997), compreendendo que berdade acadêmica e pelo desenvolvimento de
o domínio de um gênero é um comportamento competências dos alunos. Nosso projeto peda-
social, o que pressupõe a prática desse gênero gógico institucional (2012) destaca os alunos
na sua esfera de circulação e pertencimento. A como sujeitos ativos na sua formação, na cons-
respeito dessa esfera, Creme e Lea (2003) ar- trução de saberes e na mobilização para o ser e
gumentam que , quando mapeamos uma escrita o fazer. Os projetos pedagógicos dos cursos de
na universidade, pensamos em como escrever graduação têm como norte a Missão da PUCPR,
um ensaio, um artigo ou um relatório, mas é que é a sua identidade: “desenvolver e difundir
fundamental levar em consideração as especi- o conhecimento e a cultura, promovendo a for-
ficidades de um gênero acadêmico dependen- mação integral e permanente de cidadãos e de
do da área do conhecimento e das perspectivas profissionais...”
teórico-metodológicas adotadas pelos saberes A implementação do EPLP também está em
daquela área. Para Flowerdew (2006), existem consonância com o Exame Nacional de Desem-
várias possibilidades ou paradigmas para abor- penho dos Estudantes (ENADE), que solicita dos
dar os gêneros do discurso acadêmico, entre formandos competências como a capacidade de
elas: análise de gêneros, retórica contrastiva, leitura e compreensão crítico-analítica; a com-
análise de corpus e abordagem etnográfica. E preensão das questões científicas, técnicas e
com base em Bourdieu (1998) e Soares (2001), sociais; a capacidade de raciocínio lógico na re-
outro importante aspecto a ser considerado são solução de questões; a capacidade de comuni-
as relações de poder envolvidas nas relações cação e interação.
mediadas pela linguagem, com nosso olhar es- Almeja-se que o acadêmico de graduação da
pecial às instituições acadêmicas. A partir des- PUCPR seja capaz de ler, compreender e inter-
se arcabouço teórico e empírico, analisamos o pretar gêneros textuais de sua área de atuação;
EPLP aplicado nos últimos três semestres na elaborar sínteses; analisar e criticar informa-
PUCPR, e refletimos sobre ações que possam ções; extrair conclusões por indução e/ou de-
inspirar políticas educacionais para a área do dução; detectar contradições; e argumentar
letramento acadêmico na língua materna e sua coerentemente na variante padrão da língua
avaliação. portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: Exame de Proficiência em


Língua Portuguesa; Letramento Acadêmico;
Avaliação de Competências

72
1.1 O EPLP: caracterização e competências reram três aplicações do EPLP.
linguísticas
1.2 Organização da Prova do EPLP
O EPLP é uma forma de o graduando da PUCPR
comprovar o domínio das competências de leitu- A prova apresenta duas partes.
ra e escrita necessárias ao acompanhamento do A primeira é composta por dez questões objeti-
curso e ao futuro exercício profissional. Avalia- vas e tem por finalidade avaliar as competências
-se a proficiência para comunicar-se adequada- de leitura, compreensão e interpretação com
mente em situações acadêmicas e profissionais base em texto(s) de natureza expositivo-argu-
que exigem o emprego da língua portuguesa pa- mentativa. A primeira parte da prova apresenta
drão, na leitura e na escrita de textos de nature- peso 4.0 (quatro).
za expositivo-argumentativa. As questões da prova são elaboradas em lín-
A competência leitora refere-se à capacidade gua portuguesa, podendo ou não conter trechos
de compreensão e interpretação de diferentes extraídos dos textos apresentados. Quanto à ti-
gêneros textuais de base expositiva e argumen- pologia, elas se caracterizam como informati-
tativa. É a habilidade do leitor de construir sen- vo-identitárias; (ii) associativo-dedutivas; e (iii)
tidos a partir do conhecimento da língua e sobre analítico-contrastivas.
como os textos e os discursos são produzidos, Nas questões informativo-identitárias, o es-
tomando como referência seu conhecimento de tudante deverá buscar informações no texto
mundo e o contexto sócio-histórico. e identificá-las segundo um critério de ordem
O conhecimento da estrutura gramatical e do conceitual (identificação de elementos teóricos
funcionamento da língua pode não ser suficiente apresentados no texto); pontual (pontos de vista
como instrumento para a leitura proficiente. É apresentados pelo autor do texto) ou sequencial
necessário também empregar estratégias co- (enumeração de procedimentos relacionados a
muns a leitores competentes: recorrer a títulos, algum procedimento científico apresentado no
subtítulos e a elementos visuais, como gráficos, texto).
figuras e diagramas que acompanham o texto, No que se refere às questões associativo-dedu-
bem como ao conhecimento da fonte, autor, data tivas, o aluno deverá combinar informações no
e outras informações pertinentes da linguagem texto e inferir elementos de ordem argumen-
verbal e não verbal. tativa (relacionados às posições assumidas ou
A competência escrita relaciona-se à capacida- contestadas acerca de algum tópico desenvol-
de de exposição clara de conceitos, análise de vido pelo texto); asseverativa (relacionados às
fatos, interpretação e argumentação adequadas filiações do autor implícitas nas ideias apresen-
na elaboração de textos escritos. Inclui o reco- tadas no texto), ou hipotética (relacionados aos
nhecimento dos gêneros textuais escritos e o questionamentos que porventura o autor pole-
seu emprego adequado às diversas situações de mize em relação a algum tópico desenvolvido
comunicação e interação social, seja no ambien- pelo texto).
te acadêmico, seja no ambiente profissional. E em relação às questões analítico-contrastivas,
Também prevê o emprego dos recursos lin- o estudante examinará informações no texto vi-
guísticos e discursivos que contribuem para a sando compará-las em termos de oposições, di-
expressividade, a originalidade e a criatividade ferenças ou inter-relações quanto aos enfoques
dos textos escritos na variante padrão da língua abordados no texto. 
portuguesa. A segunda parte do EPLP apresenta duas pro-
A aprovação no EPLP é obrigatória para o aluno postas de produção textual escrita, de natureza
realizar estudos e atender requisitos exigidos expositiva e argumentativa, geralmente relacio-
por disciplinas mais avançadas do curso, como nada ao assunto do(s) texto(s) apresentado(s)
o Trabalho de Conclusão de Curso. para leitura na primeira parte da prova. As pro-
A aprovação nesse exame também confere ao duções textuais escritas têm peso 6.0 (seis).
aluno o registro, em seu histórico escolar, de A nota mínima para aprovação no exame é 7.0
que é suficientemente proficiente para ler, com- (sete).
preender e escrever textos em situações for-
mais de comunicação, levando em conta o(s) 1.3 Competências avaliadas no EPLP
interlocutor(es), o propósito comunicativo e as
condições de produção do texto escrito. O Exame de Proficiência em Língua Portuguesa
A prova é aplicada semestralmente, em data e objetiva avaliar o desempenho comunicativo dos
horário únicos, para todos os alunos inscritos de graduandos da PUCPR, especialmente nas se-
todos os campi da PUCPR. Até o momento ocor- guintes competências:
a) leitura, compreensão e interpretação de gê-

73
neros textuais diversos, em especial os de natu- feito e possíveis discrepâncias sejam dirimidas
reza expositiva e/ou argumentativa; b) produção durante a avaliação conjunta por parte da banca.
de texto na modalidade escrita, em especial os Os critérios de correção são agrupados em dois
de natureza expositiva e/ou argumentativa; c) itens.
desenvolvimento do raciocínio lógico e da refle- No quesito Conteúdo do Texto, avaliam-se: a)
xão crítica; d) elaboração de síntese e análise Progressão (grau de informatividade) e coe-
crítica; e) uso adequado das normas da variante rência. Neste item observa-se se o candidato
padrão da língua portuguesa. agrega novas informações à medida que o tex-
Os temas de estudo mais estreitamente relacio- to avança, de modo a formar um todo coerente
nados às competências avaliadas são: a) recur- interna e externamente. b) Qualidade do conte-
sos de textualidade: coesão, coerência, clareza, údo. Neste item considera-se a capacidade do
níveis de informatividade, adequação, inferên- candidato de/para selecionar, relacionar, orga-
cia, articuladores textuais, operadores argu- nizar e interpretar informações, fatos, opiniões
mentativos, etc.; b) estrutura composicional e e argumentos (de prova concreta, de autoridade,
desenvolvimento temático dos gêneros textuais lógicos, linguísticos etc.) – inclui-se aqui o bom
expositivo-argumentativos; c) tese, argumentos uso (equilibrado) da coletânea -, em defesa de
e conclusão; tipos de argumentos e estratégias um ponto de vista, demonstrando conhecimento
argumentativas; d) relações de significação en- dos mecanismos linguísticos necessários para a
tre palavras e sentido das palavras em contextos construção dos gêneros textuais solicitados em
específicos; e) recursos linguísticos e discursi- cada proposta de redação. Neste item avalia-se
vos que contribuem para a expressividade em também a qualidade do título, como parte inte-
textos orais e escritos: discurso direto e indire- grante (cataforicamente) do texto, caso o candi-
to, intertextualidade, modalizadores, figuras de dato tenha optado por colocá-lo.
linguagem e outros recursos retóricos; f) nor- No quesito Linguagem, constam: a) Coesão.
mas que regem a variante padrão da língua por- Neste item avalia-se se o candidato faz uso ade-
tuguesa, tais como ortografia, acentuação, uso e quado e expressivo dos recursos linguísticos -
valor semântico das categorias gramaticais, uso expansão lexical, repetição, substituição, cone-
e transformação das vozes verbais, concordân- xão sintático-semântica, citação, paráfrases etc.
cia nominal e verbal, regências nominal e ver- -, como uma atividade de composição textual. b)
bal, uso do acento indicativo de crase, colocação Norma padrão. Neste item avalia-se se o aluno
dos termos da oração, processos de coordena- mostra domínio da norma-padrão da língua por-
ção e subordinação, sinais de pontuação. tuguesa (regência verbo-nominal, concordância
verbo-nominal, colocação pronominal, flexão
verbal, ortografia, pontuação, acentuação, etc.)
1.4 Sobre a aplicação e a correção

A aplicação da prova ocorre simultaneamente 1.5 Situações de dispensa do EPLP


em todos os campi da PUCPR e tem 4 horas de
duração. O Núcleo de Processos Seletivos (NPS) Para alunos estrangeiros, a dispensa ocorrerá
da PUCPR é o responsável por encaminhar as mediante comprovação do certificado CELPE-
provas para os locais de aplicação, seguindo as -BRAS (Certificação de Proficiência em Língua
mesmas normas de sigilo e segurança do ves- Portuguesa para Estrangeiros), exame desen-
tibular. Também cabe ao NPS a seleção dos volvido e outorgado pelo Ministério da Educa-
profissionais que serão fiscais de sala e dos que ção e reconhecido oficialmente pelo governo do
serão responsáveis pela guarda e reenvio das Brasil. Para alunos brasileiros matriculados em
provas para correção. curso(s) de graduação da PUCPR, ingressantes
Quanto à correção, as dez questões objetivas a partir de 2013, o EPLP é compulsório.
respondidas em gabarito são corrigidas eletro- A aprovação nas provas de língua portuguesa
nicamente. e de redação do vestibular não é requisito para
A avaliação dos textos elaborados pelos alunos é dispensa do EPLP, devido aos propósitos distin-
feita de forma centralizada pelos professores do tos. O vestibular tem objetivo classificatório; o
Curso de Letras e equipe de corretores capaci- EPLP visa avaliar a proficiência nas habilidades
tados. A equipe de avaliadores utiliza uma grade de leitura e escrita na variante padrão da língua
de correção com critérios previamente defini- portuguesa.
dos. Antes de iniciar a correção propriamente
dita, ocorre o processo de parametrização, no 2. Pressupostos teóricos
qual toda a equipe corrige uma amostra de pro-
vas para que o ajuste da grade de correção seja A leitura e a escrita são ações sociais; por meio

74
dos textos os cidadãos organizam as atividades o autor relaciona a escrita acadêmica a outras
e a própria estrutura de convivência e relações áreas do conhecimento além da linguística e da
que se estabelecem em sociedade. Para Soares educação; assim, ao afirmar algo sobre a escri-
(2001), a linguagem é simultaneamente o princi- ta, estamos dizendo algo sobre sociologia; na
pal produto da cultura e o principal instrumento perspectiva filosófica, a escrita é uma declara-
para sua transmissão. ção sobre o que conhecemos, e a leitura é uma
Bourdieu (1998), em seus estudos voltados à forma de aprendizagem.
análise do papel da linguagem na estrutura so-
cial, apontou sistematicamente a relação entre “The academic atmosphere has been in-
a língua e as condições sociais do seu uso em fused with linguistic structuring of tex-
situações de interação verbal. No universo so- tual organization, literary desconstruc-
cial há bens materiais e bens simbólicos, e a lin- tions of textual relations, sociological
guagem pertence a este segundo grupo. O autor readings of social construction through
defende que toda situação linguística funciona language, historical reconstructions of
como um mercado, no qual os bens que se tro- rhetorical events, psychological res-
cam são palavras. O preço do produto linguístico tructuring of cognition, philosophical
não depende apenas das informações veicula- poststructuring of consciousness, and
das, mas também da posição e da importância critical destructions of entrenched dis-
que tem o indivíduo que as veicula na estrutura course in all disciplines.” (Street, 2009,
social, ou da relevância do grupo social a que ele pág.11)
pertence. Lea e Street (1998) apresentam três principais
Nesse mercado linguístico, o que circula não é a perspectivas na tradição dos estudos sobre le-
língua, mas os discursos estilisticamente carac- tramentos acadêmicos no Reino Unido: Habili-
terizados. Os locutores estão situados em posi- dades de Estudo; Socialização Acadêmica; e Le-
ções diferentes no espaço social, cada um com tramentos Acadêmicos. Segundo a perspectiva
intenções e interesses diferentes e, conforme de Habilidades de Estudo, o letramento é um
Bourdieu (1998), impõe-se o recurso a uma lin- conjunto de habilidades atomizadas aprendidas
guagem neutralizada, a fim de estabelecer um pelos estudantes e posteriormente transferidas
consensus prático entre locutores e interlocuto- para outros contextos. A abordagem da Socia-
res parcial ou totalmente diferentes. A aceitabi- lização Acadêmica destina ao professor tutor
lidade não se encontra na situação comunicati- a tarefa de socializar o estudante no ambiente
va, mas na relação entre o mercado e o habitus acadêmico, orientando-o a ler e interpretar ta-
que, segundo o autor, está ligado ao mercado refas para a aprendizagem; é uma perspectiva
tanto pelas condições de aquisição quanto pelas baseada na psicologia social, na antropologia e
condições de utilização. na educação construtivista, e assume que a aca-
Aprende-se a falar não apenas ouvindo um certo demia é uma cultura relativamente homogênea,
modo de falar, mas também falando e oferecen- e que a simples aprendizagem das normas e
do a um mercado determinado um falar deter- práticas fornecerá o acesso a todo o ambiente
minado. No caso dos estudantes de graduação, acadêmico. Esta segunda visão tende a tratar a
ao ingressarem no espaço social das universi- escrita como um meio de representação trans-
dades, iniciam as trocas linguísticas no interior parente, o que é criticado. A terceira abordagem,
desse mercado determinado, que propõe à mi- defendida pelos autores, conceitua os letramen-
mesis prática do novo ingressante modelos e tos como práticas sociais e defende a escrita e
sanções de acordo com o que estabelece como a aprendizagem do estudante com questões do
uso legítimo. nível da epistemologia e identidades. As institui-
Nas pesquisas sobre o discurso acadêmico, ções em que as práticas acadêmicas ocorrem
Flowerdew (2006) descreve quatro paradigmas são lugares de discurso e de poder. Essa pers-
para tratar dos gêneros, entre eles a abordagem pectiva sobre letramentos acadêmicos demanda
etnográfica. A etnografia analisa textos falados um currículo que envolva uma variedade de prá-
ou escritos focalizando-os como um traço de ticas comunicativas, gêneros discursivos, áreas
uma situação social, caracterizando os modelos do conhecimento e disciplinas.
de comportamento dos participantes (locutores Os Novos Estudos do Letramento abarcam essa
e interlocutores dos textos), seus valores, signi- terceira abordagem de letramentos acadêmi-
ficados e atitudes. cos, e são caracterizados como ‘novos’ devido
Para Street (2009) os textos escritos e os tex- ao conceito de que leitura, escrita e sentido si-
tos lidos são importantes eventos históricos, tuam-se em práticas sociais específicas, confor-
incorporados pela dinâmica da comunicação; e me Gee (2000; 2001). Sua abordagem enfatiza o

75
conjunto plural de práticas sociais, por meio do cursivo, são dimensionados como uma forma de
uso de diferentes formas de linguagem, abor- manifestação da cultura. São um dispositivo de
dando a riqueza da diversidade cultural. organização, divulgação, armazenamento, con-
Em relação à Teoria dos Gêneros, Bazermann testação, criação e troca empregado de forma
(1988; 2007) reconhece que os textos variam específica em cada cultura, em uma dimensão
linguisticamente de acordo com o seu propósi- espaço-temporal.
to e o contexto de uso, e que há uma variedade
de comunidades discursivas com suas próprias
normas e convenções para construir e debater 3. Considerações sobre o Processo
conhecimento.
Segundo Creme e Lea (2003), quando os estu- O Exame de Proficiência em Língua Portugue-
dantes pensam na escrita acadêmica imedia- sa da PUCPR está em sua terceira aplicação (no
tamente a associam à produção de ensaios ou anexo consta um exemplar do EPLP aplicado no
artigos, no entanto, na universidade há a escrita segundo semestre de 2014) e em processo tam-
de diversos outros gêneros discursivos, como os bém está a conscientização da comunidade aca-
relatórios, as sínteses, as arguições, sumários e dêmica sobre os seus propósitos e relevância.
avaliações sobre assuntos de uma determinada A equipe docente do Curso de Letras respon-
área e com uma abordagem específica. sável pela elaboração e avaliação do EPLP, em
Lea e Street (1998; 2007) defendem o estudo e a seus respectivos grupos de pesquisa, emba-
avaliação da escrita acadêmica como uma prá- sa-se na concepção enunciativa da linguagem,
tica social dentro de um contexto institucional especialmente nas teorias apresentadas nes-
e reforçam a influência de fatores como poder te trabalho, compreendendo que o domínio de
e autoridade sobre a escrita do estudante. Em um gênero é um comportamento social, o que
relação a este tema, os autores conduziram um pressupõe a prática desse gênero na sua esfe-
projeto de pesquisa empírica em duas univer- ra de circulação e pertencimento. É fundamen-
sidades do Reino Unido: King’s College e Lon- tal levar em consideração as especificidades de
don University. Eles avaliaram a escrita dos es- um gênero acadêmico dependendo da área do
tudantes universitários fazendo o contraponto conhecimento e das perspectivas teórico-meto-
com o contexto das práticas institucionais, as dológicas adotadas pelos saberes daquela área.
relações de poder e identidades. Não classifica- Outro importante aspecto a ser considerado são
ram os textos como bons ou fracos, mas suge- as relações de poder envolvidas nas relações
riram que a análise textual precisaria examinar mediadas pela linguagem, com nosso olhar es-
as expectativas da faculdade e dos estudantes pecial às instituições acadêmicas.
em relação à escrita, sem fazer julgamentos O EPLP, em seu aspecto avaliativo, tem possibi-
sobre quais práticas seriam as mais apropria- litado ricas reflexões entre os docentes de lín-
das. Sua pesquisa apresentou como resultado gua portuguesa, a fim de estimular uma relação
lacunas entre o entendimento da faculdade e mais produtiva e positiva dos estudantes com
do estudante sobre os requisitos para a escri- a leitura e a escrita acadêmica. Prosseguimos
ta discente. Uma das implicações apresentadas com o estudo e a avaliação dos letramentos aca-
pelos autores é que a escrita não se aprende por dêmicos como uma prática social, significativa
instrução, mas por meio da participação com para os estudantes e constitutiva de sua práxis
propósitos, i.e., a escrita deve ser relevante e nas relações acadêmicas.
significativa para o estudante.
É fundamental aos estudantes compreenderem
como a comunicação é organizada nas comuni-
dades acadêmicas e como os textos se moldam
aos amplos sistemas de atividades das discipli-
nas, matrizes curriculares e campos de atuação
profissional de cada área do conhecimento.
Como afirma Bakhtin (1992, pág. 248), “a riqueza
e diversidade dos gêneros discursivos é imensa,
porque as possibilidades da atividade humana
são inesgotáveis e porque em cada esfera da
práxis existe todo um repertório de gêneros...”.
Os gêneros discursivos, concebidos por
Bakhtin como uso, com finalidades comunica-
tivas e expressivas adequadas ao contexto dis-

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83
REFERÊNCIAS

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84
VARIAÇÕES E MUDANÇAS LINGUÍSTICAS
NA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS: um estudo das transformações e da re-
sistência ao novo na comunidade surda

Fernanda Grazielle Aparecida Soares de Castro11


Terezinha Cristina da Costa12
Rosani Kristine Paraíso Garcia13

RESUMO cultural inerente a ela.

Os itens léxicos da Língua Brasileira de Sinais PALAVRAS-CHAVE: Libras; Variações Linguísti-


(Libras), chamados de sinais, recentemente cas; Novos Sinais.
vêm sofrendo variações, mudanças ou mesmo
tem sido criados novos. Esse “fenômeno mu- 1. INTRODUÇÃO
tacional” se tornou um objeto de discussão na
Nos últimos anos tem sido notável a mudança
comunidade surda, o que acabou gerando uma
que vem acontecendo em diversos itens léxi-
dicotomia de opiniões e de aceitação, sobretudo
cos da Língua Brasileira de Sinais (Libras), seja
com a crescente interação entre os usuários da
pelo contato que proporciona trocas de usuários
língua, facilitada pelas Tecnologias de Informa-
dessa língua, com pessoas de outras cidades, ou
ção e Comunicação (TIC’s). Por um lado, os con-
mesmo pelas tecnologias que tem proporciona-
servadores buscam diminuição das variações e
do socializações virtuais e, portanto, interações
dos sotaques, se fundamentando na tentativa de
linguísticas mais constantes. Desse modo, tem-
manter a língua mais forte, consequentemente
-se observado que os sinais em “desuso” têm
uma melhor compreensão na comunicação dos
sido confrontados no discurso narrativo das co-
surdos brasileiros, o que fortaleceria a luta por
munidades surdas, uma vez que os usuários da
direitos. Por outro lado, a sociolinguística con-
língua que são a favor destas mudanças, enten-
sidera que o sistema de uma língua não é ho-
dem que os “velhos sinais” podem representar
mogêneo, e que características de idioleto e de
um percalço que atrapalharia o desenvolvimen-
dialeto podem se manter presentes na língua e
to de uma língua de sinais “homogênea”, mais
na cultura sem que se perca a sua característica
elaborada e contemporânea.
nacional. Diante desta dicotomia, e pelos cons-
Por um lado, esta busca pela “aproximação lin-
tantes relatos presenciados pelas autoras desta
guística” e a “diminuição” das variações e dos
pesquisa, que são usuárias da Libras, surgiu o
sotaques, se justifica, segundo relato dos pró-
interesse em estudar sobre essa problematiza-
prios surdos que contribuíram para este estu-
ção. Os objetivos desta investigação, portanto,
do. De acordo com eles, tal aproximação lexical
foram de identificar e discutir sobre tais ques-
mantém a língua forte, consequentemente a co-
tões que tem permeado o uso e as interações
munidade surda se manteria mais organizada,
sociais quando há variações e mudanças na
na busca por direitos e por reconhecimento no
Libras. A pesquisa foi realizada sob orientação
âmbito das políticas públicas educacionais, cul-
metodológica qualitativa, na qual se utilizou de
turais e sociais. As raízes da luta da comunida-
instrumentos como entrevistas semiestrutura-
de surda pelo reconhecimento linguístico têm
das e observações livres, junto a 12 sujeitos sur-
suas origens no famoso Congresso que ocorreu
dos. Os resultados mostraram que a criação de
na cidade de Milão - Itália, em 1880, no qual se
novos sinais tem como pano de fundo a demanda
decidiu que os surdos deveriam ser proibidos
da ampliação do vocabulário da Libras, sobretu-
de usarem a língua de sinais. As diretrizes es-
do para contemplar termos acadêmicos. Já as
tabelecidas no chamado ‘Congresso de Milão’,
variações existem há algum tempo, no entanto,
organizado apenas por ouvintes, deixou marcas
passou-se a percebê-las mais devido maior in-
na historia dos surdos a ponto de tornar tími-
teração, realizadas com o uso das TIC’s, princi-
da a expansão do uso da língua de sinais, uma
palmente, dos vídeos em redes sociais. Quando
vez que essas línguas sobreviveram “clandesti-
essas variações são difundidas, e adotadas por
namente” em todo o mundo, sendo usadas nos
alguns usuários, geram-se as mudanças, que
corredores das escolas e em outros locais que a
não descaracterizam a língua ou a identidade

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - fernandagas1@gmail.com 12 Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
11

Gerais (FAE-UFMG) - krischamber@bol.com.br 13 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) - rosani_libras@yahoo.com.br

85
comunidade surda se encontrava para se comu- Huet (surdo) para assumir a tarefa de difundir
nicar, longe dos olhos que os proibiam. Aqui no a língua. Os surdos brasileiros naquele tempo
Brasil não foi diferente, o próprio Instituto Na- já se comunicavam gestualmente, seja regio-
cional de Educação dos Surdos (INES), deixou de nalmente ou entre suas famílias, porém, com a
usar a Libras e proibir o seu uso dentro da ins- criação do Instituto as pessoas que lá estuda-
tituição. Dessa forma, muito da busca por uma vam levavam para suas respectivas cidades o
menor variação linguística no uso da Libras se que aprendiam, difundindo assim a língua que
justifica, por parte de alguns falantes, pela ten- tomou contornos nacionais.
tativa de mantê-la mais forte. Apesar da Libras ser formalizada no Brasil des-
de o Império, ela só foi regulamentada como
Por outro lado, a sociolinguística considera que língua em 2002, por meio da Lei 10.436, e foi re-
o sistema de uma língua não é homogêneo, mas gulamentada por meio do Decreto nº. 5.626 de
sim heterogêneo e dinâmico, no qual se com- 2005 (BRASIL, 2002; BRASIL, 2005).
templa em seu bojo características de idioleto Contudo, no trajeto histórico, localizado entre o
(forma de falar própria de um indivíduo) e de início da difusão da Libras no Brasil até o seu re-
dialeto (forma de falar regional), sem contudo conhecimento legal, passaram-se longos anos;
perder sua característica nacional (ORLANDI, e é nesse percurso histórico que se pode com-
2009). Desse modo, o respeito à essas caracte- preender as mudanças e as sansões que esta
rísticas demonstram uma contemplação cultu- língua passou, através de algumas correntes
ral no âmbito da língua, reconhecido por alguns que determinaram posturas educacionais.
de seus usuários como diversidade pragmática. A corrente Oralista foi uma das posturas que fo-
Diante desta dicotomia, e pelos constantes rela- ram impostas aos surdos, como forma de “adap-
tos presenciados pelas autoras que são usuárias tação” ao mundo ouvinte. Essa corrente foi di-
da Libras, surgiu o interesse em estudar sobre a fundida a partir do Congresso de Milão, de 1880,
variação linguística nesta língua e as discussões referido na parte introdutória deste estudo. Ela
entorno da mudança de alguns sinais (itens lexi- tinha como objetivo que as pessoas surdas com-
cais). Os objetivos desta investigação, portanto, preendessem e reproduzissem as línguas orais
são de identificar e discutir sobre tais questões e teve como fundamento que os sujeitos surdos,
que tem permeado o uso e as interações sociais ainda que não tivessem níveis residuais de au-
quando há variações e mudanças na Libras. A dição, se comunicassem por meio do aprendi-
pesquisa, de orientação metodológica qualita- zado de línguas orais faladas. Com tal postura
tiva, foi realizada com pessoas da comunidade era comum que o espaço escolar desse lugar
surda do município de Belo Horizonte - Minas aos laboratórios de fonética, com a presença
Gerais. de fonoaudiólogos e ou professores terapeutas,
abordando a surdez como algo para ser tratado.
Segundo Quadros:
2. A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS: percurso
histórico-linguístico Apesar do investimento de anos da vida
de uma criança surda na sua oralização,
As línguas de sinais são de modalidade espa- ela somente é capaz de captar, através
ço-visual, natural das pessoas surdas, que a da leitura labial, cerca de 20% da men-
amadurecem a partir do contato com pessoas sagem e, além disso, sua produção oral,
que dela se utilizam. Não se trata de uma lín- normalmente, não é compreendida por
gua universal: cada país tem o seu sistema de pessoas que não convivem com ela -
sinais de acordo com suas especificidades. Se- pessoas que não estão habituadas a es-
gundo Quadros e Karnopp (2004), as línguas de cutar a pessoa surda (QUADROS, 1997,
sinais, assim como as línguas orais, surgiram p. 23).
espontaneamente da interação entre pessoas, e
sua estrutura permite a expressão de qualquer A partir de 1970, com os estudos de Stokoe e
conceito. início de estudos das línguas de sinais de dife-
A Língua de Sinais Brasileira tem sua origem rentes países, surgiu a corrente educacional
na Língua de Sinais Francesa, que por sua vez chamada de Comunicação Total. Nesta corrente
foi difundida no século XVIII. Oficialmente a co- eram utilizados métodos de comunicação visual
municação por meio de língua de sinais teve seu apenas para respaldar o aprendizado da língua
início no Brasil na década de cinquenta do sé- oral, que vinha acompanhado pela modalidade
culo XIX, quando o imperador Dom Pedro II fun- escrita. Assim, se defendia a utilização de língua
dou o Imperial Instituto de Educação dos Surdos de sinais em uma abordagem inicial, para que
(INES) e convidou o professor francês Hernest as pessoas surdas passassem, através da co-

86
municação sinalizada inicial, aprender a língua Assim, com o ingresso de várias pessoas surdas
oral-falada. Essa corrente chegou foi adotada nas instituições de ensino superior, foram cria-
em diversas escolas brasileiras, contudo não se dos diversos sinais, correspondentes a palavras
considerava que o sujeito surdo, nessa situação, da língua portuguesa, nas mais diversas áreas
estava imerso, no final das contas, na mesma de estudos. E com a ampliação das Tecnologias
situação da corrente Oralista, uma vez que o de Informação e Comunicação (TIC’s), esses si-
foco era fazer com que esses sujeitos usassem nais “recém-criados” puderam ser difundidos
a língua oral-auditiva, desconsiderando-se mais com grande rapidez, sobretudo com recursos de
uma vez as limitações dessa abordagem. vídeo-comunicação e através dos grupos da co-
Por volta dos anos 1980/1990 iniciaram-se os munidade surda nas redes sociais.
estudos que chegaram com uma nova propos- E é neste contexto que se chega ao cerne da
ta, o Bilinguismo, quem vem sendo visto como a problematização deste estudo, uma vez que es-
melhor proposta de educação para surdos. Esta ses novos sinais, sejam eles recém-criados ou
postura de ensino está voltada, inicialmente, apenas descobertos pela internet que surdos de
para o desenvolvimento da linguagem cogniti- outras localidades usam há algum tempo, vem
va, da língua de sinais e do desenvolvimento da sendo objeto de discordância na comunidade
comunicação, que consequentemente influên- surda.
cia no desenvolvimento intelectual e social dos
sujeitos surdos. A língua portuguesa é adotada
como uma segunda língua, com foco na leitura 3. METODOLOGIA
e escrita, o que justifica a denominação de bilín-
gue. Em busca da compreensão dos aspectos proble-
Atualmente, nas duas primeiras décadas dos matizados aqui, foi realizada uma pesquisa com
anos 2000, a luta da comunidade surda vem sen- abordagem metodológica qualitativa, na qual se
do para que o bilinguismo substitua os mode- utilizou de instrumentos como entrevistas se-
los escolares adotados atualmente, ou seja, que miestruturadas e observações livres de vídeos
substitua as atuais escolas inclusivas e escolas postados na internet, junto a 12 pessoas surdas
especiais. Acredita-se que atrelada à língua, em uma Instituição social/educacional, frequen-
está uma identidade e cultura, assim as escolas tada por eles, em Belo Horizonte - Minas Gerais.
bilíngues seriam uma possibilidade, portanto, Este locus de investigação para a pesquisa foi
não só de um desenvolvimento social e cogniti- escolhido pelo grande número de pessoas sur-
vo, mas também para que os surdos não demo- das que frequentam ou visitam esporadicamente
rem a encontrar seus pares na língua e constru- a Instituição. Também foram encontrados regis-
am sua identidade através das interações com tros, em redes sociais e em relatos individuais,
seus pares. de que quando não há um sinal conhecido que
No entanto, embora as escolas bilíngues ainda corresponda a alguma palavra do português,
não sejam uma realidade, as trocas e interações os surdos que tem a oportunidade de viajar ou
entre a comunidade surda vêm ocorrendo há comunicar virtualmente com pessoas de outros
muitos anos. Antes, com as determinações do municípios ou outros estados, aprendem novos
Oralismo e da Comunicação Total, esta intera- sinais e ensinam para os outros surdos mais
ção era limitada e, muitas vezes, considerada próximos na cidade, que em alguns momentos
até como clandestina (SKILAR, 1997; SKILAR, não aceitam as “novidades”, gerando conflitos
1998). Já nos anos 1970/1980, com a consolida- linguísticos em ambas as partes. Desse modo,
ção das associações de surdos e com o uso da o contato direto com as pessoas surdas em um
Libras em instituições religiosas, ampliou-se local de público diversificado, pode garantir uma
significativamente o seu uso no Brasil, todavia maior adesão à pesquisa.
ainda limitado a esses espaços. Por fim, com as Os sujeitos da pesquisa foram convidados alea-
conquistas legais que vieram nos anos 2000 as toriamente, quando encontrados pelas autoras
trocas dos usuários da língua se tornaram mais deste estudo na Instituição pesquisada. A parte
amplas, ela passou a ser usada com respaldo empírica do estudo foi realizada por um perío-
legal nas instituições de ensino e em diversos do de 40 dias. Aqueles que manifestaram inte-
outros espaços. E é daí que surge a questão dos resse foram perguntados se conheciam algum
embates e das variações, já que o uso da Libras, caso corresponde a proposta do estudo, e foram
sobretudo nos ambientes universitários, exi- selecionados aqueles que responderam afirma-
giram que a língua ampliasse seu vocabulário, tivamente. Durante as entrevistas foi indagado,
criando-se portanto sinais ainda não existentes basicamente, acerca de algum sinal “novo”,
para contemplar a linguagem universitária. aceito ou não, e sobre a postura dos entrevista-
dos diante disso.

87
A abordagem dos sujeitos desta pesquisa ocor- muitas informações (ENTREVISTADO B,
reu durante o primeiro semestre de 2014 e, de realizada em 20/03/2014).14
maneira sintética, pode ser subdividida em três
etapas: (1ª) a mobilização para participação da A fala supracitada, que traz a questão dos sinais
pesquisa; (2ª) exposição e esclarecimento dos criados para serem usados entre o intérprete e
procedimentos; e (3ª) a realização das entrevis- o aluno surdo em sala de aula, foi recorrente en-
tas. tre outros entrevistados que estavam cursando
ou haviam concluído o ensino superior. O que se
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO percebe é que, como ainda não se tem disponí-
vel um banco de dados amplo (ou um córpus)
O perfil identificado dos participantes foi o se- que possa suprir a demanda imediata de sinais
guinte: quanto ao sexo há uma predominância específicos para tantas áreas do conhecimento,
do sexo feminino, sendo que apenas três entre- as pessoas acabam criando sinais “provisórios”
vistados do sexo masculino; em relação à ida- para não ficarem dependentes da datilologia
de percebe-se a predominância da faixa etária (soletração com o alfabeto manual), uma vez que
de 24 a 35 anos, sendo apenas uma pessoa com ela representa a palavra em língua portuguesa e
mais de 50 anos; com relação à formação, sete nem sempre proporciona compreensão para o
pessoas concluíram o curso de graduação, três interlocutor surdo. Os surdos também relata-
estão cursando e duas concluíram o ensino mé- ram nessa situação que, quanto é necessário o
dio. uso da datilologia se perde tanto o contexto do
Em ralação variações e mudanças linguísticas raciocínio, quanto em muitos momentos é ne-
na Língua Brasileira de Sinais, de maneira ge- cessário que o intérprete de Libras interrompa
ral, o que se percebeu é que os entrevistados a aula para solicitar ao professor uma maior ex-
entendem que trata-se de um fenômeno natu- planação sobre o conceito.
ral, ocorrido sobretudo de acordo com a deman- Ao serem questionados sobre a possibilidade de
da dos ambientes escolar, universitário ou mes- já existir algum sinal para a palavra que estava
mo devido a maior interação feita entre surdos sendo combinada entre os surdos e os intérpre-
oriundos dos mais diversos locais. A esse res- tes em sala de aula, os surdos pesquisados res-
peito, durante a entrevista, um dos entrevista- ponderam da seguinte maneira:
dos se posicionou da seguinte forma:
Eu sei que pode já ter outro surdo ou
Eu acho que a Libras mudou um pouco, outro intérprete que combinou um si-
e isso é normal, as pessoas conversam nal em outra faculdade ou outra cidade,
sobre os mais diversos assuntos. Assim mas eu preciso saber o significado no
como as coisas na sociedade mudam, na momento da sala de aula e não tenho
Libras também muda. Mas eu percebi como ficar esperando, usando datilo-
que a maior mudança aconteceu quan- logia. Eu tenho provas, trabalhos e são
do eu passei no vestibular, no meu cur- poucos surdos que fazem o mesmo cur-
so os professores falavam muitas pala- so que eu. (ENTREVISTADA D, realizada
vras que não tinha sinal correspondente em 20/03/2014).
na Libras, a intérprete fazia datilologia
[soletração com o alfabeto manual] e A minha intérprete sempre está se
eu não entendia o conceito. Na medida atualizando, ela entra em contato com
em que o professor explicava e eu ia outros intérpretes e procura sinais na
entendendo melhor o conceito das pa- internet. Eu também tenho amigas gra-
lavras eu e a intérprete combinávamos duadas em Letras-Libras da UFSC, e
um sinal que combinasse com o concei- nós trocamos muitos sinais. (ENTRE-
to, isso facilitou minha compreensão. VISTADA F, realizada em 20/03/2014).
Às vezes eu também perguntava algum
colega surdo de outros lugares, eles me
contavam qual sinal usavam e eu pas- Eu não vejo problema em combinar si-
sava para a intérprete, ela também me nais, porque os sinais que eu e o intér-
ensinou alguns sinais e nós trocamos prete criamos fica só entre nós dois. É

Traduções da Libras para a língua portuguesa realizada por Terezinha Cristina da Costa Rocha
14

88
só para usar na sala de aula, nós não
usamos esses sinais fora. É claro que
às vezes, quando alguém me pergunta
sobre o assunto, eu acabo difundindo
alguns sinais, mas acho que é bom para
ajudar a Libras ampliar (ENTREVISTA-
DA E, realizada em 20/03/2014).
A partir desses relatos pode se perceber que a
criação de novos sinais tem como pano de fundo
a necessidade da ampliação do vocabulário na
Libras, sobretudo quando algum surdo ingressa Fig. 05: Sinal de ‘ENSINAR’ (antes e depois).

em algum curso superior que demanda.


Foi possível se perceber, também, a mudança Quanto às mudanças dos sinais exemplifica-
de diversos sinais, os quais os surdos se lem- dos através das imagens, pode se perceber:
bram ou aprenderam com outros surdos mais no primeiro sinal, do léxico ‘OSSO’, houve uma
velhos. Foram registrados e catalogados 26 si- mudança completa, em ralação à todos os parâ-
nais que de fato houve mudança em relação ao metros gramaticais da Libras; no segundo sinal,
uso, alguns exemplos são: do léxico ‘FACULDADE’, também em ralação à
todos os parâmetros gramaticais; já o sinal do
léxico ‘HOSPITAL’ apenas não houve mudança
na direcionalidade do movimento, que forma se-
mióticamente a forma de uma cruz; e por últi-
mo o sinal do léxico ‘ENSINAR’ que apresentou
mudança apenas na Configuração de Mãos, per-
manecendo-se o mesmo movimento e a mesma
direcionalidade.
Quando questionados acerca dos motivos das
mudanças, os sujeitos entrevistados não sou-
beram especificar. Apenas dois deles relataram
que entendiam que os sinais podem ter muda-
do por desconhecimento das pessoas dos sinais
Fig. 01: Sinal de ‘OSSO’ (antes e depois). usados anteriormente, por isso talvez pudessem
ter sido criado outros. Segundo um dos sujeitos,
caso tivesse aprendido o sinal anterior não gos-
taria de ter que “se adaptar” para usar o novo
sinal, mas que, ao mesmo tempo, temia por não
ser compreendido na comunicação se usasse si-
nais mais antigos.
No entanto, em relação ao sinal de FACULDADE,
uma pessoa dentre os sujeitos pesquisados dis-
se não concordar com a variação e preferir usar
o sinal antigo, pois, segundo ela, o novo sinal
trata-se de um ‘português sinalizado’ e faz com
que a Libras perca a sua identidade.
Fig. 01: Sinal de ‘OSSO’ (antes e depois). A expressão ‘português sinalizado’ é ampla-
mente difundida entre os usuários fluentes da
Libras. Trata-se de quando um sinal, ou toda
uma sentença, segue a estrutura gramatical da
língua portuguesa, não gerando sentido na Li-
bras. Isso ocorre geralmente quando se tenta
traduzir “ao pé da letra”, sem as devidas ade-
quações para a gramática da outra língua.
Desse modo, em relação ao sinal de FACUL-
DADE, o “português sinalizado”, referido pela
entrevistada, diz respeito ao fato do sinal mais
usado atualmente ser feito com a letra ‘F’, re-
ferindo-se a letra de início da palavra no por-
Fig. 03: Sinal de ‘HOSPITAL’ (antes e depois).

89
tuguês, não havendo nenhuma iconicidade que expressiva quando um número grande de usu-
justificasse a mudança. A iconicidade diz respei- ários da língua adeptos a mudança começam
to às formas linguísticas que tentam aproximar socializá-la.
o sinal do referente real, em suas característi- Este estudo pode nos proporcionar a percep-
cas visuais; como se o sinal “parecesse” com o ção de que a variação, sobretudo histórica,
objeto. Assim, no caso analisado a letra ‘F’ (do aconteceu e vem acontecendo na Libras longo
alfabeto manual), rodando no ar (conferir fig. do tempo. E este dado, ao contrário de algumas
02), de fato não tem relação icônica com a enti- suposições, somente reforça a força da língua,
dade ou com o conceito de Faculdade. uma vez que ela está sendo usada, discutida e
Este depoimento nos leva a refletir que o respei- pesquisada.
to às características linguísticas da Libras e o A Libras é o caráter mais marcante da identi-
afastamento do ‘português sinalizado’, além de dade e da visão sócio antropológica da surdez.
proporcionar uma melhor comunicação visual, Nesse sentido este estudo os chamou a atenção
também proporciona o afastamento da corrente pelo depoimento e fala de alguns dos sujeitos
Oralista e sua proposta de “adaptação” do surdo pesquisados acerca da consulta e troca de sinais
ao mundo ouvinte, conforme discutido anterior- com colegas para compreender o vocabulário
mente. acadêmico. Ou seja, as mudanças, quando ocor-
Por fim, as variações na Libras sempre existi- rem por necessidade de se criar ou descobrir
ram e são relatadas desde os primeiros estudos um sinal para se compreender melhor um con-
linguísticos que se debruçaram sobre a língua, ceito que antes era traduzido por um intérprete
publicados nos anos 1980. No entanto, passou- apenas com datilologia (uso do alfabeto manu-
-se a perceber tais variações, ainda mais, devi- al), nem mesmo assim são outorgadas. Depen-
do a maior interação, realizadas com o uso das dem de sujeitos difusores dos léxicos para que
TIC’s, principalmente, dos vídeos em Libras eles permaneçam em uso. Assim, percebemos,
publicados e compartilhados em redes sociais. bem mais que a variação, mas chamaríamos de
Quando essas variações são difundidas, e ado- ‘socialização da Libras’.
tadas por alguns usuários, geram-se as mudan-
ças, que não descaracterizam a língua ou a iden-
tidade cultural inerente a ela, pois, comparando
com o português, o fato de existir variações para
um mesmo termo (ex.: mandioca, macaxeira, ai-
pim, etc.) não empobrece uma língua tampouco
gera incompreensão entre os falantes. Dentre
as variações de sinais da Libras, apresentadas
pelos entrevistados, como por exemplo o sinal
da palavra VERDE em São Paulo ser diferente
do sinal usado em Mina Gerais, não acarreta em
prejuízos para a língua, já que a pessoa geral-
mente interrompe a conversa e pergunta o que
significa aquele léxico desconhecido ampliando
assim seu conhecimento, em outros casos nem
mesmo é necessário se interromper, uma vez
que pode se compreender pelo contexto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Libras, assim como outras línguas, sejam vi-


suo-espacial ou oral-auditiva, estão sujeitas a
variações, afinal a língua é viva, e acompanha
um povo ao longo dos tempos, o que a faz sensí-
vel as mudanças culturais, tecnológicas, educa-
cionais e sociais. Esses aspectos, pensando-se
em um país de dimensões continentais como o
Brasil, deixam clara a existência da diversida-
de e, portanto, naturalmente, a possibilidade de
mudanças. No entanto essas mudanças aconte-
cem gradualmente e somente tomam dimensão

90

REFERÊNCIAS

ORLANDI, Eni Puccinelli. O que é Linguística. São Paulo: Brasilience, 2009.

QUADROS, Ronice Müller de e KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de sinais brasileira: estudos lin-
guísticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004.

BRASIL. Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e
dá outras providências. Brasília: Casa Civil, 2002. BRASIL.

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005: Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril


de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19
de dezembro de 2000. Brasília: Casa Civil, 2005.

QUADROS, Ronice Müller de. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1997.

SKILAR, C. Educação e Exclusão: abordagens sócio-antropológicas em educação especial. Porto


Alegre: Mediação, 1997.
SKLIAR, Carlos (org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.

91
A LÍNGUA COMO BEM CULTURAL E IDENTITÁRIO: A MULTIPLICIDADE DE SISTEMAS A SERVIÇO
DAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Geysa Andrade Silva15

RESUMO um indivíduo e/ou comunidade que faz uso sis-


temático deste sistema de signos, ainda que ini-
A língua foi, desde muito tempo, objeto de estu- cialmente sem caráter científico. Nas últimas
do do homem porque esta é um bem cultural e décadas tornou-se elemento de acirradas dis-
revela em sua prática o caráter identitário de um cussões no meio acadêmico.
indivíduo e/ou comunidade que faz uso sistemá- Sua relação direta com a cultura e a identida-
tico deste sistema de signos da mesma, ainda de de um povo e consequentemente com suas
que inicialmente sem caráter científico. Nas úl- propriedades inerentes, trazem para essa dis-
timas décadas tornou-se elemento de acirradas cussão linguística aspectos sociais, geográficos
discussões no meio acadêmico, já que há uma e políticos entre tantos outros. Seja com preo-
norma culta defendida a partir de registros de cupações com a história interna da língua, seja
fala da classe mais escolarizada – classes mé- com apreensões com os fatores externos, es-
dias e alta – e de uma norma popular, menos pecialmente os socioculturais, o fato é que este
monitorada e que o aluno, no geral, traz para a conjunto potencial de signos que é a língua, tor-
sala de aula. nou-se objeto de estudo científico dos linguistas
Sua relação direta com a cultura e a identida- e, nas últimas décadas elemento de reflexão de
de de um povo e consequentemente com suas professores e alunos nos cursos de graduação
propriedades inerentes, trazem para essa dis- em Letras e de outros interessados no tema.
cussão linguística aspectos sociais, geográficos O presente texto faz uma retomada bibliográfica
e políticos entre tantos outros. Seja com preo- sobre língua, identidade, cultura, variação e en-
cupações com a história interna da língua, seja sino e busca refletir com professores e estudan-
com apreensões com os fatores externos, es- tes de língua as transformações dos esforços
pecialmente os socioculturais, o fato é que este empreendidos nas pesquisas sociolinguísticas
conjunto potencial de signos que é a língua, tor- em instrumentos pedagógicos capazes de mu-
nou-se objeto de estudo científico dos linguistas ni-los com práticas pedagógicas para uma edu-
e, nas últimas décadas elemento de ponderação cação linguística que lhes ensinem a lidar com
de professores e alunos nos cursos de gradu- as variedades linguísticas estigmatizadas.
ação em Letras e de outros interessados no Este artigo se propõe a discutir o tema em três
tema, buscando visualizar e refletir sobre as momentos: 1 - o caráter identitário da língua
transformações dos esforços empreendidos nas imersa na cultura de um povo; 2 - os esforços
pesquisas sociolinguísticas em instrumentos dos linguistas em processos contínuos e siste-
pedagógicos capazes de muni-los com práticas máticos de apreensão da natural variação lin-
pedagógicas para uma educação linguística que guística e 3 - o reflexo da variação na educação
lhes ensinem a lidar com as variedades linguís- formal, ainda distante da necessária educação
ticas estigmatizadas. linguística.
Propõe-se discutir o tema em três momentos: 1
- o caráter identitário da língua imersa na cultu- 1. Língua sempre se revelou como cultura e
ra de um povo; 2 - os esforços dos linguistas em identidade
processos contínuos e sistemáticos de apreen-
são da natural variação linguística e 3 - o reflexo
da variação na educação formal, ainda distante Os precursores gregos com suas profundas re-
da necessária educação linguística. flexões filosóficas acerca da língua, tratavam-na
PALAVRAS-CHAVES: Língua; Identidade; Cultu- com finalidades eminentemente práticas, ainda
ra; Variação; Ensino. que desprovidos de uma visão científica e nada
Introdução interessados no estudo da língua em si mesmo.
Quando tais estudos evoluíram para a Filologia
A língua foi, desde muito tempo, objeto de es- dos alexandrinos, a língua passou a ser marca-
tudo do homem porque esta é um bem cultural da por uma preocupação gramatical em nível de
e revela em sua prática o caráter identitário de modalidade escrita.
A descoberta do parentesco entre as línguas,
15
Profª. da Universidade do Estado da Bahia – UNEB – CAMPUS IV – Jacobina -BA , Brasil. geysasilva@uneb.br

92
na preocupação diacrônica de suas evoluções e tura do nosso povo; sequer nas aulas de Língua
funcionamento, foi o conhecimento aproveitado Portuguesa (ou na maioria delas), analisam-na
pelas novas perspectivas lingüísticas. Inicia- como objeto vivo e não apenas estrutural.
vam-se assim os primeiros estudos sistemá- Imaginar que o Brasil, tão diverso culturalmen-
ticos de língua, os quais experimentariam um te, conseguiria implementar uma mesma norma
impulso extraordinário e se prolongariam até os linguística culta nos mais distantes territórios
dias de hoje. deste continente é utópico. Se possuímos cul-
Na contemporaneidade, os estudos de Weinrei- tura popular e erudita, realizações conscientes
ch, Labov e Herzog constituem ponto de parti- e inconscientes, produções, manifestações e ci-
da para estudos da língua a partir da dinâmica ências tão diversa é natural que nossa língua,
da mudança direcionada pelos fatores extra- reflexo de toda essa cultura, seja também tão
linguísticos, o que não vem a gerar um caos na diversa, rica em variações e identitário de par-
língua, mas uma aceitação de uma heterogenei- celas múltiplas da população.
dade ordenada. Justamente por tamanhas variações, o desprezo
No Brasil especificamente, a partir do século a vertente popular da língua e da cultura rea-
XX, há de se levar em consideração ainda que firma que ambas são tidas como inferiores por
o contato entre línguas (indígenas e africanas não terem significativa representação econômi-
predominantemente e ainda, dos povos imigran- ca e política, embora como todo traço cultural,
tes) afetou a maneira como o português passou interagiram com tantos outros formando nossas
a ser falado e, por conseguinte virou objeto de permutações, combinações e sínteses como cita
estudo de projetos de pesquisas, na tentativa de Durkheim (1912) e, que pelo menos a priori, enri-
desvendar as marcas da influência de contato do queceram assim suas propriedades. Desprezar
Português com outras línguas. Portanto, a lín- tal vertente popular e aceitar automaticamente
gua brasileira, símbolo de identidade cultural, a cultura dominante de uma classe seja social,
agregou-se a muitas outras culturas além da política ou econômica apesar de demografica-
portuguesa, despontando-se ser uma amálga- mente ter representação minoritária é tornar
ma de todas elas. lícito o preconceito imbuído na variação cultu-
Tal língua sempre se revelou como cultura e ral, e por extensão linguística. (DURKHEIM,1912
identidade de seus falantes. Passeando pelo apud NARDI, 2002, p.4)
conceito de cultura abordado por Michel Certau A língua configura-se como elemento funda-
(2005) em A cultura na sociedade, nos depara- mental de traços culturais, e além de sua ver-
mos com uma fixação do termo entre tantos tente popular, desprezada por uma minoria –
outros semeados “sobre um solo de palavras mas reforçada pela maioria dos usuários dela
instáveis” que satisfaz ao anseio deste artigo. – é preciso lembrar-se dos problemas que ela
Designa, cultura como enfrenta na sua modalidade oral.
Segundo Jean Baptista Nardi (2002) o termo
Mais do que um conjunto de valores que cultura aborda uma confusão semântica, uma
devem ser defendidos ou ideias que de- opacidade de conceito, muitas vezes reduzido
vem ser promovidas, a cultura tem hoje apenas à produção cultural e termina por care-
a conotação de um trabalho que deve cer de uma definição nítida. E quando trata de
ser realizado em toda extensão da vida noções de cultura nacional o autor releva:
social... As indagações, as organizações
e as ações ditas culturais representam A cultura nacional, geralmente, iden-
ao mesmo tempo sintomas e respostas tifica-se com a cultura dominante de
com relação a mudanças estruturais na uma classe social, economicamente e
sociedade (CERTEAU, 2005, p. 192). politicamente superior enquanto é de-
mograficamente minoritária. Opõe-se à
E, exatamente por realizar-se em toda essa ex- cultura popular, considerada como in-
tensão, é que se insere na cultura a língua. No ferior, embora seja numericamente su-
entanto, observa-se que no regime social capi- perior, por não ter a mesma qualidade
talista no qual estamos mergulhados, há inúme- de representação econômica e política.
ros processos de tensão, inclusive uma vez que Também considera-se como subcultu-
no termo cultura, pode-se circular “o que quer ra - sem o sentido de inferioridade - as
que seja” e estando ela repleta de agentes e pro- culturas regionais ou locais, como parte
motores culturais que monopolizam a fachada da cultura nacional, ideia que supõe a
da cultura e deixam a população imersa numa existência de um centro como ponto de
passividade, é restrito o número de indivíduos partida (NARDI, 2002, p. 4-5).
que pensam a língua enquanto elemento da cul-

93
É neste contexto, que Nardi propaga que os pro- veis. (HUMBOLDT,1972 apud MATEUS, 2000, p.
blemas da língua brasileira em relação a Portu- 9).
gal não são apenas terminológicos passam pe- É preciso também considerar que no Brasil há
las questões culturais e sociais dos dois países: mais de 180 línguas vivas e este número pode
ser muito maior. A grande maioria é autóctone
1. vão desde a evolução separada do (indígena) e mais de 30 delas são alóctones (de
Português brasileiro, já que se tornou imigração), estas presentes em diferentes regi-
uma variante do Português de Portu- ões do país e em muitas cidades colonizadas por
gal com diferenças estruturais im- imigrantes, inclusive coexistindo. Como impor
portantes da sua língua mãe; uma unidade nacional na nossa língua diante da
2. atingem a língua falada no que tange vertente popular, diante de um português culto
a ausência de norma lisboeta, além distante do falante nativo, diante de tantas dife-
das numerosas variantes decorrentes renças sociais e das culturas que se agregam a
de classes sociais e níveis escolares nós?
encontrados na população brasileira; É óbvio que a partir do constatado, o caráter
identitário do brasileiro com sua língua oficial
3. e encerram-se - se é que podemos é conflituoso, além de comprometer sua identi-
dizer dos fins dos problemas – no fato dade nacional, da qual a língua é inegavelmente
de que o Português ensinado no Bra- instrumento. É preciso considerar que as estru-
sil mantém a norma portuguesa com turas finitas não esgotam a descrição da língua,
algumas adaptações, distante todavia já que seu funcionamento social é incluído na
da língua utilizada pelos falantes nati- sua análise, multiplicando-se em inúmeras va-
vos da língua brasileira. riantes.
Constata-se então que não são problemas ape- Não podemos esquecer também como a última
nas de ordem linguística, mas também de cultu- flor do Lácio chegou a terra Pau-Brasil, impos-
ra e sociedade. Entre eles, de um lado uma ati- ta e tradicional, aculturou nativos e a grosso
tude conservadora defendendo a integridade da modo se fez oficial. No entanto, considerar que
Língua Portuguesa, do outro uma atitude patrio- ela fosse permanecer homogênea, invariável e
ta daqueles que estão voltados para um status compacta era uma concepção sem nexo, uma
de língua nacional e que se afastam das raízes vez que as línguas estão sempre num processo
culturais portuguesas. E qualquer que seja a so- de construção e reconstrução, um nunca con-
lução encontrada, haverá frustações daqueles cluído, fruto do fato de que os seres humanos
que submergiram na questão e cultivaram o es- estão sempre sujeitos a diversificação, instabi-
tudo da língua, seja pela falta de padrão no Bra- lidade e conflitos.
sil ou pelo ensino da norma portuguesa. Será Como afirma Bagno (2007)
um conflito social com vitórias políticas como já
Ao contrário de um produto pronto e
perpetuado.
acabado, de um monumento histórico
O linguista alemão Wilhelm Von Humboldt (1972)
feito de pedra e cimento, a língua é um
mantém-se nesta linha da não unidade linguís-
nunca concluído. A língua é uma ativida-
tica e afirma que as palavras são objetos reais
de social, um trabalho coletivo, empre-
e que a excelência da língua vem do fato de ser
endido por todos os seus falantes, cada
falada por um povo - sendo social é, portanto,
vez que eles põem a interagir por meio
heterogênea - abre precedente para se ver na
da fala ou da escrita (BAGNO, 2007, p.
língua as variações. Humboldt (1972) declara
23).
que a língua precisa da gramática para adquirir
nexo, para ele a linguagem é como um sistema Assim sendo, o “estado natural” das línguas é
que “faz infinitos usos de meios finitos” o que composto da variação e da mudança linguística,
depois veio a ser a base da teoria da linguagem para inclusive, acompanhar o estado dos seres
de Noam Chomsky (gramática gerativa transfor- humanos que a falam, que independente de épo-
macional) e revela uma propriedade das línguas ca ou lugar, é diversificado, instável, mutante. A
humanas. Aquele autor defende assim, a ideia língua tornou-se, portanto um sistema nunca
de que a língua é um instrumento vigoroso de pronto concebido pela plena interação social e
resistência às padronizações o que inclui, por- cultural. E assim, por mais que desejássemos
tanto uma resistência à própria padronização da jamais conseguiríamos juntar num dicionário
língua, por isso apesar dos finitos fonemas, nú- todas as palavras da língua com seus diversos
mero de palavras e regras organizacionais sin- sentidos, pois a língua não é uma realidade es-
táticas é infinito o número de enunciados possí- tática; ela é sim, dinâmica e aberta, em contínuo

94
movimento imprevisível, tal qual a vivência hu- trutura normativa – pois esta já está posta - mas
mana. justamente, para entender a situação mais inte-
A Língua Portuguesa do Brasil varia não ape- ressante: a pluralidade linguística.
nas pelas capacidades cognitivas dos indivíduos, Muitos são ainda os tradicionais que acreditam
mas por estar no território brasileiro, por ser fa- que para falar bem é preciso ornar as estruturas
lada por pessoas de classes sociais e níveis es- e por isto mesmo, apostam numa língua norma-
colares diferentes, por receber influências dos tiva; na mão oposta, estão os sociolinguistas que
imigrantes no contato entre línguas, porque é sustentam a variação linguística como riqueza
usada mais na oralidade do que na modalidade da língua. Sobre essa relação variação e socio-
escrita, pelo conflito de interesses entre a inte- linguística, Mollica (2004) então assinala que:
gridade da Língua Portuguesa e a reforma que
valoriza as especialidades dos nossos falantes, A sociolinguística considera em especial
pela rigidez imposta e falível da norma-padrão a como objeto de estudo exatamente a
que o falante não se adapta, porque é criação de variação, entendendo-a como um prin-
um homem em constante reconstrução e a ele cípio geral e universal, passível de ser
está submetida, e assim (ainda), varia porque é descrita e analisada cientificamente.
uma identidade cultural de uma população com Ela parte do pressuposto de que as al-
muitas facetas. ternâncias de uso são influenciadas por
É, portanto, papel da língua marcar a identidade fatores estruturais e sociais (MOLLICA,
do indivíduo ao mesmo tempo que são os indi- 2004, p.9-10).
víduos na sua coletividade que identificam uma A gênese da variação linguística é esboçada pela
língua, um contínuo estado de fluxo. Como afir- língua enquanto elemento cultural mergulhada
ma Rajagopalan (1998) na sociedade e Certau (2005, p. 204) quando re-
A identidade de um indivíduo se constrói vela que “o homem é falado pela linguagem de
na língua e através dela. Isso significa determinismos socioeconômicos muito antes
que o indivíduo não tem uma identidade que fale”, revela inegavelmente, que este fa-
fixa anterior e fora da língua. Além dis- lante então determinado, esteja imbuído de tais
so, a construção da identidade de um in- aspectos e das inúmeras influências deles na
divíduo na língua e através dela depen- realização da língua, assemelhando-se ao dito
de do fato da própria língua em si ser por Humboldt.
uma atividade em evolução e vice-versa. A fala espontânea é característica identitária
Entre outras palavras, as identidades da do falante que deixa escapar uma série de va-
língua e do indivíduo têm implicações riáveis sociais na sua realização, acrescente-se
mútuas. Isso por sua vez significa que aqui a escrita também, já que há de se conside-
as identidades em questão estão sem- rar uma diferença no uso dessas modalidades.
pre num estado de fluxo. (RAJAGOPA- Os falantes fazem usos dessas variantes sem
LAN, 1998, p. 41). grandes alterações na mensagem, Naro (2008)
acrescenta que isto fica bem evidente em ca-
Há muito tempo, ficou evidente aos pesquisado- sos como peixe/pexe, menino/minino, pego/pe-
res o comportamento variável da língua. Com- gado, alguém lavou os pratos/os pratos foram
preender as razões que influenciam tais mu- lavados, tu/você e que esta heterogeneidade é
danças perpassa sem sombras de dúvidas por também regulada por um conjunto de regras,
aspectos não apenas linguísticos, mas também no qual as variações podem estar em competi-
extralinguísticos da vivência cotidiana do ho- ção ou sequer figurar como possibilidade den-
mem neste coletivo que é a sociedade. Neste tro das regras sendo, portanto, inaceitáveis. No
sentido, a afirmação do autor sobre a implicação entanto, analisar cientificamente a língua não é
da evolução da língua na construção da identi- um processo fácil, uma vez que os linguistas se
dade cultural do indivíduo e vice-versa. deparam sempre com uma inesgotável comple-
xidade de estrutura e funcionamento dela.
2 – A sociolinguística apreende a natural varia- A sociolinguística variacionista propagada pela
ção linguística figura chave de Willian Labov (1927) aposta, por-
tanto, em reforçar a importância do estudo da
Diferentes correntes científicas, nos últimos língua, a partir da variação, já que na perspectiva
tempos, estão às voltas nos estudos da língua; da interação, nenhuma língua permanece imu-
tradicionais, descritivistas, puristas, linguistas, tável dada às mudanças geográficas, de classes
sociolinguistas coexistem na busca de uma aná- sociais, de faixa etária, de meio urbano ou rural,
lise imparcial para entender não apenas a es- de sexo/gênero do falante, de nível de escolari-

95
dade, isto sem se falar, nos padrões estéticos e inteiramente as velhas ou aceitar qual-
morais, além da estilística que revela o gosto de quer uma que seja realmente nova para
um mesmo indivíduo em contextos diferentes. ele. ( BLOOMFIELD, 1933, p.327-328 apud
Tais processos de variação não ocorrem de um WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006, p.
dia para o outro e, para tentar entender esta he- 93-94 ).
terogeneidade da língua, os pesquisadores va-
riacionistas valem-se de um processo contínuo Observe-se ainda, que a língua é caracterizada
e sistemático, incluindo uma análise quantitati- pela fluidez e por seus recursos diversos, pode-
va em programas de computadores (a exemplo mos jogar com sua estrutura fazendo com que o
do Varbrul e do Goldvarb), de células sociais de enunciado signifique além dele mesmo. É o que
informantes para refletir sobre os aspectos for- ocorre quando fazemos uma afirmativa e vale-
mais da língua, seus usos, seus falantes, seus mo-nos de ironia para que signifique exatamen-
gêneros, contextos e sua história. te o oposto, ou quando não nos referimos exata-
Nestes métodos quantitativos – variabilidade, mente a um pedido ou ordem, mas permitimos
tendências, relações de mais e menos – busca- que nosso interlocutor compreenda-o a partir
-se mapear a relação língua e sociedade, “in- do mencionado – o dito indireto.
cluindo o uso de tabelas e gráficos para apre- Essas duas situações unidas às metáforas, com-
sentação de dados, medidas estatísticas para parações, metonímias e tantas outras figuras de
resumir dados e fazer inferências sobre eles, linguagem mergulhadas na língua do indivíduo,
testes de significância e confiabilidade e técni- ampliam a rede de análise dos linguistas a essa
cas analíticas quantitativas” (GUY, 2007, p. 20). língua movente em seu uso e de universo infi-
De posse dos dados, podemos destacar a afir- nito.
mação confiante de Bortoni- Ricardo: Mesmo sem escapar as mudanças, as varieda-
des ou movimento contínuo, a língua continua
[...] as variedades faladas pelos grupos sendo desejo / objeto de estudo dos linguistas,
de maior poder político e econômico pas- num método científico, pois quanto mais a com-
sam a ser vistas como variedades mais preendermos, mais estaremos compreendendo
bonitas e até mais corretas. Mas essas aos seres humanos da linguagem que somos.
variedades, que ganham prestígio porque Reconhece-se então, a identidade cultural do
são faladas por grupos de maior poder, povo em estudo, povo este que adquire relativa
nada têm de intrinsecamente superior às unidade através da língua.
demais. O prestígio que adquirem é mero
resultado de fatores políticos e econômi- 3 - Língua como elemento de reflexão de pro-
cos. O dialeto (ou variedade regional) fa- fessores e alunos
lado em uma região pobre pode vir a ser
considerado um dialeto “ruim”, enquanto Se o homem é heterogêneo e a língua um pro-
o dialeto falado em uma região rica e po- duto social deste entrelaçamento, não faz senti-
derosa passa a ser visto como um “bom” do algum tratar as variações linguísticas como
dialeto ( BORTONI-RICARDO2004, p.34). um “problema”. Problema mesmo é acreditar
numa padronização linguística, enrijecedora da
Não havendo supremacia de uma variação sobre língua idealizada, perfeita, imutável, bem aca-
a outra – a não ser política e economicamente – bada, incapaz de permitir variações, mas capaz
as diversas formas de falar estão respaldadas de contradizer o saber que o falante tem do fun-
na maneira de falar de uma comunidade lin- cionamento da sua língua materna, que sofre
guística. A diversidade é tamanha e em diversos variações em processo contínuo, impossível de
aspectos – fonológicos, morfológicos, sintáticos, ser estancado.
lexicais – que um único falante constrói e re- Apostar numa norma-padrão é renegar a fala
constrói enunciados semelhantes em processos espontânea, o modo particular que cada fa-
comunicativos diferentes, sendo capaz inclusive lante tem de usar a língua; é reduzir, tanto no
de adquirir variações do seu interlocutor. Neste ambiente das aulas de Língua Portuguesa – e
ponto, Boomfield (1933) dispara: às vezes de algumas outras – e no discurso da
mídia conservadora, a variação linguística – que
Todo falante está constantemente adap-
torna a língua tão heterogênea – ao conceito do
tando seus hábitos de fala aos de seu in-
erro, estigmatizando o preconceito linguístico.
terlocutor; ele abre mão de formas que
Tal conceito é na verdade um pseudoconceito,
tem usado, adota novas e, talvez mais
formado por uma tentativa sociocultural fraudu-
frequentemente que tudo, muda a frequ-
lenta de impor critérios de avaliação fundamen-
ência das formas faladas sem abandonar
tados numa minoria privilegiada, isto porque

96
[...] os erros que condenamos só são er- do de uma identidade ou causar-lhe aversão à
ros se o critério de avaliação for externo escola na qual ele não se reconhece. Há uma
à língua ou ao dialeto, ou seja, se o crité- obrigatoriedade em se adotar uma postura que
rio for social. Mas, se adotássemos esse nos afaste do ensinar já que
critério para todos os casos, deveríamos
também concluir que são erros todos os A prática tradicional de ensino da língua
modos diferentes de falar, mesmo os que portuguesa no Brasil deixa transparecer,
são típicos de outras línguas (POSSENTI, além da crença no mito da “unidade da
1997, p.30). língua portuguesa”, a ideologia da neces-
sidade de “dar” ao aluno aquilo que ele
Para uma atitude de maior relevância sociocul- “não tem”, ou seja, uma “língua”. Essa
tural da língua dada a sua dinâmica, é necessá- pedagogia paternalista e autoritária faz
rio entender que a língua padrão cumpre seu tábua rasa da bagagem lingüística da
papel, mas a atitude negativa do erro tradicio- criança, e trata-a como se seu primeiro
nalmente imposta como preconceito linguístico dia de aula fosse também seu primeiro
posto pelo ensino da gramática normativa preci- dia de vida. Trata-se de querer “ensinar”
sa ser superada criticamente. ao invés de “educar” (BAGNO, 1997, p.62).
Estabelecer diante do exposto, uma norma fa-
lada a ser ensinada deste lado do oceano não é A língua materna de quase a totalidade dos ha-
tarefa fácil para educadores e linguistas; se por bitantes do Brasil é objeto de estudo dos linguis-
um lado não se pode manter integralmente a tas a décadas. Inúmeras pesquisas e centenas
língua do além-mar, por outro não se pode de- de textos já foram publicadas sobre o assunto
fender radicalmente as especificidades da terra em meios especializados. No entanto, ainda é tí-
brasilis. mida a modificação de todos estes esforços em
Encontrar o meio termo é uma tarefa que exige instrumentos pedagógicos capazes de munir
sutileza, não é a toa que muitos erros/desvios professores com práticas pedagógicas por uma
são criados na produção não só da língua falada, educação linguística que ensine a lidar com as
mas também da escrita e, saná-los não é uma variedades linguísticas estigmatizadas. E não
tarefa específica da linguística ou do ensino. se pode ficar esperando uma sensibilidade so-
Antagônico, portanto é constatar que vivendo cial dos docentes ou dos envolvidos no processo
e usufruindo da língua enquanto objeto da sua educacional para superar o que por séculos vem
própria cultura, o aluno e o professor de Lín- sendo negligenciado pelas ações políticas em
gua Portuguesa, sujeitos mais especializados relação à educação formal.
na questão, permitam-se estar submetidos a É preciso vestir a camisa e honrar com ações o
uma variante social, dita culta, imposta pela mí- fato de a escola, por ser primordialmente a fon-
dia de massa – mais poderosa que a escola e te do letramento na nossa sociedade, não poder
a família – e reprodutora de um discurso políti- ser responsável pela reprodução das desigual-
co dominante. E mais, permitam-se reproduzir dades sociais que passam pelo preconceito lin-
tal discurso, fazendo da língua um elemento de guístico. E mais, é preciso oferecer aos profes-
estratificação social, na e pela qual indivíduos sores oportunidades de observar os fenômenos
são condenados a situar-se a margem da so- de variação e/ou mudança linguística dos seus
ciedade por não dominarem a norma difundida alunos de modo mais embasado cientificamen-
por aqueles agentes e promotores culturais que te e por consequência mais consistente. Saí da
planejam e divulgam uma língua que nada mais sensibilidade social e instrumentalizar pedago-
é que o reflexo do monopólio e o fruto de uma gicamente a outra ponta com as pesquisas – já
padronização distante da realização da maio- realizadas ou em andamento – é uma necessi-
ria populacional brasileira; mas que no entan- dade para transformar esta relação de precon-
to, reina na mídia e para um grupo minoritário ceito entre língua e sociedade.
amante do conservadorismo linguístico. O que está posto é que os professores de Língua
Se o modo de falar do indivíduo identifica sua Portuguesa acabam por acreditar que é obriga-
maneira de viver, do grupo social no qual está ção deles coibir severamente os usos de língua
inserido, assim como da localidade onde mora, desviados da norma culta. Na verdade, a maioria
reforçando nesta fala a identidade cultural pe- deles não sabe como lidar com os “erros de por-
culiar do indivíduo; não há lógica que a escola tuguês” e acabam por, na sua prática, reafirmar
tire a ferro e fogo o domínio dessa comunicação o preconceito linguístico de natureza ideológica.
da prática linguística do aluno. É preciso sensi- É em sala de aula que a variedade informal usa-
bilidade e cautela para não destituir o indivíduo da no domínio familiar do aluno justapõe-se a
de sua identidade cultural, deixando-o desloca- variante padrão da cultura letrada,

97
É papel da escola, portanto, facilitar a estilo, mas para tanto, o professor não pode fa-
ampliação da competência comunicativa zer uma intervenção inoportuna ou desrespeito-
dos alunos, permitindo-lhes apropria- sa ao trabalhar esta variedade padrão, pois tal
rem-se dos recursos comunicativos ne- condução é inadequada ao processo de ensino
cessários para se desempenharem bem, da língua materna identitária da cultura daquele
e com segurança, nas mais distintas ta- aluno.
refas lingüísticas (BORTONI-RICARDO,
2004, p.74). Considerações Finais
Sabemos que as mudanças na língua não se dão Diante de tudo, e já dito por muitos embora ain-
apenas no aspecto lexical, mas também mor- da não consigamos atingir o objetivo na práti-
fossintático e não podemos deixar de abordar ca, é compromisso da escola levar o aluno ao
os fonológicos exemplificados amplamente nas domínio de variantes que gozem de prestígio,
monotongações, para citar apenas um. Assim ao ampliando seu repertório lexical, pronunciando
ingressar na escola, o aluno encontra-se fren- e escrevendo as palavras com todos e apenas
te a uma série de mudanças da língua que ele os seus fonemas, realizando as concordâncias,
acreditava ser materna, do seu domínio. Este produzindo enunciados sintaticamente coeren-
estranhamento, dar-se também no ingresso ao tes, acessando as estruturas e os recursos de
curso universitário tanto pelos formatos dos gê- forma ampla e diversificada, adquirindo assim
neros textuais agora dominantes, como por uma uma competência comunicativa que não desva-
extensa lista de vocábulos destituídos de signi- lorize a sua própria variedade social e ao mesmo
ficados (e até significantes) no tempo do Ensino tempo forneça-lhe subsídios para transitar pela
Fundamental e Médio. variedade dita padrão.
Bortoni-Ricardo (1945) apresenta, no seu tra- Não é o caso de tornar uma norma linguística
balho Educação em Língua Materna: a Socio- obrigatória, pois assim estaríamos tomando
linguística na sala de aula (2004), contínuos da uma decisão política de no mínimo duplo senti-
variação linguística urbano-rural, oralidade-le- do e com muitas consequências. Reduziríamos
tramento, monitoração estilística. Observa-se a um grupo denominador – a classe mais for-
que nas séries iniciais temos mais ocorrências mada – o alto nível de poder e norma linguística;
destes contínuos, mas eles se estendem aos ao mesmo tempo em que, estaríamos impondo
cursos de Letras e é neste contato que percebe- uma forma de opressão de nível político e não de
mos que muitos dos professores não estão ins- conteúdos linguísticos e culturais ao outro gru-
trumentalizados para realizar uma abordagem po das classes excluídas – parcial e totalmente.
sistêmica das diferenças e o indivíduo mesmo Sem extremismos, é preciso não negar a própria
tendo cumprido mais de uma década de educa- existência de nenhum grupo e assegurar a co-
ção básica não domina a variante padrão e por existência de todos, a pluralidade linguística, a
vezes, o curso universitário não cumpre o papel multiplicidade de sistemas, admitindo a mudan-
de instruir tal domínio e os caminhos que estes ça e a variação como algo natural, intrínseco da
futuros professores de língua precisam seguir língua inserida neste contexto brasileiro.
para levar seus então alunos a não ficarem pre- Caso contrário, precisamos nos segurar na uto-
sos neste arame farpado na trincheira da lin- pia de que sendo o homem criador e produto da
guagem. sua cultura – e por extensão língua – e estando
Os chamados “erros” que nossos alunos come- nela envolvidas uma série de questões política,
tem têm explicação no próprio sistema e pro- econômicas, sociais, linguísticas, o meio plau-
cesso evolutivo da língua. Portanto, podem ser sível de se diminuir as lacunas entre as varia-
previstos e trabalhados com uma abordagem ções linguísticas seria produzir significativas
sistêmica. Para tanto, faz-se necessário que o mudanças sociais e econômicas para reduzir
professor saiba identificar o uso não padrão pelo as desigualdades e, por conseguinte, integrar
aluno a fim de que possa propor intervenção que os falantes e escritores nativos brasileiros com
conscientize os educandos da transgressão a suas riquezas individuais a uma mesma comu-
norma culta respeitando as características indi- nidade linguística, econômica e cultural, na qual
viduais deles. Mas como revela a pesquisadora seu processo de identidade nacional esteja as-
Bortoni- Ricardo (2004), o problema está no fato segurado e, anuladas as tão díspares variantes
de que, muitas vezes, o professor não consegue linguísticas.
identificar a diferença ou por falta de atenção Estamos portanto, entre 1- o possível, neste mo-
ou pelo desconhecimento a respeito da regra; mento, a coexistência da pluralidade linguística,
tal conscientização tem o objetivo de mostrar corroborando com o multilinguismo do falante
ao aluno que ele pode monitorar o seu próprio dentro de sua própria língua, assegurando ao

98
aluno o domínio da norma padrão – como mais tes a unificação de uma comunidade linguística.
uma – para que o mesmo lance mão dela em si- Enquanto professores de Língua Portuguesa já
tuações específicas e 2 – a utopia, de sanar as temos um objetivo: mãos a obra.
desigualdades sociais do país e levar os falan-

REFERÊNCIAS
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de que a mesma língua identifique culturas diferentes? Educação & Comunicação. N.º 4 (Dez. 2000),
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da variação. – 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2008.
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tidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.
WEINREICH, Uriel. LABOV, William. HERZOG, Marvin I.; tradução Português Brasil Marcos Bagno.
Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola Editorial,
2006.

99
ALTEAMENTO DAS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS DA AMA-
ZÔNIA PARAENSE: O DIALETO DOS MIGRANTES MARANHENSES FRENTE AO
DIALETO FALADO EM BELÉM/PA

Giselda da Rocha Fagundes

RESUMO de verificarmos a variante mais favorecida. Os


dados apontaram a manutenção como a mais
O presente trabalho surgiu quando, a partir dos recorrente. Todavia, devido ao fato do alteamen-
resultados advindos da versão anterior do Pro- to, assim como o abaixamento, das vogais se-
jeto Vozes da Amazônia, evidenciou-se a neces- rem variantes típicas da fala dos maranhenses,
sidade de se aprofundar suas fronteiras e dis- como atestou Castro (2008), e nossa amostra se
cutir temas relacionados ao desenvolvimento de compôs também de pessoas dessa região, op-
políticas linguísticas e à identidade sociodiscur- tamos pelo estudo do fenômeno de alteamento
siva do amazônida nas regiões onde se atesta em detrimento da manutenção; b) identificar os
contato interdialetal decorrente de fluxo migra- fatores linguísticos e extralinguísticos que in-
tório intenso motivado por projetos econômicos terferem no condicionamento das variantes de
na região Amazônica, o que inclui o tratamento </e/> e </o/> no alteamento. Das onze vari-
de aspectos culturais, sociais, históricos e po- áveis controladas para este estudo, o programa
lítico-ideológicos. O objetivo central é o de ma- Goldvarb X selecionou seis como significantes
pear a situação sociolinguística diagnosticada para explicar o alteamento de </e/> no portu-
por Cruz et al (2009) identificada na Amazônia guês de Belém: natureza da vogal tônica; natu-
paraense. Diante do mapeamento obtido pelo reza da vogal seguinte; seguimento precedente;
Projeto Vozes da Amazônia com relação à si- seguimento seguinte; tipo silábico e escolarida-
tuação sociolinguística das vogais médias pre- de, e no que tange ao </o/> o programa se-
tônicas do português regional paraense, sen- lecionou seis grupos: natureza da vogal tônica;
tiu-se a necessidade de uma investigação mais natureza da vogal seguinte; distância relativa
aprofundada sobre a situação sociolinguística à sílaba tônica; seguimento precedente; segui-
no município de Belém, uma vez que este rece- mento seguinte; e tipo silábico; e c) relacionar
beu um fluxo migratório considerável, em sua aspectos de variação inter e intradialetal para
maioria de Maranhenses, em decorrência de explicar o comportamento de </e/> e </o/>
projetos econômicos da região. A coleta de nar- no dialeto da zona urbana de Belém (PA) para
rativas de experiência pessoal (TARALLO, 1988) a realização de uma possível caracterização so-
será o objetivo principal do trabalho de campo. ciolinguística do português falado nessa locali-
Este trabalho trará, ainda, o exame do fenômeno dade.
das vogais pretônicas na fala de grupos de mi- Para isso, utilizamos dados coletados da fala
grantes Maranhenses ou de seus descendentes espontânea de migrantes nordestinos oriundos
no município de Belém, tendo como base uma do estado do Maranhão e de seus descendentes,
amostra estratificada como fizera Bortoni-Ri- paraenses nascidos na localidade pesquisada
cardo (1985). e/ou maranhenses que migraram para lá ainda
pequenos.
PALAVRAS-CHAVE: Vogais médias pretônicas;
Este trabalho está organizado em três tópicos.
Variação dialetal; Alteamento; Contato interdia-
No primeiro apresentamos um esboço de algu-
letal
mas pesquisas realizadas sobre as médias pre-
tônicas passíveis de explicar o comportamento
Introdução variável dessas vogais em posição pretônica. No
segundo apresentamos os procedimentos me-
Esta pesquisa teve como objetivo descrever a todológicos utilizados para a realização deste
variação das vogais médias pretônicas no por- trabalho. Descrevemos a forma como foi com-
tuguês falado em Belém/PA, levando-se em posto o corpus, o processo de codificação, e
conta os fatores linguísticos e extralinguísticos como foram realizadas as análises estatísticas.
que podem influenciar e condicionar o fenôme- Por fim, no terceiro, apresentamos os resulta-
no pesquisado. Para isso foram necessários: a) dos estatísticos para a aplicação do alteamento
descrever as variantes das vogais médias pre- das médias </e/> e </o/>, apresentando os
tônicas /e/ e /o/ no português de Belém, a fim

100
grupos de fatores – variáveis independentes - muito próximo de alteamento e manutenção das
escolhidos pelo programa estatístico Goldvarb médias pretônicas com tendência maior para
X como significantes à aplicação das regras de ausência de alteamento, atestando, inclusive va-
alteamento. riação neutra das vogais médias pretônicas no
caso do português falado em Mocajuba (Cam-
As vogais médias pretônica nas regiões Norte e pos 2008), reforçado por Cametá (Rodrigues &
Nordeste: Projeto Vozes da Amazônia e Castro Araújo 2007) e por Breves no geral (Cassique et
al 2009) que comprovam uma tendência mais
(2008).
acentuada para ausência de elevação das mé-
O projeto Vozes da Amazônia, da qual este es- dias. A relação presença versus ausência de al-
tudo faz parte, é integrante de um diretório de teamento é ainda mais acentuada no português
pesquisa nacional denominado Descrição Sócio- falado na zona urbana de Breves (Oliveira 2007)
-Histórica das Vogais do Português – PROBRA- e no município de Breu Branco (Marques 2008),
como mostra o gráfico 1.
VO. O PROBRAVO investiga como são realizadas
Cruz (2012), em sua conclusão, levanta a hipó-
foneticamente as vogais no Português do Brasil
tese de que os fatores externos são relevantes
(PB), assim como a base da diversidade de re-
no condicionamento da realização das variantes
alizações fonéticas das vogais átonas do PB, e
das médias pretônicas e fazem com que tal va-
como os falantes do PB se entendem apesar das
riedade seja muito diferente da demais, na fala
diversidades da qualidade vocálica.
da Amazônia paraense. Para comprovar tal hi-
Sobre a variação das vogais médias pretôni-
pótese a autora afirma que deverá ser feita uma
cas, alvo desta pesquisa, o projeto já procedeu
nova coleta de dados, controlando como prin-
a descrições do processo em cinco localidades
cipal fator a origem ou ascendência do falan-
do Estado do Pará, a saber: Belém (Cruz et al
te. Acreditamos ser talvez a variável que esteja
2008, Sousa, 2010; Cruz & Sousa, 2013), de Bre-
controlando a realização dessas variantes. Veri-
ves (Dias et al 2007; Oliveira 2007; Cassique et al
ficaremos também além da variável origem do
2009), de Cametá (Rodrigues & Araújo 2007), de
falante, a fim de se verificar se se trata de uma
Mocajuba (Campos 2008), de Breu Branco (Mar-
mudança estável ou em progresso.
ques 2008) e de Aurora do Pará (Ferreira 2013).
Com esta nova abordagem temos o trabalho
Todas são descrições sociolingüísticas de cunho
pioneiro de Ferreira (2013) em Aurorá do Pará;
variacionista.
e Belém, com esta nossa pesquisa. Para pro-
Todos os resultados sobre as variedades do por-
ceder este novo processo de investigação, as
tuguês da Amazônia paraense apontam para
pesquisas tomam como base para a formação
uma tendência dos dialetos paraenses, dos
do corpus o conceito de rede social, de Bortoni-
quais se tem descrição do fenômeno em ques-
-Ricardo (1985), por ser o melhor instrumento
tão, de preferência pela preservação das médias
para lidar simultaneamente com as diferenças
pretônicas em detrimento do alçamento, como
individuais e com a identificação da variação dos
pode ser verificado no quadro 1 abaixo.
padrões sistemáticos e o da análise das redes
Grafico 1: Tendência ao não alteamento das vo-
sociais dos migrantes, já usado anteriormente
gais médias pretônicas no português da Ama-
em sociolinguística correlacional (LABOV, 1972;
zônia Paraense, de acordo com os resultados
MILROY, 1980).
dos trabalhos realizados pela Equipe do Projeto
Ao pesquisarmos sobre o falar Maranhense,
Norte Vogais da UFPA.
encontramos a dissertação Descrição Históri-
ca das Vogais na Fala do Sertanejo da Região
de Balsas – MA, de Castro (2008). A partir desse
trabalho respaldamos nossas análises, certos
de que o referido estudo representa apenas um
recorte de todo o sistema linguístico do falar
maranhense. A pesquisa de Castro (2008) tem
como base o método histórico-comparativo, uti-
lizado para a descrição do falar pesquisado pela
autora, ao comparar os fenômenos fonético-fo-
nológicos característicos do corpus pesquisado
com os apresentados na literatura da história da
Os dialetos
Fonte: Adaptado da Amazônia
de Cruz paraense apresentam
(2012, p.203)
língua portuguesa.
uma configuração do fenômeno de alteamento
Ainda segundo Castro (2008) a manutenção das
que exige um maior aprofundamento de suas
pretônicas, ou seja, os fonemas fechados /e/ e
causas sejam internas ou externas, pois os dia-
/o/ são raros em posição pretônica, pois a ten-
letos da zona rural de Breves (Dias et al 2007),
dência maior é alçá-los para /i/ e /u/, respecti-
das ilhas de Belém (Cruz et al 2008) e de Mo-
vamente. Castro (2008) observou, durante a fase
cajuba (Campos 2008) apresentam percentuais

101
das entrevistas, que esse falar é muitas vezes 30 anos e divididos em sexo, um informante nas-
marginalizado e suscetível de mudança e de cido em Belém/PA e a informante BE0F3C17,
ameaça de extinção. Esses falantes da região de que nasceu em Pedrinhas - MA, mas veio para
Balsas – MA demonstram em seus discursos te- o Pará com apenas três meses de vida. Os infor-
rem consciência de que o processo de escolari- mantes do grupo de controle são descendentes
zação e a vivência na cidade fazem com que haja dos informantes do grupo de ancoragem.
uma modificação na linguagem das pessoas,
além de que possibilita melhores oportunidades Tabela 1: Estratificação dos informantes da pes-
de trabalho. quisa em grupo, sexo e faixa etária.
Outro fato observado por Castro (2008) é que
esse falar possui um número pequeno de falan- GRUPO DE ANCORAGEM GRUPO DE CONTROLE
tes e de modo geral é rejeitado pelas novas ge- 04 informantes 02 informantes
rações (filhos, netos, habitantes da cidade) que
usam pouco da sua linguagem nativa caracterís- SEXO SEXO
tica. Ou seja, no momento, esse falar regional Masculino
ü Masculino
ü
e local parece estar caindo em desuso, sendo
utilizados somente em seus ambientes eco-lin- Feminino
ü Feminino
ü
guísticos ou nem isto, pois, segundo a autora da FAIXA ETÁRIA FAIXA ETÁRIA
pesquisa, muitas vezes, os próprios familiares
desencorajam o uso da língua materna, haja vis- Acima de 50 anos Entre 20 e 30 anos
ta que os filhos ou parentes próximos, por ques-
tão de preconceito ou mesmo de funcionalidade,
desencorajam os pais e/ou avós, parentes mais O trabalho de campo foi realizado entre agosto
idosos, a manterem o uso do falar natural, mas e outubro de 2013. Para efetivação desta etapa,
ainda há, como atestou Castro (2008) alguns fa- seguimos as orientações de Tarallo (2003). Para
lantes que mostraram-se satisfeitos pela sua este estudo, utilizamos três softwares: o PRAAT,
identidade sertaneja e pela forma como falam o GOLDVARB X e Yed Graph Editor, por meio dos
quais foi possível realizar todo o tratamento dos
Metodologia dados do corpus e confecção de gráficos.
Fonte: elaborado pela autora
Esta pesquisa tomou como base os pressupostos Apresentação dos resultados
da sociolinguística quantitativa de Labov (1972).
Utilizamos também alguns procedimentos me- A tabela 2, a seguir, apresenta os dados distri-
todológicos seguidos por Bortoni-Ricardo (1985) buídos entre as variantes de alteamento, ma-
para Análises de Redes Sociais, importantes nutenção e abaixamento. A apresentação dos
para o estudo de dialetos em comunidades de dados dessa forma objetiva nos mostra que, no
migração, como é o caso Belém. No que se re- dialeto de Belém/ PA, assim como em grande
fere à análise quantitativa de dados, tomamos parte dos dialetos estudados pelo Projeto Vo-
como referência os nortes dados por Guy e Zilles zes da Amazônia, predominam as variantes de
(2007), para o uso de programas estatísticos. manutenção. Contudo, as análises exploradas
O corpus utilizado corresponde a 570 ocorrên- tomaram como objeto o alteamento das mé-
cias das vogais médias pretônicas, sendo que dias pretônicas, uma vez que o alteamento é a
346 são ocorrências da variável </e/> e 224 da segunda variante que mais ocorre no dialeto de
variável </o/>. Esses dados foram extraídos Belém, conforme atestou Cruz et al (2008), Sou-
dos discursos gravados de 06 informantes, num za (2010) e Cruz e Souza (2013).
total de oitenta e três minutos e oitenta e um se-
gundos de gravação, que corresponde, em mé- Tabela 2: Percentuais das variantes de </e/> e
dia, a 14 minutos de gravação por informante. </o/> no falar de Belém/PA.
Para compor a amostra, utilizamos os proce-
dimentos metodológicos adotados por Bortoni- Variante de </e/> </o/>
-Ricardo (1985). Para explicar o comportamen-
Alteamento – (fal[i]Cida /
to linguístico dos migrantes a autora utiliza o 30,1 21,9
carv[u]eiro)
conceito de redes sociais, tomando por base o
conceito de grupo de referência. Com base nes- Manutenção – (r[e]união /
37,0 43,8
te conceito, estabelecemos dois grupos para a b[o]letim)
amostra: um grupo de ancoragem, composto, Abaixamento – (g[E]ladeira)
para esta análise preliminar, por 04 (quatro) mi- 32,9 34,4
/ (n[O]vela)
grantes maranhenses, com faixa etária acima Fonte: elaborada pela autora
de 50 anos e divididos em sexo, masculino e fe-
minino; e um grupo de controle, composto por
02 (dois) informantes, com faixa etária entre 20 e Conforme os dados da tabela 2 fica claro que as

102
variantes de manutenção predominam no diale- Gráfico 3: Resultado de aplicação e não apli-
to de Belém/PA, entretanto para as variantes de cação do alteamento das médias pretônicas
</e/> os índices de alteamento e abaixamen- </e/> e </o/>.
to 30% e 32,9%, respectivamente, ficaram pró-
ximos do índice de manutenção, que é de 37%,
com uma leve sobrepujança do abaixamento em
relação ao alteamento. Já para as variantes de
</o/> os percentuais apontaram para uma di-
ferença um pouco maior entre as três variantes,
mas sempre predominando a manutenção, com
43,8%, apresentando 34,4% para abaixamento,
enquanto que o alteamento é de apenas 21,9%.
No gráfico 2, a seguir, podemos evidenciar me-
lhor esta comparação dos resultados.

Gráfico 2: Percentuais das variantes de </e/> Fonte: elaborada pela autora


e </o/> no falar de Belém/PA O programa estatístico selecionou seis fatores
significantes para as variantes de </e/> e seis
para </o/>. O quadro 1, a seguir, apresenta
esses fatores selecionados marcados com “x”,
e os excluídos foram marcados com a cor azul.

Quadro 1: Fatores selecionados e excluídos nas


rodadas de aplicação do alteamento e do não al-
teamento das médias pretônicas em Belém/PA.

Fatores/
</e/> </o/>
Variantes
Altea- Não al- Altea- Não al-
mento teamento mento teamento

Fonte: elaborada pela autora Natureza da


X X X X
No caso do alteamento, nossa hipótese era de vogal tônica
quê, como Castro (2008) não trabalhou com pe- Vogal pré-
sos relativos e nem porcentagens, mas afirma -pretônica
em seu estudo que o alteamento é produtivo no quando for
falar da Região de Balsas/MA, esta variante se- oral
ria igualmente produtiva, todavia nossa hipóte- Vogal pré-
se foi refutada tanto para </e/> quanto para -pretônica
</o/>. quando for
Os dados do abaixamento e manutenção foram nasal
amalgamados, para podemos controlar as va- Natureza
riantes de alteamento e não alteamento. Assim da vogal X X X X
realizamos as rodadas binárias no Goldvarb X, seguinte
e os resultados deste estudo para este recorte Distância
analítico está apresentado na Tabela 3 e no Grá- relativa à
X X
fico 3. sílaba tô-
nica
Seguimento
Tabela 3: Resultado para aplicação e não apli- precedente
X X X X
cação do alteamento das médias pretônicas no
Seguimento
dialeto de Belém/PA. seguinte
X X X X

Tipo silá-
</e/> </o/> bico
X X X X

% P.R % P.R Sexo do


informante
Alteamento 31,1% .31 21,9% .22
Grupo de
Não alteamento 69,9% .70 78,1% .78 Amostra
Escolari-
Fonte: elaborada pela autora X X
dade
Fonte: elaborada pela autora

103
Conforme já dissemos, seis foram os grupos consoante dorsal o que menos favorece.
de fatores que programa Goldvarb X selecionou Assim também ocorreu com o seguimento se-
como responsáveis pela aplicação do alteamen- guinte, pois os dados apresentados revelam que
to de </e/> no dialeto de Belém/PA. Desses, o segmento vazio é o maior favorecedor para
cinco são linguísticos e um é social, a saber: aplicação da regra do alteamento no dialeto de
Natureza da vogal tônica; Natureza da vogal se- Belém/PA, assim como as consoantes dorsais.
guinte; Seguimento precedente; Seguimento se- Segmento vazio apresentou peso relativo de
guinte; Tipo silábico e Escolaridade. .69, maior peso relativo, peso este bem próximo
Seis também foram os grupos de fatores que do obtido pelas consoantes dorsais, com .61 de
programa Goldvarb X selecionou como respon- peso relativo, já as consoantes labiais e coronais
sáveis pela aplicação do alteamento de </o/>. obtiveram .39 e .40 de peso relativo, respectiva-
Todos os grupos elencados são linguísticos. São mente.
eles: Natureza da vogal tônica; Natureza da vo- Para o tipo silábico destacamos três tipos de
gal seguinte; Distância relativa à sílaba tônica; estrutura silábica CV (consoante vogal), CVC
Seguimento precedente; Seguimento seguinte; (consoante, vogal, consoante) e Não se aplica
Tipo silábico. (consoante, vogal, vogal), ou seja, sílabas leves
e pesadas. Os resultados indicam que o altea-
Alteamento da variável dependente média an- mento tem maior probabilidade de ocorrência
terior </e/> quando a sílaba é leve, .65 de peso relatico. As
sílabas CVC, com .43 de peso relativo, e os ca-
Com relação a Natureza da vogal tônica, a vogal sos em que não há CV ou CVC, não tem influên-
média fechada posterior /o/, teve maior peso re- cia sobre o fenômeno, pesos relativos de .43 e
lativo para aplicação do alteamento de </e/>, .29, respectivamente.
.79 de peso relativo, o segundo maior peso foi Dentre as variáveis independentes sociais, a es-
da vogal alta posterior.78, seguido da vogal alta colaridade foi a única das selecionadas como
anterior, que teve .73 de peso relativo, e média importante para explicar a aplicação do alte-
fechada anterior .51. O menor peso foi o da mé- amento no dialeto de Belém/PA. Os dados de
dia aberta posterior, .27, seguida da vogal baixa Belém/PA revelam que os níveis fundamental e
.3. Podemos, então, concluir que para o altea- médio favorecem o alteamento e o nível supe-
mento de </e/> no dialeto de Belém/PA con- rior desfavore a regra. o alteamento de </e/>
correm como favorecedoras, em posição tônica, é favorecido pelos níveis médio e fundamental,
as vogais altas e média fechada posterior /i, u, com pesos relativos de .79 e .60, respectivamen-
o/, configurando a harmonia vocálica como um te, enquanto o nível superior tendem a inibir a
fator condicionante da regra. regra, com .43 de peso relativo.
Sobre a natureza da vogal seguinte, o fator sem
vogal aberta foi o que teve maior peso relativo Alteamento da variável dependente média pos-
e o único fator favorecedor do abaixamento de terior </o/>
</e/>, .61. Os fatores vogal aberta imediata e
vogal aberta não imediata tiveram pesos rela- Assim como fizemos com a média anterior, veri-
tivos inferiores a .50, ficando com os pesos, .36 ficamos a vogal em posição tônica que mais fa-
e .18, respectivamente. Essa mesma consta- vorece o alteamento de </o/>. Os resultados
tação ocorreu nos dados de Freitas (2001), em foram os seguintes: vogal média fechado poste-
Bragança. Segunda a autora, As vogais altas rior foi o fator de maior peso, .78. Vogal alta pos-
em posição contígua, sejam tônicas ou átonas, terior, juntamente com a vogal média fechada
geralmente apresentam-se como favoráveis ao anterior tiveram o segundo maior peso relativo,
alteamento. Podemos então dizer que há um ambas com .73, seguidas da vogal alta anterior.
processo de harmonia vocálica atuando na apli- Já o fator vogal baixa teve .26 de peso relativo e
cação da regra de alteamento de </e/>. O que a vogal média aberta anterior teve .21 de peso
é ratificado por Nina (1991 apud CAMPOS, 2008, relativo o menor peso.
p. 140): “[...] a influência da vogal tônica ou átona Sobre a Natureza da vogal seguinte o fator sem
que segue de imediato à pretônica evidencia um vogal aberta foi o que teve maior peso relativo
processo de harmonização vocálica”. e o único fator favorecedor do abaixamento de
Sobre o seguimento precedente observamos que </o/>, .68. Os fatores vogal aberta imediata e
o seguimento vazio é o único favorecedor des- vogal aberta não imediata tiveram pesos relati-
sa variante. Todos os fatores, consoante labial, vos inferiores a .50, ficando com os pesos, .16 e
consoante coronal, consoante dorsal e ramifica- .37, respectivamente.
do inibem o abaixamento com os pesos relativo, Para os resultados para a variável Distância re-
.28, .40, .10, .51, respectivamente, sendo o fator lativa à sílaba tônica na realização do alteamen-

104
to de </o/> consideramos as seguintes distân- relativo. Já as sílabas em que os casos CV e CVC
cias para essa variável: distância 1(um) - (c[u] não se aplica apresentaram .13 de peso relativo.
mida), e distância 2 (dois) - (m[u]vimento). Como
não houve ocorrências de pretônica posterior Conclusão
alta nos fatores Distância 3 e Distância 4, es-
tes fatores foram retirados das rodadas. O fator A partir das 570 ocorrências dos dados dos 06
distância 1 (um), que obteve o peso relativo de informantes entrevistados, divididos em grupo
.58, favorece o alteamento, e o fator Distância de Amostra – migrantes maranhenses – e gru-
2 (dois), com peso relativo de .32, desfavorece o po de controle – descendentes dos migrantes –,
alteamento. verificamos que há uma tendência para a não
Com relação ao Seguimento precedente da síla- aplicação da regra de alteamento e da regra de
ba da vogal-alvo para aplicação do alteamento abaixamento das vogais médias pretônicas no
podemos observar que os seguimentos coronal dialeto de Belém/PA, contudo ambas represen-
e dorsal , ambos com o peso relativo .55, e labial, ta cerca de um terço da realização das vogais
com peso relativo .78, favorecem o alteamento médias pretônicas. Esse fato aponta para a per-
de </o/>. Já o fator ramificado desfavorece o da da marca de identidade linguística dos mi-
alteamento, pois apresentou peso relativo quase grantes quando em confronto com falantes de
categórico, .08. outros dialetos.
O segmento da sílaba seguinte foi outra variá- O alteamento, no dialeto de Belém/Pa embora
vel selecionada pelo programa Goldvarb X como represente marca diletal do Maranhão (CASTRO,
importante para a aplicação do alteamento de 2008), não é a marca dialetal desta localidade
</o/>. Tal qual ocorreu com a variável Segui- posto que nela predomina o não abaixamento.
mento precedente da sílaba da vogal alvo, os da- Os resultados obtidos nas rodadas indicam um
dos revelam que as consoantes labiais são favo- índice probabilístico abaixo do considerado sig-
recedoras da aplicação da regra do alteamento nificante para essa variante, apontando que os
no dialeto de Belém/PA obtendo os resultados: migrantes não mantem essa regra no dialeto
consoante labial .73 de peso relativo, consoante estudado.
coronal, com .50 de peso relativo, seguimento O mesmo ocorre com o alteamento, segunda
vazio, com .44 de peso realtivo e consoante dor- variante mais utilizada no dialeto maranhen-
sal, com .13 de peso relativo. se (CASTRO, 2008), que, em Belém/PA não é a
Já sobre o tipo silábico os resultados indicam marca dialetal posto que nela predominou o não
que o alteamento tem maior probabilidade de alteamento. A realização do alteamento no dia-
ocorrência quando a sílaba é do tipo CV com .65 leto de Belém/Pa quando ocorre está bastante
de peso relativo e do tipo CVC com .57 de peso associada ao processo de harmonia vocálica.

105
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106
ANÁLISE DE INFERÊNCIAS LINGUÍSTICAS CULTURAIS EM INTERPRETA-
ÇÕES PARA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS
Hector Renan da Silveira Calixto

RESUMO articulada através das mãos, das expressões


faciais e do corpo. É uma língua natural usada
Este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de pela comunidade surda brasileira.”
demonstrar as inferências linguísticas culturais Em seu status de Língua, a Libras possui sua
necessárias por parte do profissional intérprete estrutura gramatical e componentes sintáticos
de Língua Brasileira de Sinais - Libras no mo- bem definidos. O que em uma língua oral-au-
mento da interpretação para que a mensagem ditiva são chamados de palavras, na Libras são
esteja dentro do contexto linguístico cultural dos chamados de sinais. A diferença é a modalidade,
surdos. A necessidade de realizar essa pesquisa que passa a ser visual-espacial.
se deu pelo questionamento se tais inferências A maioria da população “ouvinte” acaba por ter
são necessárias e se os intérpretes as realizam, uma ideia errônea em relação aos indivíduos
a fim de tornar mais clara a mensagem na língua surdos, chegando à conclusão de que são pes-
alvo, a Libras. Foi realizada uma pesquisa quan- soas indiferentes, distraídas ou até mesmo que
ti-qualitativa por meio de levantamento e estudo não possuem interesse em assuntos culturais.
bibliográfico, sendo aplicado um questionário Tais conclusões se devem ao fato de que a gran-
com perguntas fechadas e abertas, a dezessete de parte dos “ouvintes” ignora a “intensidade e a
(17) indivíduos que atuam com Libras, nas áreas duração em que as barreiras linguísticas estão
de ensino, interpretação e outras atividades que na vida das pessoas surdas: a todo o momento.”
envolvem a língua em questão. Como base teó- (PEREIRA, 2008. p. 150)
rico epistemológica temos LACERDA (2012), PE- No bojo deste processo e como meio de inter-
REIRA (2008), SEGALA (2010), QUADROS (2004), câmbio está a figura do intérprete de Libras, um
XATARA (1998) e RODRIGUES (2013). Como re- profissional que tem como objetivo da sua atu-
sultado desse levantamento percebemos que ação a intermediação das informações entre os
no momento da interpretação para Libras, as ouvintes e os surdos. Esse tipo de atuação vai
inferências são realizadas pelos intérpretes, e muito além do ambiente educacional, e se es-
isso fica bem evidente, já que as escolhas dos tende justamente para que os surdos possam
sinais foram realizadas substituindo-se expres- ter acesso ao máximo de informações, inclusive
sões por outras equivalentes dentro do contex- no âmbito cultural.
to cultural dos surdos. Assim, o conteúdo da Para que o intérprete possa servir de canal de
mensagem não foi alterado, possibilitando que o intermediação se faz necessário conhecimento
sentido fosse mantido, e que os surdos tivessem das duas línguas, língua origem e língua alvo,
um entendimento dentro dos seus conhecimen- e de forma profunda, para que no momento da
tos pré-existentes e de sua “carga” cultural. sua atuação possa encontrar, de forma rápida,
Concluímos que para o intérprete desenvolver a equivalentes linguísticos para transmissão da
habilidade de inferir de forma correta durante a mensagem.
interpretação é preciso: conhecimento profun- Um dos grandes desafios na interpretação é a
do da Libras para encontrar equivalentes lin- busca de correspondentes culturais de uma lín-
guísticos para a mensagem; contato constante gua para outra, haja vista que, muitas expres-
com a comunidade surda para aquisição de um sões têm significados apenas quando contextu-
vocabulário de acordo com universo de conhe- alizadas cultural e historicamente, do contrário,
cimento desta comunidade; e participação em não fazem sentido se traduzidas de forma lite-
cursos de formação de intérpretes de Libras, ral. Tais expressões são conhecidas como ex-
com a presença de instrutores surdos, para um pressões idiomáticas, que de acordo com Xatara
melhor desenvolvimento dessa habilidade. (1998, p. 149) a “expressão idiomática é uma le-
xia complexa indecomponível, conotativa e cris-
PALAVRAS-CHAVE: Inferências Linguísticas e talizada em um idioma pela tradição cultural.”
Culturais; Libras; Intérprete de Libras. Por tal razão, interpretar “envolve um ato cogni-
Introdução tivo-linguístico, ou seja, é um processo em que
o intérprete estará diante de pessoas que apre-
De acordo com Quadros (2004, p. 19), a “Língua sentam intenções comunicativas específicas e
Brasileira de Sinais é uma língua visual-espacial que utilizam línguas diferentes.” (QUADROS,

107
2004, p. 27). Para isso, o intérprete precisa ter to, como um “signo natural”, que é pro-
domínio dos processos, modelos, estratégias e duzido sem a intervenção de códigos. A
técnicas de tradução e interpretação. “conotação” é, por outro lado, empre-
Como o ato de Interpretar “é um procedimento gada para simplesmente referir-se aos
transcorrido ‘aqui e agora’ sem a oportunidade sentidos menos fixos e, portanto, mais
de nenhuma edição ou revisão” (PÖCHHACKER, convencionalizados e mutáveis, senti-
2004, p. 10), as escolhas feitas dentro do contex- dos associativos que variam claramente
to cultural da língua alvo devem ser realizadas de instância para instância e, portanto,
de forma rápida, mas ao mesmo tempo devem devem depender da intervenção de có-
ser adequadas ao discurso e a contexto onde digos. (p. 394)
ocorrem, levando em consideração tanto a ori-
gem como o alvo da mensagem, seja ele no sen- De acordo com Hall (2003) os sentidos de deter-
tido “ouvinte - surdo” como no sentido “surdo minados signos, e aqui ampliamos também para
- ouvinte”. mensagens, são mutáveis e por isso dependem
Rodrigues (2013) também fala neste respeito: dos códigos da língua para sua compreensão. E
seus sentidos variam de instância para instân-
Salientamos que, durante o processo cia, o que significa dizer que dependendo
de interpretação, os intérpretes de lín- do contexto no qual o signo ou a mensagem es-
gua de sinais atuam com base nas ca- tão inseridos, sem sentido é alterado.
racterísticas específicas dos sistemas Conforme explicado por Pagura (2003), o prin-
linguísticos da língua fonte e da língua cipal objetivo da interpretação é fazer com que
alvo, os quais, em nosso caso, são de uma mensagem expressa em determinado idio-
modalidades distintas. É com base nes- ma seja transposta para outro, a fim de ser com-
ses sistemas e nas especificidades de preendida por uma comunidade que não fale o
suas modalidades que eles constroem idioma em que essa mensagem foi originalmen-
seus textos alvo. Nesse sentido, os in- te concebida.
térpretes de língua de sinais exploram Dessa forma o processo de interpretação não
as possibilidades linguísticas da Libras, pode estar focalizado apenas no nível linguísti-
seus dispositivos linguísticos específi- co, “mas precisa levar em conta aspectos cul-
cos, para gerar no texto alvo as expli- turais e situacionais, e é por isso que a ênfase
caturas e implicaturas presentes no deve estar na passagem dos sentidos” (LACER-
texto fonte. Assim, no processo de atri- DA, 2008, p. 8).
buição de semelhança interpretativa, Para que isso seja possível o intérprete preci-
os intérpretes de língua de sinais pre- sa de conhecimento amplo e profundo tanto da
língua de partida, quanto da língua alvo, mas
cisam lidar com os efeitos da diferença
“esse domínio não é suficiente para a atuação
de modalidade sobre a construção dos
profissional, e será necessário desenvolver co-
enunciados na língua alvo (p. 157).
nhecimentos para além do conteúdo mais óbvio
Rodrigues (2013) salientou que durante a atua- da mensagem” (LACERDA, 2008, p. 10).
ção os intérpretes se baseiam nas característi- Isso significa que os intérpretes de Libras de-
cas específicas das duas línguas, e mesmo que vem ser capazes de:
a cultura não faça parte do sistema linguístico,
compreender as sutilezas dos significa-
ela é necessária para a decodificação da men-
dos, valores culturais, emocionais e ou-
sagem, haja vista que o sentido denotativo e co-
notativo depende dos sistemas dessas línguas, tros envolvidos no texto de origem e os
conforme Hall (2003) bem salienta em seus es- modos mais adequados de fazer esses
tudos, onde demonstra a distinção que que a te- mesmos sentidos serem passados para
oria linguística faz entre conotação e denotação: a língua alvo.” Não é suficiente apenas
conhecer a língua origem e a língua
O termo “denotação” é amplamente algo. Vai além disso, “trata-se de com-
equiparado com o sentido literal de um preender bem as ideias, pois são elas o
signo: já que esse sentido literal é qua- foco do trabalho, para além das pala-
se universalmente reconhecido, sobre- vras que as compõem (LACERDA, 2008,
tudo quando se trata do discurso visual, p. 10).
a “denotação” tem sido muitas vezes
confundida com a transcrição literal da Também neste sentido Rodrigues (2013) argu-
“realidade” para a linguagem e, portan- menta que:

108
para que uma informação nova possa dimento do sentido de um signo ou mensagem.
ser relevante, ela deve, de alguma ma-
neira, relacionar-se às suposições que Imagem 1: modelo de Balões e Cobrinhas
o sujeito já possui através de processos
inferenciais que demandam esforços
de processamento e que resultarão em
efeitos cognitivos/contextuais, ao gerar
novas suposições” (p. 59).
Para que isso ocorra é necessário realizar infe-
rências linguísticas, para que a mensagem seja
transmitida com o mesmo sentido. Essas infe-
rências são realizadas pelo intérprete a partir
do momento que ele consegue unir a sua forma-
ção teórica a respeito das línguas, aspectos lin-
guísticos e culturais com “essa vivência prática
de modos de versar de uma língua para outras”
(LACERDA, 2008, p. 10).
Rodrigues (2013) salienta que: Fonte; http://turmadamonica.uol.com.br/cronicas/baloes-e-co-
brinhas/
durante o processo de reflexão e toma-
da de decisão, as escolhas feitas pelos Para demonstrar uma aplicação dessas infe-
intérpretes são direcionadas pela bus- rências pode-se ter como exemplo a interpre-
ca de semelhança interpretativa entre o tação de um discurso da Língua Inglesa para a
que inferem que o TF [Texto Fonte] quer Língua Portuguesa, onde o discursante utiliza a
dizer e o como isso pode ser dito na ou- expressão “this product cust the nose of face” e
tra língua, para que mantenham o tal o intérprete traduz essa mensagem como “esse
sentido e, por sua vez, alcance os “mes- produto custou o olho da cara”, sendo que essa
mos” efeitos no público (p. 222). tradução não é a literal do que o discursante fa-
lou, mas sim uma tradução levando em conta o
Lacerda (2008, p. 4) também afirma que o intér- contexto cultural, já que a tradução literal, “esse
prete precisa ter conhecimento das formas ex- produto custa o nariz do rosto” não faria sentido
pressivas de sua própria língua, isso quer dizer para os usuários da Língua Portuguesa.
que é necessário: Assim este artigo tem a finalidade de identificar
conhecer muito mais para além da gra- os tipos de mensagens que podem sofrer infe-
rências pelo intérprete de Libras no ato da inter-
mática, que apesar de fundamental é
pretação e com isso demonstrar a necessidade
apenas um dos modos de descrição e
de se realizar tais inferências em um contexto
prescrição em termos das línguas. Pre-
linguístico e cultural no momento em que estes
cisa ter familiaridade com as diversas profissionais atuam utilizando a Língua Brasilei-
maneiras de expressão que circulam na ra de Sinais.
sociedade, incluindo o que é específico
aos vários tipos de leitores e aos vários Procedimentos Metodológicos
tipos de textos. Nesse sentido, o tradu-
tor precisa ir para além da gramática, O presente estudo está pautado na pesquisa
que não alcança o nível textual, mas que qualitativa e quantitativa. Embora haja significa-
está presente nele. tivas diferenças entre estes dois tipos de pesqui-
sas, percebemos a importância de uni-las neste
O conhecimento de expressões e inferir sobre estudo, tendo em vista os benefícios na análise
mensagens para um outro contexto cultural dos dados coletados durante a investigação.
perpassa pelo processo cognitivo de entender o Para Neves (1996), a pesquisa qualitativa refe-
sentido da mensagem sem se prender aos sig- re-se a um conjunto de diferentes técnicas in-
nos. Como por exemplo compreender signos terpretativas, que visam a descrever e a decodi-
que não estão nos sistemas das línguas, como ficar os componentes de um sistema complexo
demonstrado na Imagem 1, onde independente de significados em uma determinada realidade
da língua é possível a compreensão da mensa- social.
gem, demonstrando a possibilidade de mesmo E para Goldenberg (1999), na pesquisa quantita-
se a utilização dos códigos do idioma o enten- tiva os seus dados são métricos e as abordagens

109
são experimentais, hipotético-dedutivas, verifi- dos indivíduos é bastante variável, sendo que a
catórias, em que tratam o fenômeno com teor de maioria (71%) atua na Graduação, seja com En-
quantidade e valor numérico. sino e/ou Interpretação.
Assim, realizamos uma pesquisa quanti-qua- Apesar de o tempo de atuação variar, com 41%
litativa por meio de levantamento e estudo bi- atuando entre 5 e 10 anos, 18% entre 1 e 2 anos,
bliográfico, sendo aplicado um questionário com 18% entre 3 e 4 anos, 18% a mais de 10 anos e
perguntas fechadas e abertas, a dezessete (17) 6% a menos de um ano, pode-se observar que o
indivíduos que atuam com Libras nas áreas de tempo que os indivíduos têm conhecimento da
ensino, interpretação e outras atividades que Libras se concentra entre 5 a 10 anos, com 47%,
envolvem a língua em questão. e a mais de 10 anos, também com 47%.
Fizemos este estudo bibliográfico, pois fez parte Destes indivíduos, 65% possuem o PROLIBRAS,
de uma etapa de nosso estudo denominada por que é um exame nacional de proficiência reali-
pesquisa bibliográfica, que segundo Pizzani et zado pelo Ministério da Educação, que avalia a
al (2012) refere-se a uma “revisão da literatura fluência no uso, o conhecimento e a competên-
sobre as principais teorias que norteiam o tra- cia para o ensino, assim como a proficiência em
balho científico. Essa revisão é o que chamamos tradução e interpretação de Libras - Língua Por-
de levantamento bibliográfico ou revisão biblio- tuguesa, conforme determinado pelos Artigos
gráfica” (p. 54). 8º e 20 do Decreto 5.626/2005 (BRASIL, 2005).
Optamos pelo questionário com perguntas fe- Desses 65% que possuem o PROLIBRAS, 9%
chadas e abertas, pois Minayo (2004, p. 108) con- têm a certificação para atuar como Intérprete
sidera que este questionário “combina pergun- em nível médio e 73% em nível superior, assim
tas fechadas (ou estruturadas) e abertas, onde como 27% têm certificação para atua como en-
o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sino da LIBRAS em nível médio e 36% em nível
o tema proposto, sem respostas ou condições superior.
prefixadas pelo pesquisador” As interferências que podem ocorrer no mo-
Dentro do questionário propomos três trechos mento da interpretação foram analisadas utili-
em língua portuguesa para que os entrevistados zando-se de trechos propostos no questionário
fizessem a interpretação para língua brasileira para a interpretação da Língua Portuguesa para
de sinais, a fim de avaliarmos quais os equiva- a Libras, foram observados os seguintes resul-
lentes linguísticos seriam escolhidos, e esses tados de acordo com cada trecho:
três trechos foram os seguintes: Trecho: É necessário ouvir bem as minhas aulas
Trecho 1: “É necessário ouvir bem as minhas (no seguinte contexto: primeira aula de um pro-
aulas”, no seguinte contexto: primeira aula de fessor de nível superior). Dentre as respostas,
um professor de nível superior. 88% dos entrevistados utilizaram como equiva-
Trecho 2: “Muitos de vocês podem não ligar para lente linguístico para a expressão “ouvir” o sinal
a história da educação, mas ela faz parte da nos- correspondente a expressão “atenção”.
sa vida”, no seguinte contexto: aula de ensino Trecho: Muitos de vocês podem não ligar para
superior no curso de pedagogia na disciplina a história da educação, mas ela faz parte da
História da Educação. nossa vida (no seguinte contexto: aula de ensi-
Trecho 3: “Diz-se por ai que Alexandre, o Gran- no superior no curso de pedagogia na disciplina
de gostava de ‘soltar a franga’...”, no seguinte História da Educação). Dentre as respostas, 65%
contexto: aula de ensino médio da disciplina de dos entrevistados utilizaram como equivalente
História. linguístico para a expressão “não ligar” o sinal
Assim, a partir destes instrumentos obtivemos correspondente a expressão “desprezar”, e 35%
os dados que foram analisados e embasados utilizaram os sinais correspondentes a expres-
com autores que abordam aspectos relevantes são “não achar importante”.
sobre o ato de inferir linguística-culturalmen- Trecho: Diz-se por ai que Alexandre, o Gran-
te no campo da interpretação da Libras, com o de gostava de “soltar a franga”... (no seguinte
intuito de fazer deste trabalho um artigo coeso contexto: aula de ensino médio da disciplina de
e capaz de sanar nossos anseios em relação a História). Dentre as respostas, 71% dos entre-
temática em comento. vistados utilizaram como equivalente linguístico
para a expressão “soltar a franga” o sinal cor-
Resultados e discussão respondente a expressão “homossexual”, e 18%
utilizaram o sinal correspondente a expressão
Entre os que responderam o questionário, 65% “divertir-se”.
atuam no ensino da Libras, 76% atuam na In- As escolhas realizadas levam em consideração o
terpretação da Libras e 35% atuam em outras contexto cultural linguístico da língua alvo. Nos
áreas utilizando a Libras. O nível de atuação

110
casos propostos no questionário, que tem como entendimentos.
língua origem a Língua Portuguesa e como lín- Como tal entendimento não seria o objetivo de
gua alvo a Língua Brasileira de Sinais, isso fica quem estava enviando a mensagem, o intérprete
bem evidente, já que as escolhas foram realiza- precisou fazer uma inferência, utilizando do seu
das substituindo-se as expressões por outras. conhecimento das expressões idiomáticas da
No entanto, o conteúdo da mensagem não foi al- Língua Portuguesa para encontrar um equiva-
terado, possibilitando que o sentido fosse man- lente na Língua Brasileira de Sinais, onde gran-
tido e que, os surdos aos quais se destinavam de parte dos intérpretes se utilizou da expressão
a mensagem tivessem um entendimento dentro “homossexual”, o que leva um surdo a concluir
dos seus conhecimentos pré-existentes e de sua que “Alexandre, o Grande, era conhecido por ter
“carga” cultural. tendências homossexuais”, que é o sentido da
Essas inferências que os intérpretes pesquisa- mensagem enviada.
dos realizaram estão dentro do conceito expres- Para que essa inferência fosse possível os intér-
so por Brown e Yule (1983), que tratam como pretes recorreram a seus conhecimentos cultu-
aquele processo no qual o leitor (ouvinte) deve rais históricos pessoais em relação ao assunto
ir do sentido literal do que está escrito (ou dito) tratato e em como isso seria mais representati-
ao que o escritor (falante) pretendeu transmitir. vo ao surdo, utilizando assim do que argumenta
Assim os intérpretes realizaram conexões para Dell’Isola (2001), que são:
interpretar a intenção da mensagem, e não ela
de forma literal. Processos ativos, criativos e reconstru-
As inferências realizadas pelos intérpretes nos tivos. E estes processos envolvem uma
trechos propostos pela pesquisa demonstram atividade tanto decodificadora como
bem a sua importância. Isso se torna bem evi- criadora, em que se vai de uma suges-
dente no primeiro trecho, onde a expressão “ou- tão textual a universos construídos com
vir” foi transmitida com o equivalente “atenção”, bases nas experiências e vivências so-
já que nesse contexto o sentido da palavra ouvir cioculturalmente determinadas (p. 11).
não é o de escutar utilizando o canal auditivo, e
sim o de dar atenção ao que é dito durante as Dessa forma, foi possível observar que as infe-
aulas. Por isso o correspondente linguístico rências linguísticas realizadas pelo intérprete
escolhido pela maioria dos intérpretes foi o de no momento da interpretação são necessárias,
atenção, já que escutar utilizando o canal audi- haja vista que se a interpretação for realizada de
tivo não faria sentido para um surdo, já que o forma literal, ou seja, palavra a palavra, o senti-
mesmo não o utiliza como parte do seu sistema do não será captado pelos a quem a mensagem
de comunicação. se destina, e o objetivo da presença de um Intér-
Para que o intérprete pudesse realizar essa in- prete de Língua de Sinais durante esses discur-
ferência era necessário um conhecimento pré- sos se torna apenas um repetidor das palavras
vio dessa característica linguística dos surdos, em outra língua, e não um mediador da mensa-
fazendo com que para a transmissão da mensa- gem, atribuindo sentido a esta.
gem o mesmo faça uma busca de informações Foram apresentados apenas três exemplos de
e conhecimentos adquiridos pela experiência de trechos que necessitam de inferências do intér-
vida, com os quais preenche os ‘vazios’ do dis- prete. No entanto são inúmeras as ocasiões em
curso. que essas inferências são necessárias.
Assim, a inferência é um processo cognitivo
que gera uma informação semântica nova a par- Considerações finais
tir de uma informação semântica anterior, em
Analisar as inferências realizadas pelos intér-
um determinado contexto. “Inferência é, pois,
pretes nos permite demonstrar a importância
uma operação cognitiva em que o leitor constrói
destas e também que elas são realizadas pelos
novas proposições a partir de outras já dadas”
intérpretes, conforme Rodrigues (2013) também
(DELL’ISOLA, 2001, p. 12)
salienta quando diz que “analisar e refletir so-
Outra forma bem evidente foi a do último tre-
bre esse processo de construção de sentido na
cho, onde a expressão “soltar a franga” foi por
interpretação em Libras, permite-nos identificar
várias vezes traduzida como “homossexual”, já
e perceber processos inferenciais na interpreta-
que se fosse feita a tradução literal, a expres-
ção do Português para a Libras.”
são não faria sentido, onde um surdo poderia se
Assim, concluímos com este estudo que para a
perguntar: “Por que Alexandre, o Grande, era
atuação como intérprete de Libras é necessário
conhecido como alguém que libertava as gali-
o conhecimento profundo da Língua Brasileira
nhas do seu cativeiro?”, entre outros possíveis
de Sinais para que possa encontrar, de forma

111
rápida e eficiente, equivalentes linguísticos para Além disso, é preciso um contato constante com
a mensagem a qual realizará a intermediação. a comunidade surda para aquisição de um vo-
O que ficou claro nas interpretações feitas pe- cabulário que esteja de acordo com universo de
los sujeitos da pesquisa, em que percebemos a conhecimento desta comunidade. Outra forma
variedade de equivalentes e as dificuldades en- de aquisição deste vocabulário é por meio dos
frentadas no momento do ato interpretativo, o cursos de formação, sendo que neste a presen-
que vem a reforçar a necessidade de formação ça de um instrutor surdo possibilita um melhor
de qualidade e estudos específicos na área da aproveitamento no que diz respeito a desenvol-
interpretação de línguas de sinais, pois os indi- vimento da habilidade de realizar inferências no
víduos que necessitam da atuação do intérprete momento certo.
de Libras tem o direito de receber informações Para estudos posteriores outras situações po-
bem interpretadas, que não comprometam os dem ser exemplificadas e pesquisadas junto aos
conteúdos repassados, assim garantindo seus profissionais que atuam na área da Interpreta-
direitos enquanto cidadãos. ção, podendo ser objetos de outros artigos. Este
Percebemos também, que para que o intérprete trabalho trouxe a ponta de um “iceberg” para
possa desenvolver a habilidade de identificar os ser estudado. Muito ainda está imerso, necessi-
momentos e as mensagens que requerem uma tando de outros pesquisadores para contemplar
inferência linguística, é necessário um estudo muito mais estudos na temática da Interpreta-
prévio de quais expressões são mais utilizadas ção da Libras.
em determinados contextos.

112
REFERÊNCIAS
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SOUZA, Mauricio. Turma da Monica. Disponível em <http://turmadamonica.uol.com.br/cronicas/balo-
es-e-cobrinhas/>. Acesso em 5 de agosto de 2014
XATARA, C. M. O campo minado das expressões idiomáticas. Alfa: São Paulo, n. 42 (n.esp.), p. 147-
159,1998.

113
MÉTODO DE ENSINO DE AMPLIAÇÃO DE VOCABULÁRIO DA LIBRAS: UMA
EXPERIÊNCIA NO CURSO DE LETRAS LIBRAS / PORTUGUÊS (L2)

Huber Kline Guedes Lobato16


José Anchieta de Oliveira Bentes17

RESUMO no de Língua Brasileira de Sinais18 (Libras)


vivenciada no curso de Letras Libras / Portu-
O objetivo principal deste estudo é analisar um guês (L2) na Universidade Federal do Pará, en-
método de ensino utilizado para desenvolver a volvendo um grupo de 19 acadêmicos.
ampliação de vocabulário em aulas de Libras Para relatar esta pesquisa, que tem como objeto
– Língua Brasileira de Sinais de uma disciplina um método de ensino de ampliação de vocabu-
denominada Introdução aos Estudos da Libras, lário da Libras, faz-se necessário, conceituar de
que integra o desenho curricular do curso de maneira integrada os elementos epistemológi-
Letras Libras / Português como segunda língua cos que dão base ao estudo: o método de ensino
(L2) da Universidade Federal do Pará. O presen- de línguas, o vocabulário e a Libras.
te trabalho está fundamentado em várias lite- Pontua-se que esta conceituação está constru-
raturas, aqui destacam-se alguns autores que ída a partir dos pressupostos de Gesser (2010)
foram referências neste estudo: Albres (2013); que busca, em sua obra “o ouvinte e a surdez:
Bentes; Hayashi (2012); Gesser (2010); Góes; sobre ensinar e aprender a Libras”, refletir so-
Campos (2013); Honora; Frizanco (2009); Lacer- bre alguns aspectos das práticas pedagógicas
da; Santos; Caetano, (2013); Lira; Felipe (2006); e algumas cenas da sala de aula, aproximando
Quadros; Karnopp (2004) e Sá (2008). O método o mundo de aprendizes ouvintes ao mundo de
tem como foco a pesquisa-ação que envolveu professores que se encontram para aprender e
um grupo de 19 acadêmicos, subdivididos em ensinar a Libras.
04 grupos, que participaram de uma atividade Conforme Gesser (2010) “falar sobre métodos de
de busca e criação de sinais em Libras a partir ensino de línguas se torna válido somente e se
do filme “O Corcunda de Notre-Dame”. Os re- dermos um passo adiante, ampliando a compre-
sultados desta experiência revelam três formas ensão da constituição dos elementos que com-
de ampliação de vocabulário da Libras: a) estu- põem o funcionamento do ensino em seu sentido
do e pesquisa de sinais organizados por cate- global” (p. 18). Assim, cabe ao docente perceber
gorias em dicionários ou glossários; b) edição e que o ensino é composto por uma abordagem de
produção de vídeos para melhor memorização ensinar, em que o professor precisa ter claro a
dos sinais; c) tradução e interpretação de mú- sua concepção de linguagem, concepção de en-
sica em Libras. Conclui-se com este estudo que sino e concepção de aprendizagem.
as atividades desenvolvidas em classe foram Neste sentido, o professor saberá fazer refle-
imprescindíveis ao aprendizado e ampliação do xões que leve-o a realizar transformações sig-
léxico na Libras, destacando a importância das nificativas de métodos considerados tradicio-
atividades terem sido planejadas e organizadas nais, buscando construir atividades que possam
previamente para que pudessem produzir efei- contribuir com a aprendizagem dos alunos, em
tos significativos na aprendizagem dos acadê- especial as atividades de ampliação de vocabu-
micos, porém é preciso dedicação, envolvimen- lário, pois conhecer o vocabulário é um com-
to pessoal e força de vontade por parte de cada ponente importante para a aquisição de uma
aprendiz em Libras. língua, porém é necessário, segundo Gesser
PALAVRAS-CHAVE: Métodos de Ensino; Vocabu- (2010), conhecer também as regras fonológicas,
lário; Libras. morfológicas, semânticas e pragmáticas desse
vocabulário.
1. INTRODUÇÃO Segundo essa autora “dominar listas de vocabu-
lário não garante que o aprendiz se comunique
A motivação para produzir este traba- ou tenha bom desempenho na língua-alvo” (p.
lho surgiu de uma experiência de ensi- 138), mas é preciso ampliá-lo a partir do conhe-

16
Universidade do Estado do Pará - UEPA - huberkline@hotmail.com 17Universidade do Estado do Pará - UEPA - anchieta2005@yahoo.
com.br 18 Utiliza-se a sigla Libras para nos referir à Língua Brasileira de Sinais, escrita apenas com a letra inicial maiúscula, conforme
a lei 10.436/02 e o decreto 5.626/05. De acordo com Quadros; Karnopp (2004) existe também a sigla LIBRAS com letras maiúsculas ad-
otada pela Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS), assim como a coexistência da sigla LSB para abreviar a
expressão Língua de Sinais Brasileira, seguindo os padrões internacionais de identificação para as línguas de sinais.

114
cimento da estrutura dessa língua-alvo. Assim, sa-ação, pois de acordo com Moreira; Caleffe
neste trabalho, utiliza-se como língua-alvo a (2006, p. 89) “a pesquisa-ação é uma intervenção
Língua Brasileira de Sinais, que de acordo com em pequena escala no mundo real e um exame
a lei 10.436/02 é uma forma de comunicação e muito de perto dos efeitos dessa intervenção”.
expressão, em que o sistema linguístico de na- Assim analisamos neste trabalho um método de
tureza visual-motora, com estrutura gramati- ensino utilizado para desenvolver a ampliação
cal própria, constitui um sistema linguistico de de vocabulário em aulas de Libras, envolvendo
transmissão de ideias e fatos, oriundos de co- um grupo de 19 acadêmicos, que participaram
munidades de pessoas surdas no Brasil (BRA- de uma atividade de criação de sinais da Libras
SIL, 2002). a partir do filme “O Corcunda de Notre-Dame”.
Para Gesser (2010, p. 94), as línguas de sinais, A atividade didática ocorreu em três momentos:
e neste contexto a Libras, “são línguas naturais Inicialmente os acadêmicos assistiram o filme
com estatuto linguístico”. Com isso, ressalta-se The Hunchback (O Corcunda de Notre-Dame),
que a Libras possui cinco parâmetros consti-
tuintes dos sinais: Configuração de Mão (CM),
Movimento (M), Locação ou Ponto de Articulação Imagem 2: filme The Hunchback
(L/PA), Orientação (O) e Expressões Não-Manu-
ais (EMN): expressões faciais e corporais19.
Imagem 1: sinal de “raio” com base em Honora;
Frizanco (2009).

Fonte: elaboração própria, 2014.

Por entendermos que a Libras é uma língua com


regras e estruturas gramaticais próprias que
precisam ser estudadas e compreendidas, é que
se objetiva, com este artigo, analisar um método
de ensino utilizado para desenvolver a amplia-
ção de vocabulário em aulas de Libras em uma
disciplina intitulada “Introdução aos Estudos
da Libras”, que integra o desenho curricular do
curso de Letras Libras / Português como segun-
da língua (L2) da Universidade Federal do Pará

2 MÉTODO

O presente trabalho tem como foco a pesqui-


Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-15941/

19
Para Quadros; Karnopp (2004), Configuração de mão: é a forma que a mão assume quando o sinal é feito. Algumas pesquisas linguísti-
cas, indicam que na LIBRAS existem 43 configurações de mãos. Movimento: é o deslocamento da mão no espaço, durante a realização do
sinal. Esses movimentos podem variar entre: uniderecional, direcional, helicoidal, retilíneo, circular, semicircular, sinuoso, angular, de
interação, de contato, etc. Ponto de articulação: é o lugar onde incide a mão predominante configurada, podendo tocar alguma parte do
corpo ou estar em um espaço neutro vertical (do meio do corpo até à cabeça) e horizontal (à frente do emissor). Orientação da mão: é a
direção da palma da mão durante a realização do sinal: voltada para cima, para baixo, para o corpo, para a frente, para esquerda ou para
direita. Expressões não-manuais: são marcas faciais e corporais que podem retratar uma interrogação, exclamação, negação, afirmação
ou ordem.

115
que é um filme que tem como elenco Salma de um DVD para cada turma do curso. Os alunos
Rayek (Esmeralda), Mandy Patinkin (Quasímo- sentiram-se motivados e realizados com esta
do) e Richard Harris (Frollo), tendo como diretor atividade e, assim puderam ampliar o vocabu-
Peter Medak e foi estrelado nos Estados Unidos lário da Libras a partir desta atividade didática
no ano de 1997. realizada na disciplina Introdução aos Estudos
No segundo momento os 19 acadêmicos foram da Libras.
subdivididos em quatro (04) grupos com o intui-
to de verificar no filme os sinais corresponden-
tes a: verbos, sentimentos, contexto histórico e 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
personagens do fime. Os alunos selecionaram Nesta discussão teremos como eixos os tipos
alguns sinais e para os termos que não tinham de métodos de ensino-aprendizagem organiza-
sinais uma aluna surda da turma 2014 do curso dos com o intuito de melhor assimilar, ampliar e
de Letras Libras / Português (L2) criou os sinais. aprender os sinais em Libras. Após a análise das
No terceiro momento, os acadêmicos criaram atividades desenvolvidas em classe a partir do
um dicionário com imagens filmadas / grava- filme “O Corcunda de Notre-Dame”, foi possível
das em DVD e socializaram estes sinais com as chegarmos a três categorias de análises temáti-
outras turmas do referido curso. No dia da so- cas: a) estudo e pesquisa de sinais organizados
cialização do dicionário, os acadêmicos também por categorias em dicionários ou glossários; b)
fizeram a interpretação em Libras da música “lá edição e produção de vídeos para melhor me-
fora” do desenho animado O Corcunda de Notre morização dos sinais; c) tradução e interpreta-
Dame da Walt Disney. ção de música em Libras.
O último momento, foi a etapa de edição final do
vídeo relacionado ao dicionário de sinais sobre
o filme “O corcunda de Notre Dame” e entrega A) Estudo e pesquisa de sinais organizados por
categorias em dicionários ou glossários
Imagem 3: DVD - desenho da Disney Nesta atividade os alunos fizeram estudos e pes-
quisas em fontes como: dicionários de Libras,
páginas eletrônicas e livros diversificados20, com
o intuito de encontrar os sinais seguintes:
1) Contexto do filme: buraco dos ratos,
catedral, chicote, cigano, chumbo der-
retido, escadaria, festival dos tolos, si-
neiro, sino, torre, França, Idade Média,
palácio, Pátio dos Milagres, praça, rei
dos tolos, rei dos oprimidos.
1) Verbos: casar, abandonar, rezar, casti-
gar, humilhar, dançar, ajudar, confes-
sar, pecar, perdoar, tocar.
1) Sentimentos: solidão, coragem, espe-
rança, revolta, rejeição, piedade, pai-
xão, tristeza, maldade, amizade, medo,
amor, fé, poder, alegria, desespero,
vergonha, impaciência, inteligência,
gostar, inveja, emoção, raiva.
1) Personagens21: irmã de Gulude, rei
dos ciganos, Victor Hugo22, Quasímodo,
Padre Frollo, Esmeralda, Rei Luis XXI,
Cabra Djali, Soldado Phoebus, Pierre
Gringoire.

Esta atividade de estudo e pesquisa de sinais


Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-15941/

20
Os dicionários foram: CAPOVILLA; RAFHAEL (2012); LIRA; FELIPE (2006); BRANDÃO (2011); 21Como a turma 2014 do curso de Letras Li-
bras / Português (L2) possui uma aluna surda, logo esta aluna foi quem criou a maioria dos sinais para os personagens do filme.22 É válido
ressaltar que o filme americano “O Corcunda de Notre-Dame” é uma animação inspirada no livro de mesmo nome do autor Victor Hugo.

116
em Libras foi importante para que os alunos Esses cuidados são importantes, pois o surdo se
pudessem ampliar seu vocabulário lexical da comunica a partir do visual e logo o que deve es-
Libras por meio de pesquisas em dicionários, tar em evidência no momento da sinalização é a
pois compreende-se que o uso de dicionários mão e as expressões de quem executa os sinais,
ou glossários podem enriquecer ainda mais o o restante deve estar em segundo plano.
aprendizado de sinais em Libras. Os dicionários
ou glossários, segundo Albres (2013) “geral- Imagem 4: principais sinais produzidos em ví-
mente apresentam o léxico da língua agrupado
deo pelos acadêmicos.
em classes gramaticais, com uma lista de pala-
vras para auxiliar os interessados em aprender
a língua de sinais” (p. 129).
Desta forma os acad êmicos puderam desven-
dar a forma de execução dos diversos sinais
acima descritos, entendendo seus parâmetros e
percebendo as diferentes possibilidades de uso
de acordo com cada contexto. Pontua-se que
quando os alunos tinham dúvidas sobre alguns
sinais, estas eram sanadas a partir da interven-
ção docente que discutia as imprecisões dos
discentes a respeito dos parâmetros da Libras.

B) Edição e produção de vídeos para melhor


memorização dos sinais
Nesta atividade os 19 acadêmicos se reuniram e
fizeram uma única gravação em uma câmera fil- Fonte: elaboração própria, 2014.
madora HD Profissional Panasonic. Cada acadê-
mico realizou a filmagem de 4 ou 5 sinais, sendo
que os mesmos tiveram a preocupação de filmar Vale ressaltar que o uso de vídeos / filmagens
em uma parede de cor neutra e com camisa de como recursos visuais serviu para que os acadê-
cor branca ou preta, com cabelos presos e vesti- micos registrassem os sinais e assim pudessem
mentas adequadas. Entende-se que em relação gravar estes sinais para uma melhor memoriza-
à filmagens em Libras: ção, entendimento e aprendizado. Desta forma,
Lacerda; Santos; Caetano, (2013) ressaltam que
a vestimenta, a pele e o cabelo do intér- “os recursos visuais são amplos desde a mídia
prete devem ser contrastantes entre si mais acessível como a televisão (presente em
e em relação ao fundo. Devem ser evi- todos os lares) até as inúmeras possibilidades
tados fundo e vestimenta em tons próxi- de imagem e composição de espaços virtuais
mos ao tom da pele do intérprete; Pes- propiciadas pelo mundo computadorizado” (p.
soas de pele clara devem usar roupas 186).
de cores escuras (preto, verde escuro, Com esta atividade os acadêmicos pesquisaram
marrom ou azul marinho); Pessoas mo- em dicionários ou criaram os sinais em Libras,
renas e negras devem usar roupas de sinalizaram e filmaram a si próprios com o in-
cores claras (gelo, creme, cáqui, bege); tuito de perceberem na filmagem os aspectos a
O ideal é que os intérpretes usem blu- serem melhorados, assim como perceberam e
sas de cor única, sem estampas, de memorizaram a forma de execução de cada si-
manga curta ou três quartos, sem deco- nal. Considera-se esta estratégia relevante, pois
tes ou golas; É importante que o intér- auxiliou os alunos a uma melhor compreensão
prete atente para o cabelo, tendo o cui- dos sinais trabalhados em classe.
dado com o penteado para não cobrir a
expressão facial. Preferencialmente os C) Tradução e interpretação de música em Li-
cabelos devem estar totalmente presos bras
(BRASIL, 2009, p. 21).
Para uma melhor aprendizagem e ampliação
Assim, apesar dos acadêmicos não serem intér- do vocabulário da Libras, os alunos realizaram
pretes de Libras e nem estarem estudando em uma ultima atividade pedagógica em classe
um curso que tenha a pretensão de formar in- junto com o professor e em seguida socializa-
térpretes, é importante que os mesmos tenham ram esta atividade no auditório do instituto em
os devidos cuidados expressos na citação acima que estudam com as outras turmas do curso de
quando trabalharem com filmagens em Libras. Letras Libras / Português (L2). A atividade em

117
questão foi a de tradução e interpretação de mú- Salvo entre os peitoris de pedra e o
sica em Libras, sendo que a música selecionada carrilhão / aqui dentro a alegria some
pelos alunos foi a música “lá fora” do desenho / Toda a minha vida eu vivi na solidão /
animado “O Corcunda de Notre Dame” da Walt Não ter liberdade me consome / Preso
Disney. aqui em cima vi pessoas / eu conheço
Isso porque, todas pelo nome / Toda minha vida eu
imaginei descer / ir até lá / passear lá
nem todos os surdos podem usar resí- / Lá fora, como alguém comum / Me dê
duos auditivos para apreciar a música, um dia ao sol / Basta apenas um pra ser
mas todos podem usar sua inteligência lembrado / Se der numa ocasião qual-
para compreender a música. As pesso- quer / Se eu sair / Se eu puder / Quero ir
as surdas podem perceber o ritmo, a di- aonde der / Lá fora vejo tecelões molei-
nâmica da música, o timbre do cantor, ros e casais / Os seus rostos mostram
as vibrações, mas tudo isto tem que ser o que sentem / Gritam, xingam levam
apresentado num contexto significativo, suas vidas tão normais / Essa é a vida
não num contexto mecânico, dificultoso, que me cai bem / Agora para mim a hora
obrigatório (SÁ, 2008, p. 10). / É de enfim, ver se der / E o Rio Sena e
além / Cada manhã que houver / Quero
É sobre esta questão que se gostaria de frisar, ser alguém / Que vai aonde bem quer /
pois o objetivo de usar a música em Libras com O meu dia se vier / E ele vem / Um se
os acadêmicos foi para que estes pudéssem quer / Digo amem / Se estiver tudo bem
ampliar o vocabulário de sinais em Libras e não quando der / Vou também se Deus qui-
trabalhar a música de maneira mecânica e difi- ser (BESSA, 1996).
cultosa ou mesmo como um conteúdo “imposto
de forma mecânica estando em desacordo com Por meio da música acima trabalhou-se diver-
a realizade dos educandos” (BENTES; HAYASHI, sos aspectos gramaticais da Libras de maneira
2012, p. 229). prática, que não será exposto aqui, pois não é
Pontua-se que o professor trabalhou com alu- objetivo neste trabalho. O fato é que em sala o
nos ouvintes e uma aluna surda oralizada (que uso de interpretação da música “Lá fora” fez
já vivenciou experiências musicais em sua vida), com que os alunos pudessem entender que a Li-
logo a música serviu para um melhor entendi- bras não se resume ao ensino-aprendizagem de
mento de cada sinal abordado em classe. um léxico descontextualizado (sinais isolados),
mas que os sinais estão dentro de uma estrutu-
Imagem 5: momento de apresentação da músi- ra gramatical que precisa ser compreendida por
ca em Libras. quem os usa. Conforme Góes; Campos (2013):
A Libras possui uma estrutura grama-
tical própria, com todos os elementos
constitutivos da estrutura gramatical
presente nas demais línguas orais (...)
Há níveis linguísticos que também fa-
zem parte da língua de sinais, que são a
fonologia, a morfologia, a sintaxe, a se-
mântica, a pragmática (p. 66).
Assim entende-se que trabalhar a tradução e
interpretação de músicas em Libras favorece o
aprendizado e a ampliação de vocabulário dos
alunos em relação aos sinais da Libras, porém é
Fonte: arquivo pessoal, 2014. válido ressaltar que o uso dos sinais (em espe-
cial os sinais que surgem a partir do uso da mú-
Considera-se este momento muito rico no pro- sica) não podem ser apreendidos de forma me-
cesso ensino-aprendizagem da Libras, pois como cânica e decontextualiza, pois necessitam ser
a música “Lá fora” possui uma letra metafórica, ensinados e aprendidos a partir de concepções
os acadêmicos receberam neste momento os pri- linguísticas e sociais do léxico da Libras. Perce-
meiros ensinamentos de conteúdos específicos be-se que a música pode ser utilizada como um
da Libras, tais como: parâmetros da língua de si- recurso pedagógico a fim de estimular as áreas
nais, metáfora da Libras, uso de classificadores, cognitivas e intelectuais para a aprendizagem
uso do espaço e de jogos de papeis na Libras, etc. da Libras e ainda proporcionar momentos de in-
A propósito, a letra da música: teração durante o ensino-aprendizagem dessa
língua de sinais.

118
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS b) Contextualize os sinais de modo a com-
preender em que contextos estruturais
Este trabalho teve como objetivo principal anali- e comunicativos estes sinais podem ser
sar uma experiência de ensino de Libras viven- usados;
ciada no curso de Letras Libras / Português (L2)
na Universidade Federal do Pará, que deu-se a c) Faça uso de dicionários bilíngues e re-
partir de métodos de ensino de ampliação de vo- alize pesquisas de vídeos na internet de
cabulário da Libras a partir do filme: “O Corcun- neologismos na Libras;
da de Notre-Dame”.
Por meio desta experiência constata-se três d) Mantenha contato com a comunidade
(porém, não as únicas) formas de ampliação de surda ou pessoas ouvintes que sejam
vocabulário da Língua Brasileira de Sinais, den- fluentes em Libras; etc.
tre as quais: estudo e pesquisa de sinais organi-
zados por categorias em dicionários ou glossá- De modo geral, toda e qualquer atividade desen-
rios; edição e produção de vídeos para melhor volvida em classe são imprescindíveis ao apren-
memorização dos sinais; e tradução e interpre- dizado e ampliação do léxico na Libras, mas é
tação de música em Libras. importante que estas atividades sejam planeja-
Neste sentido para finalizar este estudo indi- das e organizadas previamente para que possam
ca-se algumas estratégias, mencionadas por surtir efeitos significativos na aprendizagem dos
Gesser (2010), que podem favorecer o estudo e alunos. Em relação a estes, é importante dedi-
ampliação de vocabulário da Libras: cação, envolvimento pessoal e força de vontade.
Estes aspectos são essenciais no processo ensi-
a) Devote algum tempo em casa ou na es- no-aprendizagem da Libras.
cola para o aprendizado de vocabulário
de Libras;

119
5. REFERÊNCIAS

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SANTOS, Lara Ferreira dos. (Org.). Tenho um aluno surdo, e agora? Introdução à LIBRAS e educação
de surdos. São Paulo: Edufscar, 2013, p. 127-148.
BENTES, J. A. de O; HAYASHI, M. C. P. I. Normalidade e disnormalidade: formas do trabalho docente
na educação de surdos. Campina Grande: EDUEPB, 2012.
BESSA, Bruno. Lá Fora - O Corcunda De Notre Dame - Disney BR. In: O Corcunda de Notre Dame. Título
Original: The Hunchback of Notre Dame. Direção: Gary Trousdale e Kirk Wise. EUA: Buena Vista,
DVD - 91 minutos, 1996.
BRANDÃO, F. Dicionário Ilustrado de Libras: Língua Brasileira de Sinais. São Paulo: Global, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Lei 10.436 de 24 de abril de 2002.
Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto nº 5.626 de 22 de de-
zembro de 2005. Regulamenta a lei 10.436, de 24 de abril de 2002.
BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. A Classificação Indicativa na Língua Brasileira de Sinais. –
Brasília : SNJ - Secretaria Nacional de Justiça, 2009.
CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walquiria Duarte. Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilín-
gue da Língua de Sinais Brasileira. Volume I e II. São Paulo: EDUSP, 2012.
GESSER, Audrei. O ouvinte e a surdez: sobre ensinar e aprender a Libras. São Paulo: Parábola Edi-
torial, 2012.
GOES, Alexandre Morand; CAMPOS, Mariana de Lima Isaac Leandro. Aspectos da gramática da Li-
bras. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos. (Org.). Tenho um aluno
surdo, e agora? Introdução à LIBRAS e educação de surdos. São Paulo: Edufscar, 2013, p. 65-80.
HONORA, M. e FRIZANCO, M. L. E. Livro Ilustrado de Língua Brasileira de Sinais: desvendando a
comunicação pelas pessoas usadas com surdez. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.
LACERDA, Cristina Broglia Feitos de; SANTOS, Lara Ferreira; CAETANO, Juliana Fonseca. Estraté-
gias Metodológicas para o ensino de alunos surdos. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SAN-
TOS, Lara Ferreira dos. (Org.). Tenho um aluno surdo, e agora? Introdução à LIBRAS e educação de
surdos. São Paulo: Edufscar, 2013, p. 185-200.
LIRA, G; FELIPE, T. Dicionário da Língua Brasileira de Sinais versão 2.0. INES-Acessibilidade Brasil.
Coordenação Geral de Guilherme de Azambuja Lira. 2006. CDROM.
MOREIRA, Herivelto; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisa-
dor. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
O Corcunda de Notre Dame: O Filme. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/fil-
me-182490/>. Acesso em 19 nov. 2014.
O Corcunda de Notre Dame. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-15941/>.
Acesso em 19 nov. 2014.
QUADROS, Ronice Muller de; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de sinais brasileira: estudos lin-
guísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
SÁ, Nídia Regina Limeira de. Os surdos, a música e a educação. Revista Dialógica vol.2 n.5 2008.
Disponível em < http://dialogica.ufam.edu.br/dialogicaV2-N5/Os%20surdos,%20a %20m% C3%
BAsica% 20e%20a%20educa%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em 28 de setembro de 2014.

120
PRÁTICAS DE ESCRITA DE FANFICTIONS NA ESCOLA: CAMINHOS ALTERNATIVOS PARA ATIVIDA-
DES DE PRODUÇÃO TEXTUAL

Larissa Giacometti Paris23

RESUMO 1. Introdução

o intuito deste trabalho é apresentar os princi- Este artigo apresenta uma pequena parte de
pais pressupostos teóricos e metodológicos de uma pesquisa que está em andamento, e, por-
uma pesquisa de mestrado em andamento e tanto, ainda não finalizada, para a produção de
descrever o processo de geração de dados de- dissertação de mestrado do programa de Pós-
corrente da realização de oficinas de produção -graduação em Linguística Aplicada do Instituto
textual do gênero discursivo fanfiction com alu- de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade
nos do Ensino Médio. Considerando 1. as carac- Estadual de Campinas (UNICAMP). Desse modo,
terísticas dos Novos Letramentos teorizadas por não tenho pretensões de aprofundar-me teórica
Lankshear e Knobel (2007, 2011) que abrangem e metodologicamente, e não apresentarei ne-
a instituição de um novo ethos; 2. a cultura par- nhum tipo de análise dos dados gerados.
ticipativa abordada por Jenkins (1992, 2006), em O objetivo deste trabalho é apresentar os prin-
que é desempenhada uma função mais ativa e cipais pressupostos teóricos e procedimentos
participativa; e 3. a produção escrita de fanfic- metodológicos que vem sendo utilizados para
tions que, segundo Black (2006, 2008, 2010) são essa pesquisa, sabendo que novas perspectivas
histórias criadas por fãs que se baseiam em tex- poderão surgir no decorrer do percurso investi-
tos e mídias narrativos ou ícones da cultura pop, gativo. Meu intuito é mostrar que as práticas de
proponho a realização de atividades de escrita letramentos de produção de fanfictions podem
de fanfictions no contexto escolar. As novas tec- ser um dos caminhos alternativos em relação
nologias possibilitaram aos produtores de fan- àquelas tradicionalmente solicitadas no am-
fictions a oportunidade de interação por meio de biente escolar que, muitas vezes, não são signi-
espaços online, em que eles engajam-se em di- ficativas para os alunos.
versas práticas escolares, como a leitura, escri- Em um primeiro momento, as teorias dos No-
ta, revisão, edição e fornecimento de feedback. vos Letramentos (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007,
Para concretizar tal proposta, foram realizadas 2011), da cultura participativa (JENKINS, 1992,
oficinas de escrita no período contraturno, em 2006), e das práticas de escrita de fanfictions
que os alunos escreviam suas histórias, que (BLACK, 2006, 2008, 2010) são ilustradas de
eram revisadas por um colega, e reescritas por modo breve por mim, com a finalidade de expor
seus autores. A metodologia utilizada corres- características da produção de fanfictions que
ponde à pesquisa-ação (ENGEL, 2000; THIOL- poderiam ser interessantes no contexto escolar
LENT, 2011), em que há a união da pesquisa à de produção textual.
ação, sendo o foco na transformação das práti- Em um segundo momento, apresento a meto-
cas de letramentos escolares de revisão e rees- dologia de pesquisa-ação (ENGEL, 2000; THIOL-
crita. Há dois momentos relevantes em relação LENT, 2011), cuja conceituação oferece subsí-
ao processo de geração de dados: o primeiro dios para a realização de oficinas de produção
refere-se à noção de revisão (re)construída pe- escrita em uma escola com alunos do Ensino
los alunos, e o segundo à identificação dos estu- Médio. Exponho também uma breve contextu-
dantes em relação ao conteúdo trabalhado nas alização destas oficinas e de seu andamento,
aulas. A produção de fanfictions na escola pode em que discorro sobre duas situações relevan-
possibilitar aos discentes saírem da posição de tes: a primeira refere-se à noção de revisão (re)
passivos receptores de conhecimento, tornan- construída pelos alunos, e a segunda refere-se
do-se autores de seus próprios textos, e leitores à identificação dos estudantes em relação ao
e revisores dos textos dos colegas, aprendendo conteúdo trabalhado nas aulas, resultando em
uns com os outros de forma processual. uma participação na feira de conhecimentos da
escola.
PALAVRAS-CHAVE: Fanfictions; Novos letra- Finalmente, penso que pode ser enriquecedor
mentos; Cultura participativa; Escola; Pesquisa- ao contexto escolar e ao ensino de língua ma-
-ação. terna realizar atividades que envolvam a produ-
ção de um gênero discursivo no qual as práticas
23
Mestranda do programa de Pós-graduação do departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Email para contato: larissagparis@gmail.com.

121
de revisão e reescrita já se fazem presente em não garante a produção de novos letramentos, já
seu contexto original, sem que haja a obrigação que é preciso haver também a constituição de um
formal da instituição escolar. novo ethos. Lankshear e Knobel (2011) afirmam
que práticas de letramentos como, por exemplo,
2. Novos Letramentos a produção de fanzines (revistas produzidas por
fãs), e até mesmo a produção de fanfictions an-
Os chamados novos letramentos, de acordo com tecedem o surgimento de tecnologias digitais e
Lankshear e Knobel (2011), podem ser compre- eletrônicas, mas ainda assim possuem caracte-
endidos como um novo paradigma teórico e de rísticas do novo ethos, como a colaboração e a
pesquisa, em que uma abordagem alternati- participação. Logo, o ethos já se fazia presen-
va é proposta em relação ao paradigma domi- te, de modo embrionário (LANKSHEAR; KNO-
nante envolvendo os letramentos tradicionais BEL, 2007), ainda que não disseminado como
(LANKSHEAR; KNOBEL, 2011). Considerando atualmente. Assim, “a propagação e a realiza-
uma perspectiva ontológica, os autores ainda ção de um novo ethos tornam-se possíveis com
afirmam que os novos letramentos possuem as novas tecnologias, mas a própria presença
uma natureza diferente quando comparados aos do ethos não depende delas”.26 (LANKSHEAR;
letramentos ditos convencionais. KNOBEL, 2007, p. 21). (Tradução minha).
De acordo com Lankshear e Knobel (2007), O ponto central, então, que difere os novos le-
tramentos daqueles convencionais não é a uti-
Compreender as práticas de letramen-
lização de novas tecnologias, mas, sim, a pre-
tos a partir de uma perspectiva socio-
sença de um novo ethos (LANKSHEAR, KNOBEL,
cultural significa que a leitura e a escri-
2011), ainda que os autores reconheçam que es-
ta só podem ser entendidas no contexto
sas são fundamentais para a propagação desses
das práticas sociais, culturais, políticas,
novos valores e costumes socioculturais:
econômicas e históricas as quais elas
estão integradas e das quais fazem par- Elas [tecnologias digitais eletrônicas]
te.24 (LANKSHEAR, KNOBEL, 2007, p. 1). mobilizam tipos de valores, prioridades,
(Tradução minha). e sensibilidades muito diferentes do que
os letramentos aos quais estamos fami-
Logo, uma perspectiva sociocultural é funda-
liarizados. A importância das novas tec-
mental para tentar compreender a natureza
nologias relaciona-se, sobretudo, com
na qual os novos letramentos se constituem, já
a forma como elas possibilitam as pes-
que o desenvolvimento das novas tecnologias e
soas a produzirem e participarem das
a propagação de um novo ethos (LANKSHEAR;
práticas de letramentos que envolvem
KNOBEL, 2007) permitem sua difusão e fre-
diferentes tipos de valores, sensibilida-
quente produção.
des, normas, procedimentos, e assim
Partindo de tais premissas, práticas sociais, an-
por diante, em relação àquelas que ca-
tes estabilizadas, estão agora sendo transfor-
racterizam os letramentos convencio-
madas, além de novas práticas estarem cons-
nais.27 (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p.
tantemente emergindo. Muitas dessas novas
7). (Tradução minha).
práticas envolvem novas maneiras de produção,
distribuição, troca e recebimento de textos por As características citadas acima pelos autores
meios eletrônicos, incluindo “a produção e a tro- (novos valores, sensibilidades, normas, proce-
ca de formas multimodais de textos que podem dimentos e assim por diante), quando em con-
ocorrer por meio digital, como som, texto, ima- junto, compõem o novo ethos. Nele, os novos
gens, vídeos, animações e qualquer combinação letramentos, em relação aos letramentos tipi-
desses25” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011, p. 28). camente tradicionais, possibilitam práticas mais
(Tradução minha). participativas e colaborativas, em que o conhe-
Contudo, é preciso realizar uma ressalva: so- cimento distribuído e disperso, a inteligência
mente o uso de aparatos digitais e eletrônicos coletiva, a experimentação e inovação, o ato de

24
Understanding literacies from a sociocultural perspective means that reading and writing can only be understood in the contexts of
social, cultural, political, economic, historical practices to which they are integral, of which they are a part (LANKSHEAR, KNOBEL, 2007,
p. 1) 25“the production and exchange of multimodal forms of texts that can arrive via digital code as sound, text, images, video, anima-
tions, and any combination of these” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011, p. 28). 26“the spread and realization of the new ethos stuff becomes
possible with the new technologies, but the ethos stuff itself does not depend upon them”. (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 21). 27 They
[digital electronic technologies] mobilize very different kinds of values and priorities and sensibilities than the literacies we are familiar
with. The significance of the new technical stuff has mainly to do with how it enables people to build and participate in literacy practices
that involve different kinds of values, sensibilities, norms and procedures and so on from those that characterize conventional literacies
(LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 7).

122
compartilhar recursos e conhecimento, e, final- suas realizações (JENKINS, 1992). Desse modo,
mente, a criatividade (LANKSHEAR; KNOBEL, tomando como modelo a comunidade de fãs
2007) são consideradas características valori- para exemplificar traços da cultura participati-
zadas pelos indivíduos participantes deste novo va, o autor alega que
ethos.
Knobel e Lankshear (2014) ainda alegam que, O fandom [abreviação em inglês para
frequentemente, os participantes de práticas fan kingdom, isto é, reino de fãs ou, em
dos novos letramentos buscam por estabelecer outras palavras, comunidade de fãs] re-
relações com outros pares em áreas e comu- conhece que não há nenhuma barreira
nidades de interesse mútuo. Eles geralmente nítida entre artistas e consumidores;
procuram atender aos interesses e conheci- todos os fãs são potenciais escritores
mentos dos outros membros, reconhecem que cujos talentos precisam ser descober-
a qualidade do conhecimento é formada pelo tos, nutridos, e promovidos, e qual-
grupo ao invés de ser centrada apenas em es- quer fã pode ser capaz de realizar uma
pecialistas, acolhem a diversidade de opiniões contribuição, ainda que modesta, para
ao tomarem decisões e assim por diante (KNO- a riqueza cultural da comunidade.29
BEL; LANKSHEAR, 2014). Este é mais um ponto, (JENKINS, 1992, p. 286). (Tradução mi-
então, em que os novos letramentos, constituí- nha).
dos pelo novo ethos, distinguem-se em relação
àqueles letramentos convencionais que podem Assim sendo, no trecho acima, fica evidente a va-
estar presentes também em ambientes digitais. lorização dos membros como um todo em uma
cultura participativa, considerando que qual-
3. Cultura Participativa quer indivíduo possui potencial para contribuir.
Além disso, Jenkins (2006) argumenta que a cul-
Práticas de letramentos que possibilitam que os tura participativa possibilita o desenvolvimento
sujeitos desempenhem uma função mais ativa e de práticas de ensino e aprendizagem, conside-
participativa estão cada vez mais presentes. As- rando que pessoas de idades, classes sociais,
sim, a passividade dos telespectadores em rela- gêneros e etnias diversas, com conhecimentos
ção aos meios de comunicação não condiz com e competências também diversos, podem inte-
o contexto social contemporâneo constitutivo da ragir nas comunidades em que a participação e
cultura participativa, levando em conta que a se- colaboração estão presentes (JENKINS, 2006).
paração de papeis entre produtor e consumidor Tal interação também pode promover conexões
está cada vez mais fluida (JENKINS, 2006). sociais entre os sujeitos participantes. Ademais,
De acordo com Jenkins (1992), os “fãs deixam os indivíduos podem participar de diferentes
de ser simplesmente uma audiência para os maneiras de acordo com suas habilidades e in-
textos populares; ao invés disso, eles se tornam teresses, havendo, por exemplo, a relação en-
participantes ativos na construção e circulação tre pares, isto é, de pessoa para pessoa, em que
dos sentidos textuais28” (JENKINS, 1992, p. 24). cada membro pode motivar o outro a aprimorar
(Tradução minha). Assim sendo, algumas es- suas habilidades ou adquirir novos conhecimen-
pecialidades da cultura participativa, como, por tos.
exemplo, a participação ativa do indivíduo, co- Neste tipo de relação, tanto o “aprendiz” é fa-
meçavam a disseminar-se, embora em menor vorecido, ao construir novos conhecimentos,
escala se comparada aos dias de hoje. quanto o outro “par” também é beneficiado, já
Jenkins (1992) ainda afirma que, na cultura par- que se sente como um especialista enquanto
ticipativa, cada indivíduo possui algo potencial- está ensinando (JENKINS, 2006). O autor ainda
mente interessante que pode ser desenvolvido afirma que os papeis sociais são fluidos por ser
como uma contribuição para o grupo, e, por um contexto sociocultural flexível, e alternam-
isso, este último frequentemente incentiva seus -se constantemente, pois o mesmo sujeito que
membros a desenvolver suas habilidades, de- ensina em determinada situação pode aprender
monstrando até mesmo indícios de orgulho em em outra com o auxílio de um membro diferente

28
fans cease to be simply an audience for popular texts; instead, they become active participants in the construction and circulation of
textual meanings” (JENKINS, 1992, p. 24). 29fandom recognizes no clear-cut line between artists and consumers; all fans are potential
writers whose talents need to be discovered, nurtured, and promoted and who may be able to make a contribution, however modest, to
the cultural wealth of the larger community. (JENKINS, 1992, p. 286) A participatory culture is a culture with relatively low barriers to
artistic expression and civic engagement, strong support for creating and sharing one’s creations, and some type of informal mentorship
whereby what is known by the most experienced is passed along to novices. A participatory culture is also one in which members believe
their contributions matter, and feel some degree of social connection with one another (at the least they care what other people think
about what they have created). (JENKINS et al., 2006, p. 3).

123
(JENKINS, 2006). Não há, portanto, a divisão de 4. As práticas de escrita de fanfictions
papeis entre parte da comunidade que somente
ensina e parte da comunidade que exclusiva- Considerando o conceito de Novos Letramentos
mente aprende, tornando-se uma experiência abordado por Lankshear e Knobel (2007, 2011),
mais enriquecedora para qualquer indivíduo. bem como a teorização acerca da cultura parti-
A comunidade inteira, de acordo com Jenkins cipativa feita por Jenkins (2006, 2009), proponho,
(2006), é responsável por fornecer alicerces neste artigo, a produção do gênero fanfiction no
para que os novatos construam novos pilares contexto escolar.
em uma cultura participativa. A colaboração en- É interessante pensar e pesquisar a elabora-
tre os membros, a troca de conhecimentos, uma ção de fanfictions, já que essa é uma tendência
segunda opinião (feedback) proporcionada por de produção escrita que parece motivar muitos
outros em suas produções, e modelos de refe- jovens a escrever voluntariamente fora do am-
rência com os quais qualquer membro pode se biente formal de aprendizagem. É preciso tam-
basear são apenas algumas características enu- bém examinar o contexto sociocultural vigente,
meradas pelo teórico como alicerces providos em que “os rápidos avanços tecnológicos nas
em tais comunidades. Assim, por meio desses, últimas décadas levaram as instituições de en-
qualquer indivíduo pode participar da criação e sino formal a reconsiderarem suas metas e res-
circulação de novos conteúdos (JENKINS, 2006). ponsabilidades no século XXI31” (BLACK, 2010,
Finalmente, Jenkins et al. (2006) fornecem uma p. 75). (Tradução minha). Finalmente, sabendo
definição sucinta de cultura participativa: que em sala de aula os professores encontram
dificuldades para propor atividades que estimu-
Uma cultura participativa é uma cultura lem os alunos a aprimorar suas habilidades de
com relativamente poucas barreiras em leitura e escrita, a produção de fanfictions pode
relação à expressão artística e ao enga- constituir-se como uma alternativa.
jamento cívico, grande incentivo para a Fanfictions são histórias criadas por fãs que se
criação e para o compartilhamento da baseiam, na maioria das vezes, em textos e mí-
criação de outros, havendo a presença dias narrativos, ou ícones da cultura pop (BLA-
de algum tipo de orientação informal, CK, 2006), os quais são divulgados pelos meios
em que o que é conhecido pelo mais ex- de comunicação de massa. As histórias podem
periente é repassado aos membros no- ser inspiradas em livros, filmes, séries de tele-
vatos. A cultura participativa também é visão, animações ou desenhos, letras de música
aquela em que os seus membros acre- e até mesmo em cantores, bandas, ou atores fa-
ditam que suas contribuições de fato mosos. Há, neste sentido, a apropriação do texto
são relevantes, e sentem algum grau do outro para si mesmo.
de conexão social uns com os outros (ou Em outras palavras, “fanfiction, ou histórias de
ao menos eles se importam com aquilo autoria de um fã baseadas em conteúdos midi-
que outras pessoas pensam em relação áticos já existentes, é um gênero que se presta
ao que eles criaram).30 (JENKINS et al., a um engajamento crítico em relação aos tex-
2006, p. 3). (Tradução minha). tos midiáticos na medida em que os fãs redire-
cionam tais conteúdos para criar suas próprias
Em relação aos traços citados acima, como, por narrativas32” (BLACK, 2010, p. 76). (Tradução
exemplo, a presença de poucas barreiras em minha). A origem da palavra fanfiction resulta
relação à expressão artística e ao engajamen- da fusão de duas palavras em inglês: fan, abre-
to cívico, e o incentivo à criação, Jenkins et al. viação para fanatic, isto é, fanático, e fiction, ou
(2006) mencionam algumas propriedades que seja, ficção. Desse modo, fanfictions são narra-
se fazem presentes em uma cultura participati- tivas escritas derivadas de uma obra ou ícone da
va: afiliação formada entre membros de uma co- cultura pop pré-existente cujo autor é um admi-
munidade, expressão de novas formas criativas, rador e apreciador dessa obra.
solução de problemas de modo colaborativo, e, De acordo com Black (2006), neste gênero dis-
por fim, a circulação de informação e conteúdos cursivo é possível que o fã-autor estenda o enre-
(JENKINS et al., 2006).

30
A participatory culture is a culture with relatively low barriers to artistic expression and civic engagement, strong support for creating
and sharing one’s creations, and some type of informal mentorship whereby what is known by the most experienced is passed along to
novices. A participatory culture is also one in which members believe their contributions matter, and feel some degree of social connec-
tion with one another (at the least they care what other people think about what they have created). (JENKINS et al., 2006, p. 3). 31“the rapid
technological advances in recent decades have prompted institutions of formal learning to reconsider their goals and responsibilities in
the 21st century”. (BLACK, 2010, p. 75). 32“fanfiction, or fan-authored stories based on existing media, is a genre that lends itself to critical
engagement with media texts as fans repurpose these media to create their own narratives”. (BLACK, 2010, p. 76).

124
do original, acrescentando novos acontecimen- comentários sobre sua história. Essa interação
tos à trama; crie novos personagens; e ainda presente entre o leitor e o autor, fundamental
desenvolva novas relações entre personagens na produção real da escrita, não existe na maio-
já existentes. Portanto, na produção de fanfic- ria das produções legitimadas e realizadas no
tions, personagens, cenários, enredos, e tramas contexto escolar. De forma diferente, ao elabo-
criados e desenvolvidos na obra original são rarem fanfictions, os próprios alunos podem se
resgatados pelos ficwriters (writers, em inglês, tornar leitores das histórias de seus colegas,
escritores, fic, abreviação utilizada para fanfic- não sendo limitada a leitura apenas ao profes-
tion, isto é, autores de fanfiction). Nesse senti- sor. Assim, ao propor a produção de fanfictions
do, “ao invés de passivamente consumirem os no ambiente escolar, a interação entre os alu-
textos midiáticos, os fãs são capazes de produzir nos pode ser feita com o objetivo de obter tanto
conforme seus próprios conhecimentos, experi- melhorias mútuas quanto particulares, por meio
ências, e interesses com o intuito de construir da cooperação entre os estudantes.
interpretações e cenários que diferem daqueles Portanto, Black (2006) argumenta que os co-
oferecidos pelas mídias convencionais33” (BLA- mentários dos leitores nos websites destinados
CK, 2010, p. 77). (Tradução minha). ao compartilhamento online de fanfictions tor-
Black (2006) ainda reitera que as novas tecno- nam-se recursos para o autor, na medida em
logias possibilitaram aos fãs e produtores de que oferecem apoio e inspiração para a conti-
fanfictions a oportunidade de interação por meio nuação da produção escrita. Black (2006) ainda
de espaços online, onde eles são capazes de es- afirma que a estrutura oferecida pelos websites
crever de modo colaborativo, além de criticar e (com espaços destinados às notas dos autores e
discutir sobre as narrativas dos outros autores. aos comentários dos leitores), bem como o con-
Portanto, nessas comunidades online, fanfic- teúdo dos comentários realizados pelos leito-
tions podem ser publicadas para que outros fãs res-fãs ilustram a natureza participativa e social
possam se tornar tanto leitores quanto reviso- da escrita. Neste sentido, a cultura participativa
res e críticos das histórias produzidas. teorizada por Jenkins (2006) se faz presente.
Uma análise feita por Black (2006) revela que Considerando tais características, Black (2010)
a interação entre o autor e os leitores ilustra alega que, infelizmente,
não apenas uma apreciação por múltiplas lin-
guagens, formas alternativas de escrita, e dife- estas atividades [de produção de fanfic-
rentes perspectivas sobre um mesmo universo tions] muitas vezes são rejeitadas por
ficcional, mas também uma valorização da co- serem consideradas como frívolas ou
municação, interação social e pluralismo pre- sem relação com a aprendizagem es-
sentes nestes espaços online. Segundo a autora, colar. Contudo, [...] as proficiências e
o processo participativo e criativo de construção disposições desenvolvidas pelos estu-
da narrativa é tão importante (quando não mais dantes através de tais atividades pos-
importante) do que o produto, isto é, a fanfiction, suem várias possíveis conexões com as
finalizada. tarefas acadêmicas tradicionais solici-
Como consequência, uma das características tadas nos ambientes das salas de aula e
dessa prática de escrita é a interação entre o podem servir como um ponto de ligação
autor e o leitor, já que a relação entre ambos se que facilite a relação entre aprendiza-
constrói de um modo muito mais próximo do que gem nas salas de aula e o engajamento
fora do âmbito virtual. Diferentemente do espa- dos alunos34(BLACK, 2010, p. 76). (Tra-
ço escolar, em que muitas vezes o professor é dução minha).
o único leitor do texto do aluno, nas práticas de A autora, por exemplo, afirma que os ficwriters
fanfictions, o autor recebe constantemente críti- engajam-se em diversas práticas escolares,
cas e elogios acerca de sua obra vindos de leito- como as práticas de leitura, escrita, revisão, edi-
res, os quais, muitas vezes, são também autores ção e fornecimento de feedback (BLACK, 2008).
desse mesmo gênero. Além disso, os membros dos espaços online de
Sendo assim, uma das razões pela qual o fi- publicação de fanfiction participam das ativida-
cwriter vê sentido na produção de fanfictions é des sociais e comunicativas autênticas que são
a presença de leitores reais que podem fazer de fato significativas para eles, resultando em

33
“rather than passively consuming media texts, fans are able to draw from their own knowledge, experiences, and interests to construct
interpretations and scenarios that differ from those offered via mainstream media”. (BLACK, 2010, p. 77). 34 “these activities are often dis-
missed as frivolous or unrelated to school-based learning. However, […] the proficiencies and dispositions that students develop through
such activities have many potential connections to traditional academic tasks in classroom environments and can serve as a point of
connection to facilitate classroom learning and engagement”. (BLACK, 2010, p. 76).

125
conhecimento distribuído, reconhecido, e valori- 5. Metodologia de Pesquisa-ação
zado pela comunidade (BLACK, 2008). É preciso,
então, comparar as características citadas aci- Tendo me situado teoricamente, apresento,
ma com o modelo escolar, nesta seção, o contexto pesquisado, e discorro
sobre os procedimentos metodológicos de parte
em que as práticas de letramentos são da pesquisa descrita neste artigo. Sendo assim,
muitas vezes vistas como um mero ins- após a constatação de determinadas caracterís-
trumento para a aprendizagem de um ticas que considero relevantes para o ensino de
conteúdo de uma área; a pesquisa é produção escrita presentes nas práticas sociais
frequentemente restrita a livros e ma- de fanfictions, proponho a realização de oficinas
teriais da biblioteca; o aprendizado é de produção de fanfictions no contexto escolar.
entendido como um processo individual; Como já dito anteriormente, este artigo preten-
há padrões estabelecidos para o que é de ilustrar, de modo breve, os pressupostos te-
considerado como sendo boas habilida- óricos e procedimentos metodológicos acerca
des [expertise] e participação bem-su- da pesquisa de mestrado que está sendo desen-
cedida; tais padrões são determinados volvida por mim. Portanto, a análise de dados
por administradores e teóricos formu- não estará presente. Meu objetivo nesta seção,
ladores de políticas de ensino externos então, é esclarecer o porquê da escolha da me-
à comunidade escolar; e o fracasso ao todologia selecionada por mim, bem como deta-
atingir esses padrões muitas vezes cau- lhar (sem grandes ambições) o processo da ge-
sa efeitos negativos em relação à iden- ração de dados, isto é, o andamento das oficinas
tidade dos alunos.35 (BLACK, 2008, p. de escrita.
607). (Tradução minha). A metodologia utilizada para a realização das
oficinas corresponde à pesquisa-ação. Como o
Torna-se evidente que as salas de aula ainda va- próprio nome sugere, há a união da pesquisa à
lorizam as práticas de letramentos tradicionais, ação ou à prática, com o objetivo de desenvolver
desvinculando-se da realidade das práticas de o conhecimento e a compreensão como parte
letramentos cada vez mais presentes no cotidia- da prática (ENGEL, 2000). No caso das oficinas,
no desses jovens, além de cada vez mais soli- o principal objetivo é que os alunos aprimorem
citadas em suas vivências socioculturais, tanto suas habilidades e competências de escrita por
pessoais quanto profissionais. meio da produção, revisão, e reescrita de fan-
Ademais, de acordo com Black (2006), nos espa- fictions.
ços online de compartilhamento de fanfiction, a De acordo com Thiollent (2011), a pesquisa-ação
ausência da hierarquia entre professor e aluno, é
bem como da imposição de seus papeis sociais
(o primeiro sendo o detentor e transmissor do um tipo de pesquisa social com base
conhecimento, e o segundo, seu mero receptor), empírica que é concebida e realizada
faz com que os autores de fanfiction se posicio- em estreita associação com uma ação
nem ora como professores ora como alunos. É ou com a resolução de um problema co-
também necessário ressaltar que a forma pro- letivo e no qual os pesquisadores e os
cessual como o ensino e a aprendizagem ocorre participantes representativos da situ-
nas comunidades de fãs (BLACK, 2008) deve ser ação ou do problema estão envolvidos
valorizada no contexto escolar. de modo cooperativo ou participativo
Logo, a proposta de produção deste gênero dis- (THIOLLENT, 2011, p. 20).
cursivo na escola pode possibilitar aos discentes
saírem da posição de passivos receptores de co- Assim, para que a pesquisa-ação seja concreti-
nhecimento, tornando-se não apenas autores de zada, é preciso haver o pressuposto de partici-
seus próprios textos, como também leitores e pação e ação efetiva dos interessados (THIOL-
revisores reais dos textos de seus colegas. Essa LENT, 2011). Esse foi um dos motivos pelos quais
troca poderia também propiciar aos estudantes as oficinas foram realizadas no período contra-
que aprendessem uns com os outros de forma turno às aulas regulares dos alunos, para que
processual, sem que haja, pelo menos momen- não houvesse nenhum tipo de obrigatoriedade
taneamente, a hierarquia do ensino na escola. escolar. Apenas compareceram estudantes que
estavam de fato interessados nas propostas das

35
“where literacy is often viewed as a mere tool for content-area learning; research is often confined to textbooks and materials in the
library; learning is viewed as an individual process; there are established standards for what counts as expertise and successful participa-
tion; such standards are deter¬mined by administrators and policy makers outside of classroom community; and failure to achieve such
standards often has negative effects on students’ identities”. (BLACK, 2008, p. 607).

126
oficinas. Assim, conforme eu conduzia as oficinas de es-
É relevante também considerar que não há ver- crita, eu era capaz de avaliar o que poderia con-
dades científicas absolutas, e o conhecimento tinuar sendo realizado, e aquilo que era neces-
produzido como resultado desta pesquisa de sário mudar, propondo novas estratégias com
mestrado é provisório e dependente do contex- o objetivo de alcançar meus objetivos. Como
to histórico-social (ENGEL, 2000) a qual está exemplo, que será explicado com maiores de-
inserido. Logo, tais resultados não podem ser talhes na próxima seção, pude perceber que era
generalizados para qualquer contexto escolar preciso propor novas atividades envolvendo a
de prática de escrita, pois, na pesquisa-ação, os revisão textual coletiva.
planejamentos estão sujeitos à mudança con- Detalharei de modo sintético, a seguir, como foi
forme o decorrer da ação. Não há, então, uma o andamento das oficinas de produção de fan-
metodologia universal e histórica (ENGEL, 2000), fictions.
com regras e procedimentos fixos a serem rigi-
damente adotados. Nesse sentido, Engel (2000) 5.1. As oficinas de produção escrita de fanfic-
afirma que é permitida a flexibilidade dos proce- tions
dimentos metodológicos. Contudo, creio que os
resultados da pesquisa-ação podem servir como As oficinas foram realizadas em uma escola
um possível modelo para contextos escolares particular de uma cidade do interior do estado
diferentes, se adaptados a essa nova realidade. de São Paulo. O motivo pelo qual escolhi uma
Além disso, ao escolher a pesquisa-ação, tam- escola particular em detrimento de uma pública
bém considerei investigar e aprimorar a minha se deve ao fato da maior facilidade de acesso às
própria prática como professora de língua por- novas tecnologias. Assim, as oficinas foram rea-
tuguesa, sabendo que é preciso transformá- lizadas no laboratório de informática da escola,
-la, apesar de o foco ser na transformação das sendo que todos os sujeitos de pesquisa tinham
práticas de letramentos escolares dos alunos, acesso tanto aos computadores em bom estado,
e não do docente. Nesse sentido, o aprimora- como também à internet de rápida conexão.
mento das competências e habilidades escritas Durante o segundo semestre de 2014, às quin-
dos sujeitos de pesquisa é o principal objetivo na tas-feiras, no período de uma hora, eu, como
prática de intervenção, considerando que a pes- professora e pesquisadora, e os alunos partici-
quisa-ação é “voltada para a descrição de situ- pantes encontrávamos presencialmente no la-
ações concretas e para a intervenção ou a ação boratório de informática. Expliquei a eles que o
orientada em função da resolução de problemas objetivo das oficinas era que eles escrevessem
efetivamente detectados nas coletividades con- uma fanfiction que seria revisada por um colega
sideradas” (THIOLLENT, 2011, p. 15). deles, e posteriormente reescrita por seus auto-
De acordo com Engel (2000), uma das caracte- res. Também esclareci que um mesmo indivíduo
rísticas dessa metodologia “é que através dela deveria revisar todos os capítulos de seu colega,
se procura intervir na prática de modo inovador para que pudesse ter uma visão ampla da nar-
já no decorrer do próprio processo de pesqui- rativa.
sa e não apenas como possível consequência de Logo na primeira aula, foi acordado entre nós,
uma recomendação na etapa final do projeto” sendo inclusive sugerido pelos alunos, que a es-
(ENGEL, 2000, p. 182). Sendo assim, a interven- crita dos capítulos das fanfictions seria feita em
ção não virá apenas como uma sugestão ao final casa, sendo apenas a revisão do texto do colega,
da pesquisa, mas, sim, como parte essencial do e depois a consequente reescrita de seu próprio
processo de investigação e geração dos dados, texto realizadas no período das oficinas. Com-
sendo aplicada no decorrer da pesquisa. binamos também que os sujeitos da pesquisa
Por ser possível tal intervenção no transcorrer escreveriam um capítulo de suas narrativas por
da prática, a pesquisa-ação é também autoava- semana. Eles mostraram-se inicialmente cons-
liativa. Segundo Engel (2000), trangidos em expor suas produções textuais ao
colega, considerando que não estavam acos-
as modificações introduzidas na prá- tumados com tal prática social em suas aulas
tica são constantemente avaliadas no regulares. Entretanto, após a primeira revisão,
decorrer do processo de intervenção revelaram-se empolgados com a ideia de ter o
e o feedback obtido do monitoramento texto corrigido por alguém que não fosse o pro-
da prática é traduzido em modificações, fessor, e também por estarem no papel do pro-
mudanças de direção e redefinições, fessor ao corrigir o texto do amigo.
conforme necessário, trazendo benefí- Penso ser relevante esclarecer que eu não
cios para o próprio processo, isto é, para exercia o cargo de professora regular de língua
a prática (ENGEL, 2000, p. 184-185). portuguesa nesta escola específica, apesar de

127
já dar aulas de produção textual em outros lu- progressão de ideias entre os parágrafos, entre
gares. Assim, os alunos não viam nas oficinas outros recursos. Logo, a intervenção realizada
a extensão de apenas mais uma aula de “reda- por mim foi capaz de expandir e (re)construir o
ção” da escola, e a relação de afetividade en- conceito de revisão interiorizado pelos sujeitos
tre o professor e o aluno ainda não havia sido da pesquisa.
construída. Logo, o motivo do comparecimento Outro fato relevante a ser destacado relacio-
inicial do grupo de estudantes nas oficinas não na-se à feira de conhecimentos realizada anu-
se relacionava ao fato de se identificarem com almente pela escola. Nela, os alunos são livres
a professora, já que eles ainda não me conhe- para escolher um tema para desenvolver sob
ciam. Por isso, penso que o interesse dos alunos a orientação de um professor. Alguns partici-
em participar das oficinas relacionou-se ao fato pantes das oficinas perguntaram se eu podia
de ser proposto a produção de fanfictions, con- orientá-los, apesar de não ser uma professora
siderando que todos responderam em um ques- regular da escola. O coordenador pedagógico
tionário que já haviam escrito, ou ao menos lido, autorizou que esta ideia se concretizasse, e os
fanfictions em comunidades de fãs. sujeitos da pesquisa decidiram por ampliar o as-
Inicialmente, doze alunos compareceram às ofi- sunto abordado nas oficinas – produção de fan-
cinas, sendo dez alunos do primeiro ano do En- fictions – para a produção multimodal de uma
sino Médio, um aluno do segundo, e somente um narrativa policial de suspense.
do terceiro. Contudo, ao final do processo, ape- A ideia sugerida pelos próprios estudantes en-
nas seis alunos permaneceram, isto é, somente volvia a gravação de um vídeo inicial, em que
metade do grupo inicial. Alguns alegaram falta um velório decorrente de um assassinato seria
de tempo, outros afirmaram que precisavam mostrado; seguindo de uma apresentação tea-
estudar, já que toda sexta-feira a escola aplica- tral, em que os supostos suspeitos de cometer
va provas de diferentes disciplinas e as oficinas o crime poderiam interagir com o público parti-
eram realizadas às quintas-feiras. Felizmente, cipante da feira, justificando o porquê de serem
os seis alunos restantes mostraram-se interes- inocentes, mas também produzindo discursos
sados no decorrer do semestre. suspeitos; e, finalmente, uma pequena demons-
Sem preocupar-me em analisar os textos pro- tração de RPG (Role Playing Game), em que o
duzidos pelos sujeitos da pesquisa, consideran- público decidiria nos dados quem seria o verda-
do que esse é o objetivo da análise de dados da deiro culpado.
dissertação de mestrado, venho neste artigo re- A meu ver, o desejo dos sujeitos de pesquisa em
latar dois fatos interessantes que ocorreram no abordar a área de produção discursiva na feira
transcorrer das oficinas. de conhecimentos denota a construção de uma
Em um primeiro momento, pude perceber que identificação não apenas comigo, enquanto pro-
os alunos não compreenderam as estratégias fessora deles, mas também com o conteúdo tra-
que englobavam a revisão do texto de seu co- balhado nas oficinas.
lega. Alguns deles apenas limitavam-se a cor-
rigir erros ortográficos, por exemplo, pensando 6. Considerações finais
a revisão como adequação da escrita à norma
padrão da Língua Portuguesa. Possenti (1996) argumenta que a escola precisa
Como a pesquisa-ação permite que no decorrer trabalhar com a escrita da maneira como ela é
da prática sejam realizadas alterações (ENGEL, praticada na sociedade, e não apenas como for-
2000; THIOLLENT, 2011), decidi em uma aula re- ma de avaliação. Assim, é fundamental que a
visar um capítulo de uma fanfiction de um ado- escola promova atividades que envolvam a pro-
lescente como eles, publicada em um site de dução de gêneros discursivos ligados às práti-
compartilhamento online desse gênero discur- cas sociais do cotidiano do aluno, hoje um nativo
sivo. Mais do que apenas erros ortográficos ou digital, como é o caso do gênero fanfiction.
gramaticais, o texto selecionado por mim pos- Moita Lopes (2012), ao analisar gêneros discur-
suía graves incoerências e também problemas sivos que envolvem práticas de letramentos on-
de coesão textual. line, como, por exemplo, a produção de fanfic-
Assim, ao revisarmos coletivamente a narrati- tions, ressalta que a escola precisa dialogar com
va selecionada, pude notar que os alunos com- esse novo ethos que incorpora novos sentidos e
preenderam que a revisão também englobava a significados para as questões de letramentos.
coerência da fanfiction em relação ao universo Para ele, a falta de compreensão dessas novas
ficcional na qual ela se baseava, a coerência in- práticas pelos professores seria um dos fatores
terna relacionada às ações e diálogos descritos, responsáveis pelo grande sentido de alienação
a seleção adequada de conjunções coesivas, a e inadequação que muitos alunos vivenciam nas
salas de aulas (MOITA LOPES, 2012).

128
Sugiro, desse modo, que as aulas de produção mente poderão ser propostas na escola, Black
textual também envolvam atividades de produ- (2008) afirma que
ção de fanfictions. É relevante evidenciar para
a sala de aula a interação presente entre autor isso irá depender se nós imaginamos
e leitor durante a escrita da narrativa (BLACK, um futuro em que as escolas serão
2006, 2007). Como já observado anteriormen- instituições fechadas que extirparão os
te neste artigo, as atividades escolares, muitas estudantes de acordo com padrões pré-
vezes, possuem somente o próprio professor -determinados de habilidades ou como
como leitor, e apenas a avaliação como motiva- espaços que se estenderão para fora
ção para a produção escrita. Logo, a presença de dos muros da escola, onde os alunos
leitores reais que de fato interajam com o autor possuam permissão para construir e
pode fazer com que o aluno atribua algum senti- ampliar as várias habilidades que eles
do à atividade. A motivação, por sua vez, pode se trazem para a sala de aula36 (BLACK,
relacionar ao fato das fanfictions basearem-se 2008, p. 608). (Tradução minha).
em universos ficcionais nos quais os estudantes Sendo assim, é evidente que a proposta de pro-
são fãs, já que escrever sobre algo que gosta- dução do gênero fanfiction não é considerada por
mos é muito mais prazeroso. mim como a única solução de todos os proble-
Por fim, a crítica realizada pelos próprios dis- mas envolvendo as questões de escrita na esco-
centes em relação à produção textual do colega la. Contudo, penso que propor, em um primeiro
pode ser vista de forma positiva e construtiva momento, atividades que incentivem os alunos
pelo ficwriter, considerando que não há diferen- a de fato desejarem escrever é um bom modo
tes posições hierárquicas entre os alunos. Os de começar a traçar um caminho alternativo às
comentários feitos na prática de revisão podem atividades obsoletas, sem atribuição de sentido,
auxiliar no desenvolvimento da produção escri- e, infelizmente, tradicionalmente escolares. Em
ta do estudante, uma vez que, a partir dos co- conjunto com outras propostas, a produção de
mentários, ele pode refletir sobre o modo como fanfictions, então, pode trazer novas perspecti-
escreve, realizando, até mesmo, a reescrita da vas aos alunos em relação à escrita escolar.
narrativa.
Ao se pensar nas práticas de escrita que futura-

36
it will depend on whether we envision a future where schools are enclosed institutions that weed out stu¬dents according to predeter-
mined standards of ability or as spaces that extend outside of school walls where students are allowed to build on and extend the various
abilities that they bring into the classroom. (BLACK, 2008, p. 608).

129
REFERÊNCIAS
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THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

130
PUBLICIDADE HÍBRIDA E HUMOR POLÍTICO: O RISO COMO ESTRATÉGIA
MULTISSEMIÓTICA PARA ENTRETER, PERSUADIR E MOTIVAR A INTERAÇÃO

Leonardo Mozdzenski37

RESUMO 1. Introdução: o humor na publicidade


A publicidade vem passando por um profundo O humor é um componente habitual da publici-
processo de transformação. As mudanças nos dade. O elemento humorístico em uma propa-
hábitos dos consumidores, provocadas sobretu- ganda veiculada na mídia impressa, na internet,
do pelo advento da internet e de novas mídias na TV ou no rádio pode contribuir para torná-la
digitais mais interativas, tornam urgentes a re- mais agradável, envolvente e memorável. Nesse
visão e a substituição de paradigmas comunica- sentido, é cada vez mais frequente nos deparar-
tivos tradicionais. Nesse sentido, o uso do humor mos com peças publicitárias que recorrem – de
na propaganda vem gradativamente se intensi- forma sutil ou explícita – a algum elemento cô-
ficando com o objetivo de alcançar a efetividade mico nas mais diversas plataformas. De acordo
do comercial, captando a atenção do público, com o instituto de pesquisas Millward Brown38,
estimulando a memória da marca e impulsio- especializado na área de marcas, comunicação
nando à ação/compra. O presente trabalho pro- e mídia, cerca de metade dos comerciais televi-
põe investigar como se dá a orquestração dos
diversos modos semióticos (palavra, imagem,
Gráfico 1. O humor na publicidade de TV
som, etc.) para provocar esse efeito de comici-
dade nos anúncios publicitários veiculados pela
TV ou na internet, tendo como pano de fundo as
eleições. Para tanto, esta pesquisa lança mão
desde os estudos clássicos sobre o humor (Ber-
gson, 2001; Freud, 1996; Propp, 1992) até as te-
orias linguísticas mais recentes acerca do tema
(Raskin, 1985; Chiaro; 1992, Attardo, 1994; Pos-
senti, 1998, 2002; Marcuschi, 2005), bem como
as análises dialógicas específicas do discurso
publicitário humorístico (Gulas e Weinberger,
2006; Vale, 2012), buscando compreender como
se dá a construção textual verbal e não-verbal
do riso nesses gêneros midiáticos da publicida- Fonte: Millward Brown (Disponível em: <http://www.millwar-
de. Como resultado desta empreitada, é possível dbrown.com/>. Acesso em: 10 out. 2014).
averiguar que a propaganda na contemporanei-
dade está se tornando cada vez mais híbrida – o sivos ao redor do mundo emprega algum tipo de
que Covaleski (2010) denomina de “entreteni- humor. É o que constatamos no gráfico a seguir:
mento publicitário interativo” –, na medida em Como advém do gráfico anterior, sobretudo
que adota um novo modelo de composto comu- no mundo ocidental, é elevada a frequência de
nicativo capaz de atender aos seguintes propó- anúncios televisivos considerados ‘engraçados’
sitos desse gênero multissemiótico: anunciar e (funny) ou ‘alegres’ (light-hearted). De fato, na
induzir ao consumo (função persuasiva); entre- América do Norte (52%), na Europa (49%) e na
ter e fazer que o consumidor se sinta engajado América Latina (44%), é impressionante a por-
ao produto (função entretível); promover a inte- centagem de mensagens publicitárias franca-
ratividade entre pessoas, entre pessoa e máqui- mente cômicas ou que evocam um tom humo-
na e entre máquinas (função interativa); e viabi- rístico. E mesmo nas demais regiões – África e
lizar o compartilhamento, a partir do enfoque do Oriente Médio (39%) e Ásia (33%) –, esses núme-
‘efeito viral’ (função compartilhadora). ros não são nada desprezíveis. Mas por que esse
PALAVRAS-CHAVE: Publicidade híbrida; Humor; fenômeno é tão globalmente observado?
Semiótica; Discurso publicitário; Entretenimen- Em razão do fato de que muitos mercados mun-
to publicitário interativo. diais encontram-se saturados nos dias de hoje,

37
Doutor em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) | Doutorando em
Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE | Professor de Português na Escola de Contas Públicas Prof.
Barreto Guimarães (ECPBG – TCE/PE) | E-mail: leo_moz@yahoo.com.br 38 Segundo informações constantes no site da entidade: <http://
www.millwardbrown.com/> (acesso em: 10 out. 2014).

131
a publicidade atual vem gradativamente privile- tores que se dedicaram a compreender o riso.
giando conquistar a atenção emocional do pú- Vejamos brevemente os principais momentos
blico consumidor, em vez de simplesmente di- dessa história.
vulgar características e vantagens dos bens ou De acordo com Alberti (1999), o riso como ob-
serviços anunciados. O humor consiste, assim, jeto de especulações filosóficas remonta à An-
em uma poderosa ferramenta da qual os criati- tiguidade. Há consenso entre os estudiosos de
vos lançam mão para despertar sentimentos po- que foi Platão, em Filebo (366-365 a.C.), quem
sitivos na audiência. E tais sentimentos podem primeiro se preocupou em compreender o riso,
ser capazes de desencadear determinados pro- concebido como algo negativo e reprovável. Mas
cessos cognitivos que levem o consumidor po- é com Aristóteles, Cícero e Quintiliano que sur-
tencial a comprar o produto ofertado. Ao menos, gem as duas grandes categorizações do riso
é isso que esperam os anunciantes. (que perduram até hoje): o humor das ações e
O presente trabalho propõe investigar como se o humor das palavras. Remonta também a essa
dá a orquestração dos diversos modos semióti- época a máxima aristotélica: “o homem é o úni-
cos (palavra, imagem, som, etc.) para provocar co animal que ri”.
esse efeito de comicidade nos anúncios publi- Mais adiante, as informações sobre o humor
citários veiculados pela TV ou na internet. De medieval nos chegam através de Bakhtin (1996),
modo particular, interessa-se estudar de que que nos descreve o riso plebeu grotesco e ale-
maneira o humor político – tal como definido gre nas várias festas ‘religiosas’ da Idade Mé-
por Raskin (1985) – é incorporado na publici- dia. Já no racionalismo renascentista, buscam-
dade com o propósito de engajar o consumidor -se explicações para os aspectos fisiológicos do
numa crítica atual e bem-humorada ao cenário riso, e constatam-se as suas propriedades ‘te-
das eleições presidenciais brasileiras de 2014 e, rapêuticas’. Com Hobbes, Kant e Schopenhauer,
simultaneamente, agregar um valor positivo ao corrobora-se a ideia platônica de que o riso
produto ofertado. encerra agressividade, pois quem ri desvela as
Uma vez que, no momento em que escrevo este fraquezas do outro, colocando-se num plano de
artigo (outubro/2014), estamos em plena disputa superioridade (Alberti, 1999).
eleitoral, é claro que este é um tema recorrente No século XX, três grandes pensadores são res-
nos bate-papos, nas redes sociais, na mídia em ponsáveis por estudar o riso: o filósofo francês
geral e evidentemente também no universo pu- Henri Bergson, o fundador da psicanálise Sig-
blicitário. Para corpus de análise, portanto, se- mund Freud e o filólogo russo Wladimir Propp.
lecionei uma campanha publicitária do site dos Em 1899, ao publicar sua famosa obra O riso,
produtos Bombril, que traz uma série de três Bergson (2001) produz o primeiro tratado con-
paródias aos três candidatos a presidente com temporâneo sobre o humor, sofrendo grande in-
maior representatividade – Dilma Rousseff (PT), fluência platônica. Isso se revela na medida em
Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB). que muitas das leis propostas pelo filósofo para
Mas antes, para compreendermos melhor como explicar a comicidade decorrem da antinomia
operam esses anúncios publicitários que veicu- corpo x alma: o risível é facilmente criado quan-
lam o humor político, é necessário discutirmos do a alma se rende aos imperativos do corpo.
primeiramente o que é humor. É o que faremos O estudioso entende que a comicidade – e, por
no próximo tópico. extensão, o riso – constituem manifestações ti-
picamente humanas. Para Bergson (2001), o riso
2. Abordagens teóricas do humor é, antes de tudo, uma correção. Feito para humi-
lhar, o riso inflige uma espécie de pena à pessoa
Atualmente, são diversos os campos científicos que é objeto de escárnio, já que não traz consigo
que se dedicam a examinar como e por que ocor- nenhum traço de simpatia ou bondade. No fim
re o humor. A Sociedade Internacional de Estu- das contas, a sociedade se vinga, por meio do
dos do Humor (originalmente, The International riso, de todas as liberdades que lhe foram toma-
Society for Humor Studies – ISHS), por exemplo, das pelas autoridades.
consiste em uma organização acadêmica e pro- Freud (1996), por sua vez, em seu trabalho Os
fissional dedicada ao tema, sendo formada por chistes e sua relação com o inconsciente, data-
membros das Ciências Sociais, Biológicas, das do originalmente de 1905, ao buscar interpretar
Artes e Humanidades e da Educação 39. No en- os sonhos, realiza a instigante análise dos chis-
tanto, até se chegar a esse ponto, foi necessário tes retóricos. Aqui, o elemento verbal é a face
percorrer uma trajetória milenar entre os au- mais observável da simbologia dos sonhos e da

Conforme informações do site da ISHS: <http://www.hnu.edu/ishs/> (acesso em: 15 out. 14).


39

132
relação riso / inconsciente. Para o ‘pai da Psi- Fauconnier e Mark Turnner para explicar que o
canálise’, o humor é uma válvula de escape se- humor na charge – e, por conseguinte, qualquer
gura e socialmente aceita que permite o alívio tipo de humor – não tem base na ‘incongruência’
de sentimentos proibidos. Freud (1996) pondera (como rezam as teorias clássicas sobre o assun-
que os chistes tendenciosos são utilizados parti- to), mas sim numa ‘mescla’ de diversos elemen-
cularmente para dar vazão à agressividade ou à tos cognitivos.
crítica contra pessoas que estejam em posições Paralelamente, uma concepção dialógica tam-
elevadas, que reivindicam para si o exercício da bém pode ser adotada para análise do discurso
autoridade. O chiste representa, pois, uma re- humorístico. Aqui, a ênfase recai sobre o estudo
belião – socialmente sancionada – contra essa do espaço discursivo do interdiscurso, encara-
autoridade, uma liberação de sua pressão. do como uma dimensão ideal a partir da qual é
Por fim, Propp (1992) lança em 1946 seu estu- possível “descrever e interpretar o humor como
do Comicidade e riso, mostrando a força do riso um procedimento de sentido, como um ‘efeito
como arma mobilizadora. Para o autor, o riso de sentido’ [...]” (Gomes, 2012, p. 49). Trazendo-
é uma ‘arma de destruição’: ele destrói a fal- -se a abordagem para o objeto investigado neste
sa autoridade daqueles que são submetidos ao artigo, Possenti (2007) argumenta que os cam-
escárnio. De acordo com Propp (1992), uma das pos publicitário e humorístico são os que mais
formas de tornar uma pessoa objeto de escár- claramente se fundam na manutenção ou na re-
nio se dá por meio da paródia: é o riso satírico, tomada de valores estereotipados ou utópicos.
de derrisão. Nesses casos, há um exagero das Vale (2012, p. 73) concorda com esse ponto de
marcas individuais da pessoa objeto do riso, tor- vista: “o discurso publicitário, dissimulado no
nando-as cômicas justamente ao revelar suas discurso humorístico, fortalece a noção de es-
fragilidades. Segundo o filólogo, para criar esse tereótipo associada à noção de pré-construído,
efeito satírico, é possível parodiar tudo: “os mo- pelo viés da memória discursiva”.
vimentos e ações de uma pessoa, seus gestos, o Independentemente do ponto de vista teóri-
andar, a mímica, a fala, os hábitos de sua profis- co adotado, no entanto, é fato que o humor se
são e o jargão profissional” (Propp, 1992, p. 84). revela um elemento frequentemente utiliza-
Só a partir das últimas décadas do século XX é do pelas empresas para vender seus produtos
que surgem as teorias propriamente linguísti- (Weinberger e Spotts, 1989; Spotts, Weinberger
cas do riso. A obra fundadora dessas correntes e Parsons, 1997). Todavia, o componente cômi-
é Semantics mechanisms of humor, do linguista co não é aplicado diretamente ao produto, isto
russo, radicado nos EUA, Victor Raskin (1985). é, o artigo ofertado não é, via de regra, satiri-
Todos os pesquisadores do humor que vieram zado. Antes, ele é associado a alguma situação
a partir de então sempre retomam, direta ou ou personagem engraçada/estereotipada ou a
indiretamente, a Teoria Semântica dos Scripts algum discurso divertido – tal como uma pia-
de Raskin para a análise, sobretudo, de piadas – da, um trocadilho, etc. –, com o fim de captar a
desde Chiaro (1992) a Attardo (1994), chegando atenção da audiência, cativar sua simpatia e tor-
inclusive a Possenti (1998 e 2002). Uma das prin- ná-la predisposta à aquisição do bem ou serviço
cipais contribuições Raskin (1985) foi perceber o (Newman, 2004; Weiner, 2006).
humor como sendo construído a partir de uma Esse é o fator diferencial almejado pelas agên-
sobreposição ou incongruência de dois scripts cias de propaganda: construir uma peça publi-
(modo bona fide e non-bona fide). A mudança de citária que proporcione entretenimento ao pú-
um script para outro, acionada por um ‘gatilho’, blico, mas, ao mesmo tempo, seja efetiva em
é que garante o efeito de comicidade das piadas. seu objetivo final de persuadir o consumidor a
A ótica sociocognitiva, no entanto, questiona comprar. E dentro do contínuo processo de glo-
essa noção de sobreposição de scripts. Marcus- balização que vivenciamos e que nos conduz a
chi (2005, p. 9) argui que “a ideia de integração anúncios progressivamente mais pasteurizados
conceitual como caminho para a explicação do e parecidos entre si, é fundamental que o cria-
surgimento do humor no lugar da noção de in- tivo tenha sensibilidade para imprimir a dose
congruência deverá impor-se como a mais ade- certa humor para escapar da mesmice e das es-
quada”. Assim, também no entendimento de tratégias formulaicas da publicidade tradicional.
Pagliosa (2005), a construção dos sentidos hu- Para compreendermos como isso se manifesta,
morísticos advém de operações sociocognitivas torna-se imprescindível examinar o cenário do
imbricadas – e não incongruentes –, necessá- universo publicitário na contemporaneidade e
rias não só para a produção do humor, mas tam- a sua recente crise. Esse é o tema do próximo
bém para a sua compreensão. A estudiosa lança tópico.
mão da Teoria dos Espaços Mentais de Gilles

133
3. A publicidade hoje ria. A noção de cenário híbrido na comunicação
não é, aliás, recente. Já nos anos 1970, Bakhtin
A publicidade vem passando por um profundo (1981[1975], p. 358) assim definia a hibridização:
processo de transformação. As mudanças nos
hábitos dos consumidores, provocadas sobretu- [...] é uma mistura de duas linguagens
do pelo advento da internet e de novas mídias sociais dentro dos limites de um único
mais interativas, tornam urgentes a revisão e a enunciado; um encontro, dentro da are-
substituição de paradigmas tidos como clássi- na de um enunciado, entre duas cons-
cos. Alguns estudiosos chegam a afirmar que ciências linguísticas diferentes, separa-
a indústria da propaganda está “em colapso” das uma da outra por uma época, pela
(Donaton, 2007, p. 23). Outros, mais cautelo- diferenciação social ou por algum outro
sos, reconhecem o avanço provocado pela in- fator.
corporação da tecnologia digital à publicidade,
mas asseveram que “muitas águas vão rolar até Na contemporaneidade, a discussão foi apro-
mudar o cenário atual” (Carvalho, 2014, p. 35). fundada por García Canclini (2013). Para o an-
Em todo caso, cabe refletirmos sobre o que está tropólogo argentino, a hibridação consiste em
acontecendo. “processos socioculturais nos quais estruturas
Durante muitos anos, o modelo paradigmático ou práticas discretas, que existiam de forma se-
adotado pelo meio publicitário foi o “da intru- parada, se combinam para gerar novas estrutu-
são” (Donaton, 2007, p. 27). Em linhas gerais, ras, objetos e práticas” (García Canclini, 2013, p.
esse modelo concebia o consumidor como um XIX). De acordo com o estudioso, a hibridização
mero receptor passivo da mensagem publici- surge da criatividade tanto individual quanto co-
tária. Esta, por sua vez, deveria ser facilmen- letiva, podendo se manifestar nos mais diversos
te assimilável e recebida ‘gratuitamente’ nas campos: nas artes, na vida cotidiana e no de-
residências, adulando a prostração do público senvolvimento tecnológico. O autor destaca que
diante do rádio ou da TV. No entanto, esse qua- para analisar esse fenômeno, é imprescindível
dro passa a se alterar com a intensificação do situá-lo em meio às ambivalências da industria-
processo de globalização nos anos 1990, acom- lização e da massificação globalizada dos pro-
panhado pela crescente facilidade de acesso à cessos simbólicos e dos conflitos de poder que
tecnologia, o que resultou em significativas mu- acarretam.
danças sociais, políticas, culturais e econômicas García Canclini (2013) ressalta ainda a utilidade
na atualidade. da noção de hibridização diante de outros con-
Sob o ponto de vista do mundo dos negócios, a ceitos afins, porém mais restritivos. É o caso de
principal transformação se deu no papel do con- mestiçagem, normalmente associada a fusões
sumidor. Como atesta Covaleski (2010, p. 22), raciais ou étnicas, e de sincretismo, ligado às
“parte dos consumidores atuais é que está di- crenças e ideologias. Já hibridização abarca não
tando o que a indústria deve produzir”. Consta- só esses aspectos, mas também as combina-
ta-se, assim, o progressivo empoderamento de ções de produtos das tecnologias avançadas e
uma parcela do público, normalmente constitu- processos sociais modernos ou pós-modernos,
ída por jovens já bem familiarizados com a in- bem como as misturas interculturais. O pesqui-
ternet e com dispositivos eletrônicos em geral. sador ainda salienta a necessidade de que os
Em outras palavras, esses novos consumidores estudos sobre a hibridização não se limitem a
possuem agência – no sentido sociológico do descrever as fusões ocorridas. Antes, deve ser
termo (Fairclough, 2001) –, na medida em que conferido às análises um “poder explicativo”,
deixam de ser vistos como receptores passivos situando os processos de hibridização em rela-
de conteúdo para desempenharem o papel de ções estruturais de causalidade, e também uma
coprodutores de sentidos das mensagens, cons- “capacidade hermenêutica”, interpretando as
tituindo elos fundamentais na cadeia da comuni- relações de sentido então reconstruídas (García
cação publicitária. Canclini, 2013, p. XXIV).
Mas o consumidor não é o único elemento des- Covaleski (2010), por sua vez, traz o assunto
se contexto a se modificar. Para atender às no- para o universo da propaganda, lançando um
vas demandas e desafios, a própria publicidade olhar minucioso acerca das novas configurações
também tem de passar por mudanças. Segundo publicitárias. O estudioso inicia sua exposição
Santaella (1992), o atual cenário tornou-se híbri- contextualizando o atual momento da publicida-
do, viabilizando a convivência da mensagem oral de e discutindo as significativas transformações
e da escrita com a cultura de massas e as mídias percebidas por meio das rupturas de padrões
eletrônicas, resultando em uma convergência entre o modelo convencional e as configurações
midiática, que atinge a mensagem publicitá- emergentes. Nesse cenário instável e de profun-

134
das mudanças – em ‘tempos de tesarac’, para cas observáveis no texto humorístico
usar o termo cunhado por Shel Silverstein (cf. (situação, evento, imagens, discurso,
Covaleski, 2013) – a propaganda tradicional vem etc.) evocam dois diferentes ‘planos
cada vez mais dando sinais de esgotamento e de de conteúdo’ / ‘linhas de pensamen-
não dar conta das novas exigências do mercado. to’ – o que é chamado nos trabalhos
Com o novo consumidor ou prosumer (Toffler, mais recentes de frames, esquemas,
2012) assumindo as rédeas do mercado, cou- scripts, etc. Estes dois ‘planos’ são,
be à publicidade rever antigos dogmas para se em tese, incompatíveis entre si. No
manter relevante na atual cultura midiática. A entanto, possuem uma determina-
solução encontrada se deu no processo de hi- da parte comum, fazendo com que a
bridização entre três atores do ambiente me- mudança de um para outro se rea-
diático contemporâneo: o mercado publicitário, lize através de um ‘gatilho’. O leitor/
a indústria do entretenimento e as tecnologias ouvinte começa processando o texto
interativas. Donaton (2007) relaciona uma série através do script mais acessível, mais
de exemplos em que as fronteiras entre esses saliente, e é surpreendido com uma
três domínios são ultrapassadas: a publicidade nova interpretação provocada pela as-
de longo formato, a integração de mensagens sociação a outro elemento inesperado
publicitárias em programas com ou sem roteiro no texto. É esse efeito surpresa que
fixo, a integração de produtos em filmes (pro- irá provocar o riso.
duct placement), as parcerias com a indústria
musical (tie-ins) e os programas financiados por b) Teorias da superioridade ou deprecia-
anunciantes (branded content/entertainment). ção ou crítica ou hostilidade: essas te-
Covaleski (2010) ainda acrescenta a essa lista as orias enfatizam a atitude (negativa) do
ações publicitárias híbridas (em especial aque- produtor do humor diante de seu alvo.
las suportadas pelas mídias digitais), denomi- É justamente esse componente mor-
nadas pelo autor de entretenimento publicitá- daz e sarcástico diante de uma deter-
rio interativo. Esses novos produtos midiáticos minada pessoa ou grupo – tipicamen-
procuram estabelecer uma relação não entre te, políticos, comunidades étnicas,
marca e produto, mas sim entre marca e con- diferenças de gêneros masculino x
teúdo de interesse do consumidor. Para tanto, feminino – que são responsáveis pela
adotam um novo modelo de composto comuni- produção do efeito cômico no texto.
cativo capaz de atender às seguintes funções c) Teorias do alívio ou relaxamento: são
básicas: anunciar e induzir ao consumo (função tipicamente as teorias psicanalíticas
persuasiva); entreter e fazer que o consumidor freudianas. Essa classe de teorias é
se sinta engajado ao produto (função entretível); centrada principalmente no leitor/ou-
promover a interatividade humana, entre pessoa vinte, ou mais especificamente, nos
e máquina e entre máquinas (função interativa); efeitos psicológicos provocados pelo
viabilizar o compartilhamento, a partir do enfo- humor nessas pessoas. Freud (1996)
que do ‘efeito viral’ (função compartilhadora). considera o humor como um dos cha-
É a partir, portanto, desse marco teórico que mados ‘mecanismos de substituição’
analiso no próximo item os anúncios veiculados que permitem converter os impulsos
na TV e/ou na internet. agressivos e socialmente condenáveis
em impulsos aceitáveis (isto é, em
4. Analisando a construção multissemiótica do riso), evitando-se assim o desperdício
riso em peças publicitárias adicional de energia mental para re-
primir aqueles impulsos-tabus. Para
4.1. Alguns comentários iniciais
as essas teorias, o elemento central
Tendo em vista o que foi discutido anteriormente do humor não se encontra na sensa-
no item 2 do presente artigo, é possível, em re- ção de superioridade ou na percepção
sumo, dividir as principais teorias do humor em de incongruências, mas sim na sensa-
três grandes vertentes: ção de alívio provocada pela remoção
de barreiras (ainda que temporária).
a) Teorias da incongruência ou incon-
sistência ou contradição: essas teo- Vistas resumidamente essas três grandes visões
rias são essencialmente cognitivas, teóricas sobre o humor, vale retomarmos aqui, a
ou seja, elas partem do princípio de fim de compreendermos como se dá a produção
que algumas características empíri- do efeito cômico especificamente na campanha

135
publicitária que irei analisar, a categorização te- ples que a do humor sexual e do humor étnico. A
mática proposta por Raskin (1985), revisitada e mensagem típica de uma piada desta categoria
aplicada ao domínio da propaganda por Gulas e é que um líder, figura ou grupo político – jun-
Weinberger (2006). Esses autores afirmam que to com seus ideais e com o sistema de governo
as estratégias de humor “sugeridas por Raskin defendido – não são o que deveriam ou parecem
estão presentes em grande parte da publicidade ser. A oposição de scripts entre o que eles são e
que objetiva ser engraçada” (Gulas e Weinber- o seu oposto é o que produz a comicidade.
ger, 2006, p. 24). Em linhas gerais, Raskin (1985) É justamente esse humor político que dará o
assevera que o humor é construído basicamente tom na campanha dos produtos Bombril, sele-
a partir de três temas principais: sexo, etnia e cionada para análise.
política.
No humor sexual, o estudioso distingue o pa-
drão de oposições de discursos entre relações 4.2. O Bombril e o riso eleitoral
com o sexo em geral e a sua negação. Esse tipo
de humor também pode fazer a associação de A campanha da marca Bombril é tipicamente
uma significação sexual com uma não-sexual, um produto híbrido, na medida em que orques-
ou mesmo fazer referência a algo obsceno, seja tra discursos dos domínios artísticos, jornalís-
foneticamente, textualmente ou visualmente. ticos, políticos e culturais, numa bem-sucedida
Em linhas gerais, incluem-se nesta categoria combinação entre entretenimento e publicidade,
todas as piadas que contém uma referência ex- além de estimular a interação entre a marca e
plícita ou implícita ao ato sexual e/ou aos órgãos seus consumidores, bem como entre os espec-
genitais ou excretores, normalmente conside- tadores dos anúncios, sobretudo através dos ví-
radas ‘sujas’ ou de baixo calão. Segundo Raskin deos passíveis de serem comentados e compar-
(1985), esse tipo de humor está tradicionalmen- tilhados na plataforma YouTube. Vejamos como
te relacionado às teorias psicanalíticas do alívio, isso se dá através do site da marca (Figura 1).
uma vez que o sexo é, em grande parte da socie-
dade, considerado um tabu a ser suprimido ou Figura 1. O site dos produtos Bombril
reprimido. O discurso humorístico constituiria,
assim, uma estratégia social e eticamente acei-
ta para dar vasão a esses impulsos fisiológicos.
No que diz respeito ao humor étnico, as oposi-
ções estão associadas às formações sociais/
discursivas dos produtores do texto, e habitual-
mente relacionadas a estereótipos do que seria
uma etnia ‘boa’ ou ‘má’ (i.e., cheia de defeitos,
vícios, cacoetes, etc.). Grande parte das piadas
étnicas – concernentes a povos de outros paí-
ses ou a minorias – possui, pois, um efeito de
sentido depreciativo. Não raro, a ‘deformidade
linguística’ é construída na fonologia (através
de sotaques marginalizados ou de registros
estereotipados de um certo grupo considerado
inferior: ‘a fala do gay’, ‘a fala da mulherzinha’,
‘a fala do malandro’, etc.) inserida pelo gatilho Fonte: http://www.bombril.com.br (acesso em: 15 out. 2014).
imprescindível para o estabelecimento das opo-
sições de identidade, bem como da superiorida- A publicidade da marca Bombril consiste em
de e do autoenaltecimento de um grupo sobre uma comunicação por conteúdo ou branded
outro. content: “conteúdo publicitário constituído de
Quanto ao humor político, Raskin (1985) o define narratividade e que mimetiza produtos midiáti-
como sendo o discurso jocoso e trocista direcio- cos de entretenimento” (Covaleski, 2010, p. 49).
nado a autoridades e líderes do governo, a polí- O objetivo aqui é estabelecer uma relação que
ticos de carreira, a grupos ou partidos políticos, agregue os proveitos advindos da apresentação
etc. Além disso, ideias políticas, bem como toda entretível à marca. Dessa forma, ao integrar o
a vida das sociedades sob um determinado re- entretenimento à marca do anunciante, esse
gime político também podem ser alvo do humor tipo de publicidade propicia uma aproximação
dessa natureza. Segundo o linguista, a estrutu- entre consumidor e produto, criando uma ‘iden-
ra do humor político é relativamente mais sim- tidade marcária’ positiva e atraente. Ao contrá-
rio dos bruscos intervalos comerciais da TV, a

136
audiência pode usufruir cômoda e ininterrupta- Rede Bandeirantes, e ex-âncora do “Furo MTV”
mente do programa em que se encontra intro- – ambos apoiados no humor jornalístico.
duzida a branded content. De acordo com Cova- O “Jornal 1001” sempre inicia com um voz mas-
leski (2010, p. 50), culina em off anunciando em tom zombeteiro:
“atenção emissoras 1001 para o top das 5 uti-
a branded content vai além do simples lidades Bombril que você não conhecia”. Entre
patrocínio, que acrescenta o logotipo do tais “utilidades”, são citadas, por exemplo: lus-
anunciante a um evento; envolve corre- trar a moeda do Tio Patinhas, fazer uma nuvem
lacionar a marca à ideia criativa, junto bem escura e torcer para que chova no reserva-
com os produtores. É um esforço de co- tório da Cantareira, fazer o moicano do Neymar,
laboração, a fim de trazer aos consumi- criar uma coroa de imperador romano, entre
dores dos produtos midiáticos de entre- muitas outras brincadeiras com a famosa palha
tenimento – como filmes, séries de tevê, de aço. Em seguida, Moreno e Calabresa apre-
animações, entre outros – o que dese- sentam uma divertida sequência de notícias ab-
jam, no formato que lhes mais agrada. surdas acompanhadas de comentários espiritu-
No caso dos produtos Bombril, dentre as estra- osos, muitas vezes com participação de pessoas
tégias comunicativas empregadas, a que mais opinando nas ruas.
ganhou destaque foi a adaptação dos comerciais Aproveitando o contexto da disputa eleitoral à
televisivos tradicionais da marca – estreladas presidência (outubro/2014), um outro quadro
pelo seu eterno garoto-propaganda, o ator pau- humorístico foi inserido no “Jornal 1001”. Tra-
lista Carlos Moreno – à internet. Em 2007, após ta-se da “Entrevista com os presidenciáveis”,
participar de cerca de 340 inserções como ‘Ga- em que Carlos Moreno incorpora comicamente
roto Bombril’ em 26 anos, o ator teve seu con- cada um dos três principais candidatos ao cargo
trato amigavelmente rescindido.40 No entanto, – Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves – e
desde 25/04/2013, um novo comercial da Bom- é sabatinado por Dani Calabresa e pelo público
bril (criado pela agência DPZ) começou a ser (Figura 2). O conceito proposto é: “Os números
veiculado, com Carlos Moreno à frente de uma comprovam: só Bombril cresce nas pesquisas
‘bancada jornalística’ bem-humorada, acompa- há mais de 65 anos”.
nhado da comediante Dani Calabresa.
Figura 2. O ator Carlos Moreno interpretando os
O site da Bombril constitui um ambiente flagran-
candidatos à presidência Dilma Rousseff, Ma-
temente hipermidiático – nos termos propostos
rina Silva e Aécio Neves, para a publicidade da
por Bairon e Petry (2000) – uma vez que conju-
Bombril
gam uma série de documentos, textos, imagens,
sons em um único espaço de informação digital.
A partir da página principal, é possível ter aces-
so, por exemplo, às novidades apresentadas por
Luciana Gimenez em seu programa na Rede TV
(“Luciana by Night”), a um vlog de humor pro-
tagonizado pela atriz Monica Iozzi (“Virozzi”), ao
quadro televisivo “A melhor doméstica do Brasil”
(exibido no Programa Raul Gil), a participações
da cantora Ivete Sangalo em ações da Bombril
(“Rede Ivete” e “Dança da Limpeza”), além de di- Fonte: http://www.bombril.com.br (acesso em: 15 out. 2014).
cas de limpeza doméstica e de oferta de cursos,
entre várias outras atrações e recursos. As campanhas de mídia impressa e internet da
Mas sem dúvida alguma, um dos principais car- Bombril foram elaboradas pela Agência Repen-
ros-chefes do site em termos de apelo público se, com direção de Daniel Chagas (Criação) e
é o “Jornal 1001”, uma debochada paródia aos Luti Nobre (Arte), com fotos de André Schiliró e
tradicionais jornais da televisão. A atração da TV produção da Zoe Films. As peças relembram os
Bombril é estrelada pelo ‘Garoto Bombril’ Carlos anúncios da empresa em que o ‘Garoto Bombril’
Moreno e pela humorista Dani Calabresa, nome se caracterizava de celebridades como Xuxa,
artístico de Daniella Giusti Adnet, apresentado- Pelé, Ana Maria Braga, entre outros. De acor-
ra do programa “Custe o Que Custar” (CQC), da do com Cristiane Ferreira Fortunatti, gerente

40
Conforme informações do site da revista World Tennis (ano X, n.º 67, 2004). Disponível em: <http://www.wtennis.com.br/html/revis-
tas/67/carlos.htm>. Acesso em: 15 out. 2014.

137
de Marketing da Área de Negócios, Lavanderia, Aliás, como pondera Raskin (1985, p. 223), “pia-
Cosméticos e Institucional da Bombril:41 das denigrindo a figura política constituem o
tipo mais popular e universal de humor político,
Faz parte da tradição da Bombril usar o o qual é baseado na simples oposição entre um
humor como uma forma de tornar mais script e sua negação direta”. O linguista esclare-
leve as situações do dia a dia do brasilei- ce que o script aqui é o de que uma certa pessoa
ro e, em um momento tão decisivo para ocupando um posto político seja boa, convenien-
o País como as eleições presidenciais, te e adequada para o cargo, enquanto a negação
não poderia ser diferente. Trouxemos do script é, evidentemente, que a pessoa seja o
o Carlinhos Moreno para viver estes oposto disso: ignorante, incompetente e inapta
candidatos. [...] [Também] trouxemos para ocupar uma posição de autoridade e lide-
o mesmo maquiador das campanhas rança.
passadas, Hamilton Franco, para ca- O primeiro candidato interpretado por Carlos
racterizar o Carlinhos. O resultado ficou Moreno para a entrevista no “Jornal 1001” é o
fantástico. ex-governador mineiro Aécio Neves (PSDB)42.O
Os anúncios começaram a ser veiculados nas mote principal para construir um humor deni-
principais revistas e jornais do Brasil no final de gritório acerca do político é zombar da sua ima-
setembro/2014. Logo em seguida, ganhou mais gem de playboy, galanteador e bon vivant. Essa
fôlego com a inserção das mídias online, como imagem constitui um ethos prévio (Mainguene-
explica Marcos Santana, gerente de Marketing au, 2006) reiterado frequentemente, sobretudo
da Área de Limpeza do Lar da Bombril e respon- nas redes sociais e em conversas informais, e
sável pela estratégia digital da empresa:42 do qual o político sempre tenta se esquivar, tal
como no vídeo da TV Bombril. No imaginário co-
Vamos fazer um trabalho forte em nos- letivo, atribui-se a ele o papel de usuário abusivo
sos canais na internet, tanto nas redes de drogas lícitas (álcool) e ilícitas (cocaína), bem
sociais, quanto na TV Bombril, que é a como de habitué de festas promovidas por cele-
nossa plataforma de conteúdo digital, bridades.
com episódios semanais de entrevistas O conflito de scripts entre o candidato sério x
dentro do nosso ‘Jornal 1001’. Os princi- o homem festeiro e conquistador é explorado
pais telejornais brasileiros estão entre- desde o início da entrevista, com Dani Calabre-
vistando os candidatos e a TV Bombril sa flertando descaradamente com Aécio, o qual
não poderia ficar de fora. Por isto, a Dani corresponde à investida com toques e olhares
Calabresa, com muito humor e irreve- provocativos. O político também joga charme
rência, conversa com os candidatos, ou para a câmera ao afirmar que não tem prefe-
melhor, com o Carlinhos Moreno carac- rência por loura ou morena: gosta de “todas as
terizado como os ‘Presidenciáveis’. eleitoras do Brasil”. A cada momento em que
Aécio parece querer dizer algo sério, ele é in-
Quanto ao tipo de humor político produzido es- terrompido pelas insinuações da entrevistadora:
pecificamente nessa campanha, é importante “Eu queria saber: além de política o que mais
retomarmos Raskin (1985) para apreendermos você gosta de fazer? [...] Futebol, você gosta?
melhor essa questão. Para o estudioso, a comi- Cinema... gosta de cinema? Cachorro? Vem cá,
cidade política pode ser dividida em duas clas- você pretende ter mais filhos?”; “E balada? Você
ses básicas: o humor denigritório e o humor gosta de balada? Porque eu já vi umas coisas
expositivo. No primeiro caso, estão as piadas, na internet... Você vai ficar aqui em São Paulo
as caricaturas, os chistes, etc. que denigrem hoje? Tem vários lugares legais. [...] Você já tem
uma pessoa, um grupo, uma ideia; já no segun- algum programa?”; “Não estou falando desse
do caso, o alvo são os regimes políticos como tipo de programa [de governo], estou falando
um todo, buscando-se expor criticamente algum de festa, de agito, curtição... Cadê seus amigos
acontecimento que tenha sido suprimido ou não famosos?”; “O Luciano Huck é brother mesmo?
divulgado pelo regime. E o Ronaldo ainda pega geral ou deu uma acal-
Na campanha do Bombril, a ênfase recai sobre mada?”.
a primeira classe de humor político, ao escar- Já a segunda candidata incorporada por Carlos
necer dos candidatos à presidência do Brasil. Moreno para a entrevista no “Jornal 1001” é a

41
Conforme informações divulgadas através do site Grande Nomes da Propaganda (Disponível em: <http://www.grandesnomesdapropa-
ganda.com.br>. Acesso em: 15 out. 2014). 42Conforme informações divulgadas através do site Grande Nomes da Propaganda (Disponível
em: <http://www.grandesnomesdapropaganda.com.br>. Acesso em: 15 out. 2014).43Jornal 1001 Bombril – Episódio 16: Eleições com
Aécio Neves (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6Rl1eKOhJMA>. Acesso em: 15 out. 2014).

138
atual presidente, Dilma Rousseff (PT)43. Dessa rapidamente de opinião quanto à temperatura
vez, a estratégia humorística denigritória con- do estúdio. Suas falas são marcadas pela indefi-
siste em construir uma personagem exagerada- nição de convicções e o efeito humorístico é am-
mente eloquente e verborrágica, que pronuncia pliado com a ambiguidade da palavra meio (meio
seus discursos com uma expressão sisuda e que ambiente ou nem de direita, nem de esquerda?):
olha seus interlocutores com ar de superiorida- “Eu gostaria de dizer ao eleitor que sou uma
de e impaciência, sobretudo quando interrompi- candidata do meio. Não vou optar nem por um
da ou confrontada pela imprensa (representada lado nem pelo outro. Vou lutar pela união de
aqui pela entrevistadora). todos os diferentes pontos de vista.”; “Não sou
A contradição de scripts entre a presidente com- nem contra nem a favor. Eu não diria [que vou
petente e bem articulada e a candidata irritadiça ficar] em cima do muro, mas equilibrada sobre
e prolixa é produzida a partir do discurso empo- este muro que divide o Brasil ao meio, pra poder
lado de Dilma, acompanhado pelo rosto carran- enxergar tudo lá de cima.”; [Não seria melhor
cudo e uma entonação exasperada: “Acompanhe derrubar o muro?, pergunta a entrevistadora]
o meu raciocínio. O não poder é uma escolha “Não, mas o muro também tem direito de exis-
individual de cada um para si mesmo. Contudo, tir. No meu governo, todos serão ouvidos: as ár-
entretanto, no meu governo, o não poder será o vores, as formiguinhas, os gnomos, até mesmo
mais erradicado da história deste País. Nunca na os muros.”; [Candidata, qual a sua pizza preferi-
história deste País, essa afirmação foi tão ver- da: calabresa ou mozarela?, pergunta um rapaz
dadeira.”; “Contudo, entretanto, apesar de ou- nas ruas] “Mozarela. [Ao que a entrevistadora,
trora – espere eu acabar o meu raciocínio! – veja Dani Calabresa, retruca: poxa, candidata!] Não,
bem...”; “[Sobre reeleição] Eu acredito que todo não, calabresa. Na verdade, eu prefiro calabre-
ser humano que tenha uma primeira chance e sa, sempre gostei.”
não consiga alcançar os seus objetivos merece,
sim, uma segunda chance e, por que não, uma 5. Considerações finais
terceira chance, milhares de chances, quan-
do essa pessoa precisa ter uma oportunidade. Como observamos na campanha analisada
Portanto, contudo, todavia, eu vou, não obstante neste artigo, a branded content produzida pela
também, eu gostaria de acrescentar...”. Ao final Bombril constitui um poderoso recurso de co-
da entrevista, há uma reviravolta nesse script, municação publicitária, que alia entretenimento
provocando um riso imprevisto: Dani Calabresa à marca, com o propósito de desenvolver uma
oferece dois minutos para as considerações fi- ‘identidade marcária’ positiva e atraente para o
nais, mas Dilma – demonstrando evidente desa- público consumidor. Conjugando os objetivos da
grado – diz apenas um seco “Obrigada”, surpre- marca com o conteúdo entretível, o advertain-
endendo a entrevistadora (e os espectadores) ment – como também é chamado – busca es-
pelo súbito e inesperado laconismo. treitar os laços entre empresa e clientes, derru-
Por fim, a terceira candidata caracterizada por bando as fronteiras entre o comercial e o lazer.
Carlos Moreno para a entrevista no “Jornal Ao utilizar um tema atual e bastante discutido
1001” é a ex-ministra do meio ambiente Marina – as eleições presidenciais – e lhe conferir uma
Silva (PSB)44. Como recurso humorístico deni- boa dose de humor, fica clara a meta desse novo
gritório, lançou-se mão de uma das principais ‘composto comunicativo’ que orquestra entre-
críticas recebidas pela ambientalista ao lon- tenimento, publicidade e interatividade. Aqui o
go das campanhas e debates eleitorais: a sua consumidor exerce um controle bem maior so-
aparente falta de posicionamento firme sobre bre sua experiência com a marca: ele assiste
os temas discutidos. O episódio de voltar atrás quais vídeos quiser, no horário que lhe for mais
em alguns pontos do seu programa de governo, conveniente, na ordem que desejar, podendo
quando este já havia sido plenamente divulgado, ainda comentá-los e compartilhá-los através da
contribuiu ainda mais para a construção de uma plataforma de vídeos YouTube. Como resultado,
imagem negativa e insegura de Marina. é esperado que se estabeleça uma adesão emo-
A incongruência de scripts entre a mulher polí- cional do consumidor à marca, devido ao alinha-
tica contemporizadora e batalhadora pelo meio mento de valores entre esses agentes.
ambiente e a candidata volúvel e inconstante é O humor político na campanha opera, pois, não
criada já na cena de abertura, quando ela muda como mero elemento acessório. Antes, o ‘riso

43
Jornal 1001 Bombril – Episódio 16: Eleições com Aécio Neves (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6Rl1eKOhJMA>.
Acesso em: 15 out. 2014).44Jornal 1001 Bombril – Episódio 17: Eleições com Dilma Rousseff (Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=2AydaZbSfE0>. Acesso em: 15 out. 2014).

139
em comum’ é um componente fundamental para de cumplicidade entre a marca e os espectado-
tornar a audiência ainda mais envolvida afetiva- res – ‘estamos rindo juntos da mesma coisa’ – a
mente com o conteúdo e, assim, com a marca. qual se espera que se transforme em elevada
Ao satirizar os discursos e comportamentos dos consideração e fidelidade aos produtos da em-
presidenciáveis, funda-se uma espécie relação presa.

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RESUMO

141
O LÚDICO NA PRÁTICA DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA:
UMA ANÁLISE

Mara Sílvia Jucá Acácio45

Este trabalho apresenta os resultados de uma para a formação da criança. No entanto, consi-
pesquisa de campo realizada com professores derando (SEB, 2012) “a ludicidade como instru-
de Língua Portuguesa e gestores de algumas mento pedagógico envolve o brincar de maneira
escolas públicas de ensino fundamental, no mu- séria e contribui para o desenvolvimento motor,
nicípio de Igarapé-Miri, no Estado do Pará, que cognitivo, afetivo e social para o educando”.
objetivou a investigação e análise da prática do-
cente no ensino-aprendizagem de leitura/letra- 1.2. A finalidade da aplicação do lúdico
mento a partir de estratégias lúdicas em sala de
aula. E justificou-se pela necessidade de verifi- Segundo Santos (1999) a função educativa do
cação de como a prática com o lúdico está sendo jogo oportuniza a aprendizagem do indivíduo,
exercida; visto que, a ludicidade é essencial na seu saber, seu conhecimento e sua compreen-
construção de uma aprendizagem efetiva, não são de mundo. Pois, a ludicidade como ciência
somente na educação infantil, mas em todas as é baseada em quatro eixos: o sociológico, por-
fases da vida escolar do aluno. Dessa maneira, a que qualquer atividade de cunho lúdico atende
utilização do lúdico contribui na formação de ati- uma demanda social e cultural; o psicológico,
tudes sociais, como o conhecimento de concei- porque se relaciona com o processo de desen-
tos, regras, normas e valores e auxilia na aquisi- volvimento e aprendizagem do ser humano em
ção da leitura significativa e letramento. Porém, qualquer idade; o pedagógico, pois se serve tan-
neste artigo não é possível a transcrição de to- to da fundamentação teórica existente como das
das as falas que ancoram as análises feitas. experiências educativas provenientes da práti-
PALAVRAS-CHAVES: Língua Portuguesa; Leitu- ca docente; e o eixo epistemológico, que possui
ra; Letramento; Ludicidade. fontes de conhecimentos científicos que susten-
tam o jogo como fator de desenvolvimento.
Diante disso, para Castro (2005) uma educação
1. REVISÃO DA LITERATURA eficaz é aquela que proporciona um ambiente
agradável, lúdico e prazeroso, tornando a aula
1.1. O lúdico numa perspectiva sócio-histórica mais significativa promovendo a troca de expe-
riências e o diálogo entre alunos e professores,
Conforme Kishimoto (1999, p.17) “Em tempos
e assim contribuindo para uma aprendizagem
passados, o jogo era visto como inútil, como
efetiva. Deste modo, o lúdico como recurso di-
coisa não séria”. Em contrapartida muitos estu-
dático aplicado em sala de aula propõe unir o
dos comprovam que o aprender brincando de-
útil ao agradável, ou seja, a ludicidade pode ser
sempenha um papel fundamental no processo
favorável para um ensino estimulante aliado
de ensino-aprendizagem da criança. De acordo
ao prazer e a descontração juntamente com a
com Vigotsky (1997) “O brincar é uma atividade
transmissão de conteúdos relacionados à leitu-
humana criadora, na qual a imaginação, fantasia
ra e interpretação.
e realidade interagem na expressão e de ação
Piaget (1994) afirma que os jogos infantis cons-
pelas crianças, possibilitando a relações sociais
tituem-se de admiráveis instituições sociais, e
com outros indivíduos”. Já para Cintra; Proença
que dessa maneira, as crianças desenvolvem a
& Jesuíno (2010) “as atividades lúdicas embora
noção de autonomia, de reciprocidade, de ganho
possam parecer um assunto supérfluo e com
e perda, respeito, entre outros, enfim são no-
pouca seriedade, o ato de brincar está muito
ções sociais que podem ser formadas na criança
presente no aspecto social e cultural desde os
a partir da ludicidade.
tempos passados e em outras civilizações”.
De acordo com Silva (2012) as atividades lúdi-
Santos (2014, p.15) afirma que as escolas que
cas propõem um ensino pragmático, onde a
mantem uma concepção da pedagogia tradicio-
criança desenvolve sua relação com a realida-
nal, se restringem ao uso de jogos e brincadei-
de social através de “dinâmicas ou desafios que
ras na educação, pois tratam a ludicidade como
exigem uma participação ativa da criança” e as-
se fosse algo desnecessário e com pouca impor-
sim oportunizam a convivência da mesma com
tância, sendo que essas atividades contribuem

Filiação institucional: Universidade do Estado do Pará / E-mail: maraju06@hotmail.com


46

142
outras pessoas diferentes de si, ou seja, por Segundo Silva (2002, p.16), o ambiente escolar
meio dessas atividades, as crianças aprendem é uma importante agência de alfabetização e
a compartilhar ideias, regras, objetos, superar letramento, entretanto, se a escola adotar uma
o egocentrismo solucionar conflitos e dessa for- leitura mecanizada as crianças podem se de-
ma tornar-se autônoma. sinteressar cada vez menos pela leitura, sendo
assim, a escola deve fugir desse tipo de leitura
1.3. A importância do lúdico no contexto da lei- e levar os alunos a uma compreensão sobre o
tura verdadeiro significado de ler. O autor (op. cit.) diz
ainda que o educador deve ter em vista que a lei-
Segundo o caderno do pró- letramento SEB tura deve ultrapassar os obstáculos das ativida-
(2008), a ludicidade é um meio de desenvolver des obrigatórias na escola, ou seja, o incentivo
nas crianças o gosto pela leitura, entretanto, deve ocorrer de forma que os conteúdos sejam
a escola deve oferecer meios e suportes para adequados às necessidades intelectuais de cada
o contato do educando com a leitura, por meio criança, ou seja, o docente precisa observar e
de incentivos, isto é, a leitura de um livro, uma estar atento às perguntas e as dificuldades que
revista de quadrinhos, um jornal, a socialização o aluno poderá apresentar durante o processo,
com os alunos na sala de aula ou na biblioteca, a portanto, é necessário interagir e direcionar os
partir disso, estimular o interesse da leitura no mesmos para o caminho da aprendizagem.
mesmo. Diante disso, o ato de ler sob o ponto de Desta forma, a utilização de jogos e brincadeiras
vista de uma prática dinâmica e lúdica é essen- auxilia o professor de Língua Portuguesa a pro-
cial para aprendizagem do aluno. mover o aprendizado de forma lúdica e dinâmica
Antunes (2011, p.15) ressalta que “as práticas da leitura em sala de aula, pois estimula o pra-
escolares e jogos pedagógicos podem ser usa- zer e o aprender, logo o educador pode apresen-
dos como meio de estimulo das inteligências tar aos seus alunos novas brincadeiras e adap-
linguísticas, logico-matemáticas, espacial, so- tá-las, assim possibilitando para os mesmos
nora, cinestésico-corporal, naturalista, intra- as práticas de letramento e ao mesmo tempo a
pessoal do aluno”. apropriação do sistema da leitura e escrita, ou
seja, o aprender brincando a fim de alfabetizar
1.4. O lúdico no contexto do letramento letrando.
Kishimoto (1999, p. 46) observa que é preciso
2. METODOLOGIA DA PESQUISA
exercitar o jogo simbólico e as linguagens não
verbais para que a própria linguagem verbal, so- Com esse estudo buscou-se identificar e anali-
cializada e ideologizada possa transformar- se sar a ludicidade como estratégia metodológica
em verdadeiro instrumento de pensamento. na prática de docentes de Língua Portuguesa,
Deste modo, é necessário propor atividades que em relação ao ensino-aprendizagem da leitura
levem os alunos a pensar, refletir, e produzir e letramento para alunos do Ensino Fundamen-
textos significativos em algum gênero textual tal, em escolas públicas do município de Igara-
em circulação na sociedade, pois segundo Vy- pé-Miri, no Estado do Pará. Assim, utilizou-se a
gotsky (1998, p. 156) “a leitura e a escrita deve aplicação de questionários do tipo entrevista à
ser algo que a criança necessite”. docentes e gestores de quatro escolas de Ensi-
Sendo assim, o ensino-aprendizagem do letra- no Fundamental I (1º ao 5º ano), a saber: Escola
mento necessita de estratégias pedagógicas de Ensino Infantil e Fundamental “Ebenezer”;
diferentes daquelas que se contentam com a Escola de Ensino Infantil e Fundamental “Altair
alfabetização básica, ou seja, é necessário de- Lemos Carneiro”; Escola de Ensino Fundamen-
senvolver atividades que estimulem o ensino da tal “Ana Dalila” e Escola de Ensino Fundamental
verdadeira leitura para o letramento, isto é, per- “Marilda Nunes”. E ainda, a docentes e gestores
mitir que a criança conheça diversos gêneros da Escola de Ensino Fundamental “Manoel An-
textuais. Deste modo, o lúdico é um método pe- tônio de Castro”, de Ensino fundamental II (6º
dagógico facilitador deste processo, pois propõe ao 9º ano). Para levantamento dos dados foram
trabalhar recursos textuais através de jogos, entrevistados cinco gestores e quinze professo-
dinâmicas e brincadeiras, dessa forma, contri- res, das escolas públicas acima referenciadas,
buindo para a capacidade de reconhecimento da no período de 25 de agosto a 19 de setembro de
variedade textual, desenvolvimento da compre- 2014. Para a realização da pesquisa foram uti-
ensão e prática social do educando. lizados dois questionários compostos por cinco
perguntas abertas dirigidas aos educadores, a
1.5. O papel do professor de Língua Portugue- fim de investigar a sua prática docente com o lú-
sa no ensino-aprendizagem do lúdico dico do 1º ao 9º ano, e outro questionário, com

143
quatro perguntas abertas relacionadas à ludici- cessivamente.
dade, dirigidas à coordenação pedagógica das Em resposta à primeira pergunta relacionada à
escolas pesquisadas. importância do lúdico na prática docente, todos
os professores de todas as séries consideraram
3. RESULTADOS DA PESQUISA que a prática do lúdico é de suma importância
3.1. Análise quantitativa das respostas dos para o processo de ensino e aprendizagem na
professores Língua Portuguesa e também para todas as de-
mais disciplinas.
Para levantamento dos dados foram elaborados No que diz respeito à pergunta sobre o trabalho
dois tipos de questionários, que foram apresen- com a ludicidade nas aulas de Língua Portugue-
tados à 15 professores de Língua Portuguesa do sa, que foi a segunda pergunta do questionário,
Ensino Fundamental I e II, e ainda para 5 ges- percebe-se que em relação às series iniciais do
tores, de onde se obteve as seguintes informa- Fundamental I, a maioria das educadoras utili-
ções: zam jogos e brincadeiras como recurso. Sendo
No Ensino Fundamental I e II foram realizadas que algumas professoras como a P1, confeccio-
15 entrevistas com profissionais do sexo femini- nam alguns jogos como, por exemplo, o bingo
no. Todos os professores apresentam faixa etá- silábico, baralho com silabas para que os alunos
ria entre 30 a 50 anos. Com relação à formação formem palavras e frases, fichas e dentre ou-
das educadoras, na análise dos dados observa- tros jogos. A partir do relato de P1 observa-se
-se que dentre as professoras do Fundamental que o educador precisa desenvolver estratégias
I, todas 10 entrevistadas possuem formação no que facilitem o processo de ensino e aprendiza-
antigo magistério, 07 delas possuem graduação gem da leitura e escrita, principalmente no que
em Pedagogia, 02 estão cursando pedagogia, e diz respeito às series iniciais, onde os educan-
apenas 01 possui somente o magistério e não dos estão em fase da alfabetização. Conforme
possui nenhum outro curso. Observamos ainda Lima (2013) “o lúdico oportuniza que o educador
que, somente 02 educadoras possuem especia- desenvolva práticas de leitura e letramento, ou
lização e nenhuma educadora possui mestrado. seja, no mesmo momento em que a criança é
No Fundamental II, observa-se que do total das estimulada a brincar ela está adquirindo conhe-
entrevistadas, 05 disseram que começaram a cimento sobre a Língua Portuguesa”.
carreira pelo antigo magistério, 02 apresentam Já as professoras P10 e P11 relataram que não
graduação em Pedagogia, 03 possuem formação utilizam com frequência as atividades lúdicas
em Letras e 02 estão cursando Letras. Observa- em suas aulas, conforme fragmentos de suas
-se ainda, que apenas 01 professora apresenta respostas, que apresentamos a seguir:
especialização em Psicopedagogia, e nenhuma
professora possui mestrado. O resultado mos- (P10, turma 4ºano): “Atualmente não trabalho
tra ainda, que com relação ao tempo de forma- muito com atividades lúdicas, mas já utilizei
ção, as professoras apresentaram entre 03 a 10 bastante, então sempre uma vez na semana eu
anos de formação em Pedagogia. Com relação faço alguma brincadeira envolvendo os conteú-
às com formação em Letras apresentam tempo dos de língua portuguesa, como a formação de
de formação entre 10 a 20 anos. Desse modo, palavras, apesar de usar pouco a ludicidade eu
ressaltamos que a formação em nível superior considero bastante importante para o auxilio na
de algumas professoras ainda é recente. No que aprendizagem do aluno”.
diz respeito às que possuem o antigo magistério
o tempo de formação está entre 10 a 25 anos. (P11, turma 6º ano): “Gosto muito de trabalhar
Pode-se observar também, que com relação à com músicas é sempre bom trazer algo de novo
atuação na área educacional, as informantes nas aulas. Às vezes utilizo para sair da rotina”.
entrevistadas possuem entre 10 a 35 anos de No decorrer da entrevista as informantes P8 e
atuação. P2 citaram que participam do programa do Go-
3.2 Análise das respostas dos professores verno Federal o “Pacto de Formação de Profes-
Neste subitem pretende-se apresentar uma sores” no município e ressaltaram a importân-
análise qualitativa das respostas dos professo- cia do mesmo no que diz respeito à ludicidade,
res aos questionários apresentados a eles por como pode ser atestado a seguir:
meio de entrevista. Para melhor entendimento
da análise das respostas dos mesmos, apresen- (P8, turma 1º ano): “O Pacto tem me auxiliado
tamos como exemplo, a seguinte legenda dos a aprender mais sobre o lúdico, como confec-
informantes, a fim de preservar suas identida- cionar alguns jogos e a trabalhar com muitas
des, a saber: (P1) = PROFESSOR 01, e assim su- dinâmicas”.

144
fragmentos da fala da informante P1, que segue:
(P2, turma 3º ano): “Participo do pacto de for-
mação de professores, e todas as ideias que (P1, turma 1º ano): “Utilizo muito os cartazes
aprendo lá eu utilizo aqui em sala de aula”. com as famílias silábicas, os alunos já sabem a
No Nível Fundamental II, devido à faixa etária família do b até o m, e também gosto muito de
dos alunos, todas as entrevistadas disseram trabalhar com histórias em quadrinhos, como os
que não usam o lúdico em suas aulas e que ra- gibis da ‘ Turma da Mônica’”.
ramente utilizam jogos ou brincadeiras, e assim
recorrem ao uso do livro didático, apostilas e Desta maneira, percebe-se que um dos recur-
outros tipos de materiais, como pode-se atestar sos da informante P1, para alfabetizar os seus
nos fragmentos de suas respostas, que seguem: alunos é a utilização de cartazes com as famílias
silábicas, entretanto, é possível também consta-
(P11, turma 6º ano): “Não uso muito o lúdico, eu tar que a educadora oferece materiais textuais
trabalho mais a oralidade dos alunos, interpre- como os gibis, para os educandos. Sobre isso
tação e produção textual, gosto de utilizar músi- Azevedo e Marques (2009) dizem que o docente
cas e bastante textos”. precisa utilizar estratégias pedagógicas diferen-
tes, ou seja, aquelas que diferem de uma alfa-
(P15, turma 8ºano): “Na verdade, eu não tra- betização básica, sendo necessárias atividades
balho especificamente com o lúdico em minhas que disponham de um ensino efetivo da leitura
aulas, eu uso mais o livro didático e apostilas”. como o contato e o manuseio com livros e outros
tipos de materiais escritos a fim de alfabetizar e
Conforme Santos (2014, p. 11) “o jogar e o brin- letrar.
car são ações lúdicas que se fundem e se con- Quanto aos professores do 6º ao 9º ano, per-
fundem”. Ou seja, de acordo com o relato da cebe-se que a maioria utiliza as atividades pro-
professora P11 percebe-se que para a mesma, postas no livro didático e os mesmos trabalham
trabalhar com música não é necessariamente muito a interpretação de textos e afirmaram que
um recurso lúdico, então observa-se que ocorre primeiro é trabalhada a oralização do material
a crença de que a atividade lúdica está relacio- para posteriormente ser trabalhada a escrita.
nada somente a jogos e brincadeiras, mas, ao No entanto, observa-se conforme a narrativa da
contrário a música é uma alternativa dinâmica professora P14, abaixo, que a mesma trabalha a
lúdica e sonora. oralidade através de recursos textuais e utiliza
Muitos educadores consideraram o lúdico im- poucas dinâmicas lúdicas.
portante, no entanto, nos anos finais do Ensino
Fundamental observa-se pouca preocupação (P14, turma 6ºano): “Nessa turma muitos alu-
em aplicar a ludicidade a exemplo do relato da nos apresentam dificuldades na leitura e tento
informante P15, ou seja, a docente trabalha mais trabalhar isso com leitura e oralização dos tex-
com a utilização do livro didático. Entretanto, é tos do livro didático, uso jornais, revistas e char-
importante ressaltar que este é um recurso tido ges para que o aluno possa aprender a interpre-
como suporte que pode e deve ser utilizado pelo tar e também gosto de trabalhar com músicas”.
educador, mas não pode ser o único, e é neces-
sário que este possua conteúdos voltados para a Sobre isso, seria interessante que o educador
realidade e necessidade do aluno. Sobre o livro atentasse para o que diz Castro (2005 p. 5): “a
didático Lajolo (1999), através das histórias das própria Língua Portuguesa pode ser trabalhada
práticas de leitura, indica a soberania do livro di- como um instrumento lúdico motivador (...) sem-
dático no cenário brasileiro. Sendo notável o seu pre levando uma determinada situação-proble-
uso, quanto à obrigatoriedade do seu manuseio ma e oferecendo ao aluno várias oportunidades
em práticas escolares. Desta forma, o livro didá- de atuar criativamente sobre a própria língua”.
tico pode não ser - e com certeza não é, o único Enfim, todos os professores das séries do En-
suporte adotado nas instituições escolares, mas sino Fundamental I e II consideraram o lúdico
certamente é o mais utilizado pelos professores como importante recurso para o ensino da leitu-
e alunos. ra e letramento. Porém nem todos estão dispos-
Em outra pergunta relacionada à como o pro- tos a aplicar essa teoria às suas práticas. Entre-
fessor trabalha a leitura em suas aulas de Lín- tanto, algumas educadoras citaram que os seus
gua Portuguesa do 1º ao 5º ano verifica-se que a alunos foram alfabetizados e aprenderam a ler
maioria das educadoras utiliza cartazes e fichas devido ao lúdico.
contendo sílabas e figuras, os jogos, brincadei- Concorda-se com as mesmas, visto que segundo
ras, histórias em quadrinhos, etc., conforme SEB (2012) “o universo lúdico aliado ao prazer e

145
conhecimento oportuniza o auxílio da prática da assim estimulem inteligências, para isso, o do-
leitura e escrita conciliando o processo de en- cente precisa previamente, pensar e organizar
sino e aprendizagem de forma significativa”. E dinâmicas, para que assim possa atingir objeti-
que de acordo com Kishimoto (2003, p. 37): “a vos, o professor precisa ter criatividade, vonta-
utilização dos jogos potencializa a exploração e de, competência e sensibilidade.
construção do conhecimento por contar com a No Nível Fundamental II observamos ainda, que
motivação interna, típica do lúdico”. as educadoras relataram que a faixa etária dos
Em relação à última pergunta do questionário: alunos, a evasão e a falta de tempo, implicam na
quais as dificuldades que você enfrenta em sala não execução da ludicidade em sala de aula.
de aula para trabalhar a leitura e o letramento
de seus alunos em Língua Portuguesa por meio
da ludicidade? A resposta da maioria das educa- (P15 - turma 8º ano): “Ocorre muita evasão na
doras foi que enfrentam dificuldades em sala de escola, alguns jovens e adolescentes abando-
aula para trabalhar a leitura e o letramento com nam os estudos para trabalhar ou então cuidar
os seus alunos por meio do lúdico, observe-se dos filhos, e infelizmente isso torna o trabalho
algumas destas dificuldades, a seguir: difícil, e também dou aulas em várias escolas
não tenho tempo para planejar uma aula com o
Falta de tempo para confeccionar os jogos
Ø lúdico”.
ou aplicá-los em sala de aula:
Conforme o Brasil (1998) os alunos do terceiro
Uma das dificuldades relatadas pelas professo- e do quarto ciclo do ensino fundamental apre-
ras entrevistadas é a falta de tempo para exe- sentam-se normalmente na idade entre 11 e 15
cutar o lúdico, entretanto, é de fundamental anos, ainda que, muitas vezes, por causa de mo-
importância que o educador tenha em vista que tivos diversos, possam ser mais velhos, sendo
os jogos e brincadeiras podem trazer benefícios esta fase da educação escolar que compreende
para o aluno, por mais que seja difícil a elabo- a adolescência e a juventude.
ração de algum jogo ou a confecção de cartazes Sobre essas questões, Castro (2005) afirma que
devido à falta de tempo o educador pode trazer o lúdico pode estar presente em qualquer etapa
uma dinâmica simples para aplicar em sala de da vida de criança e adolescentes, a escola por
aula, como a leitura de uma pequena história de sua vez não deve ter em vista o brincar direcio-
um livro infantil a partir de uma dramatização. nado apenas para crianças pequenas, pois os
Foucambert (1994) diz que as atividades de lei- recursos lúdicos são úteis para uma aprendiza-
tura e escrita desenvolvidas no ambiente esco- gem diferenciada e significativa. Sendo assim, os
lar devem propiciar a discussão de textos entre instrumentos da ludicidade podem ser aplicados
alunos e professores, com o objetivo de ampliar nos conteúdos do ensino fundamental de 6º ao
o vocabulário dos alunos a fim de desenvolver o 9º ano, sendo que o professor deve considerar
gosto e o hábito da leitura nos mesmos: que aluno que passa pelo ensino fundamental
maior é um individuo que está num período de
Falta de espaço físico e suporte da escola:
Ø intensas transformações biológicas, sociais e
psicológicas.
Outra dificuldade que exposta pelos professores Na pesquisa, algumas educadoras relataram
entrevistados é a falta de estrutura e suporte da que não se pode utilizar o lúdico apenas para o
escola, como falta de sala de multimídia, espaço aluno brincar e passar o tempo, é preciso que o
cultural ou até mesmo um simples armário para educador tenha um objetivo, ou seja, é necessá-
guardar material, como segue: rio que o lúdico tenha uma finalidade educativa
no processo de ensino e aprendizagem.
Pouca disponibilidade de material
Ø Segundo Piaget (1973), “as atividades lúdicas de
forma geral não devem ser vistas apenas como
A partir do relato da informante P7, outra difi- uma forma de desafogo ou entretenimento, e
culdade questionada é a pouca disponibilidade sim, como meios que contribuem e enriquecem
de material que a escola oferece para que os o desenvolvimento intelectual das mesmas”.
professores possam trabalhar a ludicidade. Do total de entrevistadas no Ensino Fundamen-
Dessa forma, nessa pesquisa pode-se perce- tal II, apenas a minoria das educadoras disse-
ber que as práticas de leitura/letramento que ram que não sentem dificuldade em trabalhar o
contemplem a dimensão lúdica é um desafio lúdico, e que sempre utilizam os jogos nas suas
constante. Nesse sentido, Antunes (2000) res- aulas e também em outras disciplinas, como se-
salta que a construção do aprendizado tem que gue:
propor atividades que disponham de desafios e

146
(P2, turma 1º ano): “Sempre eu tento utilizar o ma tão abrangente quanto vemos na educação
lúdico todos os dias nas minhas aulas, não só infantil e nas series iniciais do Ensino Funda-
nas aulas de português pra ensina-los a ler, mental, então planejamos algumas atividades
mas em todas as disciplinas, eu mesmo tenho com objetivo de fazer com que o aluno se sinta
prazer em pesquisar e amo confeccionar jogos atraído em aprender”.
e cartazes para os meus alunos, alguns alunos
rasgam, mas eu relevo por que são crianças, eu
só gostaria de ter mais tempo para fazer mais A resposta do informante G1 nos mostra que o
trabalhinhos para eles, mas vida de professor é lúdico é inserido na escola pelo fato da institui-
muito corrida”. ção trabalhar com crianças, sendo que a ludici-
dade é um instrumento importante para o ensi-
Com relação a resposta acima, Santos (1999) no da leitura e de outros conteúdos escolares.
afirma que o professor é o responsável que deve A fala da informante G5 contradiz o relato dos
propiciar atividades diferenciadas em sala de educadores pesquisados, pois percebemos nas
aula, atividades essas que despertem na criança entrevistas que as atividades lúdicas são pouco
a vontade e o desejo de querer aprender, ou seja, trabalhadas, e de acordo de acordo com as in-
é propor atividades que estimulem na criança o formantes P11, P12, P13, P14 e P15 a escola não
interesse e a participação nas aulas. oferece apoio e suporte, conforme visto no item
3.2, onde observa-se que há pouco interesse
3.3 Análise das respostas dos gestores esco- tanto da parte da escola como dos docentes em
lares torno da prática lúdica. Sobre essa questão San-
tos (2014, p. 26) diz que mudar a metodologia de
Em resposta ao questionário apresentado aos ensino é um desafio, não é tarefa fácil, o edu-
gestores escolares, a análise dos dados mostra cador pode possuir um rico conhecimento sobre
que a maioria dos gestores das escolas pesqui- a área de atuação e competência técnica e, no
sadas possui formação em Pedagogia, e ape- entanto, apresentar dificuldade no uso de prá-
nas 01, ainda está cursando; 02 destes também ticas lúdicas. Assim, o autor ressalta: “dominar
apresentam formação no antigo magistério. os conteúdos a serem trabalhados é importante,
Com relação à Pós- Graduação: 04 disseram mas escolher as estratégias e dinâmicas é es-
que possuem Especialização, como por exem- sencial para o sucesso do trabalho educativo”.
plo, em Gestão Escolar, Tecnologia Educacional Alguns gestores ressaltaram que cada profes-
e/ou Psicopedagogia. Constata-se ainda, que o sor tem sua maneira de trabalhar, ou seja, os
tempo de formação dos entrevistados compre- educadores utilizam o lúdico de acordo com a
ende entre 8 a 20 anos. Com relação ao tempo especificidade de cada aluno, isto é, se a crian-
de atuação verifica-se que os gestores apresen- ça possui alguma dificuldade de aprendizagem
tam entre 02 a 28 anos de atuação. da leitura ou escrita o professor precisa desen-
A primeira pergunta do questionário direcionada volver uma maneira de solucionar tal problema
aos gestores escolares foi sobre a inserção do através de um recurso pedagógico para auxiliar
lúdico no planejamento pedagógico dos profes- esse aluno na aprendizagem. O informante G2
sores de Língua Portuguesa, todos afirmaram citou a importância da ludicidade com alunos da
que o lúdico está inserido, pois as atividades lú- sala de recurso multifuncional, ressaltando que
dicas auxiliam o professor e por isso, é neces- a utilização do lúdico é válida tanto para os alu-
sário aplicá-lo em sala de aula, conforme frag- nos das classes regulares quanto para os alu-
mento de suas falas, abaixo: nos especiais.
A segunda pergunta dirigida aos gestores estava
(G1- Escola de Ensino Fundamental I): “O lúdico relacionada à importância do lúdico no proces-
não fica apenas no planejamento e sim aplica- so de ensino e aprendizagem da leitura e letra-
do não só nas aulas de português, mas também mento. Como resposta, todos os gestores consi-
nas aulas de matemática, enfim, em todas as deraram o lúdico como um importante recurso
disciplinas, devido à escola trabalhar com crian- pedagógico nesse processo, pois é necessário
ças, é necessário utilizar o lúdico como recurso incentivar o aluno a ler, e esse trabalho requer
pedagógico”. estratégias.
Sobre as respostas dos informantes acima, a
(G5 - Escola de Ensino Fundamental II): “A dire- SEB (2012) ressalta duas questões que preci-
ção, a coordenação pedagógica e os professores sam ser relacionadas, primeiro a criança é um
se reúnem na elaboração do Plano Pedagógico ser ativo e segundo a aprendizagem da leitura
da escola, e apesar da escola trabalhar com as e escrita envolve processos mentais. Conforme
series finais, o lúdico está inserido, não de for- visto nas respostas dos informantes G3 e G4 o

147
incentivo a leitura nos alunos acontece através à socialização através de um método ativo de
da ludicidade. Desta maneira, é essencial o uso ensino, nesse caso, a ludicidade proporciona a
de estratégias pedagógicas lúdicas de ensino e diferenciação no ambiente escolar. Observa-
a mediação docente. O educador mediador deve -se na resposta do informante G5 que o mesmo
propor uma atividade lúdica com objetivos além ressalta que os educadores devem visar tam-
do brincar, podendo estimular o cognitivo do bém à oralidade dos educandos, o que está em
aluno para que este possa respeitar limites, so- consonância com o caderno do Pró-letramento
cializar, explorar a sua criatividade, interagir e SEB (2008), que diz: “a sala de aula é um espaço
principalmente aprender a pensar. (SEB, 2012, público, de uma instituição pública, que tem seu
p.35) modo peculiar de se organizar. Entre as regras
Verificamos ainda, que o gestor G2 diz que o lú- de convivência dessa instituição estão as que se
dico, além de ser um instrumento pedagógico referem à participação nas interações orais em
importante na aquisição da leitura e letramen- sala de aula. (SEB, 2008, p. 54). Também alguns
to, também pode ser usado como ferramenta gestores disseram que o educador precisa ade-
na superação de dificuldades na aprendizagem. quar o conteúdo de suas aulas à realidade do
Entretanto, percebemos que nas séries finais, educando e sempre socializar o material lúdico.
de uma das escolas pesquisadas, apesar da co- No caso do relato do G1 observa-se que tal
ordenadora reconhecer a importância do lúdico, resposta indica o uso de histórias para atrair o
tal recurso não é utilizado na prática. aluno para a leitura, onde o professor deveria
A partir do relato da informante G5 constata-se trazer objetos concretos e apenas mostrar para
que sua resposta é contraditória ao que afirmou os alunos tais elementos para a classe, quan-
em relação à inserção da ludicidade na escola, do trata-se de atividade lúdica em sala de aula
percebe-se que tal instituição enfrenta dificul- o educador é o agente responsável para mediar
dades com educandos não leitores e ressalta- determinado conhecimento e deve ter em vista
mos aqui que durante a entrevista o informante que a criança é o ser ativo do processo de apren-
questionou que os alunos já chegam com esse dizagem e também adequar a aula de acordo
problema devido à ineficiência do Ensino Funda- com sua realidade. Neste caso, indicar-se-ia a
mental menor, ou seja, não se comprometendo dramatização de histórias.
com a problemática em questão. Sendo assim, Com relação à resposta do informante G4 sua
é lamentável constatarmos que alunos dessas orientação é de que o professor leia histórias
determinadas séries ainda não possuem domí- ou pequenos textos nas suas aulas para os alu-
nio da leitura e escrita. Nesse aspecto Azevedo nos, entretanto, é preciso observar quais tipos
e Marques (2009, p. 95) dizem: “o trabalho pe- de textos podem atrair as crianças nesses pri-
dagógico é aquele que é feito antes do fracasso. meiros passos para a formação leitora, ler por
Não se trata de coletividade versus intimidade, e ler para os alunos não é fazer ludicidade. Bit-
sim de prevenção versus remediação”. tencourt e Ferreira (2002, p.19) anotam que: “ao
Verifica-se assim, que a carência de métodos lado de atividades de integração da criança à es-
lúdicos na prática dificulta a aprendizagem da cola, deve-se promover a leitura e a escrita jun-
leitura ocasionando a ausência de leitores efi- tamente, utilizando-se para isto a dramatização,
cientes. conversas, recreação, desenhos, historias lidas
No que diz respeito à terceira pergunta sobre e contadas, gravuras, contos e versos”.
como o gestor escolar orienta os professores Entretanto, segundo Castro (2005) qualquer
em relação ao lúdico. Todos os gestores entre- atividade lúdica proposta em sala de aula deve
vistados ressaltaram que o brincar deve ser uti- possuir objetivos e ressalta que os jogos preci-
lizado como ferramenta pedagógica e que o pro- sam ser rigorosamente estudados e analisados
fessor deve utilizar esse método em suas aulas. para de fato alcançarem eficiência na prática,
Nesse sentido, é de fundamental importância pois se uma quantidade de jogos ou dinâmicas
que o educador tenha em vista que a atividade não estiverem associados aos conteúdos e no
lúdica não seja instrumento de recreação, mas contexto da aprendizagem, os mesmos não irão
sim uma ferramenta para a aprendizagem do trazer algum benefício.
aluno. Conforme Bittencourt e Ferreira (2002, A última pergunta feita aos gestores escolares
p.25): “a brincadeira já não deve ser mais ativida- foi sobre quais os obstáculos enfrentados pelos
de utilizada pelo professor apenas para recrear professores de língua portuguesa em relação à
as crianças, mas como atividade em si mesmo, prática do lúdico? Do total de entrevistados, 03
que faça parte do plano de aula da escola”. gestores apresentaram algumas dificuldades, a
As respostas dos informantes G2 e G5 mostram saber:
que as orientações para os educadores visam
Ø O professor não abandona completamen-

148
te o modelo tradicional de ensino. vem sendo amplamente discutido como uma das
formas principais de acesso à melhoria da qua-
Ø Ausência da família no acompanhamento lidade de ensino, por meio de parcerias com o
escolar do aluno, pois o professor pode MEC e universidades. Sendo assim, o programa
desempenhar um importante trabalho tem em vista que o brincar e o aprender andam
lúdico pedagógico, no entanto, é essen- juntos, e por isso, propõe ideias e estratégias de
cial também a participação da família. . ensino envolvendo os jogos e brincadeiras.
Ø Verificamos que nas séries finais do ensi-
no fundamental, o obstáculo que a escola CONSIDERAÇÕES FINAIS
enfrenta é a falta de interesse e partici-
Por meio desta pesquisa pode-se observar que
pação do aluno.
a ludicidade é válida para todas as fases da vida
Diante disso, observa-se que a partir do relato escolar do individuo, e é por meio de sua dina-
do informante G5 que em alguns casos o aluno micidade que o lúdico proporciona além de si-
chega a se evadir da escola, ou seja, a baixa fre- tuações prazerosas, o surgimento de compor-
quência dos educandos ocasiona outros tipos de tamentos e assimilação de regras sociais, que
problemas como o baixo desempenho e a eva- ajudam a desenvolver o intelecto.
são escolar. Segundo Piaget (1980) muitas das A partir das entrevistas verificou-se o quanto é
vezes os alunos se sentem insatisfeitos em fre- difícil para alguns professores, aplicarem ativi-
quentarem a escola, em participar ativamente dades lúdicas em suas aulas, por vários fatores
das aulas e não vêem o professor como uma fi- discutidos no texto, mas mesmo assim os mes-
gura de orientador e motivador, pois geralmente mos concordam sobre a importância da ludici-
vão à escola mais por obrigação do que por von- dade.
tade própria, dessa maneira, a forma de ensino Conclui-se então, que formar alunos alfabetiza-
do docente reflete no desenvolvimento do aluno. dos, letrados e principalmente leitores compe-
Castro (2005) afirma que a maioria dos alunos tentes implica em muitos desafios, ou seja, é um
das séries finais do ensino fundamental che- processo gradativo que exige a ação de todos, e
ga ao ensino médio incapaz de organizar suas nesse aspecto, a escola como instituição social
ideias e pensamentos provenientes de um en- educativa e o docente como sujeito formador
sino passivo, repetidor e opressivo impedindo a ocupam um importante papel na formação de
formação da autonomia do individuo. um aluno leitor, e por isso, é essencial o pro-
Apenas dois gestores afirmaram que os profes- fissional abrir mão do comodismo e fazer valer
sores apresentam pouca ou nenhuma dificulda- uma educação de qualidade através de uma prá-
de em trabalhar o lúdico e citaram a importância tica lúdica voltada para uma pedagogia da leitu-
do programa “Pacto de Formação de Professo- rização; a fim de contribuir positivamente para a
res: Programa Nacional Pela Alfabetização na formação leitora do indivíduo e assim, preparar
Idade Certa”. os educandos para a vida.
De acordo com o fascículo (SEB, 2012, p.10) o
Programa Pacto de Formação de Professore

149
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150
AS VOGAIS PRETÔNICAS NOS FALARES NORDESTINOS: DADOS DO ALiB

Maria do Socorro Silva de Aragão47


(UFC – UFPB)

RESUMO INTRODUÇÃO

O comportamento das vogais pretônicas nos fa- O comportamento das vogais pretônicas nos fa-
lares regionais do Português do Brasil tem sido lares regionais do Português do Brasil tem sido
estudado por diversos especialistas, com as estudado por diversos especialistas, com as
mais variadas abordagens e a utilização de dife- mais variadas abordagens e a utilização de dife-
rentes linhas teóricas, mostrando não apenas a rentes linhas teóricas, mostrando não apenas a
importância que o tema desperta, mas as abor- importância que o tema desperta, mas as abor-
dagens que podem ser dadas a esse fenômeno dagens que podem ser dadas a esse fenômeno
de nossa língua. de nossa língua.
O fenômeno visto muitas vezes como uma va- O fenômeno visto muitas vezes como uma va-
riação puramente fonética, tem sido estudado, riação puramente fonética, tem sido estudado,
também, sob a perspectiva da dialetologia e da também, sob a perspectiva da dialetologia e da
sociolinguística, marcando, deste modo, as va- sociolingüística, marcando, deste modo, as va-
riações linguísticas, diatópicas e diastráticas do riações linguísticas, diatópicas e diastráticas do
português do Brasil. português do Brasil.
Antenor Nascentes (1953), Antonio Houaiss Antenor Nascentes (1953), Antônio Houaiss
(1958), Serafim da Silva Neto (1960), Joaquim (1958), Serafim da Silva Neto (1960), Joaquim
Mattoso Câmara (1953-1972-1977), Leda Bisol Mattoso Câmara (1953-1972-1977), Leda Bisol
(1981), Dinah Callou e Yone Leite (1986-1991), (1981), Dinah Callou e Yone Leite (1986-1991),
e Myrian Barbosa (1991), são estudos clássicos e Myrian Barbosa (1991), são estudos clássicos
sobre o assunto. Modernamente, muitos outros sobre o assunto. Modernamente, muitos outros
trabalhos têm sido feitos, especialmente com trabalhos têm sido feitos, especialmente com
o uso de programas computacionais de análise o uso de programas computacionais de análise
acústica e de variação linguística. acústica e de variação linguística como o VAR-
Contudo, algumas dúvidas continuam a existir BRUL.
quanto às causas que determinam o fechamen- A razão desse interesse pode ser explicada pelo
to ou abertura dessas vogais, bem como seu fato de que as pretônicas são consideradas uma
alteamento ou elevação. Serão causas pura- das marcas mais importantes para a divisão
mente estruturais da língua? Ou serão causas dialetal do Brasil. Nascentes usou este critério
extralinguísticas? O que determina essas varia- para a separação entre os falares do Norte e os
ções abertas x fechadas ou abaixadas x eleva- do Sul do país.
das, seriam variações diatópicas, diastráticas? A Contudo, algumas dúvidas continuam a existir
variação explica-se por uma harmonia vocálica quanto às causas que determinam o fechamen-
ou por uma neutralização? O alçamento é uma to ou abertura dessas vogais, bem como seu
herança do latim do século IV d.C., como advo- alteamento ou elevação. Serão causas pura-
ga Bisol? São questões que ainda estão sendo mente estruturais da língua? Ou serão causas
retomadas para a determinação de um quadro extralinguísticas? O que determina essas varia-
mais completo e real do uso das vogais pretôni- ções abertas x fechadas ou abaixadas x eleva-
cas nas diversas regiões do país. das, seriam variações diatópicas, diastráticas? A
Neste trabalho pretendemos fazer uma pano- variação explica-se por uma harmonia vocálica
râmica, embora não exaustiva, da situação das ou por uma neutralização? O alçamento é uma
pretônicas no nordeste brasileiro, a partir dos herança do latim do século IV d.C., como advo-
dados dos inquéritos do Projeto Atlas Linguísti- ga Bisol? São questões que ainda estão sendo
co do Brasil – AliB. retomadas para a determinação de um quadro
PALAVRAS – CHAVE: Vogais Pretônicas; Fala- mais completo e real do uso das vogais pretôni-
res Regionais; Atlas Linguístico do Brasil cas nas diversas regiões do país.

Universidade Federal da Paraíba / Universidade Federal do Ceará – socorro.aragao@terra.com.br


47

151
A pesquisa para a realização do Atlas Linguístico tação estuda As vogais antes do acento em Ri-
do Brasil tem obtido dados da maior relevância, beirópolis-SE. (Amazonas) - SILVA, Rita de Cás-
não apenas para este assunto em particular, sia (1980), em sua Dissertação estuda As vogais
mas para as diferentes marcas fonéticas regio- médias pretônicas na fala de Manaus. (Rio Gran-
nais do português do Brasil. de do Sul) - BISOL, Leda (1981) em sua Tese es-
Neste trabalho pretendemos fazer uma pano- tuda A harmonização vocálica: uma regra variá-
râmica, embora não exaustiva, da situação das vel. (Rio de Janeiro) - CALLOU, Dinah et LEITE,
pretônicas no nordeste brasileiro, a partir dos Yonne (1986) estudam As vogais pretônicas no
dados dos inquéritos experimentais do Projeto falar carioca. (Rio Grande do Norte) - MAIA, Vera
Atlas Linguístico do Brasil – AliB. Lúcia (1986) estuda As vogais pretônicas médias
na fala de Natal. (Minas Gerais) - VIEGAS, Maria
do Carmo. (1987) estuda O alçamento das vogais
1. AS VOGAIS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS DO médias pretônicas: uma abordagem sociolin-
BRASIL: RETROSPECTIVA guística. (Bahia) - SILVA, Myrian (1989) em sua
tese estuda As pretônicas na fala baiana: a va-
Segundo os estudiosos deste tema, especial- riedade culta de Salvador. (Pará) - VIEIRA, Maria
mente Cardoso (1999), desde o século XVI que de Nazaré (1990) em sua tese estuda O altea-
este assunto tem preocupado os especialistas mento dos segmentos /e/ e /o/ pretônicos e do
da área. Cada um desses estudiosos apresenta segmento /o/ tônico no falar do Médio-Amazo-
justificativas para seu estudo das vogais médias nas Paraense. (Pará) - NINA, Terezinha (1991)
abertas em posição pretônica. Aqui não retoma- em sua Dissertação estuda os Aspectos da va-
remos tais estudos, mas tentaremos fazer uma riação fonético-fonológica na fala de Belém.
listagem, não exaustiva, dos estudos das pretô- (Brasília) - BORTONI, Stella Maris et al.(1991)
nicas no português do Brasil no século XX e iní- fazem Um estudo preliminar do /e/ pretônico.
cio do século XXI. (Rio de Janeiro) -YACOVENCO, Lílian (1993) em
Quando Nascentes (1953, p. 25) mostrou que as sua dissertação estuda As vogais médias pretô-
pretônicas abertas e a cadência constituíam fa- nicas no falar culto carioca. (Rio Grande do Sul) -
tores essenciais para a divisão dialetal brasilei- BATISTI, Elisa (1993) em sua Dissertação estuda
ra, os estudiosos passaram a estudar o fenôme- A elevação das vogais médias pretônicas em sí-
no com maior atenção e profundidade. laba inicial de vocábulo na fala gaúcha. (Paraíba)
Nascentes propôs a divisão dos falares brasilei- - ARAGÃO, M. do Socorro (1994), em Congresso
ros em dois grandes grupos: os do Norte e os do da ANPOLL apresenta em seu trabalho Aspec-
Sul, e a ocorrência das vogais pretônicas aber- tos fonéticos do atlas linguístico da Paraíba: as
tas, segundo ele, marcaria o Norte e sua reali- vogais pretônicas. (RJ, SP, RS, BA, Pe – NURC)
zação fechada marcaria o Sul. O autor subdividiu - LEITE, Yonne; CALLOU, Dinah; MORAES, João
os dois grupos em sub-grupos, que chamou de (1995), em Congresso da ANPOLL apresentam o
sub-falares: o sub-falar amazônico, o sub-falar trabalho As pretônicas no português do Brasil:
nordestino, o sub-falar baiano, o sub-falar flu- descrição acústica e variação fonológica. (Rio
minense, o sub-falar mineiro e o sub-falar su- de Janeiro) - SILVA, Edila (1995), em Congresso
lista. da ANPOLL apresenta o trabalho Variação dia-
O pioneirismo de Nascentes (1953) é acompa- letal: as pretônicas no dialeto fluminense. (Rio
nhado logo a seguir por Câmara Jr. (1977) e Hou- Grande do Sul) – AMARAL, Luís (1996), em sua
aiss (1987). A partir daí, as Teses de Doutorado, dissertação estuda O abaixamento de /i/ e /u/ no
Dissertações de Mestrado, Artigos e trabalhos português da campanha gaúcha. (RS, SC, PR) -
apresentados em diversos congressos nacionais SCHWINDT, Luiz Carlos (1997), escreve artigo
e internacionais vêm enriquecendo as análises sobre A harmonia vocálica em dialetos do sul do
usando novas abordagens e oferecendo subsí- país: uma análise variacionista. (Brasil) - CAR-
dios cada vez mais precisos para o entendimen- DOSO, Suzana (1999) escreve artigo sobre As
to do funcionamento das vogais pretônicas do vogais médias pretônicas no Brasil: uma visão
português do Brasil. Numa ordem cronológica diatópica. (PA) - FREITAS, Simone (2001) em sua
podemos listar, sem maiores comentários, os Dissertação estuda As vogais médias pretônicas
trabalhos realizados sobre as vogais pretônicas faladas na cidade de Bragança. (Paraná) - PON-
em diferentes regiões do país, que são de nosso TES, Ismael (2002) faz um estudo do Alçamento
conhecimento: (Paraíba) - PEREIRA, Regina Cé- do [e] pretônico no falar rural das regiões nor-
lia (1977), em sua Dissertação estuda As vogais te e oeste-sudoeste do Paraná. (Brasil) - HORA,
médias pretônicas na fala do pessoense urbano. Lucinda; MOTA, Jacyra (2003) escrevem Rela-
(Sergipe) - MOTA, Jacyra (1979) em sua Disser- tório de Pesquisa sobre A elevação das vogais

152
médias pré-acentuadas no português brasileiro, alizados nas capitais de cinco dos estados que
com base nos inquéritos experimentais do ALiB. formam a região nordestina: Paraíba (João Pes-
(Bahia) - SOARES, Adriana (2004) em sua Disser- soa), Rio Grande do Norte (Natal), Ceará (For-
tação estuda As pretônicas médias em comu- taleza), Piauí (Teresina) e Maranhão (São Luís).
nidades rurais do semi-árido baiano. (Espírito
Santo) - CELIA, Gianni (2004) em sua dissertação 2.1.2. Os Informantes
estuda a Variação das vogais médias pretônicas Os informantes têm o seguinte perfil:
no português de Nova Venécia - ES. (Paraíba –
Rio de Janeiro) - MARQUES, Sandra (2006) em a) Nascidos na localidade pesquisada, de
sua Tese estuda As médias pretônicas em si- pais nascidos na mesma área linguística;
tuação de contato dialetal. (Paraná) - KAILER,
b) Não terem se afastado da localidade mais
Dircel (2006) em seu artigo estuda A variação da
de um terço de sua vida;
pretônica /o/ no falar rural paranaense. (Ceará)
- ARAÚJO, Aluiza (2007) em sua Tese estuda As c) Homens e mulheres;
Vogais Médias Pretônicas no Falar Popular de d) Duas Faixas Etárias: 18 a 30 – 45 a 60 anos;
Fortaleza: uma abordagem variacionista. (Minas
Gerais) - ALVES, Marlúcia (2008) escreve artigo e) Dois níveis de escolaridade: até a 4ª série
sobre O comportamento fonológico das vogais do fundamental e de nível superior;
médias em posição pretônica no dialeto de Belo f) Número de informantes: oito para cada
Horizonte. (Goiás) - GRAEBIN, Geruza (2008) em capital.
sua Dissertação estuda A fala de Formosa/GO:
a pronúncia das vogais médias pretônicas. (São 2.1.3. Itens Lexicais estudados
Paulo) - TENANI, Luciani; SILVEIRA, Ana Amélia Foram escolhidos itens lexicais contidos nos
(2008) em seu artigo trabalham com O alçamen- questionários Fonético-Fonológico (QFF) e Se-
to das vogais médias na variedade culta do no- mântico-Lexical (QSL), do Projeto Atlas Linguís-
roeste paulista. tico do Brasil - ALIB.
SCHÜLLER, Jones Neuenfeld (2013) A percep-
ção de vogais medias pretônicas e sua relação 3. ANÁLISES PRELIMINARES
com os processos de Harmonia e de Alçamento
Vocálico.(Pelotas – RS).Outros trabalhos, sem Seguindo a mesma linha de trabalho proposta
indicação bibliográfica, mas também importan- por Cardoso (1999), que a partir dos trabalhos
tes, são (Amazonas e Pará) -BRANDÃO, Silvia; analisados em vários estados brasileiros es-
CRUZ, Maria Luíza fazem Um estudo contrastivo tuda a distribuição das pretônicas nos estados
sobre as vogais médias pretônicas em falares do Amazonas, Pará, Acre, Rio Grande do Norte,
do amazonas e do Pará, com base nos dados do Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia,
ALAM e do ALISPA. (Minas Gerais) - CARNEI- Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Para-
RO, Dayana; MAGALHÃES, José Sueli estudam ná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul e de
O sistema vocálico pretônico nas zonas rural e Alves (2007) para o falar de Fortaleza, veremos
urbana do município de Araguari. (Acre) - LES- como se comportam as vogais pretônicas nas
SA, Luiza estuda As vogais médias pretônicas na capitais de cinco estados da Região Nordeste
linguagem acreana. SUCKOW, Darinka estuda o do Brasil: Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará,
Alçamento das vogais orais médias pretônicas Piauí e Maranhão.
não finais: duas propostas de análise. Nosso trabalho não fará análises sob a orienta-
Neste breve levantamento pode-se avaliar o in- ção de qualquer escola fonológica, apenas fa-
teresse que o tema desperta nos estudiosos e remos o levantamento de que fatos linguísticos
como esses estudos podem definir as variantes são responsáveis pela variação das pretônicas
regionais dos falares brasileiros. Os dados do nesses estados. Não levaremos em conta, aqui,
Projeto Atlas Linguístico do Brasil podem, final- as variações diastráticas, apenas as linguísticas
mente, mapear esses aspectos fonético-fonoló- e as diatópicas.
gicos do português do Brasil.
3.1. Variáveis linguísticas consideradas
2. AS VOGAIS PRETÔNICAS NO FALAR NOR- Seguindo, em linhas gerais, os mesmos parâ-
DESTINO metros utilizados por trabalhos semelhantes
2.1. O CORPUS DA PESQUISA em outras regiões do país levaremos em conta
os fonemas /e/ e /o/ pretônicos em posição me-
2.1.1. Localidades
dial interconsonântica. Assim, foram analisadas
A amostragem é constituída de inquéritos re- as seguintes variantes:

153
a) vogal anterior /e/ [ ã, e), õ ] pirilampo [ piRi’lãpu]
- alteamento [i]. Ex: prateleira [ pRati’lejRa] ■ inocente [ inu’se)tI]
- o abaixamento [E]: pecado [ pE’kadu] anteontem [ ãti’ õtI]

b) vogal posterior /o/ ♦ = Maior freqüência - ■ = Freqüência média - ▲ =


- alteamento [u]. Ex: gordura [ guú’duRa] Menor freqüência
- o abaixamento [ᴐ]. Ex: inocente [ inᴐ’se)tI]

Quadro 1 - Distribuição das Variantes por Loca- b) Influência da Consoante Precedente


lidade e Frequência de Ocorrências
As consoantes labiais e velares que precedem
as pretônicas são as que mais favorecem o seu
Ponto
Variante
[i] [e] [e] [u] [o] [ᴐ] alteamento.
J.Pessoa ■ ▲ ♦ ■ ▲ ♦ Quadro 3 Influência da Consoante Precedente
Natal ■ ▲ ♦ ■ ▲ ♦ Consoantes Influência Exemplos
Fortaleza ▲ ■ ♦ ▲ ■ ♦ Labial ♦ semelhança [simi’´ãsa]
Teresina ■ ▲ ♦ ■ ▲ ♦ Velar ♦ querido [ ki’Ridu]
S. Luís ▲ ■ ♦ ▲ ■ ♦ Alveolar ■ tesoura [ ti’zowRa]
Palatal ▲ chocalho [Su’ka´u]
♦ = Maior frequência - ■ = Frequência média - ▲ =
Menor frequência Aspirada ▲ roedor [úu’edoú]

Por este quadro pode-se perceber que das cinco ♦ = Maior influência - ■ = Influência média - ▲ =
capitais analisadas Fortaleza e São Luís distin- Menor influência
guem-se das demais pela menor frequência no
nível de alteamento das vogais.
b) Influência da Consoante Subsequente
3.1.1. Fatores Favorecedores do Alteamento As consoantes labiais, alveolares e palatais em
das Pretônicas posição posterior às pretônicas são as que mais
favorecem seu alteamento.
Neste item não vamos fazer a separação entre
as vogais anterior / e / e a posterior / o /, por pro- Quadro 4 - Influência da Consoante Subsequen-
blema de espaço. Vejamos os fatores: te
Consoantes Influência Exemplos
a) Natureza da Vogal Tônica
Labial ♦ compadre [ ku)’padRI ]
Em todas as capitais um dos fatores que mais Alveolar ♦ polícia [ pu’lisja ]
favorecem o alteamento das pretônicas é a na- Palatais ♦ melhor [ mi’´ᴐú]
tureza da vogal subsequente, por um proces-
so de harmonia vocálica, ou por neutralização, Velares ▲ forquilha [ fuú’ki´a]
como querem alguns. Aspiradas ■ serviço [ siú’visU ]

Quadro 2. Natureza da Vogal Tônica ♦ = Maior influência - ■ = Influência média - ▲ =


Menor influência
Fatores Ocorrência Exemplos 3.1.2. Fatores Favorecedores do Abaixamento
[i] ♦ bonito [bu’nitu] das Pretônicas
amendoim [ ame)
[i)] ♦ a) Natureza da Vogal Tônica
du’i)]
As vogais / E /, / ᴐ /, / a /, / ã /, / e) /, / õ / em posição
[u] ♦ seguro [ si’guRu]
tônica são as que exercem maior influência no
[ũ] ♦ presunto [ pRi’zu)tu] abaixamento das pretônicas.
[e] ▲ orelha [u’Re´a]
Quadro 5 - Natureza da Vogal Tônica
[o] ▲ cebola [ si’bola]
[E] ▲ adoece [adu’EsI] Fatores Influência Exemplos
[ᴐ] ▲ escola [is’k la] [i] ■ prestígio [ pRES’tiZ ju]
[a] ■ tomate [ tu’matI ] [i)] ■ respingo [úEs’pi)gu]

154
[u] ■ produto [ pRᴐ’dutu] ções das pretônicas / e / e / o / nas capitais ana-
[u)] ■ presunto [ pRE’ zu)tu]
lisadas apontam para os seguintes resultados:
[e] ▲ governo [gᴐ’veúnu] a) há um predomínio das variantes bai-
[o] ▲ cebola [ sE’bola] xas, influenciadas pelos seguintes
[E] ♦ elétrico [E’lEtRiku] fatores:
[] ♦ negócio [nE’gᴐsju] · a variante tipo de vogal tônica é a
[a] ♦ tomate [ tᴐ’matI ] mais importante para o alçamento e
elefante [ ElE’fãtI] – ino- abaixamento das pretônicas;
[a)) e) o)] ♦ cente [inᴐ’se)tI]- anteontem · -as vogais baixas [ E, ᴐ, a ] e as não
[ ãtE’ o)tI] altas nasais [ ã, e), õ ], tônicas ou áto-
nas são os únicos segmentos que
♦ = Maior influência - ■ = Influência média -▲ =
favorecem o abaixamento, de /e / e /
Menor influência
o /, mas dificultam o alteamento de
ambas as pretônicas;
b) Influência da Consoante Precedente b) as consoantes precedentes influen-
As consoantes palatais, velares e aspiradas em ciam o alteamento de / e / e / o /, pelos
posição precedente às pretônicas são as que seguintes fatores:
mais favorecem ao seu abaixamento.
· a alveolar precedente favorece o
Quadro 6 - Consoante Precedente abaixamento do / o /;
· a labial é a que mais favorece o alte-
Fatores Influência Exemplos
amento do / o /;
Labiais ■ melhorar [mE´ᴐ’Raú]
c) as consoantes subsequentes são re-
Alveolares ■ lesar [ lE’zaú]
levantes para o alteamento e abai-
Palatais ♦ chorar [Sᴐ’Raú] xamento de / e / e / o /, influenciadas
Velares ♦ questão [ kES’tãw] pelos seguintes fatores:
Aspiradas ♦ remando [úE’mãdu] · a labial favorece o alteamento de / e
/ e / o /;
♦ = Maior influência - ■ = Influência média
· a palatal favorece o alteamento de /
c) Influência da Consoante Subsequente e / e / o / e desfavorece seu abaixa-
mento;
A velar em posição subsequente é a que mais fa-
vorece o abaixamento de /o/, sendo seguida pela · a velar favorece o abaixamento de / o
alveolar. / e o alteamento de / e /.

Quadro 7 - Consoante Subseqüente Por esta rápida análise pode-se ver que o altea-
mento ou abaixamento das pretônicas médias /
e / e / o / nem sempre podem ser explicados pela
Fatores Influência Exemplos
harmonia vocálica ou neutralização, uma vez
Labiais ♦ cemitério [ sEmi’tERju] que as consoantes precedentes e subsequentes
Alveolares ♦ bolinha [ bᴐ’liøa] exercem, também, uma forte influência nesse
Palatais ■ molhado [ mᴐ’´adu] fenômeno.
Velares ♦ questão [kES’tãw ] Por se tratar de um corpus relativamente pe-
queno, apenas 40 informantes de cinco capitais
Aspiradas ♦ mercado [ mEú’kadu] nordestinas, e por não considerarmos nesta
análise alguns fatores linguísticos como distân-
♦ = Maior influência - ■ = Influência média
cia em relação à tônica, tonicidade, sufixação,
tipo de sílaba, além dos fatores sociolinguísti-
CONSIDERAÇÕES FINAIS cos como faixa etária, escolaridade e sexo não
se pode afirmar categoricamente serem esses
Os resultados parciais encontrados combinam resultados definitivos.
com os resultados de trabalhos já realizados Com a análise dos dados definitivos das demais
na região nordestina, com relação às variáveis capitais e cidades nordestinas é possível que se
linguísticas, com pequenas diferenças quanto confirmem ou não esses resultados que, neste
às variantes diatópicas. Assim, algumas realiza- momento são parciais, apenas apontam alguns

155
caminhos e estão de acordo com os trabalhos Os dados também apontam para uma confirma-
feitos em algumas capitais nordestinas, como ção da divisão dialetal proposta por Nascentes,
os de Mota (1979) para Aracaju, Maia (1986) para da existência de um dialeto do Norte, com o sub-
Natal, Pereira (1977) para a Paraíba, e Araújo -falar nordestino, que se contrapõe ao do Sul
(2007) para Fortaleza.

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157
ACÚSTICA versus PROSÓDIA: UM ESTUDO DO PORTUGUÊS FALADO
EM MOCAJUBA
Maria Sebastiana da Silva Costa(PPGL/UFPA)48

RESUMO with the corpus of data formed in Master’s le-


vel (COSTA, in progress) for the linguistic varie-
Este trabalho apresenta os primeiros resulta- ty of the Portuguese Mocajuba (PA), under the
dos obtidos com os dados do corpus formado, North Prosodic Atlas Multimedia Project Brazil
em nível de Dissertação de Mestrado (COSTA, (AMPER-North). Are analyzed here the details
em andamento), para a variedade linguística do for the male informants, elementary education
português de Mocajuba (PA), vinculado ao proje- (BF52), middle (BF54) and upper level (BF56). In
to Atlas Prosódico Multimédia do Norte do Bra- this study consider only the data provided for the
sil (AMPER-Norte). Analisam-se aqui os dados phrases with simple noun phrases containing
relativos aos informantes do sexo masculino, 10 members, namely: The bird like bird (pwp),
nível fundamental de escolaridade (BF52), nível Renato like Renato (twk) and great-grandfather
médio (BF54) e nível superior (BF56). Neste es- like the great-grandfather (KWK). All sentences
tudo consideram-se apenas os dados fornecidos were analyzed in two ways (declarative and inter-
para as frases com sintagmas nominais simples rogative total) investigated the AMPER project.
contendo 10 vogais, a saber: O pássaro gosta do Acoustic analysis was made from the acoustic
pássaro (pwp), O Renato gosta do Renato (twk) measurements of 54 listed members, 18 of each
e O bisavô gosta do bisavô (kwk). Todas as fra- informant, who suffered six stages of treatment:
ses foram analisadas nas duas modalidades a) encoding and; b) Isolation of repetitions in
(declarativa e interrogativa total) investigadas individual audio files c) phonetic segmentation
pelo projeto AMPER. A análise acústica foi feita in PRAAT 5.0 program; d) application of Praat
a partir das medidas acústicas das vogais de 54 script; e) Selecting the best three repetitions
enunciados, 18 de cada informante, que sofreu and; f) applying the Matlab interface to obtain
seis etapas de tratamento: a) codificação e; b) the averages of the best of the three replicates.
Isolamento das repetições em arquivos de áu- Analyzed particularly the acoustic parameters
dios individuais c) segmentação fonética no pro- of fundamental frequency (semitones), duration
grama PRAAT 5.0; d) aplicação do script praat; (ms) and intensity (dB). The results showed that
e) seleção das três melhores repetições e; f) F0 is a relevant parameter in distinguishing the
aplicação da interface Matlab para se obter as two target arrangements because the data de-
médias dos parâmetros das três melhores re- noted a pincer movement on the stressed sylla-
petições. Analisaram-se particularmente os pa- ble of the word occupying the core of the final
râmetros acústicos de frequência fundamental noun phrase, the result of a downward move-
(semitons), duração (ms) e intensidade (dB). Os ment of declarative and interrogative rising for.
resultados mostraram que F0 é um parâmetro Under the same syllables, duration recorded a
relevante na distinção das duas modalidades proportionally inverse and significant variation
alvo, pois os dados denotaram um movimento considering both the educational difference ac-
de pinça na sílaba tônica do vocábulo ocupando cent. The intensity noise is not a significant pa-
o núcleo do sintagma nominal final, resultado rameter.
de um movimento descendente das declarativas KEYWORDS: Prosody. Acoustics. AMPER.
e ascendentes para as interrogativas. Nestas
mesmas sílabas, a duração registrou uma va- INTRODUÇÃO
riação proporcionalmente inversa e significativa
considerando tanto a diferença de escolaridade Compreende-se que o estudo da prosódia vem
quanto o acento. A intensidade não foi um parâ- sendo vislumbrado nas últimas décadas, ao pas-
metro acústico significativo. so que já se observa um considerável número
PALAVRAS-CHAVE: Prosódia. Acústica. AMPER. de pesquisas linguísticas na área de caracteri-
zação das estruturas prosódicas. Dentre esses
ABSTRACT estudos, em específico, encontra-se o presente
trabalho que está vinculado ao projeto AMPER
This paper presents the first results obtained NORTE.

Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal do Pará Sebast_costa@hotmail.com 49Atlas Multimédia Prosódique de L’
48

Espace Roman. 50Atlas Prosódico Multimédia do Português.

158
O AMPER-NORTE conta com as seguintes re- europeias, mas desde 2004, o grupo de pesqui-
ferências: a Ilha de Mosqueiro (GUIMARÃES, sadores estendeu-se para o continente ame-
2013), a cidade de Belém (SANTOS JR., 2008; ricano. O projeto de pesquisa, na Europa, tem
BRITO, 2012), a cidade de Bragança (CASTILHO, como coordenadores gerais os professores Mi-
2009), a cidade de Cametá (SANTO, 2011), a ci- chel Contini e Jean-Pierre Lai, do Centro de Dia-
dade de Abaetetuba (REMÉDIOS, 2013), a cidade lectologie da Universidade de Grenoble 3 (Fran-
de Curralinho (FREITAS, 2013), a cidade de Baião ça), além de Antonio Romano, da Universidade
(LEMOS, em andamento), a cidade de Santarém de Turim (Itália) e Albert Rillard, do CNRS, Paris
(LIMA, em andamento) e a cidade de Mocajuba (França).
(COSTA, em andamento), objeto desta Disserta- O AMPER-POR50 está inserido no projeto inter-
ção. Além dessas localidades, o projeto já tem nacional AMPER e estuda as variedades do por-
previsto a formação de corpora nas localidades tuguês, destacando-se o Português Europeu
de Óbidos e de Breves. Continental, o Português Europeu Insular e o
Todas as instituições e pesquisadores acima Português Brasileiro. O projeto AMPER-POR re-
mencionados possuem o objetivo em comum de lativo à variação prosódica do português é coor-
criar e organizar o mapa dialetal românico do denado pela Dra. Lurdes de Castro Moutinho, do
português. Dessa maneira, não obstante, o ob- Centro de Investigação de Línguas e Culturas,
jetivo maior, aqui, é caracterizar a variação pro- da Universidade de Aveiro.
sódica dialetal do português falado no município O AMPER-NORTE, portanto, faz parte do AM-
de Mocajuba (PA); constituir um corpus prosódi- PER-POR e tem como objetivo principal proce-
co com amostras dialetais do português falado der a um levantamento das características pro-
no município; disponibilizar o corpus on-line; e sódicas das variedades linguísticas do português
proceder a uma análise instrumental dos aspec- falado na Amazônia paraense, com a finalidade
tos prosódicos do português falado no municí- de confeccionar um Atlas Prosódico Multimídia
pio. Vale ressaltar que a escolha de Mocajuba da região Norte do Brasil.
para a referida pesquisa, deu-se pela falta da O projeto é sediado no Laboratório de Ciência e
realização de uma pesquisa de cunho supras- Tecnologia da Falem, no Campus Universitário
segmental nesta região. de Cametá (CUNTINS), da UFPA e conta com a
Assim sendo, apresentam-se, aqui, os primei- infraestrutura deste para a execução de suas
ros resultados obtidos com os dados de três dos atividades. O projeto em questão já produziu
seis informantes que comporão o corpus desta duas monografias de conclusão de curso (SAN-
pesquisa. Três informantes, do sexo masculino, TOS JR. 2008; CASTILHO, 2009), uma Disserta-
com diferentes níveis de escolaridade, a saber: ção de Mestrado (SANTO, 2010) e dois planos de
ensino fundamental (BF92), ensino médio (BF94) Iniciação Científica (SILVA, 2011; BRITO, 2012).
e ensino superior (BF96) da variedade do portu- Além disso, a coordenadora do projeto possui
guês falado em Mocajuba. A metodologia utili- uma bolsa de Produtividade do CNPq (PQ2) com
zada está previamente estabelecida pelo projeto este mesmo projeto desde 2009.
AMPER-POR, os três informantes possuem ida-
de acima de 30 anos e são nativos do município 2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DO MUNICÍPIO
de Mocajuba; as frases escolhidas apresentam EM ESCOPO
duas modalidades, afirmativa e interrogativa,
com sintagmas nominais simples ou compostos, Mocajuba é uma cidade ribeirinha e faz parte da
contemplando as três pautas acentuais: propa- região do baixo Tocantins: unidade sub-regional
roxítona, paroxítona e oxítona. na Amazônia oriental. Segundo dados forneci-
Assim sendo, o referido trabalho fará uma apre- dos pelo IBGE (2010), Mocajuba possui um ter-
sentação do projeto AMPER; posteriormente, ritório, de aproximadamente, 870, 8 km². Está
explicitará a metodologia do projeto AMPER- localizada à margem direita do rio Tocantins,
-NORTE, em seguida se deterá a uma apresen- no Nordeste do Pará e é resultante da ocupação
tação das análises acústicas das frases produzi- baseada na circulação dos rios, voltada para as
das por três informantes. E por último fará uma vias fluviais e embora já tenha passado por con-
breve conclusão dos resultados. sideráveis transformações socioespaciais, ainda
preserva marcas de uma cidade ribeirinha.
1. AMPER, AMPER-Por e AMPER-Norte Mocajuba possui uma localização privilegiada,
pois além do acesso por via fluvial, possui aces-
O projeto AMPER49 objetiva a elaboração de um so relativamente rápido por meio da rodovia PA
atlas dialetal multimídia a fim de mostrar a pro- -151, que o interliga à capital do estado e a ou-
sódia das distintas línguas românicas. Ele se tras cidades, como Igarapé-Miri, Oeiras do Pará,
iniciou somente com o estudo das variedades Moju, Cametá, Baião, entre outros (Mapa 1).

159
Mapa 1 – Localização do município de Mocajuba de 7.074 no ensino fundamental, 1.122 no nível
e de seus municípios limítrofes médio e alunos no ensino infantil e fundamen-
tal. A formação superior ainda é restrita no mu-
nicípio, tem poucas inserções de universidades
públicas e a maior parte das pessoas graduadas
atua na área educacional como professores.
Atualmente, o município faz parte do Projeto de
Interiorização implantado pela Universidade Fe-
deral do Pará e oferece os cursos de Letras e
Matemática, na modalidade intervalar.

3. METODOLOGIA
Adotaram-se, no presente estudo, todos os pro-
cedimentos metodológicos determinados pela
coordenação geral do projeto AMPER, e como
um dos objetivos do projeto compreende uma
Fonte: Sousa (2013) análise contrastiva dos dialetos estudados, o
corpus gravado é formado por seis repetições
O município de Mocajuba está dividido em Zona de 102 frases do corpus de base do projeto para
Rural e Zona Urbana. A Zona Urbana compreen- a Língua Portuguesa. Cada um dos elementos
de a sede do munícipio, que se divide em Zona constituintes das frases possui uma imagem
Central, com o Centro, onde se concentra o co- correspondente, uma vez que não é permitido
mércio e os monumentos históricos e culturais; nenhum contato dos informantes com as frases
a Zona Intermediária, que corresponde aos bair- escritas.
ros do Arraial, Campina, Pedreira e parte dos No momento da coleta de dados, a cada infor-
bairros da Fazenda, Pranchinha e Cidade Nova, mante foram pedidas seis repetições da série de
predominantemente residenciais; e a Zona de frases do corpus (em ordem aleatória), ao todo
Expansão, área em processo de consolidação são geradas 612 repetições, sendo selecionadas
ou passível de ser urbanizada, neste perímetro, para análise acústica as três melhores repeti-
estão incluídos o Bairro Novo, Monte Alegre e ções, a fim de serem estabelecidas médias dos
parte dos bairros da Pranchinha, da Fazenda e diversos parâmetros acústicos: duração, F0 e
da Cidade Nova. intensidade.
Sintaticamente, as frases são montadas de for-
2.1 POPULAÇÃO ma a apresentar Sujeito – Verbo – Complemento
A população do município de Mocajuba compre- (SVC). Com relação à entoação, elas são con-
ende a 26.745 habitantes, 18.297 na sede muni- cebidas de modo a contemplar as modalidades
cipal e 8.448 fora da sede. A população feminina declarativas e interrogativas globais; portanto,
é de 12.984, inferior a masculina que correspon- as frases que são utilizadas nas gravações são
de a 13.747. A taxa de urbanização corresponde do tipo SVC e suas expansões com a inclusão de
a 68,38. Sintagmas Preposicionais. Quanto à estrutura
O perfil populacional é característico da região sintática, todas as frases possuem apenas: 1)
amazônica, resultante da miscigenação de eu- quatro personagens: Renato, pássaro, bisavô e
ropeus, indígenas e africanos, atribuindo a esse capataz; 2) três sintagmas adjetivais: nadador,
povo uma identidade: a de caboclo amazônico. bêbado e pateta; 3) três sintagmas preposicio-
nais indicadores de lugar: de Mônaco, de Veneza
e de Salvador; e 4) um único verbo: gostar.
2.2 ESCOLARIDADE
Conforme determina o projeto geral, para a se-
Segundo dados fornecidos pela Secretaria Mu- leção dos informantes foram levados em con-
nicipal de Educação do Município de Mocajuba sideração os seguintes critérios: 1) faixa etária
(SEMEC), Mocajuba possui 75 escolas que se (acima de 30 anos); 2) escolaridade (fundamen-
destinam à educação básica (uma estadual e as tal, médio e superior); 3) tempo de residência
demais de responsabilidade do poder munici- na localidade (nativos do local). A partir desses
pal). Nestas atuam 263 docentes na rede muni- critérios, foram selecionados seis informantes
cipal e 32 na rede estadual. (três homens e três mulheres), que participa-
No ano de 2010, o número de alunos matricula- ram da coleta de dados; trata-se, portanto, de
dos na rede de ensino público alcançou a marca uma amostra estratificada. Cada informante
recebe um código de acordo com o sistema de

160
notação adotado pela coordenação do projeto aleatória), totalizando 612 frases.
AMPER-POR. O material gravado sofreu, então, seis etapas
de tratamento: a) codificação das repetições;
Quadro 1 – Codificação dos informantes do mu- b) isolamento das repetições em arquivos de
nicípio de Mocajuba segundo suas característi- áudio individuais; c) segmentação vocálica dos
cas sociais sinais selecionados no programa PRAAT 5.0;
d) aplicação do script praat; e) seleção das três
Localidade Escolaridade Sexo Código51 melhores repetições e; f) aplicação da interface
Feminino BF51
Matlab para se obter as médias dos parâmetros
Ensino Fundamen-
das três melhores repetições.
tal Masculino BF52 Na segmentação fonética, utilizamos o progra-
Mocajuba
Feminino BF53 ma PRAAT e estabeleceu-se a escala de pitch. O
Ensino Médio
Masculino BF54 script praat foi aplicado a cada uma das repeti-
Feminino BF55 ções de cada frase do corpus. A aplicação desse
Ensino Superior script gerou um arquivo.TXT contendo as medi-
Masculino BF56
das dos parâmetros acústicos frequência fun-
Para a presente análise foram selecionados damental, duração e intensidade das vogais de
três informantes, dos seis que compõem o cor- cada repetição. Antes de se proceder à análise
pus da presente pesquisa, conforme destacado acústica no interface Matlab, foram seleciona-
no quadro acima. Todos os informantes do sexo das as três melhores repetições de cada frase
masculino, com diferentes escolaridades, a sa- em termos de qualidade sonora e de similarida-
ber: ensino fundamental (BF52), ensino médio de de distribuição de vogais plenas (v) e elididas
(BF54) e ensino superior (BF56). O corpus ana- (f).
lisado é composto de 54 enunciados, 18 de cada A aplicação do interface Matlab forneceu a mé-
informante sendo 27 afirmativas e 27 interroga- dia dos parâmetros físicos – F0, duração e inten-
tivas totais. As frases foram escolhidas de modo sidade – em um arquivo fono.txt das três repe-
a contemplar as três pautas acentuais, apresen- tições de cada frase e das duas modalidades. O
tando um total de 18 oxítonas, 18 paroxítonas e interface gerou mais outros arquivos em forma-
18 proparoxítonas, distribuídas entre os sexos: to de imagem contendo gráficos das médias de
masculino e feminino. A frase oxítona é kwk (O F0, duração e intensidade de cada modalidade
bisavô gosta do bisavô), a paroxítona é twt (O Re- individualmente, assim como gráficos compa-
nato gosta do Renato), a proparoxítona pwp (O rativos de ambas as modalidades. O interface
pássaro gosta do pássaro). gerou igualmente arquivos ton contendo uma
síntese de cada modalidade sem a parte seg-
mental.
3.1 Formação e Organização do Corpus de Mo-
cajuba (PA).
4. ANÁLISE DOS RESULTADOS
Para efetivar a pesquisa em Mocajuba, contou-
-se com a ajuda de familiares desta pesquisado- Os resultados obtidos correspondem a uma
ra que moram no munícipio para a seleção dos análise parcial, desta Dissertação em andamen-
informantes. A gravação dos dados foi feita com to. O estudo foi feito a partir dos resultados dos
gravador profissional digital PMD660 Marant e dados de três informantes, do sexo masculino,
um microfone Shure dinâmico e de cabeça para com diferentes níveis de escolaridade, ensino
a captura do áudio. A taxa de amostragem de fundamental (BF52), ensino médio (BF54) e en-
cada sinal é de 44.100 Hz, 16 bits, sinal mono. sino superior (BF56). A descrição dos resultados
Faz-se importante ressaltar que os informan- deu-se pela análise dos parâmetros acústicos
tes não tiveram contato nenhum com as frases da F0 (frequência fundamental), ms (duração) e
escritas, apenas com a visualização de slides dB (intensidade). Os dados obtidos resultaram
exibidos com o auxílio de um notebook Sony da repetição de 54 frases, sendo 27 afirmativas
Vaio, por meio do programa Power Point. Para e 27 interrogativas totais. As frases foram es-
a variedade linguística de Mocajuba, está sendo colhidas de modo a contemplar as três pautas
utilizado o corpus ampliado do Projeto AMPER- acentuais.
-POR de 102 frases. Os informantes produziram Para a análise de F0, ressalta-se que foram utili-
seis repetições da série de frases (em ordem zados valores de semitons, a fim de melhor com-

51
A letra B significa português brasileiro, a letra F identifica o Estado do Pará, o número 5 é o código da zona Urbana Mocajuba e os
números pares finais referem-se sexo masculino e os números impares ao sexo feminino, os numeros 1 e 2 idenficam o Ensino Funda-
mental, 3 e 4 Ensino Medio e 5, 6 nível superior de escolaridade.

161
parar a variável escolaridade. Os gráficos abaixo mais notável nas curvas referentes à fala do in-
correspondem a sintagmas nominais simples, formante do ensino fundamental. Sendo nos ou-
com 10 vogais. As análises, respaldam-se no
núcleo acentual do sintagma nominal final das
frases, pelo qual se busca comparar as variá-
veis de sexo, tomando como base os parâmetros
acústicos da F0, ms e dB, nas frases afirmativas
e interrogativas totais, em diferentes vocábulos
e as pautas acentuais oxítona, paroxítona e pro-
paroxítona.
Assim, o gráfico abaixo faz uma comparação da
F0, entre as variáveis de sexo, sendo as frases

Gráfico 2 –as colunas com cores vermelhas (ensino fundamental),


as colunas com as verdes (ensino médio) e as colunas com as co-
res azuis (ensino superior), as cores fortes (frases afirmativas) e
as cores fracas (frases interrogativas).

tros dois casos, pouco ou quase não observável


o movimento esperado.
O gráfico abaixo faz referência a uma compara-
ção entre as diferentes modalidades de frases,
interrogativas e afirmativas, com as diferentes
pautas acentuais, no parâmetro de duração
(ms).
Os dados mostram que as paroxítonas do ní-
vel médio diferem das de nível superior, pois
enquanto nesta primeira as interrogativas são
Gráfico 1 – Pauta acentual Oxítona, representada pelas cores ver- mais longas que as afirmativas, nas proparoxíto-
melhas, a frase é kwk (O bisavô gosta do bisavô); a pauta acentual
Paroxítona, representada pelas cores verdes, a frase é twt (O Re- nas e oxítonas aconteceu o movimento inverso.
nato gosta do Renato); a pauta acentual Proparoxítona, represen-
tada pelas cores azuis, a frase é pwp (O pássaro gosta do pássa-
ro), a cores mais fracas (ensino fundamental), as cores medianas
(ensino médio) e as cores mais fortes (ensino superior), as linhas
plenas (afirmativas) e as linhas tracejadas (interrogativas).

em escopo, compostas de sintagma nominais


simples: “O bisavô gosta do bisavô” (kwk), com
núcleo oxítono, “bisavô”; “O Renato gosta do
Renato” (twt), com núcleo paroxítono, Renato; a
frase é pwp “O pássaro gosta do pássaro” (pwp),
com núcleo proparoxítono, pássaro. Abaixo se-
gue o gráfico comparativo com as três pautas.
Os resultados não são diferentes do que se tem
comprovado em hipóteses anteriores, pois em
todas as escolaridades, notou-se que as curvas
melódicas de F0, nas três pautas acentuais em
estudo, denotaram movimento ascendente nos
enunciados interrogativos e movimento descen- Gráfico 3 – as colunas com cores vermelhas (ensino fundamental),
as colunas com as verdes (ensino médio) e as colunas com as co-
dente nos enunciados afirmativos, ambos na sí- res azuis (ensino superior), as cores fortes (frases afirmativas) e
laba tônica do último sintagma nominal simples. as cores fracas (frases interrogativas).
Observou-se também, que este movimento de
ascendência e descendência, cruzam-se na sí-
laba tônica dos vocábulos oxítono (bisavô) e pa- Também notou-se que houve esta inversão nas
roxítono (Renato), originando um desenho de oxítonas, nas quais as interrogativas elevam-
pinça. Porém, no gráfico referente ao sintagma -se mais que as afirmativas, diferenciando-se
proparoxítono (pássaro), os resultados demons- das demais, pois tanto na fala de nível superior,
tram que o movimento de pinça faz-se de forma quanto na de nível médio, observou-se que as

162
colunas das afirmativas elevaram-se mais que servou-se que esse movimento, manteve-se nos
as interrogativas. três níveis de escolaridade, principalmente nas
paroxítonas e oxítonas.
O parâmetro acústico de intensidade não regis- No que se refere ao parâmetro acústico duração
trou distinção, de modo que as colunas apresen- (ms), uma comparação feita entre as diferentes
taram medidas muito próximas, tanto na distin- modalidades de frases (afirmativa e interroga-
ção referente a nível de escolaridade, quanto a tiva total), níveis de escolaridade (fundamental,
pauta acentual. médio e superior) e pautas acentuais (oxítona,
CONSIDERAÇÕES FINAIS paroxítona e proparoxítona) mostram que as
modalidades frasais, os níveis de escolaridade e
A partir de uma observação das análises dos
as pautas acentuais, registram valores inversa-
gráficos, referentes aos dados relativos aos in-
mente proporcionais. Dessa forma, confirman-
formantes do sexo masculino, de escolaridade
do-se como um parâmetro distintivo.
superior, médio e fundamental, do corpus des-
No parâmetro acústico de intensidade, os dados
ta dissertação em andamento, concluiu-se, ini-
comparativos não mostraram diferença entre
cialmente, que os parâmetros físicos acústicos,
as modalidades de frases, assim como nível de
frequência fundamental (F0), intensidade e du-
escolaridade e pauta acentual. Assim sendo, a
ração são complementares na distinção entre
intensidade não é um parâmetro acústico com-
as modalidades afirmativa e interrogativa total,
plementar de F0 e ms, no presente trabalho.
na variedade do português falado em Mocajuba
Logo, fica comprovado que os parâmetros acús-
(PA).
ticos de F0 e ms são fatores determinantes de
O parâmetro acústico de F0 denotou distinção
distinção nas modalidades frasais, afirmativa e
relevante, pelo movimento de pinça, que ocorre
interrogativa total, desta pesquisa, referente à
preferencialmente na sílaba tônica, do vocábu-
variedade falada em Mocajuba.
lo-alvo, nominal, nas três pautas acentuais e ob-

163
REFERÊNCIAS

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dade lingüística da zona rural de Belém (PA), Belém: UFPA/ILC/FALE, 2012 ( Iniciação Científica).

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de da Amazônia, Belém, 2013.

164
UMA GRAMÁTICA PARA A LEITURA E PARA A ESCRITA NA EJA
Maria Teresa Gonçalves Pereira52

RESUMO e adultos (UERJ/PROCIÊNCIA/FAPERJ). Preten-


demos elaborar um Programa de Língua Portu-
Existem obras, incorporadas a um ideário pro- guesa (Gramática, Leitura e Produção Textual)
fissional e até pessoal que nos despertaram, que privilegie o que é importante para manipu-
que nos instigaram. Com Emília no País da lar com habilidade e eficiência a língua de que
Gramática (1934) de Monteiro Lobato e A Gra- somos donos e usuários, mas de que tão pou-
matiquinha de Mário de Andrade acreditamos co usufruímos, com todas as possibilidades que
conhecer e dominar a Língua Portuguesa, sem oferece. O desafio é encontrar a maneira ade-
“excessos” ou “firulas”. O livro de Lobato não quada para, sem perder a essência, sem aban-
destoa da produção infantil e, embora demons- donar os postulados e pressupostos que a de-
tre a preocupação pedagógica, marca-se pelo finem, que traçam seu perfil, estudá-la com os
que a crítica chamou “fermento libertário”. Há alunos da EJA de modo que a considerem legíti-
tiradas contundentes sobre usos e abusos, de mo instrumento de comunicação e de expressão
gramatiquices a nomenclaturas. Os episódios na escrita e na fala.
ratificam a postura crítica sobre a realidade ob- No Brasil há uma maioria mestiça e negra, ho-
jetiva, através da e com o auxílio da linguagem. mens e mulheres, jovens e adultos, trabalhado-
Discuste a aprendizagem, personagens recla- res/as empregados/as e desempregados/as ou
mando da “caceteação” que é aprender gramá- em busca do primeiro emprego; filhos, pais e
tica, sugerindo um ensino criativo e reflexivo. mães, moradores urbanos e rurais, de periferia,
Em A Gramatiquinha (1990), Edith Pimentel Pin- comunidades ou não, ou considerados sujeitos
to reúne, não uma gramática da Língua Portu- marginais à sociedade. A compreensão do lugar
guesa, que o autor estava longe de concretizar, desses sujeitos é uma construção social a ser
mas ideias, comentários, remissões, anotações, contestada para que se construam outros sig-
sem ligação orgânica. Percebe-se a intenção de nificados. Focalizamos sujeitos que vivenciam
levar o Projeto adiante em correspondências e/ uma variedade de situações concretas forma-
ou depoimentos. À tendência sistematizadora, doras de subjetividades, definidas, no sentido
característica do espírito, juntavam-se certos genérico, como o que se reporta ao sujeito hu-
estímulos, como a necessidade de organizar os mano, por contraste às condições externas de
ideais do Modernismo. Os alunos da EJA bus- existência que precedem a entrada do sujeito
cam, na volta à escola, a inserção social que a no mundo, já que se ligará aos fluxos sociais,
formação concede, mais que outros motivos. Fa- materiais e aos signos que o circundam, o atra-
lar e escrever bem transmite segurança, eleva a vessam e o constituem. Esse sujeito age sobre o
autoestima, prepara para voos altos e gratifica presente e o real, se diferencia e se reconhece
pessoalmente. É vitória, conquista, superação nas singularidades de sua própria existência.
catártica. A formação do professor de EJA in- Na escola encontramos os/as alunos/as das
cluiria tais obras em suas referências teóricas, experiências da EJA cuja vida é ponto de par-
mas ao aluno caberia, como prática, ler Emília tida para se pensar tempo, espaço, afirmação,
no País da gramática e refletir sobre o que se avaliação e, principalmente, o diálogo com o
apresenta ludicamente em relação aos fatos da conhecimento construído. As experiências de
língua materna, percebendo-os no quotidiano. A vidas desses/as alunos/as produzem saberes
mediação do professor seria fundamental. Um que devem ser apropriados pelos/as próprios/
conhecimento linguístico auxilia a ler fluente- as alunos/as e pelas escolas, assim como pelos/
mente e a escrever com coesão e coerência, as professores/as. São sujeitos que se consti-
desfazendo dúvidas que geram leitura compro- tuem por manifestações culturais, estéticas e
metida e escrita deficiente. Instaura-se o tripé: corporais – marcas de preferências musicais, de
gramática, leitura e produção textual. moda, religiosidades, sexualidades, paternidade
PALAVRAS-CHAVE: EJA; Ensino; Gramática; e/ou maternidade em jovens e adultos.
Leitura; Escrita Pensar uma escola que considere esses mar-
Este texto é um recorte do Projeto de Pesquisa cadores, admitindo tamanha diversificação, re-
Ler, refletir, expressar: uma proposta de ensino vela-se tarefa hercúlea. Primeiramente é pre-
da língua portuguesa para a educação de jovens ciso tratá-los como são, como se apresentam,

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ mtgpereira@yahoo.com.br


52

165
conhecê-los, amadurecer o diálogo, escutá-los, da “caceteação” que é aprender gramática na
deixá-los expressar não só a voz, mas o corpo, a escola, sugerindo um ensino de gramática cria-
mente, em diferentes linguagens, os tempos e tivo e, principalmente, reflexivo.
os espaços que trazem para a escola, produzin- Para os que não conhecem Emília no País da
do da diversidade matéria-prima para a organi- Gramática, parece tratar-se de uma grande
zação das relações pedagógicas. brincadeira. Os que assim pensam, incorrem em
O Parecer CEB/CNE / 2000 (Câmara de Educa- erro de interpretação. Torna-se modelar para o
ção Básica do Conselho Nacional de Educação) ensino da gramática porque ressalta os conte-
explicita para a EJA três funções: a reparadora údos verdadeiramente essenciais, dispensando
(que desenvolve a escolarização não conseguida o conhecimento supérfluo, em perspectiva lú-
quando criança); a equalizadora (que cuida de dica. Quem leu os dois volumes de A Barca de
pensar politicamente a necessidade de oferta Gleyre (1955), a correspondência de mais de 40
maior para o que é mais desigual do ponto de anos com o amigo Godofredo Rangel, sabe como
vista das escolarização); a qualificadora (enten- Monteiro Lobato prezava a língua bem falada e
dida como o verdadeiro sentido da EJA, por pos- bem escrita; entretanto, sem rebuscamentos
sibilitar o aprender por toda a vida, em proces- gratuitos.
sos de educação continuada). Em A Gramatiquinha de Mário de Andrade (1990),
Educar jovens e adultos não se restringe a tra- Edith Pimentel Pinto reúne, não uma gramática
tar de conteúdos intelectuais, mas implica lidar da Língua Portuguesa, obra que o próprio autor
com valores, com formas de respeitar e reco- estava longe de concretizar, mesmo em primei-
nhecer os diferentes e os iguais. ra redação, mas ideias, comentários, remissões,
Existem obras que pertencem ao nosso acervo anotações, a maioria sem ligação orgânica. Per-
bibliográfico, incorporadas a um ideário profis- cebe-se a intenção de Mário de levar o Projeto
sional e até pessoal. São livros que “fizeram” a da Gramatiquinha adiante em correspondências
nossa cabeça, que nos despertaram, que nos in- e/ou depoimentos para amigos. A sua gênese
citaram, revelando alternativas até então insus- remonta a 1922, a sua idealização, até 1926, e a
peitadas para o ofício a que nos dedicamos. sua concepção final, ao triênio 1927-1929.
A (re)leitura de dois deles consolidou essas À tendência sistematizadora, característica de
ideias, às vezes esparsas, que os livros organi- seu espírito, juntavam-se, naquela época, cer-
zam, oferecendo subsídios para a concretização tos estímulos, como a necessidade de organizar,
do Projeto. em todas as frentes, os ideais do Modernismo.
Emília no País da Gramática, de Monteiro Lobato É essencial enfatizar que
e A Gramatiquinha de Mário de Andrade respon-
dem em boa parte pela pretensão de acreditar ... a idealização da gramatiquinha, como
ser possível conhecer e dominar a Língua Por- parte de um projeto mais amplo, de re-
tuguesa, sem “excessos” ou “firulas”. descoberta e definição do Brasil, no qual
O livro de Lobato, de 1934, não destoa da produ- seria, não uma consolidação completa
ção infantil lobatiana e, ainda que demonstre a e rígida dos traços peculiares à norma
preocupação pedagógica de seu autor, marca- brasileira, mas um discurso engajado,
-se sobretudo pelo que a crítica chamou “fer- de implicações linguísticas e estilísti-
mento libertário”. cas, explica o diminutivo que a carac-
Na visita ao País da Gramática há tiradas con- teriza em relação ao gênero gramática.
tundentes sobre usos e abusos, de gramatiqui- (PINTO, 1990, p.43)
ces a nomenclaturas, elementos complicadores Desde o momento em que acreditou delineada a
para o desejado gosto pela Língua Portuguesa. variedade brasileira da Língua Portuguesa, An-
Os episódios do enredo são suficientes para drade (1990,44) percebeu um campo necessita-
observarmos que, nesta obra, Lobato ratifica a do da aplicação do espaço construtivo, nisso se
postura crítica sobre a realidade objetiva, ins- empenhando de maneiras diversas em críticas
taurando-a através da e com o auxílio da lingua- exacerbadas, quase sempre contra os gramáti-
gem, o que o coloca ao lado dos modernistas cos e filólogos, que só se preocupavam com a
da década de 20. Muito embora a publicação de “Lisboa gramatical”.
Emília no País da Gramática date de 1934, sabe- A autora comenta que sua posição era privile-
mos que Monteiro Lobato já apregoava as mu- giada: enquanto um gramático sentiria a res-
danças propostas em 1918, quatro anos antes ponsabilidade, em todas as suas implicações,
da Semana de Arte Moderna. Mário podia apresentá-la com feição própria,
Por outro lado, o livro abre discussão sobre a por ser leigo na matéria. Para ele (1990,48), “o
aprendizagem, pois os personagens reclamam importante não é aliás a vaidadinha de ter língua

166
diferente, o importante é se adaptar, ser lógico gramatical, tais autores concordavam tacita-
com a sua terra e o seu povo”. mente em que não deveriam variar as conven-
Mário de Andrade designava a variedade brasi- ções gramaticais básicas, pontos de referência
leira da Língua Portuguesa como fala brasileira. para fins de perfeita compreensão.
A expressão evocava a realização oral, sendo na Há, entretanto, um espaço livre em que pode-
oralidade, viva ou transposta para a literatura mos transitar, tentando algumas reformulações
pelos escritores, que recolhiam traços de pro- que melhorem as relações entre o usuário da
núncia, de léxico e de gramática, destinados a língua e o seu sistema linguístico.
documentar a distinção da variedade brasileira. Os alunos da EJA buscam, na volta à escola, fora
A Gramatiquinha se configura, em linhas gerais, do tempo “certo”, a inserção social que a for-
como uma plataforma das ideias do autor so- mação concede, mais do que quaisquer outros
bre a gramática, sobre a variedade brasileira da motivos. Falar e escrever (dominar, manipular)
Língua Portuguesa e sobre a expressão literária bem a sua língua transmite segurança, eleva
modernista. São notas (de leitura e de outiva) e a autoestima, prepara para voos mais altos e
reflexões fortuitas. Considerada enquanto gra- gratifica pessoalmente. É uma vitória, uma con-
mática, a obra deveria situar-se num terreno quista, uma superação catártica.
indeciso entre o descritivo e o filosófico, ficando Servi-me, para a pesquisa de campo, dos pres-
o aspecto prescritivo aparentemente descar- supostos da pesquisa-ação. Justifica-se tal me-
tado. “Não falar nem uma vez em regras nem todologia em virtude de facilitar, segundo Thiol-
tampouco em normas, se possível. Falar só em lent (2000, 8), “(...) a busca de soluções aos reais
Constâncias” (1990,61). problemas para os quais os procedimentos con-
Embora tal posição se aproxime também da de vencionais têm pouco contribuído”.
João Ribeiro, que explicava as “leis” da língua Desenvolveu-se assim um estudo para tornar o
como “tendências”, é Dauzat (La philosophie du saber linguístico um portal de entrada que ga-
langage, ed. rev. Paris, Flammarion, 1948) que ranta o êxito do indivíduo em seus projetos de
aparece citado textualmente: “No último capí- comunicação e, consequentemente, em outras
tulo antes da Conclusion de Dauzat tem muitas práticas da vida quotidiana em que lance mão da
razões provando o absurdo das regras em uso, sua experiência com o texto.
o absurdo das regras em geral, etc. Devo me A pesquisa-ação é uma metodologia eminen-
aproveitar muito dele” (1990, 61). temente pedagógica, de caráter formativo, que
Lobato e Andrade eram homens para os quais parte de uma situação social concreta que pre-
a cultura era fundamental: a língua se colocava cisa de transformação, por isso, pesquisa e ação
no quadro dos valores culturais da Humanidade. caminham imbricadas. Numa pesquisa-ação
Realço o trabalho de ambos como modelos por- crítica, a transformação se sustenta por uma
que pregavam que as questões linguísticas e as reflexão coletiva que paulatinamente vai assu-
culturais estavam entrelaçadas, mesmo com mindo ares de criticidade.
pontos de vista divergentes a respeito de certos Nesse sentido, ela não se afina com princípios
fatos. positivistas de racionalidade, mas ultrapassa a
Tanto Emília nos País da Gramática quanto A compreensão e a descrição do objeto de estudo
Gramatiquinha deixam em quem as lê gosto de para transformá-lo. Não se limita às inferências
liberdade, de escolha, de reflexão crítica. Tais lógicas e estatísticas; é permeada de raciocínio
sentimentos perpassam as obras, mesmo em do tipo inferencial com a presença da argumen-
fatos aparentemente rígidos e sistemáticos. tação e do diálogo entre interlocutores.
O conteúdo gramatical visando à EJA deve in- Assim Franco (2005, 495) sintetiza a pesquisa-
cluir teorias claras e objetivas para consulta e -ação:
uso. Não se admite a transferência pura e sim-
ples de conceitos de qualquer compêndio tra- · pesquisa na ação;
dicional para integrar um programa de Língua · pesquisa para a ação;
Portuguesa destinado a alunos com caracterís-
ticas tão especiais. Lobato e Andrade concebem · pesquisa com ação;
soluções primorosas para bebermos em suas · pesquisa da ação;
fontes. As ocorrências linguísticas com os res-
· ação com pesquisa;
pectivos comentários abrem caminhos e possi-
bilidades de adequação no uso (e na análise) da · ação para a pesquisa;
língua. · ação na pesquisa.
A par de que os fatos específicos da fala brasilei-
ra já andavam merecendo um arranjo de caráter Como há simultaneidade entre pesquisa e ação,
Franco (2005, 496) sugere que a palavra “(...) de-

167
veria ser expressa em forma de dupla seta, ao não pode ser reduzida a uma forma determinada
invés de hífen: pesquisa«ação, de modo a carac- de conhecer; ela pré-contém, por assim dizer,
terizar a concomitância, a intercomunicação e a diversas maneiras concretas e potenciais de re-
interfecundidade”. alização”. Thiollent (2000, 23) ainda acrescenta
A reflexão contínua sobre a ação é essencial e que “(...) todas as características qualitativas da
instiga transformações. Os atos de reconstruir pesquisa-ação não fogem ao espírito científico.
e reestruturar permanentemente imprimem O qualitativo e o diálogo não são anticientíficos”.
à pesquisa-ação um caráter pedagógico e, por Nesse sentido, ela não se afina com princípios
conseguinte, político. A Pedagogia, como ciência positivistas de racionalidade, mas ultrapassa a
da Educação, objetiva reflexão e transformação compreensão e a descrição do objeto de estudo
da práxis que tenha como eixo saberes frutos de para transformá-lo. Não se limita às inferências
indagações, diálogos, intencionalidades. Para lógicas e estatísticas; é permeada de raciocínio
uma metodologia de caráter formativo e eman- do tipo inferencial com a presença da argumen-
cipativo como a pesquisa-ação, Franco (2005, tação e do diálogo entre interlocutores.
489) apresenta princípios fundantes a serem Como não se pode observar tudo ao mesmo
contemplados no decorrer do Projeto: tempo, é preciso limitar e definir o foco da pes-
quisa. Trata-se de uma observação científica,
· a ação conjunta entre pesquisador e pes- sistemática, que possibilita à pesquisa validade,
quisados; fidedignidade e eficácia; uma observação par-
· a realização da pesquisa em ambientes ticipante, na qual o pesquisador desempenha
onde acontecem as próprias práticas; uma função que, no caso desta pesquisa, é a de
professor. Nas atividades do Projeto, ocupo-me
· a organização de condições de autoforma- de observações diretas e indiretas, dependendo
ção e emancipação aos sujeitos da ação; do papel na atividade.
· a criação de compromissos com a forma- Conforme sustenta Franco (2005, 491): o mé-
ção e o desenvolvimento de procedimen- todo “(...) deve contemplar o exercício contínuo
tos crítico-reflexivos sobre a realidade; de espirais cíclicas: planejamento; ação; refle-
xão; pesquisa; ressignificação; replanejamento;
· o desenvolvimento de uma dinâmica co-
ações cada vez mais ajustadas às necessidades
letiva que permita o estabelecimento de
coletivas, reflexões e assim por diante...”.
referências contínuas e evolutivas com o
Thiollent (2000, 22) observa que “(...) a pesqui-
coletivo, no sentido de apreensão dos sig-
sa-ação não é constituída apenas pela ação ou
nificados construídos e em construção;
pela participação. É necessário produzir co-
· reflexões que atuem na perspectiva de su- nhecimentos, adquirir experiência, contribuir
peração das condições de opressão, alie- para a discussão ou fazer avançar o debate das
nação e de massacre da rotina; questões abordadas”. Por tal razão, essa meto-
· ressignificações coletivas das compreen- dologia não se restringe tão somente ao âmbito
sões do grupo, articuladas com as condi- da Educação, sendo perfeitamente aplicável ao
ções sócio-históricas; entendimento de outras áreas do conhecimen-
to, como o caso da proposta inserida no Projeto.
· o desenvolvimento cultural dos sujeitos da Aliás, se o objetivo maior é a melhoria das con-
ação. dições de comunicação, a pesquisa-ação surge
Desde que não se conceba ciência como sinôni- como uma eficaz estratégia para a resolução de
mo de positivismo, a pesquisa-ação é conside- questões pontuais nas aulas de Língua Portu-
rada uma investigação científica da prática edu- guesa em que as formas convencionais de inter-
cativa que se encaixa no paradigma qualitativo, venção mostram resultados pouco satisfatórios.
apresentando, segundo Franco (2005, 489-491), Importa, em relação à EJA, fundamentalmente,
três dimensões: ontológica (conhecimento da saber se o professor: 1) tem noção da especifici-
realidade social, do objeto de estudo); episte- dade do seu alunado; 2) comporta-se no seu ofí-
mológica (conhecimento da metodologia para cio de acordo com tal percepção; 3) regula suas
intervenção na realidade pesquisada e melhor ações teóricas e práticas no sentido de viabilizar
pesquisar e formar os sujeitos num movimento o aprendizado com eficiência; 4) respeita o alu-
dialético de pensamento e ação, interpretando no suficientemente, sem atitudes paternalistas,
os dados num contexto real); e metodológica mas avaliando sempre seu esforço e limites in-
(conhecimento de procedimentos articuladores, dividuais; 5) acredita que a Língua Portuguesa
dialógicos e transformadores). pode, por meio de pressupostos teóricos e prá-
Minayo (2002, 11) alerta que “(...) a cientificidade ticas afins, relativos à gramática, à leitura e à

168
escrita, auxiliar na difícil, porém possível, es- vidências cabíveis ou possíveis. O problema se
calada com vistas à inclusão social do aluno; 6) origina da falta de condições, recursos, etc alo-
tem consciência da magnitude de sua atividade cados para a educação e para a cultura no país.
docente. Ocupo-me tão somente do microcosmo da EJA.
A atuação do professor é determinante para o Como votante de prêmio literário, recebo uma
sucesso da proposta. A construção efetiva da produção alentada para avaliação. Há várias co-
práxis é pessoal, mesmo que os fundamentos letâneas para jovens e adultos excelentes, cujas
sejam passados, entendidos e incorporados, histórias prendem a atenção, tratando de temas
mesmo que sugestões de atividades os acom- atuais, em linguagem coloquial e envolvente,
panhem. É necessário que, em seu saber-fazer além de livros de poesia, adaptações, quadri-
(Certeau, 1994), produzam algo diferente, crian- nhos, romances, etc. Sempre que vou ao Santo
do a partir das trocas, forjando novas práticas, Inácio, levo livros para sortear. Não há obriga-
constituindo-se como sujeitos educadores, su- toriedade de retorno da leitura. Em aulas pos-
perando as adversidades do contexto, assumin- teriores, se quiserem, alguns pedem para falar
do também a própria palavra. Não pode haver breves palavras para a turma sobre o que leram.
descontinuidade no trabalho, apesar de confli- Muitos trocam os livros com os colegas, incen-
tos e dilemas. tivando a multiplicação. Os mais tímidos dão re-
António Nóvoa (1995, 36) ressalta uma questão torno só para mim. Ao final do semestre, cada
central na discussão sobre a “formação” do pro- aluno recebe pelo menos um livro.
fessor, oportuna em relação à EJA. Recomenda Em determinada ocasião, um dos alunos mais
que “os professores se apropriem dos saberes calados manifestou-se espontaneamente. A his-
de que são portadores e os trabalhem do ponto tória de seu livro tratava de um porteiro (como
de vista teórico e conceptual”. Do mesmo modo ele) chamado Raimundo (como ele) que tinha
que a prática se enriquece com a produção teó- um problema sério com uma das moradoras
rica e metodológica que a informa, as práticas, (como ele). Acatou a solução mostrada no livro,
em sua riqueza e diversidade, também produ- resolvendo, assim, a pendência no seu quotidia-
zem teorias e metodologias em constante mo- no. Ao prestar seu depoimento, mostrou-se até
vimento. eloquente.
Em pesquisas sobre a análise da conversação, Coincidências existem, mas aquela foi oportuna
Gumperz (1982) concluiu que o movimento con- para os alunos perceberem os resultados prá-
versacional é a base de todos os entendimentos ticos (e não só os efeitos estéticos) da leitura.
linguísticos na conversação. Para ele, este é um Ao nos reconhecermos no que lemos. Ao apro-
conceito que resulta da habilidade de se inferir veitarmos as experiências no dia a dia. Ao nos
o que é a interação e qual a participação espe- enriquecermos culturalmente. Ao (re)criarmos
rada do interlocutor. Tannen (1989) se aproxima a realidade.
dessa perspectiva ao afirmar que o envolvimen- O episódio serviu para mostrar que esses textos
to está ligado aos laços emocionais que os in- são também atraentes e reverberam no leitor.
divíduos estabelecem uns com os outros, bem Os chamados “clássicos” devem, entretanto,
como com coisas, lugares, ideias, memórias e constar sempre das leituras, mas requerem
palavras. mediação atenta do professor para alcançarem
A gramática, longe de dispensável, vem mu- os resultados desejados.
dando seu foco de abordagem: de finalidade do Falar sobre o que leram, sobre suas próprias
ensino passa à condição de meio de expressão histórias de leituras, complementados por ou-
em uma modalidade socialmente aceita e pres- tras opiniões, questionados, gera um deba-
tigiada que vai, por sua vez, promover a inclusão te saudável, dinâmico e, principalmente, real.
do indivíduo. Necessita-se de um cidadão profi- Mesmo o professor conduzindo, enriquecendo,
ciente no uso de sua língua materna, em condi- os alunos permanecem o centro das atividades,
ções plenas de interagir socialmente com essa suas opiniões (suas inúmeras experiências) le-
língua. Na EJA, mais do que em qualquer nível vadas em conta e consideradas, nunca minimi-
de ensino da escola convencional, tal posicio- zadas ou tratadas com condescendência.
namento marca pontos preciosos em direção à Explora-se bem a linguagem, atraindo olhares
almejada inserção social. cuidadosos (e curiosos) para que prestem aten-
A leitura no país, apesar dos vários movimen- ção nas formas de dizer dos outros e as tragam
tos de incentivo, é relegada a plano secundário. para a própria escrita, incorporando-as. É um
Pesquisas, relatórios, depoimentos, instituições processo lento, mas com resultados compen-
provam que há ainda um longo caminho pela sadores, se houver preocupação sistemática e
frente. Não me deterei nas causas ou em pro- contínua. Se a percepção for um diferencial im-

169
plícito nas atividades. Ao terminarem de escrever um texto (disserta-
Vygotsky (1978) considera a linguagem (oral e ção, ofício, poesia, resumo, carta, receita, etc),
escrita) uma das ferramentas culturais mais po- os alunos devem lê-los em voz alta (Pennac).
derosas. Hicks (1996) sinaliza que o movimento Perceberão as sutilezas, a musicalidade, a cla-
do plano exterior para o interior implica um pro- reza, a adequação, a cadência, a harmonia, etc,
cesso ativo de transformações e não uma cópia que o deixam mais “completo”, mais “pronto”,
mecânica da experiência, como parte do proces- mais “interessante”. Por outro lado, sobressa-
so de construção do pensamento ou fala interna. em os desacertos: cacofonias, concordâncias
Ao mesmo tempo que o ator social internaliza o mal feitas, períodos enormes e confusos, falta
discurso social, o reorienta em direção às suas de ritmo, palavras mal colocadas ou repetidas,
próprias experiências e propósitos. Para Bakh- enfim, tudo a que o “jorro verbal” conduz.
tin (1981), o processo de aprendizagem implica a Firma-se o texto como unidade básica de ensino
apropriação de discursos, ou seja, o processo de e a noção de gênero, constitutiva do texto, como
converter as palavras alheias em próprias. objeto de ensino, considerando que os textos or-
A preocupação com a linguagem escrita esten- ganizam-se sempre dentro de certas restrições
de-se a outra questão bem complexa: a falta de natureza temática, composicional e estilís-
de cuidado ao se escolher o fragmento na obra tica, que os caracterizam como pertencentes a
completa. Há necessidade de critério e atenção este ou aquele gênero.
para não se perder a unidade semântica e/ou es- Em relação aos textos orais, ressaltamos sua
trutural. Caso se fragmentem inadequadamente utilização no planejamento e na realização de
os textos autorais, de tal forma que as caracte- apresentações públicas: entrevistas, seminá-
rísticas do gênero e da tipologia textual sejam rios, debates, apresentações teatrais, etc. O ob-
desrespeitadas, sonegando ao aluno o conheci- jetivo é o de reproduzir nas situações didáticas
mento e a experiência dos mecanismos linguís- aquelas que se colocam fora dos muros da es-
ticos que fazem do texto um todo organizado, ele cola e em que os alunos serão avaliados (em ou-
se priva do contato direto com elementos cons- tros termos, aceitos ou discriminados) à medida
titutivos – e fundamentais – da textualidade e da que forem capazes de responder a diferentes
linguagem escrita. exigências de fala e de adequação às caracte-
Aderimos à preocupação crescente do ensino rísticas próprias de diferentes gêneros do oral.
no sentido de devolver ao ato de escrever sua Quanto à modalidade escrita, recomenda-se
condição de gesto fundamental de expressão privilegiar textos de gêneros que aparecem com
humana. Há muita resistência à “redação” ou maior frequência na realidade social e no uni-
qualquer nome que a designe. Talvez porque os verso da instituição escolar, tais como notícias,
métodos e as técnicas de ensino não conseguem editoriais, cartas argumentativas, artigos de
superar o academicismo e a rotina. O ato de es- divulgação científica, verbetes enciclopédicos,
crever pressupõe tortura, esforço monótono e contos e romances, entre outros, com o devido
desagradável, desvinculado da criação e, por- cuidado para que a leitura também se faça de
tanto, do prazer. Deve-se conscientizar o aluno maneira diferenciada, respeitando a diversida-
da importância do ter-se o que dizer, querer di- de que acompanha a recepção a que os diversos
zer, para quem dizer. textos são submetidos nas práticas sociais de
Há muitas maneiras para se produzir um texto. leitura.
Ronald Claver (1999), por exemplo, em Escre- Aproveitam-se também acontecimentos impre-
ver com prazer: oficina de produção de textos, vistos: uma notícia de jornal que surpreende,
propõe um método que parece interessante. o susto provocado pelo assalto, a discussão na
Baseia-se em etapas: ler, refletir, pensar e, se loja por motivo banal, o capítulo palpitante da
possível, viajar. novela, tudo serve como motivação para a es-
Seleciona textos que falam do ofício de escrever: crita, resumida ou detalhadamente. Por outro
reveladores e questionadores, mostrando a ou- lado, a “fertilização”, produzida por textos auto-
tra face da escrita. Aparentemente sem nada a rais, põe o aluno em contato direto com gêneros
ver com o que virá mais adiante. Depois propõe que precisa manipular. Tais modelos, analisa-
um exercício de relaxamento criativo. Uma pre- dos e “imitados” em sua estrutura e linguagem,
paração para a outra etapa. Um esquentamen- gradativamente, se distanciarão, até que o alu-
to, um treino para uma escrita futura. O aluno/ no adquira domínio (cada um de acordo com a
escritor aquece a mente e a mão. Finalmente, sua capacidade) completo (ou parcial) do gênero
relaxados e/ou esquentados e, com a ajuda de para finalmente chegar a uma forma pessoal na
textos motivadores, partem para a realização da redação dos próprios textos.
tarefa proposta. A produção, na maioria das vezes, segue a se-

170
quência do estudo do texto, como referido ante- guesa, uma língua que produziu um acervo de
riormente, mas, evidentemente. isso não é rígi- recursos expressivos para dar conta da relação
do, havendo outras possibilidades. que seus falantes estabeleceram historicamen-
Deve-se fazer a correção, sempre que possível, te com o modo de vida e com a visão de mundo
na presença do aluno, cuidando-se para não in- que herdaram dos antepassados e que legaram
fluenciar ou mudar radicalmente o estilo do alu- aos descendentes. Diferentemente da língua
no-escritor, impondo-lhe uma estética que não que falamos, tem frases organizadas por sujeito
é a dele. Outra providência é comunicar ao aluno e verbo, tem regras sintáticas de concordância
o que se avaliará, que critérios valerão, definindo entre sujeito e predicado, entre o substantivo e
bem os conceitos de “errado” e “inadequado”. os determinativos e adjetivos que com ele for-
mam um sintagma, tem regras morfossintáticas
Observa-se que: para os pronomes pessoais e outras que as dis-
ensinar a escrever na aula de português tinguem das regras de nossa fala. O aluno pre-
é, portanto, apresentar os contextos de cisa reconhecer o mais amplamente possível os
diálogo em língua escrita e propiciar recursos linguístico-expressivos e dominar tais
aos alunos a participação nesses con- regras para inserir seus textos nesse diálogo.
textos. O mais amplo deles é o da lín- É fundamental, então, propiciar ações para que
gua escrita, que organiza nossa vida na o exercício da escrita pelo aluno se constitua re-
sociedade em que vivemos. (GUEDES E almente atividade intelectual – e não atividade
SOUZA, 1998, P. 149) mecânica da cópia –, para que ele tenha a opor-
tunidade e a orientação para buscar eficácia e
No caso da EJA, então, com a devida e necessá- perfeição, para que escreva para produzir (e não
ria inclusão social. apenas para resumir, parafrasear ou repetir lu-
De acordo ainda com o autor, o contexto ime- gares-comuns); para registrar, comunicar, in-
diatamente menos amplo é o da Língua Portu- fluir, entender, comover, criar.

171
REFERÊNCIAS

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172
EXPRESSIVIDADE ORAL DE LEITURA: AVALIAÇÃO ATRAVÉS
DE UMA ESCALA MULTIDIMENSIONAL
Nair Sauaia Vansiler

RESUMO Leitura expressiva, segundo Kuhn e Stahl (2003),


refere-se ao agrupamento adequado das pala-
A expressividade oral é reconhecida, não só vras em unidades maiores de significado (frases
como uma distinção entre um leitor habilidoso ou sentenças), considerando a sintaxe original
de outro menos habilidoso, mas também como do texto; sempre que possível, deve soar tão
uma condição prévia para a compreensão. Ao natural quanto à língua falada, ou seja, o leitor
incorporar traços prosódicos ou melódicos da deve usar apropriadamente a estrutura entoa-
língua falada (acentuação, variações de altura cional da língua, com pausas e ênfases em lo-
de voz, entonação, fraseado, e pausas) leitores cais específicos, e mantendo um ritmo conver-
fluentes mostram que estão tentando compre- sacional consistente (ZUTTELL; RASINSKI, 1991;
ender o texto. Apresentamos uma escala mul- FOUNTAS; PINNELL, 2006). A incorporação dos
tidimensional para avaliação da expressividade traços prosódicos ou melódicos da língua falada
de leitura oral, contemplando três dimensões por leitores fluentes - acentuação, variações de
prosódicas: entonação e ênfase, fraseado e rit- altura de voz, entonação, fraseado, e pausas -
mo. Essa escala foi utilizada na avaliação da lei- mostra que o leitor está tentando compreender
tura realizada por alunos do 2º ano do ensino o texto (CAGLIARI, 1992).
médio de cinco escolas públicas de Belém, Es- Em uma perspectiva de medição de fluência em
tado do Pará. Os resultados apontam para uma leitura oral, encontramos escalas multidimen-
grave deficiência no progresso da leitura oral sionais (Fountas & Pinnell, 2006; Rasinski, 2004;
no ensino médio: a maioria desses alunos ainda ZUTTELL & RASINSKI, 1991, p.215) que incor-
não alcançou um nível minimamente aceitável poram dimensões relacionadas com a expres-
de fluência. sividade de leitura oral. Tais escalas, de modo
PALAVRAS-CHAVE: expressividade oral, avalia- geral, avaliam a maneira como o leitor revela
ção prosódica, escala multidimensional. ser guiado pelos sinais de pontuação presentes
no texto lido, assim como o agrupamento das
1. Introdução palavras para representar as unidades, como
também a ênfase como reflexão do significado.
Para uma leitura proficiente é necessário, con-
Propomos uma escala multidimensional para
forme Hasbrouck e Tindal (2005; 2006), fluência,
medição de expressividade oral neste trabalho
ou seja, ler com precisão, velocidade e com boa
que se baseia em três grupos dimensionais: en-
expressividade oral. Em torno do tema fluência
tonação e ênfase, fraseado e fluidez no ritmo.
em leitura algumas pesquisas consideram a
A seção seguinte apresenta os detalhes dos pro-
relevância do desenvolvimento de três habili-
cedimentos metodológicos adotados na pesqui-
dades (PINNELL et al., 1995; NRP, 2000, entre
sa e, em seguida, apresentaremos os resultados
outros): a habilidade para decodificar correta-
e suas implicações para o ensino/aprendizagem
mente as palavras de um texto (precisão); a ha-
da língua portuguesa.
bilidade para decodificar palavras no texto com
o mínimo de esforço e rapidez (velocidade); e
a habilidade para empregar adequadamente 2. Procedimentos metodológicos
os traços prosódicos à leitura das sentenças e Esta pesquisa mostra a avaliação de três dimen-
parágrafos (expressividade). Na busca por uma sões prosódicas (entonação e ênfase, fraseado e
conceituação de leitura fluente, precisão e auto- ritmo) na leitura realizada por alunos do ensino
maticidade na decodificação de palavras já são médio de escolas públicas de Belém, estado do
consideradas habilidades essenciais (LaBERGE; Pará. A pesquisa se divide em dois momentos,
SAMUELS, 1974; STANOVICH, 1980; ADAMS, a saber: nos meses de maio e junho do ano le-
1990; FUCHS et al., 2001, etc.). A expressividade tivo de 2013, e nos meses de janeiro e fevereiro
oral vem alcançando seu reconhecimento, não de 2014, ou seja, no final do ano letivo de 2013.
só como uma distinção entre um leitor habili- Foram 65 alunos do 2º ano do Ensino Médio que
doso de outro menos habilidoso, mas também participaram voluntariamente da pesquisa, sen-
como uma condição prévia para a compreensão do que cada aluno contribuiu com três leituras.
(ALLINGTON, 1983; DOWHOWER, 1991; KUHN; Na primeira visita participaram 54 alunos, ge-
STAHL, 2003; PAIGE et al., 2012). rando assim um corpus de 162 amostras de lei-

173
turas oral. A segunda visita se subdivide em dois frasal, que é a marca do seu plano hie-
momentos de análise, na primeira etapa partici- rárquico em face da forma ou formas
param 45 alunos, contando com 11 novos parti- linguísticas que utiliza. O que lhe dá
cipantes em relação à primeira gravação, totli- individualidade é um propósito definido
zando 135 arquivos, correspodendo a tres textos do falante, e assim a frase varia desde
lidos por aluno, na segunda etapa são analisa- a formulação linguística complexa até
das as leituras de um quarto texto, participam a simples interjeição. E a formulação
nessa etapa 20 alunos, totalizando 60 arquivos. linguística pode vir incompleta e falha,
O objetivo é a comparação no desempenho dos porque se esclarece pela situação, se
alunos. Todas as leituras foram realizadas indi- complementa com a mímica e se am-
vidualmente e as amostras foram transcritas e plia com sons inarticulados à margem
analisadas posteriormente. da língua.
Como formato para as gravações das leituras
realizadas pelos alunos foi utilizado o método Ou seja, a tradução realizada pelo leitor através
Curriculum-based measurement (DENO, 1985), de uma oralização do texto, expressará seus
assim é gravado 1 minuto de leitura em voz alta sentidos compreendidos no ato de sua leitura.
de trechos de textos previamente selecionados Para Brazil (1985) o movimento tonal é um fe-
que os alunos realizam individualmente. Esses nômeno padronizado que pode ser observado a
textos foram padronizados de acordo com os partir das subidas e descidas no tom. As esco-
seguintes critérios: com 200 até 250 palavras; lhas dos tons também estão ligadas a atenção
equivalentes à série em curso; com assuntos que o leitor dá ao texto, dessa forma o leitor
previstos no conteúdo programático da série. O expressa em sua leitura oral através dos tons a
aluno tem uma cópia do estudante da amostra ideia que constrói do texto lido.
de leitura, e o pesquisador tem uma cópia do A dimensão entonação e ênfase é compreendida
examinador da mesma amostra. O pesquisador como o modo com o qual o leitor usa a varia-
contou com a escuta da gravação e auxilio da ção na voz (tom, altura e volume) para refletir o
transcrição da leitura dos alunos. significado do texto. Conforme o desempenho do
Na próxima seção apresentamos a escala mul- aluno nessa dimensão é considerada uma nota
tidimensional para medição de expressividade com valor crescente entre 1 e 4, as quais ava-
oral proposta nesta pesquisa, baseando-se em liam-no de acordo com as seguintes descrições
três dos grupos dimensionais: entonação e ên- (adaptado de FOUNTAS & PINNELL, 2006; RA-
fase, fraseado e fluidez no ritmo (adaptado de SINSKI, 2004):
Fountas & Pinnell, 2006; Rasinski, 2004; ZUT- 1. Quase nenhuma variação na voz: o
TELL & RASINSKI, 1991, p.215). leitor lê com pouca expressividade ou
entusiasmo na voz, considerando-se
3. A escala multidimensional para medição de uma leitura monotônica; exibe pouco
expressividade oral esforço para fazer o texto soar como
língua natural; tende a ler em voz bai-
A proposta deste trabalho é demonstrar a ava-
xa, sem ênfase alguma em certas pa-
liação da leitura expressiva de alunos do 2º ano
lavras para refletir o significado.
do Ensino Médio de acordo com três dimensões:
entonação e ênfase, fraseado e fluidez no ritmo. 2. Pouca evidência de variação na voz: o
Cada dimensão pode ser avaliada independen- leitor demonstra expressividade em
temente em quatro níveis, representados pelos algumas partes do texto, onde come-
valores de 1 a 4, que descrevem o grau em cada ça a usar a voz para fazê-lo soar como
dimensão da expressividade oral. língua natural, mas não em outras; o
foco permanece só em pronunciar as
3.1 Entonação e ênfase palavras; apresenta ainda leitura com
voz baixa; alguma ênfase em palavras
Segundo Brazil (1985) as variações tonais de- é utilizada para refletir o significado
senvolvidas durante a leitura oral refletem o en- do texto.
volvimento do leitor com o que lê, assim pode-
-se entender que os tons escolhidos pelo leitor 3. Alguma evidência de variação na voz:
durante a leitura constroem o sentido do texto. a leitura soa como língua natural em
Câmara Junior (1980, p. 173) considera que: boa parte do texto, mas ocasional-
mente tende para uma leitura inex-
A frase é a unidade do discurso, (...) pressiva; volume de voz é geralmente
caracteriza-se pela entonação, ou tom apropriado na maior parte do texto;

174
o leitor apresenta ênfase em alguns tuguesa.
trechos ou palavras. 4- por que ninguém pode afirmar com...
propriedade que nunca vai agir de uma
4. Quase toda a leitura é caracterizada
certa forma.
pela variação na voz: o leitor lê com
5- o futuro vive nos pregando peças.
boa expressividade e entusiasmo ao
6- TAMBÉM é cruel... responder... as-
longo do texto todo; soa como língua
sim a alguém que possui uma certa ex-
natural na maior parte da leitura; é
pectativa de resposta afirmativa.
capaz de variar a expressão e o volu-
me da voz para dar ênfase de acordo Percebe-se que na leitura SFV apresenta ênfa-
com sua interpretação do trecho. se somente na palavra NUNCA, mas em outras
partes do texto não. Na leitura de IRC, a entona-
ção de final de frases e vírgulas é apresentada
Observemos trecho do texto 01 da primeira vi- buscando cuidado para o sentido do que ler, res-
sita: peitando a entonação esperada para cada grupo
entoacional que encontra pela frente.
“Segundo o Aurélio, o advérbio “nunca”
significa “em tempo algum; jamais”. Eu 3.2. Fraseado
acho essa palavra uma das mais perigo-
sas da Língua Portuguesa. Compreendemos o fraseado como a forma com
a qual o leitor agrupa as partes significativas
Porque ninguém pode afirmar com do que lê. Para Chafe (1988) a leitura oral de-
propriedade que nunca vai agir de uma monstrará como os diferentes sinais de pontu-
certa forma – o futuro vive nos pregan- ação podem ser prosodicamente interpretados;
do peças. Também é cruel responder exemplos são os pontos finais que quase sem-
assim a alguém que possui uma certa pre são expressos como uma queda na leitura,
expectativa de resposta afirmativa.” e as vírgulas, em Português, são geralmente
Vejamos como a avaliação na dimensão ento- interpretadas como entonação de continuidade.
nação e ênfase se dá através de dois exemplos Porém a pontuação está algumas vezes ligada a
transcritos prosodicamente para demonstrar- entonação, tonicidade, ritmo e pausa. Para o au-
mos o desempenho de um aluno com nota 02 e tor, tanto os escritores e leitores silenciosos são
outro com nota 04: capazes de processar grandes partes de infor-
mação e que para os escritores há uma necessi-
dade de um orador para poder proporcionar na
(1) SFV. Escola 02. Texto 01. Visita 01 linguagem falada uma forma em criar unidades
– nota 2 de pontuação que extrapolam o comprimento da
capacidade de leitura.
1- segundo o Aurélio. Fraseado para o nosso estudo refere-se ao
2- o advérbio NUNCA significa em tem- modo como o leitor agrupa as palavras do texto
po algum, jamais. para representar unidades maiores de significa-
3- eu acho essa palavra uma mais forte do. A leitura deve obedecer à sintaxe original, ou
e mais perigosas da língua portuguesa. seja, o leitor é guiado pela pontuação do texto e
4- porque ninguém... pode afirmar soa como a língua falada, embora mais formal.
com... proprieda:de... que nunca vai agir A avaliação dessa dimensão é baseada nas pon-
de uma ce-certa forma. tuações entre 1 e 4, que são caracterizadas pelo
5- o futuro... vive nos pregando. desempenho do leitor da seguinte forma (adap-
6- peças. tado de FOUNTAS & PINNELL, 2006; ZUTTELL &
7- também é cruel... responder assim a RASINSKI, 1991, p.215):
alguém que possui uma certa ex-pec- 5. Quase não preserva a sintaxe origi-
-tativadispensá/de resposta afirmativa. nal do texto: o leitor tem pouca noção
(2) IRC. Escola 4. Texto 01. Visita 01 – de fronteiras de frases, sentenças e
nota 4 orações; ainda exibe leitura “palavra
por palavra” e presta pouca atenção
1- segundo o AURÉLIO, o advérbio NUN- a pontuações, ênfases ou entonação.
CA significa em tempo algum. 6. Preserva um pouco da sintaxe ori-
2- jamais. ginal do texto: lê em frases maiores
3- eu acho essa palavra uma das mais (três a cinco palavras) na maior parte
fortes e mais perigosas da língua Por- do tempo, mas apresenta dificulda-

175
des em reconhecer fronteiras de fra- 3- mas passa longe de um LIVRO, RE-
ses, sentenças e orações, onde usa VISTA, material impresso em geral//
indevidamente a entonação; não se
autocorrige. 4- gente que diz que NÃO curte ler//

7. Controle maior da sintaxe original 5- ESQUISITO mesmo//


do texto: consegue ler em unidades
maiores, respeitando grande parte da 6- SEI LÁ(//) nesses casos(/) sempre
pontuação; ainda tem dificuldades em acho que é como se a pessoa estivesse
reconhecer fronteiras de frases, sen- dizendo que não curte NAMORAR//
tenças e orações, mas consegue se Vejamos como a avaliação da dimensão fraseado
autocorrigir algumas vezes; ênfase se dá através de dois exemplos transcritos po-
e entonação razoáveis, usadas para sodicamente para demonstrarmos o desempe-
marcar as fronteiras de frases, sen- nho de um aluno com nota 02 e outro com nota
tenças e orações. 04 baseada nos grupos entoacionais propostos:
8. Preserva quase toda a sintaxe origi-
(1) RNR Escola 02- Texto 2. Visita 01 –
nal do texto: Respeita principalmente
nota 2.
as unidades das cláusulas e senten-
ças, com a devida atenção à expres- 1- volta e meia a gente encontra alguém
sividade; quase toda a leitura reflete dizendo que foi alfabetizado... mas não
a pontuação e o significado do texto; que sabe ler quer dizer isso até domina
erros podem ocorrer, mas são ime- a técnica junta... junta/junta:r as sílabas
diatamente corrigidos na maioria das é capaz de... distinguir no vidro: diantei-
vezes. ro in-in... O... o inter... o itinerário... de
Analisemos a avaliação dessa dimensão através um ônibus mas passa longe de um livro,
do trecho retirado do texto 02 utilizado na pri- revista... materia:l... impresso em geral.
meira visita. 2- gente de... GENTE QUE diz que não...
curte ler.
“Volta e meia a gente encontra alguém 3- esque-esquisito mesmo.
dizendo que foi alfabetizado, mas que 4- sei LÁ.
não sabe ler. Quer dizer, até domina a 5- nesse caso sempre acho que é como
técnica de juntar as silabas e é capaz de pessoa/ que é como se a pessoa esti-
distinguir no vidro dianteiro o itinerário vesse dizendo que não... curte namorar.
de um ônibus. Mas passa longe de um
livro, revista, material impresso em ge- (2) JRR. Escola 02- Texto 2. Visita 01 –
ral. Gente que diz que não curte ler. nota 4.

Esquisito mesmo. Sei lá, nesses casos, 1- volta e meia a gente encontra alguém
sempre acho que é como se a pessoa dizendo que foi alfabetizado.
estivesse dizendo que não curte namo- 2- mas não que sabe ler.
rar.” 3- quer dizer.
4- ATÉ... domina a técnica de juntar as
Para observarmos a leitura realizada por alguns sílabas... e é capaz de distinguir no vidro
alunos quanto a essa dimensão dividiremos este dia-dianteiro o itinerário de um ônibus.
trecho em unidades entoacionais, termo em- 5- mas passa de longe de um livro, re-
pregado por Chafe (1988) para designar o se- vista, material impresso em geral.
guimento de palavras agrupadas em um único 6- gente que diz que não curte ler.
contorno entoacional, e usamos as palavras ca- 7- esquisito mesmo.
pitalizadas para marcar possíveis agrupamen- 8- sei lá.
tos frasais. Temos o seguinte: 9- nesses casos... sempre acho que é
como se a pessoa estivesse dizendo...
1- volta e meia (/) a gente encontra al- que não curte namorar.
guém dizendo que foi ALFABETIZADO,
(/) mas que não sabe LER//
RNR várias vezes durante a leitura não respeita
2- quer dizer / até domina a técnica de
os limites de frase, chega a juntar em um úni-
juntar as SÍLABAS (/) e é capaz de DIS-
co grupo entoacional os três primeiros grupos
TINGUIR no vidro dianteiro (/) o itinerá-
proposto para o texto; demonstrando com isso
rio de um ônibus//

176
a falta de atenção com a pontuação existente e lenta: faz interrupções ocasionais,
no texto de forma que não a expressa em sua porém causadas por dificuldades
oralização. Já JRR na grande maioria da leitura com palavras e/ou estruturas espe-
respeita os grupos entoacionais identificados no cíficas.
texto, como se o seu olhar de leitor observas-
se os detalhes que encontra na sinalização na 4. Ritmo conversacional consistente: lê
maior parte do texto. de uma forma natural, com o mínimo
de interrupções; as dificuldades com
3.3. Fluidez no ritmo palavras e estruturas específicas são
resolvidas rapidamente, sem que-
Para Ehrlich et al. (1993) os leitores menos ha- brar o ritmo da leitura e, geralmente,
bilidosos adaptam menos sua velocidade de lei- através de autocorreção.
tura à dificuldade que o texto possa apresentar,
seja diante de uma frase com várias marcações Observaremos como a avaliação da dimensão
gráficas, seja diante de um texto simples, o lei- fluidez no ritmo é caracterizada através do texto
tor menos habilidoso não usará da fluidez no rit- 03 utilizado na primeira visita.
mo para alcançar um melhor entendimento do
“A constituição étnica da população
que lê. Ao contrário do bom leitor, que ao se de-
brasileira é formada por três principais
parar com um texto mais técnico, por exemplo,
grupos: o indígena, o branco e o negro
buscará uma velocidade reduzida. Essa dimen-
africano. (...) Os índios contribuíram
são está também ligada ao trato com a palavra
muito para a formação da cultura brasi-
lida no que diz respeito ao reconhecimento de
leira: culinária, instrumentos musicais,
palavras desconhecidas, nesses casos é comum
nomes de lugares, a presença de pala-
o aluno quando não consegue lidar com uma
vras indígenas no português falado no
palavra nova apresentar repetição das primei-
Brasil são alguns dos exemplos.
ras sílabas ou lê-la silabificando, assim como
quando o leitor desrespeita as marcações fra- No século XX, mais um grupo étnico
sais identificadas ao longo do texto, e segue num veio participar da formação da popula-
ritmo monotônico. ção brasileira: o asiático, representado,
Sprenger-Charolles e Khomsi (1989) consi- principalmente, pelos japoneses, chine-
deram que os leitores menos habilidosos não ses e coreanos.”
apresentam flexibilidade no trato com o texto,
ou seja, não conseguem refletir sobre seus atos Agora vejamos como as notas foram dispostas
de leitura ou posicionamento perante um texto aos alunos no decorrer de sua leitura para ava-
para que alcancem uma leitura mais adequada liá-los nessa dimensão.
ou aplicável no momento da qual o leitor apre-
senta. (1) BS. Escola 04. Texto 03. Visita 01 –
O leitor fluente lê de forma natural, com padrão nota 1
rítmico consistente e o mínimo de dificuldade.
Assim, pode-se identificar, com relação ao pa- 1- a constituição/ técnica da população
drão rítmico da leitura pontuação entre 1 e 4, brasileira é formada por três princi...
que são caracterizadas pelo desempenho do lei- principais grupo.
tor, assim temos (adaptado de ZUTTELL & RA-
SINSKI, 1991, p.215): 2- o indígena,... indíg/indígena...o bran-
co e o negro...africano.
1. Ritmo lento e trabalhoso: o leitor exi-
be várias interrupções extensas, he- 3- os índioconst/contriburam muito
sitações, falsos começos, dúvidas na para formação da cultura brasileira.
leitura de palavras, repetições e/ou 4- culinária,...instrumento musicais,
múltiplas tentativas. nome de lugares, a presença de pala-
2. Ritmo moderadamente lento: encon- vras indígena...no português falando no
tra vários pontos difíceis no texto, Brasil são alguns exemplos.
onde ocorrem interrupções (algu- 5- no século vinte, mais um gupro...
mas prolongadas), hesitações, re- TÉCNI/TÉCNICO veio participar da for-
petições, etc., de forma frequente e mação da população brasileira.
desordenada.
6- o asiático.
3. Ritmo com mistura de leitura rápida

177
7- representado pincipralmente pelos j/ média geral a partir das pontuações obtidas em
japoneses, chineses e... coreanos. cada dimensão, conforme ilustrado na Tabela
01. Essa quantificação também permite avaliar o
(2) JAS. Escola 02. Texto 03. Visita 01 desempenho da escola como um todo, calculan-
do-se sua média a partir das médias alcançadas
– nota 4
pelos alunos.
1- a constituição técnica da população
Tabela 01. Cálculo das médias de fluência por
brasileira é formada por três principais
aluno e por escola
grupos.
2- o indígena, o branco e o negro afri- NÍVEL
ENTONAÇÃO FLUIDEZ NO FINAL
cano. ALUNO
E ÊNFASE
FRASEADO
RITMO DO
ALUNO
3- os índios contribuíram muito para
TXT TXT TXT TXT TXT TXT TXT TXT TXT
a formação da cultura brasileira, culi- 01 02 03 01 02 03 01 02 03
nária, instrumenta/instrumentos mu- AF 4 3 4 4 3 4 3 3 4 3,5
sicais, nomes de lugares, a presença EHC 3 2 1 3 3 3 3 3 3 2,6
GLF 3 2 3 2 2 2 2 3 3 2,4
de palavras indígenas do portugue/no MÉDIA GERAL DA ESCOLA 2,83
português falado no Brasil são alguns Fonte: Projeto Proficiência em Leitura, processo No. 487139/2012-7 / CNPq.
exemplos.
O nível final refere-se ao modo como o leitor in-
4- no século vinte, mais um grupo é/ét- tegra as três dimensões, pois seu desempenho
nico veio participar da formação da po- é variável, dependendo não só de cada dimen-
pulação brasileira. são como do tipo de texto lido. Por exemplo, na
tabela 01, AF alcançou o nível 4 em entonação/
5- o asiático, representado principal- ênfase e fraseado nos textos 01 e 03, mas ob-
mente pelos japoneses, chineses e co- teve 3 no texto 02; já em relação ao ritmo, AF
reanos. alcançou 3 na maioria dos textos lidos. Sua mé-
Podemos observar que a nota 01 foi atribuída à dia geral é, portanto, 3,5. Esse resultado final
leitura de BS deste trecho devido uma incons- indica o desempenho do aluno ao integrar todas
tância de fluidez caracterizada por suas pausas as dimensões. Tal integração revela se o aluno
em lugares inadequados, como por exemplo, na possui uma leitura não fluente, pouco fluente ou
linha 02 em que por duas vezes (1- indígena...o fluente, da seguinte forma:
branco, e 2- negro...africano) a quebra de ritmo
Média de 1 a 2=leitura não fluente: leitura é mo-
acontece.Lenta, tanto devido o provável desco-
notônica e inexpressiva, com ritmo lento e tra-
nhecimento de um grande número de palavras,
balhoso; há muitos erros no agrupamento de
quanto à quebra de sentenças, como quando cria
palavras e muitas pausas em locais inadequa-
o grupo entoacional 06, as faltas de pausas ade-
dos, hesitações, repetições, dúvidas ou erros na
quadas nas vírgulas e caracterizando-se numa
leitura de palavras, etc., com perdas no signifi-
leitura rápida quebrada por um não respeito de
cado geral do texto; a autocorreção é rara ou
entonação, como no caso do grupo entoacional
ausente.
04: “a presença de palavras indígena... no portu-
guês falando no Brasil”. Média de 2,1 a 3= leitura pouco fluente: pode
JAS apresenta uma constante na fluidez do oscilar entre leitura expressiva e inexpressiva,
ritmo no grupo entoacional 03, por exemplo, e rápida e lenta; demonstra alguma atenção à
segue respeitando as pontuações gráficas do pontuação e à sintaxe do texto, mas ainda exibe
texto, como se estivesse associando as três di- erros em agrupamentos de palavras e algumas
mensões prosódicas para conseguir expressar pausas indevidas, hesitações e repetições; há
o sentido. poucos ajustes na entonação para transmitir o
As pontuações recebidas em cada dimensão da significado; com eventual autocorreção.
escala proposta compõem uma média observa-
da como Nível Final em Expressividade Oral ou Média de 3,1 a 4= leitura fluente: leitura é fei-
Prosódica. Vejamos a seguir com mais detalhe. ta em grandes unidades sintáticas (sentenças
e orações), respeitando a pontuação e a sintaxe
3.4 O Nível Final de Fluência em Expressivida- originais do texto; há ajustes na entonação de
de Oral ou Prosódica modo a refletir o significado na maior parte do
Para se obter o nível final de fluência em texto; o leitor mantém um bom ritmo na leitu-
expressividade oral de cada aluno, calcula-se a ra de modo a soar como língua natural e quase

178
sempre se automonitora quanto aos deslizes, maior, 60%, no nível pouco fluente. A escola 05
corrigindo-os imediatamente. não apresenta nessa segunda etapa alunos no
Percebe-se que a escala multidimensional con- nível mais baixo, porém há ainda um grande nú-
templa de forma objetiva e separada as três im- mero de alunos no nível pouco fluente. Vejamos:
portantes dimensões da leitura expressiva oral.
Pois, as pontuações individuais observam um ní- Gráfico 02: Gráfico comparativo por nível de flu-
vel final de expressividade oral, demonstrando ência por escola
a forma como o aluno utiliza os recursos pro-
sódicos da língua falada durante a leitura. As-
sim como identifica em quais dimensões o aluno
apresenta maior dificuldade. A seção seguinte
apresenta os resultados obtidos com as análi-
ses das 297 leituras coletadas nas duas visitas
realizadas.

4. Resultados
O gráfico 01 traz o quadro comparativo do nível
de fluência em expressividade oral entre a pri-
meira visita e a primeira etapa da segunda visi-
ta. Observa-se que a escola 01 mantem o nível
de fluência. As outras escolas apresentam-se
concentradas no nível de leitura pouco fluente, e
que apresentam evolução do desempenho geral
dos alunos.
No próximo gráfico observamos que o desem-

Gráfico 01: nível final de expressividade por es-


cola

Fonte: Elaborado pelo autor

Com essa comparação constatamos que no de-


correr do ano letivo os alunos apresentam sim
uma melhora no desempenho à medida que as
propostas de trabalhos realizadas na escola
também vão exigindo mais dos alunos, porém
o que se constata muito além do que se espera
quanto ao desempenho versus exigência, já que
Fonte: Elaborado pelo autor no início do segundo ano o aluno ainda possa de-
monstrar dificuldades inerentes ao primeiro ano
penho geral dos alunos nos três níveis finais e no fim do ano letivo já apresentar melhoras
por escola apresenta uma melhora significati- para os desafios do terceiro e último ano do En-
va em comparação aos resultados apresenta- sino Médio, acompanhando essa melhoria vem a
dos na primeira visita. Duas das quatro escolas presença do nível Não Fluente nessa etapa.
analisadas não apresentam alunos no nível não Esses resultados demonstram que, apesar dos
fluente. A escola 01, que já na primeira visita alunos terem obtido melhores resultados no de-
não apresentava alunos no nível não fluente, correr do ano letivo de 2013, estão quase a fi-
agora apresenta concentração dos alunos no ní- nalizar o Ensino Médio ainda com um nível de
vel fluente. A escola 02, que na primeira visita fluência incompatível com o esperado. Em nos-
apresentava concentração no nível não fluente, sa pesquisa encontramos alunos com extremas
apresenta agora somente um aluno neste nível, dificuldades em adequar a velocidade quanto às
e tem a maioria dos seus alunos, quase 70%, no dificuldades que encontram nos textos, em con-
nível Fluente. A escola 04 apresenta alunos em formidade com Sprenger-Charolles e Khom-
todos os três níveis, porém com concentração si (1989), essas são características de alunos

179
com menos habilidades de leitura, isso pode
demonstrar que esses leitores não analisam
seus atos perante o texto lido. Além de encon- (2) RNR – Escola 02. Texto 02, visita 01
trar alunos com dificuldades em agrupar partes
significativas para buscar o sentido do que lêem, 1- segundo o Aurélio… o advérbio nunca signifi-
porém segundo Chafe (1988), a pontuação pode ca… em tempo algum.
não ser fonte exclusiva para guiar o leitor para 2- jamais eu acho essa palavra… uma das mais
a interpretação prosódica, toda via é através da fortes e mais perigosas da língua portuguesa.
maturação com o trato do texto lido que o leitor
aprende a lidar com a linguagem escrita, impri-
mindo suas interpretações em seus traços pro-
sódicos. Vejamos os exemplos a baixo: Muitos alunos realizaram a mesma que-
Esse é um trecho do texto 02 lido pelos alunos bra de sentença como OSG e RNR, considerando
na visita 01: o termo “jamais” não como mais um significado
da palavra “nunca”, mas sim o deslocam para a
Segundo o Aurélio, o adverbio “nunca” significa sentença seguinte dando o sentido de que o au-
“em tempo algum jamais”. Eu acho essa palavra tor do texto jamais consideraria a palavra nunca
uma das mais fortes e perigosas da Língua por- como uma palavra perigosa, quando na verdade
tuguesa. (...) por significar jamais, o autor a acha perigosa.

Através da escala multidimensional é pos-


sível representar a medição do desempenho dos
(1) OSG – Escola 03. Texto 02, visita 01. alunos de uma classe, a tabela abaixo apresen-
1- segundo o Aurélio… o advérbio NUNCA… sig- ta a medição de cada aluno da escola 01 par-
nifica em tempo algum. ticipante desta pesquisa na visita 01, podemos
perceber a pontuação obtida pelo aluno nas três
2- jamais eu acho essa palavra uma das mais dimensões em cada texto lido.
fortes e perigosas da língua portuguesa.

Tabela 02: Desempenho dos alunos da escola 01, visita 01


ENTONAÇÃO E NÍVEL EN- FLUIDEZ NO RIT- NIVEL
ALUNO FRASEADO NIVEL NÍVEL
ÊNFASE TONAÇÃO MO
TXT TXT TXT TXT TXT TXT FRASEADO TXT TXT TXT FLUI-
  FINAL
01 02 03 E ÊNFASE 01 02 03 01 02 03 DEZ
JJS 2,0 1,0 2,0 1,7 3,0 2,0 2,0 2,3 3,0 3,0 3,0 3,0 2,3
GLF 3,0 2,0 3,0 2,7 2,0 2,0 2,0 2,0 2,0 3,0 3,0 2,7 2,4
JCS 2,0 2,0 3,0 2,3 2,0 3,0 2,0 2,3 3,0 3,0 2,0 2,7 2,4
EHC 3,0 2,0 1,0 2,0 3,0 3,0 3,0 3,0 3,0 3,0 3,0 3,0 2,7
JNS 3,0 3,0 3,0 3,0 2,0 2,0 3,0 2,3 2,0 3,0 3,0 2,7 2,7
LM 3,0 2,0 2,0 2,3 2,0 3,0 3,0 2,7 3,0 3,0 3,0 3,0 2,7
AF 4,0 3,0 4,0 3,7 4,0 3,0 4,0 3,7 3,0 3,0 4,0 3,3 3,6
MRP 3,0 4,0 4,0 3,7 3,0 4,0 4,0 3,7 3,0 4,0 4,0 3,7 3,7
MA 3,0 4,0 4,0 3,7 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 3,9
AFS 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0
LJN 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0 4,0

Entre as escolas as diferenças dos de- dos alunos de cada uma delas. O gráfico 03 traz
sempenhos entre as dimensões continuam bem essa comparação.
acentuadas como na visita 01, indicando uma
heterogeneidade significativa no desempenho

180
Gráfico 03: Distribuição das médias por dimen- refletir sua própria interpretação do texto.
são

5 – Considerações Finais

A prosódia demonstrada na leitura é


comprovadamente uma boa indicação de que a
criança está ou não se tornando um leitor pro-
Fonte: Elaborado pelo autor ficiente (STANOVICH, 1980; RASINSKY, 1990;
JENKINS et al., 2003). Afinal, um agrupamento
Na escola 01 os alunos apresentam uma sintático apropriado das palavras, com entona-
decaída na dimensão fluidez no ritmo. Nas ou- ção, ênfase e ritmo adequados, faz com que os
tras escolas o desempenho melhora, encon- leitores elevem, e reflitam na leitura, sua pró-
tramos nas escolas 02, 04 e 05 um melhor de- pria interpretação da passagem, uma relação
sempenho da dimensão fluidez no ritmo, com presente não só na leitura oral, mas também na
acompanhamento oscilante nas outras duas leitura silenciosa (PINNELL et al. 1995; FUCHS
dimensões. et al., 2001; STAHL; KUHN, 2002, entre outros).
Podemos observar, segundo o gráfico 04, A escala apresenta uma avaliação ampla
que há uma elevação da quantidade de alunos do desempenho individual de cada aluno partici-
que finalizam o segundo ano do Ensino Médio pante. É possível observar as medições em cada
no nível fluente, porém essa concentração de dimensão, e analisar em qual o aluno apresenta
alunos classificados em um nível intermediário dificuldade, assim como traçar um perfil evolu-
é preocupante, principalmente porque se trata tivo do aluno ajudando o professor a traçar obje-
de um nível escolar – 2º ano do ensino médio tivos e metas para este aluno.
– no qual os alunos todos já deveriam ser ple-
namente fluentes, pelo menos desde o ensino Percebemos com nossos resultados e os
fundamental (RASINSKI et al., 2005), pois essas embates teóricos que as escolas necessitam de
habilidades emergem cedo na vida escolar da um melhor preparo para com as dificuldades de
criança (CHALL, 1983), vejamos: seus alunos perante suas dificuldades na lei-
tura. Com isso, apresentamos escala multidi-
mensional e consideramos sua forma objetiva e
Gráfico 04: Comparação do nível de expressi- separada em avaliar as três importantes dimen-
vidade oral entre as visitas 01 e a etapa 01 da sões da leitura expressiva oral.
visita 02

Fonte: Elaborado pelo autor

Contudo o que se verifica é que, no geral, a


maioria dos alunos apresenta muita dificuldade
em empregar, na leitura, a naturalidade da fala.
Em grande parte, oscilam entre leitura expressi-
va e inexpressiva, rápida e lenta. Exibem algum
domínio da pontuação e da sintaxe do texto, mas
ainda não monitoram completamente os equí-
vocos ao agrupar palavras em unidades maio-
res de significado, pausando ou estabelecendo
fronteiras entoacionais em locais indevidos; há
também poucos ajustes na entonação de modo a

181
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183
DISCURSO COMO CONJUNTO DE ESTRATÉ- tratégias; o objetivo é, a partir de um ponto de
GIAS: A PERSPECTIVA FOUCAULTIANA EM vista discursivo, verificar a pertinência deste es-
A VERDADA E AS FORMAS JURÍDICAS tudo para a análise do discurso jurídico penal e
da violência, articulando os construtos teóricos
Najara Neves de Oliveira e Silva deste autor com relação às práticas sociais, no
âmbito de interesse do Direito Penal, constitu-
ídas historicamente em nossa sociedade, em
especial na cidade de Vitória da Conquista, no
RESUMO: Este trabalho pretende analisar a
Estado da Bahia. Esse estudo é o início de ou-
Conferência I, do livro A Verdade e as Formas
tras análises mais abrangentes para uma pes-
Jurídicas, de Michel Foucault, onde este autor
quisa futura sobre o discurso jurídico penal e a
apresenta o discurso como um conjunto de es-
sua articulação com o processo de violência na
tratégias; o objetivo é, a partir de um ponto de
sociedade.
vista discursivo, verificar a pertinência deste es-
tudo para a análise do discurso jurídico penal e 2 A perspectiva foucaultiana
da violência, articulando os construtos teóricos
deste autor com relação às práticas sociais, no No livro A Verdade e as Formas Jurídicas, Fou-
âmbito de interesse do Direito Penal, constitu- cault (1996 [1973]) inicia suas reflexões pela
ídas historicamente em nossa sociedade, em Conferência I, afirmando que as conferências
especial na cidade de Vitória da Conquista, no sobre esse campo de saber nasceram das prá-
Estado da Bahia. Segundo Foucault, as práticas ticas sociais do controle e da vigilância. E Fou-
sociais podem gerar domínios de saber e fazer cault esclarece que esse saber fez nascer um
aparecer novos objetos, conceitos e técnicas e tipo totalmente novo de sujeito de conhecimento
também formas novas de sujeitos. Nesse senti- sem se propor, sem se impor e sem se imprimir
do, o autor apresenta o sujeito como eixo de seu nesse sujeito, ou seja, o sujeito de conhecimen-
pensamento. O sujeito é uma construção histó- to deixa de ser ponto de origem e fundamento,
rica, e se construído historicamente, portanto deixa de ser sujeito da representação a partir de
outras formas de concepção de sujeito podem que o conhecimento e a verdade aparecem.
ser criadas. Temos assim diferentes sujeitos Na verdade o livro é uma espécie de preâmbulo
em diferentes momentos históricos. O livro que para o livro Vigiar e Punir onde esse autor de-
ora estudamos faz parte da 2ª fase de Foucault senvolve com mais amplitude as ideias apresen-
que, como genealogista, influenciado por Niet- tadas nas conferências.
zsche, tematiza a questão do poder, ou seja, de- Conforme o próprio autor diz (FOUCAULT, 1996
senvolve uma genealogia das relações de poder [1973]), trata-se de uma reflexão metodológica
e discute o que chama de crise de disciplinas. para introduzir o que ele chama de problema ou
Preliminarmente concluímos, embasados em ponto de convergência de três ou quatro séries
Foucault, que o discurso deve ser tomado como de pesquisas já desenvolvidas por ele com o ob-
conjunto de estratégias que fazem parte das jetivo de reuni-las e confrontá-las em uma pes-
práticas sociais e que, a partir de uma perspec- quisa que, não chama de original, mas denomi-
tiva de análise histórica, deve ser compreendido na de “renovadora”. Assim, o autor define sua
que as práticas judiciárias estão entre as mais pesquisa como de categoria propriamente his-
importantes que permitem situar a emergência tórica. E a primeira pergunta que faz é: “Como
de novas formas de subjetividade, onde certos se puderam formar domínios de saber a partir
elementos de regras de jogo são determinados de práticas sociais?”
enquanto domínios de objeto, tipos de saber. Antes de começar as reflexões propriamente
Esse estudo é o início de outras análises mais ditas, Foucault fala sobre o que ele chama de
abrangentes para uma pesquisa em curso sobre “marxismo acadêmico” que é a postura acadê-
o discurso jurídico penal e a sua articulação com mica que insiste em explicar (nas suas palavras,
o processo de violência na sociedade. “procurar”) tanto no sujeito humano e no sujeito
de conhecimento, quanto nas próprias formas
PALAVRAS-CHAVE: Foucault; Conferência I; de conhecimento as impressões e depósitos
Práticas sociais; Discurso. Violência; das condições econômicas, sociais e políticas
da existência, partindo do pressuposto de que
1 Introdução
aqueles são, de certa forma, previa e definitiva-
Este trabalho pretende analisar a Conferência mente dados.
I, do livro A Verdade e as Formas Jurídicas, de Ainda com relação à análise marxista tradicio-
Michel Foucault (1996 [1973]), onde este autor nal, esse autor contesta o fato da ideologia ser
apresenta o discurso como um conjunto de es- pensada como uma espécie de elemento negati-

184
vo por meio do qual se manifesta o fato de que a novas de sujeitos e formas novas de sujeitos de
relação do sujeito com a verdade ou meramente conhecimento, concluindo que o próprio sujeito
a relação de conhecimento é alterada, encober- de conhecimento tem uma história, assim como
ta, dissimulada pelas condições de existência, a relação do sujeito com o objeto ou a própria
por relações sociais ou por configurações po- verdade tem uma história. Aqui se entende que
líticas que são impostas do exterior ao sujeito Foucault chama de verdade à relação do sujeito
do conhecimento. Desfaz-se a concepção “con- com o objeto, introduzindo a análise histórica da
teudista” de ideologia; pensa-se seu funciona- problemática do poder como meio de análise ca-
mento se pensamos a ideologia de um ponto de paz de explicar a produção dos saberes.
vista discursivo; e assim entendemos a ideologia Em Microfísica do poder (1979 [1977], p.114),
como prática significativa. Foucault diz: “Podemos então supor na nossa
De acordo com Orlandi (2014), a noção de ide- civilização e ao longo dos séculos a existência
ologia deve ser ligada à noção de interpretação de toda uma tecnologia da verdade que foi pou-
(pensada a partir da linguagem), lugar de in- co a pouco sendo desqualificada, recoberta e
flexão ideológica: sempre perguntamos “o que expulsa pela prática científica e pelo discurso
isto quer dizer?” quando nos deparamos com filosófico.” O autor conclui que a verdade é aqui-
qualquer objeto simbólico. Então, ao interpretar lo “que se dá”, não é “aquilo que é”. A verdade
aparece como evidência, como “conteúdo já lá”, é acontecimento, vez que ela não é descoberta,
o sentido do objeto simbólico. “A significância, ela é suscitada, produzida; é estratégia e não
porém, é um movimento contínuo, determinado método. É acontecimento que se dá inquietando
pela materialidade da língua e da história” (...) e aquele que o busca. É uma relação que não é do
“o sentido sempre pode ser outro”. Assim, “pela objeto ao sujeito do conhecimento, ou seja, não
ideologia naturaliza-se o que é produzido pela é aquilo que está já aí para ser descoberto, mas
história (...) há simulação (e não ocultação de como dito acima, é uma relação do sujeito com
conteúdos)” (ORLANDI, 2014: 39). o objeto, sujeito que provoca seus percursos,
Desse modo, pela noção de interpretação se li- uma estratégia que se impõe a um conflito, uma
gam sentido, língua, história, ideologia, sujeito. questão (FOUCAULT, 1979 [1977], p.115).
“Não há sentido sem interpretação” e o sujeito Assim, a partir de 1961, em História da Loucura,
é requisitado a interpretar. A ideologia, desse por exemplo, Foucault apresenta uma inovação
modo, é uma prática que tem como materiali- metodológica que foi estudar os saberes sobre a
dade o discurso (como efeito de sentidos entre loucura em diferentes épocas, sem se limitar a
locutores). nenhuma disciplina, e estabelecer as condições
Por seu lado, Foucault (1996 [1973]) apresen- de possibilidade, pelo estudo dos saberes sobre
ta uma reelaboração da teoria do sujeito, além a loucura, e situar também, por sua vez, o mo-
do sujeito da filosofia. Ou ainda do sujeito da mento exato do nascimento da psiquiatria. Para
teoria marxista porque se incumbe de mostrar isso, Foucault passa a assinalar o saber como
nas Conferências, começando pela primeira que campo próprio da investigação, sem considerar
aqui estudamos que as condições políticas e a história como desenvolvimento contínuo e li-
econômicas de existência não são uma barreira near a partir de origens anteriores ao fato es-
ou um entrave para o sujeito de conhecimento, tudado que se arrastam no tempo. Nesse pro-
mas aquilo por meio do que se constituem os cesso, necessariamente o autor não se limita ao
sujeitos de conhecimento e, consequentemente, nível do discurso, mas situa-se nos espaços ins-
as relações de verdade. Desse modo, as condi- titucionais de controle, de acordo com Machado
ções políticas são o terreno onde se desenvol- (In Foucault, 1979 [1977]).
vem os domínios de saber/poder, as relações Desse modo, Foucault (1996 [1973]: 8), afirma
com a verdade e o sujeito. Assim, para fazer desejar mostrar como se formou no século XIX
uma história da verdade, Foucault preconiza que um “certo saber do homem, da individualidade,
se deva abster do modelo de sujeito de conhe- do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora
cimento absoluto e originário, para empregar o da regra”, e explicitar ainda como esse saber
modelo nietzscheano. O sujeito é, assim, a obje- nasceu das práticas sociais do controle e da vi-
tivação do homem em sujeito engendrada pelas gilância. O poder se apresenta, então, como uma
condições políticas e econômicas de existência. prática social constituída historicamente. Em
Desse modo, Foucault explica seu objetivo: Foucault não existe o poder como algo unitário
mostrar como as práticas sociais podem en- e completo, ele não trata de uma teoria geral do
gendrar domínios de saber que, por sua vez, poder. Ele não define o poder com suas caracte-
fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, rísticas universais, ele trata do poder como for-
novas técnicas e também fazem nascer formas mas dessemelhantes, heterogêneas, em persis-

185
tente mutação. Assim, o poder não é um objeto ricanas sob a perspectiva de jogos estratégicos
irrefletido, original, uma “coisa”. O poder é re- (ação/reação; pergunta/resposta; dominação/
lacional. O que implica dizer que as lutas contra esquiva e de luta). 3º eixo: Ponto de convergên-
seu exercício não possam ser realizadas de fora, cia dos dois primeiros eixos, consistindo da re-
de diferente lugar, do exterior, pois nada está elaboração da teoria do sujeito. O autor diz que
imune ao poder. E a luta contra ele é resistência a teoria do sujeito foi modificada profundamente
dentro do seu próprio âmbito. e renovada no decorrer dos anos por várias teo-
Dessa forma, pela perspectiva foucaultiana de rias e especialmente por práticas entre as quais
poder, existem formas de exercício do poder ele inclui a psicanálise como a primeira prática
diversas do Estado e que se articulam a ele de e teoria a reavaliar fundamentalmente o sujei-
maneiras várias, indispensáveis a sua sustenta- to como prioridade sagrada que estava posta no
ção e a eficácia de sua atuação. Por essa via, a pensamento ocidental desde Descartes.
análise de Foucault (1996 [1973]) indica que os Desse modo, a filosofia ocidental postulou o su-
poderes “periféricos e moleculares” não foram jeito como fundamento, núcleo central de todo
confiscados e absorvidos pelo aparelho de Es- conhecimento e como ponto de origem da liber-
tado. Tampouco foram necessariamente criados dade e da verdade. A psicanálise pôs em questão
pelo Estado e, se apareceram fora dele, não fo- esta centralidade do sujeito. E se a psicanálise o
ram necessariamente reduzidos a uma forma fez, por sua vez, a epistemologia, a história das
ou manifestação do poder estatal (FOUCAULT, ciências ou, ainda, a história das ideias conti-
1979 [1977]). nuou na trilha da filosofia cartesiana e kantiana.
Os diversos poderes são exercidos em planos O autor explica que as suas reflexões se situam
diferentes e em pontos vários da rede social no nível das generalidades o que o leva a não
e podem existir integrados ou não ao Estado. distinguir as duas concepções acima referidas.
Isso significa que as mudanças ao nível dos mi- Assim, pensar a questão da ciência é pensar em
cros poderes não estão relacionadas necessa- investigar, é pensar em verdades provisórias.
riamente às mudanças sucedidas na esfera do Dito de outra forma, a ciência se coloca no lugar
Estado. Os poderes são mobilizados como uma do falso e do verdadeiro, com capacidade para
rede de dispositivos ou mecanismos a que nada se deslocar. A verdade se constitui, então, em
ou ninguém escapa. Sem limites, fronteiras ou cada episteme.
exterior. Em consequência, nas modificações do Foucault propõe tentar ver como se dá, através
saber a partir do século XIX, as transformações da história, a constituição de um sujeito que não
da infra-estrutura não afetam o sujeito de co- é dado definitivamente, que não é origem da
nhecimento, porque se trata de formas de poder verdade histórica, mas um sujeito constituído
e de saber, de poder-saber que funcionam no no interior mesmo da história e a cada instante
nível da “infra-estrutura” e que dão lugar à rela- fundado e refundado na/pela história. O objeto
ção de conhecimento sujeito-objeto como nome de sua pesquisa se mostra como uma crítica ra-
do saber. Esta norma é historicamente especial dical do sujeito humano pela história, ou seja, “a
de acordo com Foucault (1979 [1977]). constituição histórica de um sujeito do conhe-
Nesse sentido, o objeto da pesquisa de Foucault cimento através de um discurso tomado como
será ver, através da história, a constituição de um conjunto de estratégias que fazem parte das
um sujeito que não é dado definitivamente, é práticas sociais” (FOUCAULT, 1996, [1973]: 10-
transitório; um sujeito que se forma no cerne 11).
da história, “e que é a cada instante fundado e Nessa perspectiva, o autor elege as práticas ju-
refundado na história” (FOUCAULT, 1996 [1973]: diciárias como uma das mais importantes prá-
10). Assim, o sujeito da violência contemporânea ticas sociais em que a análise histórica permite
pode ser pensado por esse viés. localizar a emergência de novas formas de sub-
Nessa perspectiva, o autor referido (1996 [1973]) jetividade.
define a pesquisa que se propõe em três eixos: Foucault propõe a hipótese de que há duas his-
1º eixo: História dos domínios do saber em rela- tórias da verdade: História interna e história ex-
ção com as práticas sociais, com um sujeito de terna da verdade.
conhecimento que não é definitivamente dado.
2º eixo: Metodológico ou de análise dos discur- 1- História interna: aquela que se corrige
sos. O discurso é explicado por Foucault como a partir dos seus próprios princípios de
um conjunto regular de fatos linguísticos em regulação, a exemplo dos métodos da
certo nível, e em outros níveis observados como história das ciências. Tudo que se pro-
polêmicos e estratégicos. A análise de discurso duziu sobre determinado objeto. Cada
proposta é embasada nas pesquisas anglo-ame- episteme trata de determinadas posi-
ções de sujeito.

186
1- História externa: aquela que acontece rio que acontece, pois estes três impulsos – rir,
em lugares diversos de formação da deplorar e detestar – são modos de afastar o ob-
verdade na sociedade, lugares estes jeto de si e por isso a relação do conhecimento
onde certo número das regras de jogo com o objeto é de distância e dominação. O dis-
são definidas e onde nascem certas for- tanciamento do objeto seria, portanto, condição
mas de subjetividade, certos domínios para melhor conhecê-lo e dominá-lo.
de objeto, certos tipos de saber. Como, Ainda de acordo com Foucault (1996 [1973]), se
por exemplo, o Manual – formas exter- esperamos realmente “conhecer o conhecimen-
nas ao sujeito, demanda da própria so- to” devemos nos aproximar não dos filósofos,
ciedade, com certa regularidade, repe- mas dos políticos, ou seja, devemos compre-
tição. Aparece quando há uma demanda ender quais são as relações de luta e de poder.
sobre determinada coisa (FONSECA- Conhecer suas práticas para entender como o
-SILVA, 2014). poder se apodera do saber, o institucionaliza e o
traz sob controle.
Desse modo, o autor deixa claro que Ao fazer a crítica ao que chama de marxismo
pretende trabalhar as formas jurídicas, universitário Foucault afasta uma concepção
expondo como certas formas de verdade do poder guiada pelo modelo econômico que o
podem ser definidas a partir da prática vê como uma mercadoria, sob o ponto de vista
penal, pois o que conhecemos como in- de um aspecto negativo do poder. Afirma então
quérito, por exemplo, é uma forma bem que, se há um modelo que pode ser esclarece-
característica da verdade em nossas dor da realidade do poder, esse modelo só pode
sociedades. Nesse sentido, o inquérito ser encontrado na relação de força, no embate
policial é aquele que inicia a persecução e na resistência, com a guerra como ilustração.
penal, em nossas práticas judiciárias, Porque o poder é situação estratégica, não é um
servindo de base para o oferecimento lugar que se ocupa nem um objeto que se pos-
da denúncia que instaura o processo sui. O poder é exercido, disputado.
penal. Ele busca uma verdade: Quem é A idéia principal (FOUCAULT, 1979 [1977]) é a de
realmente a vítima, quem é realmente o expor que as relações de poder não acontecem
autor do ato tipificado pelo Direito Penal essencialmente nem ao nível do direito, nem da
como crime. O inquérito é embasado, violência, não sendo especialmente contratuais
também, no paradigma indiciário. nem exclusivamente repressivas. Assim Fou-
cault contrapõe à visão negativa do poder uma
Nessa perspectiva, Foucault (1996 [1973]) ana- visão positiva, dissociando os termos dominação
lisa alguns textos de Nietzsche para evidenciar e repressão. Através de suas análises este autor
que o conhecimento foi arquitetado pelos ho- pretende mostrar que a dominação capitalista
mens, existindo relações de poder até na his- não se manteria baseando-se exclusivamente
tória da verdade. Foucault afirma que origem na repressão. Ao considerar os micro-poderes
difere de invenção e tudo que foi inventado pelo ele infere que a força negativa do poder não é
homem [não originado nele] tem como objetivo tudo, nem o mais essencial e que é preciso re-
alguma forma de poder: a dominação de uns so- fletir sobre seu lado positivo ou produtivo. O po-
bre os outros. Desse modo, a religião, a história, der produz realidade, domínios de objetos e ritu-
a poesia, o ideal e o próprio conhecimento não ais de verdade (FOUCAULT, 1987 [1975]).
teriam origens metafísicas anteriores aos ho- Desse modo, “a verdade não existe fora do po-
mens, mas seriam invenções suas. der ou sem o poder” (FOUCAULT, 1979 [1977]:
Nesse sentido, o conhecimento não é instintivo, 12-14). Nessa perspectiva o autor infere que a
é contra-instintivo, assim como ele não é natu- verdade é produzida devido a diversas coerções,
ral, é contranatural. Melhor dizendo, o conheci- produzindo na sociedade efeitos regulamen-
mento não faz parte da natureza humana, não é tados de poder. Sendo que cada sociedade em
algo que diz respeito à essência do homem. particular tem seu próprio regime de verdade,
Foucault (1996 [1973]) refere Spinoza que dizia ou sua política geral de verdade, o que significa
que se quisermos compreender as coisas em que os tipos de discurso [o que é de fato dito e
sua essência [em sua verdade] é necessário que não outra coisa em seu lugar] que são acatados
nos abstenhamos de rir delas, de deplorá-las ou e feitos funcionar como verdadeiros derivam
de detestá-las e somente quando estas paixões dessas coerções e de seus efeitos regulamenta-
se apaziguam podemos enfim compreender. dos de poder. Nessa trilha, os mecanismos e as
Nietzsche, segundo Foucault, além de discordar instâncias que possibilitam diferenciar os enun-
de Spinoza, afirma que é exatamente o contrá- ciados verdadeiros dos falsos, os modos como

187
estes são ratificados; as técnicas e os métodos marcado pelo objetivo a que se propõe e que se
que são sancionados para o alcance da verda- empenha a estudar, ou seja, “a escavar”, como
de, assim como a autoridade dos que detêm o ele mesmo o diz.
encargo [aqueles que tem a responsabilidade/ De início, pensamos em nos restringir apenas ao
poder, por força de serem instituídos em de- texto em questão, mas logo sentimos necessi-
terminados cargos ou mandatos] de dizer o que dade de buscar maiores esclarecimentos sobre
funciona como verdadeiro. aquilo a que o autor se refere no texto estudado,
Nesse sentido, o interesse do poder é gerir a em outros livros e outros textos de sua autoria
vida dos homens, controlar suas ações [admi- e, para isso, o livro Microfísica do poder (1979
nistrar a subjetividade, desindividualizando-os] [1977]) foi bem esclarecedor porque em entre-
para possibilitar utilizá-los ao máximo, empre- vistas Foucault explica e esmiúça seu próprio
gando suas potencialidades, mobilizando um pensamento.
sistema de aperfeiçoamento gradual e persis- Assim, tratando do saber que permite às práti-
tente de suas capacidades: interesse ao mesmo cas sociais engendrar novos objetos, técnicas,
tempo econômico e político. O que o poder obje- sujeitos [é bom lembrar que Foucault trata de
tiva é minar a capacidade de resistência política, lugar de funcionamento de sujeito, não do su-
tornando os homens cada vez mais dóceis [ob- jeito pragmático], Foucault conclui que este sa-
jetivando-os]. Dessa forma, amplia a força eco- ber está imbricado ao poder e este ao saber e
nômica e enfraquece a força política. Foucault em se tratando das práticas judiciárias (um dos
aplica essas inferências a objetos bem delimi- tipos de práticas sociais), é na estratégia-práti-
tados, particularizados. Por isso não podem ser ca do controle e vigilância que estas podem ser
aplicadas indistintamente sobre novos objetos explicadas. É o panoptismo social essa prática
[aplicar seus pressupostos indistintamente é fa- que tem como função transformar a vida dos ho-
zer disso uma ciência régia, com o que Foucault mens em força produtiva.
discorda] para não lhes fazer adotar um caráter Nesse sentido, na estratégia do controle e vi-
metodológico e lhes dar universalidade. gilância, que se desenvolveu a partir do século
Ao tratar do poder em A Verdade e as formas XIX, a prisão desempenha um papel simbólico
jurídicas Foucault coloca a questão de uma rela- e exemplar mais do que econômico, penal ou
ção específica de poder e uma tecnologia espe- corretivo. Porque é um sucedâneo da escola,
cífica de controle, que não era exclusiva do direi- do hospital, da fábrica. Foucault chama a pri-
to penal nem das prisões [embora estas sejam são de “isomorfa” e esse termo é, sem dúvida,
“isomorfas” em relação às demais instituições], mais apropriado: ela não é substituta das insti-
a exemplo do hospital, do exército, da escola, da tuições, não seria a sua “realidade mascarada”,
fábrica, conforme discorre detalhadamente na mas possui a mesma forma (e objetivos) des-
Conferência IV, quando trata sobre o Panopticon sas instituições referidas porque “é a imagem
de Bentham. da sociedade e a imagem invertida da socieda-
Enfim, o conhecimento é sempre certa relação de, imagem transformada em ameaça” (FOU-
estratégica de poder-saber em que o homem CAULT, 1996 [1973]: 123).
se encontra colocado. Tem o poder aquele que O autor conclui que a prisão “se inocenta de ser
detém ou faz valer o fato de deter um saber su- prisão pelo fato de se assemelhar a todo o resto,
perior ao dos outros; não pode haver poder sem e inocenta todas as outras instituições de serem
saber e não pode haver poder político sem um prisões, já que ela se apresenta como sendo vá-
saber especial, reflexão que o autor vai desen- lida unicamente para aqueles que cometerem
volver detalhadamente na segunda conferência, uma falta”. Fica assim explicado o sucesso e
onde analisa o mito de Édipo. aceitação da prisão: ela pode impor-se à racio-
nalidade do Direito Penal, à teoria de Beccaria
3 O discurso como conjunto de estratégias, o (contraditoriamente) e “pode se inserir e se in-
discurso jurídico penal e a violência sere de fato na pirâmide dos panoptismos so-
ciais” [onde se inserem, por sua vez, todas as
Empreendemos neste trabalho, como já dito, outras instituições de controle e vigilância] (ibi-
analisar (descrever interpretar), a Conferência I dem 1996 [1973]: 123-124)).
de Michel Foucault que inicia o livro A verdade No que se refere a este artigo, que é uma sonda-
e as formas jurídicas (1996 [1973]), tarefa arris- gem sobre a pertinência dos construtos teóricos
cada e ao mesmo tempo gratificante porque nos de Foucault para o estudo do discurso jurídico
levou a mergulhar um pouco mais no universo penal e sua articulação com fenômeno da vio-
de Foucault, ou melhor, em um dos seus univer- lência, consideramos que podemos utilizar seus
sos, se podemos assim dizer, no sentido de um aportes no que diz respeito ao discurso como
campo delimitado, universo determinado e de-

188
conjunto de estratégias das práticas sociais, no plinas. A questão da violência então é uma ques-
que se refere às condições de possibilidade e à tão política que está, sobremaneira, evidenciada
discussão sobre o poder, como veremos adian- nas práticas sociais e não apenas determinada
te, embora Foucault não trate especificamente pelo poder coercitivo do Estado e se, como diz
da violência, mas pense os mecanismos de con- Hobbes (2007) o Estado tem como finalidade a
trole e vigilância, a que se refere o direito penal, segurança do homem, de que Estado estamos
para aqueles que cometem faltas, ou seja, para falando nas atuais condições de existência? A
aqueles que se enquadram na tipificação previs- violência seria então decorrente das praticas
ta por esse direito. e poderia ser analisada como embate e resis-
Do ponto de vista de Foucault (1979 [1977]), há tência nas relações de poder que funcionam em
um importante aspecto de esclarecimento da rede na sociedade?
realidade através das redes de micro-poderes, No espaço do Discurso, pela óti-
não por uma relação direta com o Estado, con- ca da AD, podemos dizer que o discur-
siderado como centro exclusivo de poder, mas s o
por uma articulação com poderes locais, carac- jurídico do código penal é constituído na tensão
terísticos, circunscritos a uma pequena área de do logicamente estabilizado versus o não logica-
ação. O que é corroborado como evidente é a mente estabilizado. Dependendo das condições
existência de configurações de exercício do po- de produção que ao mudarem permitem rup-
der diferentes do Estado e a ele articulados de turas, transformações. Assim, Pêcheux (1997:
modos variados [como uma rede] e que são im- 30-31) questiona então a “estabilidade” dos uni-
prescindíveis à sua conservação e desempenho versos discursivos, dos quais os jurídicos fazem
eficaz. parte, e diz que a homogeneidade lógica desses
As relações de poder para Foucault são todas espaços é aparente e decorre de uma série de
as relações sociais moldadas perante o poder evidências lógico-práticas. Aparentemente,
disciplinar e, diríamos inspirados em Harouche, tem-se a impressão de que em [...] “um real na-
inseridas no cotidiano pelo juridismo que funcio- tural-social-histórico homogêneo coberto por
na como intertextualidade da instância jurídica. uma rede de proposições lógicas, onde se pre-
O sistema do direito e o campo judiciário para sume nenhuma pessoa tivesse o poder de es-
Foucault (1979 [1977]) são veículos permanen- capar totalmente”. Fala então do real da língua
tes de relação de disciplinarização, de técnicas que é equívoca e constitutivamente heterogê-
de sujeição polimorfas. nea: a língua, vista dessa forma, é atravessada
Dessa forma, essa dispersão do poder vai ex- pela bifurcação discursiva entre dois espaços: o
plicar a discordância de Foucault em relação à espaço da injunção e manipulação de significa-
teoria da soberania hobbesiana. Nela o Estado ções estabilizadas e o espaço de modificações
exerce um poder absoluto mediante um contra- de sentidos. De uma perspectiva diversa, Pê-
to social, uma vez que os cidadãos empenham cheux respalda o que é articulado por Foucault.
sua esfera de soberania, seus direitos e liber- Os estudos que pretendemos desenvol-
dades para a construção e consubstanciação da ver no futuro seguirão o pensamento de Fou-
sociedade política. Partidário do absolutismo cault, observando a pertinência desses constru-
político, Hobbes (2007) defende-o sem recorrer tos quando necessários e os de outros autores,
á noção de direito divino. Esse autor professa conforme o caso.
que a finalidade do Estado é a segurança pes-
soal do homem. Por essa perspectiva, o Estado Por essa via, compreendemos que o fe-
falha quando a violência se exacerba e ele não nômeno da violência é antigo, porém adquiriu
consegue dar conta disso, colocando em cheque visibilidade como problema social a partir do
a segurança do homem. século XX, especialmente depois de ser inse-
Para Foucault, ao contrário, o poder não é um rido na conjuntura dos direitos humanos. Para
fenômeno de dominação maciço, mas um fe- tratarmos dos distintos sentidos nos discursos
nômeno que circula. Ora os indivíduos o exer- jurídicos articulados com o processo da violên-
cem, ora se submetem a ele. É uma relação de cia, enfocaremos seu processo histórico-so-
caráter provisório. O objetivo de Foucault foi cial, suas condições de possibilidade, buscando
evidenciar que o processo que tornou possível determinar porque um efeito de sentido e não
o discurso das ciências humanas foi o enfren- outros em seu lugar, reconfigurando a pergun-
tamento de dois mecanismos e de dois tipos de ta que Foucault (1986 [1969]) faz em relação ao
discursos heterogêneos: de um lado a organiza- enunciado.
ção do direito em torno da soberania; do outro,
a mecânica das coerções exercidas pelas disci- Desse modo, estudar o funcionamento do po-
der através do discurso jurídico do código penal,

189
sem perder de vista, entretanto, a proposição de 4 Considerações finais
Foucault de que não existe O poder, mas uma
rede relacional de poderes. E, ao mesmo tempo, Pretendemos finalizar este trabalho reformu-
investigar como funciona o fenômeno da violên- lando a pergunta sobre enunciados de Fou-
cia na sociedade brasileira, tendo a cidade de cault: “Por que esses sentidos e não outros em
Vitória da Conquista como amostra. O corpus seu lugar?” A partir do Século XIX, no sistema
da pesquisa será o Código Penal de 1940 (ain- capitalista, as práticas sociais, permitidas pe-
da vigente), especialmente na sua exposição las condições políticas e econômicas (regime
de motivos, que explica as escolhas do sujeito de verdade que não é unicamente “ideológico
legislador e servirá de guia para entendermos ou superestrutural foi condição de formação e
os aportes teóricos escolhidos por este, signifi- desenvolvimento do próprio capitalismo”), fize-
cativos da sociedade e do poder, o que também ram nascer modelos de verdade que se impõem
tem um sentido a ser analisado. O código será à sociedade e valem no domínio da política, do
tratado como materialidade significante. A pes- comportamento cotidiano e na ordem da ciên-
quisa bibliográfica qualitativa e quantitativa ve- cia. Os modelos de verdade se desenvolvem nas
rificará também os indicadores estatísticos de estruturas políticas que são constitutivas do su-
violência da cidade referida durante os últimos jeito de conhecimento ou, dito de outra forma,
cinco anos. A delimitação do corpus não seguirá os modelos de verdade se dão nas estruturas
critérios empíricos (positivistas), mas teóricos. políticas que se efetivam nos modos de objetiva-
O discurso, segundo Foucault (1996 [1973]), re- ção que transformam os seres humanos em su-
sulta de diversos sistemas de controle da pala- jeitos. Porque, conforme Foucault (1979 [1977]:
vra, resultante de diversas práticas restritivas, 14) conclui, “a questão política não é o erro, a
tanto daquelas que limitam o que pode ser dito ilusão, a consciência alienada ou, [como dizem],
quanto daqueles mecanismos que delimitam os a ideologia; é a própria verdade.”
horizontes da produção e recepção do sentido. Pretendemos buscar respostas para a exacerba-
Esses controles demonstram que aquilo que é ção da violência apresentada em nossa socieda-
efetivamente dito deriva de condições de possi- de atualmente. Em uma sociedade desenvolvida
bilidades específicas e não de uma infinidade de [tecnológica e cientificamente], não seria de se
significações. esperar uma maior civilidade por parte de seus
Pêcheux (2008) também contesta a infindável componentes? Seria essa violência, nas atuais
repetição das relações de produção defendida condições de possibilidade, acima de tudo, uma
pela sociologia funcionalista, acreditando que o questão política? Porque, segundo Foucault, a
Estado com seus aparelhos ideológicos (e suas característica do poder, indo além das regras de
instituições), estabelecem, ao mesmo tempo e direito, que ele organiza e que o delimitam, se
contraditoriamente, o lugar e as condições ide- dilata para além dessas regras.
ológicas da transformação dessas mesmas re-
lações de produção. O lugar da lei, o lugar do
discurso jurídico é um lugar de tensão, segundo
esse mesmo autor, situado entre o logicamen-
te estabilizado e o desestabilizado. Lugar, por-
tanto, de embates e resistências e no âmbito
discursivo passível de deslizamentos rupturas,
possibilidade do novo.
No trabalho que empreenderemos tra-
taremos do funcionamento do discurso jurídico
penal que sustenta as instituições de Segurança
Pública e da eficácia da Lei e Ordem através da
análise da realização política do discurso jurídi-
co penal e sua especificidade em estabelecer,
representar e compor a realidade. O que permi-
te pensar, também, a eficácia social da lei penal.
Para a realização desse trabalho, por essa via,
o pensamento de Michel Foucault é pertinente.

190
REFERÊNCIAS
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DARENDORF, R. L’ aprés social-democratie, le débat. Revista de Administração de Empresas. N. 71,


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GINZGURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

HAROCHE, C. Fazer dizer, Querer dizer. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi. São Paulo: Editora Hucitec,
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HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Editora
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ORLANDI, E. P. Ciência da linguagem e política: Anotações ao Pé das Letras. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2014.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes Editores, 2008.

191
GÊNEROS TEXTUAIS E FORMAÇÃO de ensino e o texto como a unidade de ensino.
Além disso, os documentos oficiais apresentam
DE PROFESSORES: UMA PROPOSTA orientações voltadas para um ensino que trate
PARA REFLETIR, DESENVOLVER E os gêneros como esquemas de compreensão e
IMPLEMENTAR SEQUÊNCIA DIDÁTI- facilitação da ação comunicativa interpessoal,
CA NO ENSINO DE LÍNGUAS argumento este que também é defendido por
Bakhtin (1992).
Nos PCNs (1998; 1999), o ensino de gêneros se
constitui, portanto, como uma alternativa para a
Paulo da Silva Lima1 superação de práticas de ensino de línguas que
Tânia Maria Moreira2 têm como foco a língua como sistema; priori-
zando, portanto, as unidades linguísticas e suas
RESUMO: nomenclaturas. Na prática, no entanto, é possí-
vel constatar que em muitas escolas públicas do
Este trabalho está vinculado ao projeto de pes- Brasil, mesmo diante das novas tecnologias, da
quisa e extensão “Gêneros textuais no ensi- modernização de parâmetros e orientações cur-
no: da Educação Básica ao Ensino Superior”, riculares nacionais e da renovação de ideias pe-
em desenvolvimento na UNIFESSPA e aborda dagógicas que trazem contribuições de pesqui-
questões teóricas relativas ao estudo de gêne- sadores nacionais e internacionais, a prática dos
ro textual e da abordagem sequência didática professores em sala de aula tem apresentado
como subsídio ao ensino de Língua Materna e uma evolução muito lenta e abaixo do esperado.
Estrangeira. O objetivo do projeto é desenvolver Em função disso e em conformidade com o
um trabalho de formação inicial e continuada, Projeto Político Pedagógico do Curso de Letras
envolvendo docentes e acadêmicos do curso (PPPCL) da Universidade Federal do Sul e Su-
de Letras da Faculdade de Estudos da Lingua- deste do Pará, que viabiliza a importância da
gem da referida universidade e professores de pesquisa e da extensão, propomos o desenvol-
línguas que atuam na Educação Básica. Neste vimento de um projeto que vem justamente para
estudo, tomamos como ponto de partida a no- consolidar conceitos teóricos e procedimentos
ção de gênero como um megainstrumento de pedagógicos sobre os gêneros de texto, auxi-
interação social e a sequência didática (DOLZ, liando professores em formação e professores
NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004) como uma em serviço no desenvolvimento de aulas de lei-
abordagem metodológica popularizada no Bra- tura, de produção textual e de ensino de lingua-
sil após a publicação dos Parâmetros Curricu- gem na Educação Básica.
lares Nacionais (1998). No projeto, discussões Neste trabalho, temos por objetivo apresentar
teóricas e metodológicas acerca dos Gêneros ações realizadas no projeto de pesquisa e exten-
Textuais e da prática de leitura, da produção de são, intitulado “Gêneros textuais no ensino: da
textos e do ensino de linguagem na escola são Educação Básica ao Ensino Superior”. Para tan-
realizadas, em encontros quinzenais. Nossa ex- to, inicialmente, apresentamos as concepções
pectativa é contribuir na formação de um pro- de gênero e sequência didática que norteiam
fessor autônomo que se apropria do gênero a as nossas atividades, considerando os estudos
ser ensinado e encontra alternativas de trabalho de Marcuschi (2002), Dolz e Schneuwly (1998)
com a linguagem. e Dolz, Noverraz, Schneuwly, (2004). Na sequ-
ência, descrevemos a abordagem adotada no
PALAVRAS-CHAVE: Gênero textual; Sequência
desenvolvimento do projeto. Por fim, fazemos
didática; Ensino de linguagem.
referências aos resultados alcançados proviso-
riamente.
1 INTRODUÇÃO
2 GÊNEROS TEXTUAIS
Desde o final dos anos 90 até a atuali-
dade, a discussão acerca dos gêneros textuais/ Desde a década de 90, as aulas de língua mater-
discursivos ganhou fôlego no ensino de línguas na passaram a contar com mais um suporte teó-
no Brasil com a publicação dos Parâmetros Cur- rico, cujo objetivo é a ressignificação do trabalho
riculares Nacionais (PCN). Nessa perspectiva, com o texto na escola. Assim, a nomenclatura
os gêneros discursivos são vistos como objeto gêneros textuais aparece como uma “novidade”
no ensino da leitura e produção textual.
1 Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. E-mail: paulosl@ No entanto, segundo Marcuschi (2008, p. 147), o
ufpa.br
2 Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. E-mail:
estudo dos gêneros não é algo novo, pois já na
taniammoreirabr@yahoo.com Grécia antiga o termo era estudo por Platão e

192
Aristóteles. A questão é que o gênero textual era veis. Eis por que, às vezes, o chamamos
utilizado apenas na literatura e na retórica. En- de “mega-instrumento”, para dizer que
tão, após os estudos de Bakhtin, principalmente se trata de um conjunto articulado de
na obra Estética da criação verbal, o assunto co- instrumentos, um pouco como uma fá-
meçou a abranger todo ato de interação verbal, brica. Mas fundamentalmente se trata
ou seja, para o autor, toda comunicação humana de um instrumento que permite realizar
se efetiva por meio de um gênero textual. uma ação numa situação particular. E
Para Bakhtin (2010, p. 262), os gêneros são tipos aprender a falar é apropriar-se de ins-
relativamente estáveis de enunciados presentes trumentos para falar em situações de
em cada esfera social. Por isso, são caracteriza- linguagem diversas, isto é, apropriar-se
dos pelo conteúdo temático, estilo verbal e pela de gêneros.
construção composicional. O conteúdo temático
diz respeito ao tema esperado no tipo de produ- Nesse sentido, o gênero funciona como um ins-
ção (gênero) em destaque. O estilo refere-se à trumento e para se tornar mediador, para se
variante linguística utilizada na produção do gê- tornar transformador da atividade, precisa ser
nero e está vinculado ao tema e ao conteúdo. No apropriado pelo sujeito; ele não é eficaz senão à
plano composicional, por exemplo, de um car- medida que se constroem, por parte do sujeito,
tão-postal, teríamos: destinatário, informação os esquemas de sua utilização. Por isso, a pro-
em um canto à parte, saudação inicial, mensa- dução de texto é organizada e estruturada por
gem, saudação final e assinatura. um gênero global que condiciona o tratamento
Sendo assim, os gêneros servem para ordenar do conteúdo, o tratamento comunicativo e o lin-
e estabilizar as atividades comunicativas diá- guístico.
rias. Além disso, podem ser considerados como Dessa forma, o gênero passa a ser considerado
entidades sócio-discursivas e formas de ação como “um megainstrumento, como uma confi-
social em todas as situações comunicativas do guração estabilizada de vários subsistemas se-
homem. No entanto, por mais que organizem as mióticos (sobretudo linguísticos, mas também
ações das pessoas em contextos discursivos, os paralinguísticos), permitindo agir eficazmente
gêneros não são instrumentos estanques, mas numa classe bem definida de situações de co-
são caracterizados por sua maleabilidade, dina- municação” (SCHNEUWLY, 2010, p.25).
micidade e plasticidade. É justamente por isso que nos apropriamos dos
Segundo Marcuschi (2007, p. 23), os gêneros gêneros, pois, ao nos comunicarmos, os usa-
textuais são realizações linguísticas concretas mos como se eles fossem um instrumento (ou
definidas por propriedades sócio-comunicativas megainstrumentos) que manuseamos e que são
e constituem textos empiricamente produzidos fundamentais para produzirmos nossos textos
cumprindo alguma função numa situação co- (orais ou escritos), efetuando, de acordo com
municativa. Além disso, a nomeação dos gêne- nossas intenções enunciativas, uma atividade
ros abrange um conjunto aberto e praticamente verbal.
ilimitado, pois, a todo momento, as pessoas aca-
bam criando novos gêneros para se comunica-
rem por alguma necessidade social. 3 A SEQUÊNCIA DIDÁTICA COMO FERRAMENTA
A comunicação por via digital representa bem DE ENSINO
essa dinamicidade com que surgem novos gê-
neros. Isso porque, há algumas décadas, não O trabalho com os textos em sala de aula deve
existia o e-mail ou MSN, mas devido à chamada proporcionar verdadeiras situações de comu-
hera digital, o homem sentiu a necessidade de nicação, por isso é plausível que se busque de-
criar novos instrumentos capazes de levá-lo a senvolver uma atividade a partir de situações
interagir verbalmente por meio de uma tela de claras dentro de um contexto de produção. Por
computador ou um aparelho celular. Por outro isso, para uma didatização dos gêneros, torna-
lado, outros gêneros vão deixando de ser utiliza- -se necessária a articulação sistemática e uma
dos e isso ocasiona seu desaparecimento. atividade que possibilite, em sala de aula, uma
Para Dolz & Schnewly (2010, p. 143), o gênero situação real de interação. Esse tipo de atividade
textual é denominado de sequência didática.
Para Dolz, et al. (2010, p. 82), as sequências di-
é um instrumento para agir linguisti- dáticas (SD) podem ser definidas como um con-
camente. É um instrumento semiótico, junto de atividades escolares organizadas sis-
constituído por signos organizados de tematicamente em torno de um gênero textual
maneira regular; este instrumento é oral ou escrito, devendo esse trabalho ser feito
complexo e compreende diferentes ní- sempre com o objetivo de proporcionar uma co-

193
municação real entre os interlocutores. análise de textos podem ser feitas com o objeti-
Para a elaboração dessa atividade são neces- vo de identificar se houve êxito na produção do
sários alguns procedimentos. Primeiramen- gênero e se há outras alternativas para isso. Por
te tem-se a apresentação da situação e nessa isso, seria bom que alguns textos fossem com-
fase o professor deve definir se a modalidade a parados para que houvesse uma análise coletiva
ser trabalhada será a oral ou a escrita; depois de problemas específicos ou gerais.
precisa escolher o gênero, para quem ele será Após os alunos já terem adquirido as informa-
produzido e como será produzido. Também é ções necessárias sobre o gênero, eles devem
importante apresentar os conteúdos que serão adquirir uma linguagem técnica capaz de lhes
desenvolvidos e terão ligação com o gênero pro- dar suporte sobre o tema abordado na produção
posto. textual. Dessa forma, os estudantes vão se sen-
Ainda nesse início, é importante que os alunos tir seguros sempre que precisarem falar sobre
tenham contato com exemplares do gênero, ou- o assunto. Para isso, o professor pode propor a
vindo ou lendo-os, para poderem se situar sobre elaboração de um glossário sobre as atividades
as características e as funções do texto a ser desenvolvidas e sobre o gênero.
produzido. Além disso, é importante que o pro- Na produção final, o aluno colocará em prática o
fessor discuta juntamente com os alunos sobre que aprendeu durante todos os módulos da ati-
a organização do gênero escolhido. vidade de produção textual. Assim, o professor
Depois disso, os alunos realizam a primeira pro- pode realizar uma avaliação somativa, não des-
dução. Nessa fase, a formulação do texto poderá cartando a formativa, pois, nessa fase, o aluno
ser feita de forma individual ou coletiva e o pro- já será capaz de obter um controle a respeito de
fessor deve fazer uma avaliação, privilegiando a sua própria aprendizagem, ou seja, ele saberá o
forma e, consequentemente, atribuir uma nota que fez, por que fez e como fez.
ou conceito para que os alunos possam, nas ou- Essa proposta de trabalho com as sequências
tras etapas, fazer uma comparação e observar didáticas proporciona ao professor a utilização
seu próprio rendimento durante todo o proces- das duas modalidades (oral e escrita), não pri-
so. vilegiando apenas uma delas. Além disso, esse
Na primeira produção, pode-se fazer um esbo- tipo de atividade abre espaço para que questões
ço geral apenas para treinar a facção do gêne- ligadas à ortografia e à gramática sejam traba-
ro sem especificar sua destinação. Após isso, lhadas, possibilitando aos alunos eliminar cer-
poderão ser feitos os ajustes necessários até a tos problemas de escrita identificados nas pro-
produção final, quando o aluno terá condições duções textuais.
de produzir o texto de acordo com o gênero tra- Para finalizar, é pertinente afirmar que, igual-
balhado. Essa fase é importante, pois é nela que mente ao que acreditam Dolz et al. (2010), a se-
tanto o professor quanto os alunos têm a possi- quências didática é um bom caminho para que
bilidade de fazer uma avaliação do desenvolvi- o professor atinja seus objetivos no ensino de
mento da atividade. língua materna.
No trabalho com as sequências didáticas é ne-
cessário o seguimento de módulos até a elabo- 4 METODOLOGIA
ração final do texto. Por isso, é importante que
se faça uma atividade pautada nos problemas Nesse projeto, procuramos desenvolver um tra-
que apareçam na primeira produção, dando ou balho de formação inicial e continuada envolven-
mostrando aos alunos os meios necessários do acadêmicos do curso de Letras da UNIFESS-
para que superem as eventuais dificuldades. PA/ FAEL e professores de línguas que atuem
Por isso, o professor pode comentar com os alu- no Ensino Fundamental e Médio, conciliando
nos sobre como foi a representação da interação embasamentos teóricos e metodológicos acerca
verbal, fazendo ressalva aos destinatários, obje- dos Gêneros Textuais e da prática de leitura e
tivos, gênero e modalidade (oral ou escrita). produção de textos na escola.
O professor pode também fazer ponderações a Associado a esse objetivo geral, temos os se-
respeito do planejamento do texto, observando guintes objetivos específicos:
se a organização estrutural do gênero produ-
• Refletir e discutir sobre o conceito
zido é adequada ao contexto e à função que se
de gênero, de sequência didática e o
destina. É interessante também que questões
uso dos gêneros de textos na escola;
ligadas à seleção lexical, estrutura sintática e
outros elementos referentes ao nível semântico
da expressão sejam analisados. • Discutir a relação entre o interacio-
Num outro módulo, atividades de observação e nismo sociodiscursivo e as práticas
de linguagem em sala de aula;

194
• Analisar propostas de ensino na laboradores de Escolas Públicas e de turmas a
perspectiva da sequência didática serem desenvolvidos projetos pilotos na pers-
pectiva de gêneros textuais.
• Preparar e desenvolver, juntamente No desenvolvimento de sequências didáticas
com os docentes envolvidos na pes- nas escolas, professores e acadêmicos da UNI-
quisa, sequências didáticas que via- FESSPA efetuam o assessoramento e o acom-
bilizem a leitura, a produção textual panhamento do trabalho do professor em sala
e o ensino de linguagem em sala de de aula, por meio de observações e registros re-
aula, utilizando os mais variados gê- lativos à aplicação das sequências didáticas na
neros discursivos; sala de aula. Nessa fase, os pesquisadores to-
mam nota das etapas desencadeadas pelos aca-
dêmicos e pelos professores das escolas. De-
• Divulgar os resultados obtidos nas pois de organizados os dados, os pesquisadores,
experiências vivenciadas. os acadêmicos e os professores da Educação
Básica, refletirão, discutirão e sistematizarão
resultados obtidos nas experiências. Por fim,
Para conquistar os objetivos, uma sequência de com base nos resultados observados é realiza-
atividades vem sendo desencadeada em duas da uma exposição, para a comunidade escolar e
etapas. acadêmica na pesquisa, de modo que os pares
Na primeira, foi constituído o grupo de pesquisa, envolvidos reflitam sobre as descobertas efetu-
por meio da inscrição de interessados, a partir adas, os pontos positivos e negativos e apontem
da divulgação em cartazes nos corredores da possíveis sugestões para trabalhos futuros.
universidade. Em seguida, foram desenvolvidos
estudos, discussões e fichamentos de textos que 5 RESULTADOS PRELIMINARES
tratam de aspectos teóricos e metodológicos e
foram realizadas ações práticas envolvendo o O projeto alvo deste relato se encontra na sua
contato e a análise de sequências didática, bem primeira fase, portanto estão sendo realizados
como, a produção de textos mediados pelo de- estudos e discussões teórico-metodológicas.
senvolvimento de uma sequência didática. Por Até o momento, foram realizados três seminá-
fim, as ações realizadas foram avaliadas e foram rios envolvendo 25 acadêmicos dos cursos de
levantados os resultados alcançados no projeto. Letras, português e inglês.
Na segunda etapa, a ser realizada em 2015, No primeiro seminário, os três professores res-
ocorrerá um novo contato inicial envolvendo ponsáveis pelo projeto “Gêneros textuais no en-
formadores/pesquisadores e os acadêmicos em sino: da Educação Básica ao Ensino Superior”
formação interessados em participar do projeto. realizaram um seminário com foco no conceito
Esse contato ocorrerá por meio de uma reunião, de gênero textual/discursivo e de tipo textual.
objetivando uma apresentação do trabalho a ser Nesse seminário, as discussões foram orienta-
desenvolvido entre Escolas e a Universidade. das a partir da leitura de dois artigos de Mar-
Em seguida, proceder-se-á a realização de uma cuschi, publicados respectivamente em 2005 e
oficina análise e de produção de sequência didá- 2006, intitulado “Gêneros textuais: configuração,
tica, de sessões de estudos bibliográficos visan- dinamicidade e circulação” e “Gêneros textuais:
do o desenvolvimento de conceito de gêneros definição e funcionalidade. No segundo seminá-
textuais, de tipos de texto, de domínio discursivo rio, sob a coordenação de um acadêmico e um
e de sequências didáticas, assim como, análise professor orientado, com base no estudo de Rojo
e planejamento de propostas de sequências di- (2005), as discussões giraram em torno da dife-
dáticas. rença entre gênero discursivo e gênero textual.
No planejamento das sequências didáticas des- No terceiro seminário, a atenção se concentrou
sa etapa, são previstas sequências didáticas, em nas diferentes linhas teóricas de estudos de gê-
torno de um gênero de texto, levantado a partir nero (francesa, americana e australiana) e nas
das necessidades dos alunos da Educação Bási- perspectivas metodológicas adotadas em cada
ca. As sequências são projetadas pelos acadê- corrente, com ênfase nos estudos da corrente
micos e professores das escolas públicas, sob francesa.
a orientação dos pesquisadores da UNIFESSPA, Na sequência, foi analisada a construção
e são desenvolvidas nas escolas durante um de um modelo didático do gênero notícia. Para
bimestre letivo. No desenvolvimento de ações isso, foram exploradas questões referentes ao
práticas, os acadêmicos envolvidos no projeto contexto de produção, plano global, mecanis-
procederão à identificação de professores co- mos enunciativos e mecanismos de textualiza-
ção do referido gênero, conforme o quadro que

195
segue. tituído o modelo didático do artigo de opinião,
utilizamos o Quadro I como norteador desse
QUADRO I: Esquema geral para a análise de se- processo. Na sequência, os graduandos produ-
quências didáticas, conforme Gonçalves e Fer- ziram um artigo de opinião a partir do seguinte
raz (2014, p. 216). tema: Ensino da Gramática na educação básica.
Os textos foram corrigidos e devolvidos aos es-
tudantes para posterior reescrita.
· Momento da produção Em seguida, retratamos os elementos textuais
Contexto · Local de produção
e discursivos envolvidos na produção do artigo
físico de pro- de opinião. Ao final dessa etapa, elencamos al-
dução · Leitor/receptor gumas características que fazem parte das ca-
pacidades de linguagem do referido gênero. As
· Objetivos da interação capacidades de linguagem do artigo de opinião
· Em que papel social se encon- foram sistematizadas conforme consta nos Qua-
tra o emissor? dros II e III abaixo.
· A quem se dirige o produtor?
Contexto so- Qual será seu papel social? QUADRO II: Capacidades discursivas
ciossubjetivo
de produção · Em que instituição social se CAPACIDADES DISCURSIVAS/PLANO DISCURSIVO
produz e circula o gênero? v O artigo de opinião é um gênero de texto que perten-
· Com que atividade social se ce ao mundo do EXPOR autônomo, desenvolvendo um
relaciona o gênero? discurso teórico.
· Como o conjunto do conteúdo v A estrutura composicional é formada pela introdu-
temático costuma ser organi- ção, desenvolvimento e conclusão.
zado?
v O assunto tratado pertence ao mundo real do produ-
O plano global · Que tipo de discurso predomi- tor.
na no gênero a ser ensinado?
v Há um raciocínio lógico/encadeamento de ideias que
· Quais sequências textuais cos- fundamenta a progressão temática. Assim, pois, cada
tumam predominar? ideia implica o surgimento de outra sequentemente.
· Como acontece a coesão nomi- v O objeto temático não é dependente do produtor e do
nal no gênero a ser ensinado?
leitor.
Há retomadas anafóricas pro-
nominais, elipses? Há expres- v Não há unidades linguísticas que remetam ao produ-
sões nominais definidas? tor e ao espaço-tempo da produção textual.
· Qual tempo e modo verbais v O leitor assimila a visão de mundo, as crenças e valo-
predominam para a constru- res do produtor e usa isso para avaliar e aderir ou não
Mecanismos
ção da coesão verbal? Qual a ao ponto de vista defendido pelo autor.
de textualiza-
relação entre o tempo, modo e
ção v O produtor deve demonstrar o domínio dos argumen-
o gênero?
tos que utilizará para defender sua tese.
· Aparecem organizadores tex-
tuais (elementos de conexão) v As relações discursivas indicam o momento históri-
no gênero? Qual tipo de orga- co/social e as formações ideológicas ligadas ao agen-
nizador aparece com mais fre- te-produtor.
quência: espacial? Temporal?
Lógico-argumentativo? v Os conhecimentos internalizados pelos alunos-pro-
· No gênero a ser didatizado, dutores a respeito do tema são expostos em suas
que tipo de vozes aparece ou produções.
deve aparecer: voz do estu- v Fraca densidade verbal e alta ocorrência de sintag-
Mecanismos dante? Voz do autor? Vozes
enunciativos sociais? mas, com predomínio de frases declarativas.
v Predominância de tempo verbal no presente com va-
· Qual tipo de modalização apa-
lor atemporal.
rece com mais frequência?
v Presença de formas na primeira pessoa do plural re-
No seminário seguinte, foi abordada a cons- metendo aos participantes da interação em geral.
trução do modelo didático do gênero artigo de
opinião. No intuito de viabilizar uma melhor
compreensão a respeito de como pode ser cons-

196
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
QUADRO III: Capacidades linguístico-discursivas
CAPACIDADES LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
Ø Existência de operadores discursivos com função
lógico-argumentativa: mas, no entanto, entretanto,
BRASIL, Ministério de educação e cultura (MEC).
porque, bem, como, etc.
Orientações curriculares para o Ensino Médio:
Ø Presença de anáforas pronominais e nominais,
linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília;
MEC, 2006.
além de métodos de referenciação dêitica: esse,
esta, isso, etc. BRASIL, Ministério de educação e cultura (MEC).
Parâmetros curriculares nacionais/Ensino Mé-
Ø Ocorrência de modalizações por meio de orações
dio: linguagens, códigos e suas tecnologias Bra-
impessoais, advérbios, auxiliares e tempos verbais sília; MEC, 2002.
do condicional.
DOLZ, J. e SCHNEUWLY, B. 1998. Pour un en-
Ø Construção de proposições por meio do verbo ser, seignement de l’oral : initiation aux genres for-
estabelecendo uma relação entre argumentos e mels à l’école. Paris, ESF.
conclusões.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Se-
Ø Uso de verbos que exprimem a relação causa e
quências didáticas para o oral e a escrita: apre-
sentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY,
efeito e também de verbos dicendi.
B.; DOLZ, J. (Orgs.) Gêneros orais e escritos na
Ø Presença de tipos de frases mais propícias para o escola. Trad. Org. Roxane Rojo; Glais Sales Cor-
ato de argumentar, como frases assertivas e inter-
deiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p.
95-128.
rogativas.
GONÇALVES, A, V.; FERRAZ, M.R.R; Ferramen-
Ø Escrita do texto na norma culta da língua.
tas didáticas e ensino: da teoria à prática de sala
Após a realização das oficinas e discus- de aula. In.: NASCIMENTO, E. L., Gêneros tex-
são sobre a avaliação, houve um momento de tuais: das didáticas das línguas aos objetos de
reescrita dos textos. Essa primeira etapa do ensino. 2ª ed. Campinas, SP : Pontes Editores,
projeto teve como objetivo auxiliar os alunos 2014.
a se apropriar do gênero em questão para, na
segunda etapa da pesquisa, serem capazes de MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de
construir sequências didáticas para serem de- gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola,
senvolvidas no ensino da produção textual na 2008.
educação básica. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais:
configuração, dinamicidade e circulação. In:
BRITO, K. S.; GAYDECZKA, B.; KARWOSKI, A. M.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Gêneros textuais. Reflexões e ensino. 2.ed. Rio
Com as ações realizadas espera-se con- de Janeiro: Lucerna, 2006.
tribuir para a formação inicial de professores de
MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais: definição
língua da UNIFESSPA, em termos de promoção
e funcionalidade. In: DIONISIO,A ; MACHADO, A
de estudos e debates acerca dos gêneros de
. R.; BEZERRA, M. A (Orgs). Gêneros Textuais &
texto e seu uso em aulas de Linguagem. Além
Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36.
disso, tem-se a expectativa que sejam ofertadas
oportunidades para que os participantes envol- ROJO, R. (2005). Gêneros do discurso e gêneros
vidos no projeto iniciem o processo de iniciação textuais: questões teóricas e
científica dentro de uma Universidade pública,
contribuindo para a construção de conhecimen- aplicadas In J. L. Meurer, A. Bonini, & D. Motta-
tos que enriqueçam intelectual e socialmente a -Roth (Org.), Gêneros: teorias,
comunidade local. Com isso, ratifica-se a impor-
tância da UNIFESSPA e do PPCL da Faculdade métodos, debates. São Paulo: Parábola.
de Estudos da Linguagem para a comunidade
acadêmico-científica, no que tange à pesquisa e
extensão no Sul e Sudeste do Pará.

197
POR UMA ABORDAGEM ENUNCIATI- Trato aqui das formas de discurso reportado
(DR), categoria observável explicitamente em
VA DO DISCURSO RELATADO gêneros diversos – por exemplo, nos domínios
do jornalismo e da academia – cujo tratamento
excessivamente formal pode reduzi-la à combi-
Paulo Eduardo A. de Sá Barreto Batista nação de regras morfossintáticas, desprovidas
da imersão necessária do sistema linguístico
em seu uso no mundo biossocial.
Meu objetivo é rever e discutir a proposta do tra-
RESUMO: O campo do discurso reportado (DR) é tamento teórico das categorias de discurso rela-
conteúdo recorrente em disciplinas de produção tado (DR), a partir do confronto entre a propos-
textual tanto no ensino fundamental II e médio ta morfossintática frasal – sobretudo em obras
quanto no superior. O fato que nos incomoda – e frequentes em disciplinas de Português Instru-
justifica nossa pesquisa – é o da simplificação mental (GARCIA, 2004 e MARTINS; ZILBERK-
desse fenômeno em esquemas clássicos e as NOP, 2010) – e a da heterogeneidade enunciativa
consequentes inobservâncias do ensino de for- (AUTHIER-REVUZ, 1998, 2004a, 2004b, 2012).
mas esquecidas na teoria, mas verificáveis no Iniciarei, então, com rápida contextualização dos
uso e do comportamento da ação de relatar a estudos acerca da categoria DR; depois apre-
fala alheia. Assim, nosso objetivo é rever e dis- sentarei sucintamente a teoria da heterogenei-
cutir a proposta do tratamento teórico das ca- dade enunciativa; o terceiro passo é o confronto
tegorias de discurso relatado (DR), a partir do entre as propostas.
confronto entre a proposta morfossintática fra-
sal – sobretudo em obras frequentes em dis-
2. Brevíssimo histórico sobre o estudo do Dis-
ciplinas de Português Instrumental (GARCIA,
curso Reportado
2004 e MARTINS; ZILBERKNOP, 2010) – e a da
heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, Os modos de relatar o discurso outro foram ini-
1998, 2004a, 2004b, 2012), que considera o ca- cialmente objeto da retórica, da narratologia e
ráter dialógico da linguagem, ou seja, conside- da filosofia, passando pela gramática até chegar
rando que o DR é uma tradução enquadrada do à linguística da enunciação e às análises de dis-
dizer de outrem: uma representação do discur- curso.
so outro (RDO), abordagem com a qual nos fi- Genette (1971) retoma Aristóteles, que distin-
liamos. Desse modo, propomos analisar outras guia a diégese – narrativa, imitação – da mime-
formas, além das já tão conhecidas – discurso se, a representação direta dos acontecimentos.
direto, discurso indireto e discurso indireto livre Cunha (2008) afirma que Platão já propunha
– bem como questionar o ensino dessas três, a uma classificação dos gêneros literários segun-
partir da apresentação e descrição de exemplos do utilização ou não da imitação. Rosier (1999)
em que verificamos que os postulados corren- diz que, no século XVII, a gramática – de língua
temente dados não os abarcam. Para tanto, ob- francesa – incorpora as formas dicotômicas dis-
servamos, no tocante à teoria e aos exercícios, curso direto (doravante DD) e discurso indireto
duas obras que frequentemente constam em (doravante DI). Esses estudos colaboram para
programas de disciplinas de língua portuguesa corroborar a ideia de fidelidade da forma DD e a
no ensino superior para cursos de ciências hu- de que o DI seria uma versão daquele.
manas e sociais, bem como apresentamos análi- Durante os primeiros estudos enunciativos fran-
se de notícias e artigos de opinião de corpus que ceses – pré-Benveniste –, Bally distinguia dois
compõem esta pesquisa, a fim de destacamos conjuntos de categorias: o discurso reportado
as formas de DR não explicitadas nas obras. objetivo – DD, DI e formas “de acordo com” – e
PALAVRAS-CHAVE discurso reportado, meta- a retomada subjetiva – casos em que o enuncia-
enunciação, heterogeneidade. dor se posiciona em relação ao que ele cita. Nos
estudos a partir de Benveniste, tem-se a inves-
1. Introdução tigação dos pontos de ancoragem do sujeito na
materialidade da língua, por meio dos pronomes
Relatar um discurso que não é seu, citar, co- pessoais, demonstrativos, formas temporais,
mentar, enfim, apresentar um discurso outro dêiticos, modalizadores e do discurso reportado.
é atividade corriqueira dos sujeitos falantes na Cunha (2008) destaca o trabalho de Authier-Re-
vida da língua. Considerar apenas que se trata vuz (1978) e o de Maingueneau (1981), por te-
de citação textual é simplificar o fenômeno, que rem se lançado na perspectiva da enunciação.
é uma marca na materialidade linguageira da- O primeiro, apesar de ter inicialmente abordado
quilo que é constitutivo do sujeito: o outro. a categoria em uma perspectiva gerativa, saltou

198
da abordagem sintática para a enunciativa, an- gundo; b) marcas que exijam trabalho interpre-
tecipando, entre outras noções, a de tomada de tativo – aspas, itálicos, entonação, certos gestos;
posição por um ato de fala. Já o segundo tratou c) sem marcas, apenas com formas puramente
de outras formas de marcação da alteridade, interpretativas – as alusões, as reminiscências,
entre as quais, o emprego das aspas e o verbo o discurso indireto livre (doravante DIL) (cf. AU-
no futuro do pretérito. THIER-REVUZ, 1998). Os dois primeiros casos
Após a recepção francófona da obra de Bakhtin, constituem formas da heterogeneidade mos-
o DR vem sendo estudado sob um viés enuncia- trada marcada, e o último, da heterogeneidade
tivo, considerando questões como alteridade e mostrada não marcada. Assim, relatar o discur-
circulação discursiva. Atualmente, destacamos so outro é apresentar, mostrar, citar, na ma-
o grupo fundado por Laurence Rosier – da Uni- terialidade da linguagem, a presença do outro,
versidade de Bruxelas –, Sophie Marnette – da que sempre está no discurso do um, porém nem
Universidade de Oxford – e Juan Manuel Lopes sempre é percebido tampouco referenciado.
Muñoz – da Universidade de Cadiz, intitulado Na teoria da heterogeneidade enunciativa, con-
Ci-Dit, que agrupa pesquisadores sobre uma sidera-se que esse outro, além de emergir do
perspectiva da Circulação dos Discursos. histórico, irrompe do inconsciente. Para tanto,
Authier-Revuz (2004a) lança mão da psicanálise
de Freud, via releituras de Lacan, para consi-
Formas mostradas e marcadas da heteroge- derar um sujeito necessariamente atravessado
neidade constitutiva pelo outro, que não é um objeto de fora, mas é
constitutivo do discurso e do sujeito. Este tem
uma ilusão de centro, como se seu dizer fosse li-
near e homogêneo, mas, conforme já fora men-
A proposta com a qual trabalho vem sendo de- cionado antes, não é de modo algum. Saliento
senvolvida por Authier-Revuz há mais de trinta que, nesta articulação entre o outro dos já-ditos
anos. A autora insere o estudo sobre o DR no da história e o do inconsciente, há um diálogo
campo das formas da heterogeneidade mos- com os estudos de Pêcheux, no tocante ao es-
trada na linguagem, considerando que estão quecimento do sujeito de que é centro do dizer.
sempre em negociação com a heterogeneidade A representação de discurso outro deve ser es-
constitutiva. Esta se trata de um princípio ine- tudada no campo da metalinguagem, mais pre-
rente ao dizer, que nasce já-dito. cisamente dentro do metadiscurso, por se tra-
Authier-Revuz se insere nos estudos da enun- tar não de discurso metalinguístico – que seria
ciação e se interessa por três pontos fundamen- aquele sobre o sistema da língua (caso da Gra-
tais levantados por Benveniste: a) afirmação da mática) –, mas de discurso sobre discurso: nes-
propriedade reflexiva da língua; b) o reconheci- te caso, por se tratar de um sobre um discurso
mento da língua como ordem própria, mas sem outro, estaria em oposição ao discurso sobre si
que, por causa disso, deva o linguista recusar o ao se fazer, (cf. AUTHIER-REVUZ, 2004b).
que é do domínio do discurso; c) a indicação de A denominação Representação de Discurso Ou-
que certas formas da língua sinalizam na lín- tro (RDO) vem sendo utilizada pela autora em
gua o que é do outro (cf. FLORES e TEIXEIRA, seus últimos trabalhos sobre o tema (AUTHIER-
2004). Assim, considera a distinção entre os dois -REVUZ, 2004b; 2011; 2012). O termo é preferível
modos de significância (BENVENISTE, 1989): o para: 1) tentar evitar um possível entendimento
semiótico – da língua em sentido saussureano: de que se trata de um discurso desprovido do
sistema – e o semântico – da língua em ação. No ato anterior de enunciação, fato que poderia ser
entanto, ela expande seu estudo ao considerar causado pelo par rapporté/rapport ; 2) desvincu-
que há sempre uma relação constitutiva com o lar-se de uma noção gramatical que vincula DR
outro na história e no inconsciente. apenas às formas canônicas DD e DI; 3) inserir a
A autora (cf. AUTHIER-REVUZ, 2004b) diz que categoria, dentro dos estudos da metadiscursi-
o dialogismo bakhtiniano é uma lei do discur- vidade, em oposição a discurso, que, neste caso,
so humano, consequentemente da palavra, do seria o sobre si ao se fazer. No entanto, o termo
enunciado, do sentido. Assim, falar – escrever, ainda não vem sendo amplamente usado por ou-
gesticular, desenhar, ... – é entrar na relação tros estudiosos, motivo pelo qual ainda uso nes-
dialógica com outros discursos, é se lançar na te artigo a expressão formas de DR, admitindo,
múltipla rede discursiva com enfrentamentos, porém, as razões de Authier-Revuz.
concordâncias e ressignificações, de modo que
tudo isso pode ou não ser apresentado na lin-
guagem, seja com: a) marcas unívocas – o DD o 4. Confronto com a proposta gramático-frasal
DI e as modalizações do tipo de acordo com, se-

199
Continuarei, então, a apresentar a proposta de âmbito mesmo do inventário das for-
Authier-Revuz, mas agora em confronto com a mas; outro na relação que essas têm
perspectiva da gramática. Para tanto, recorro – dentro da circulação dos discursos. Co-
além da própria autora – a Cunha (2005), a Ba- mecemos pelo aspecto formal observa-
tista (2009) e já inicio a análise das obras usadas do por Authier-Revuz (1998).
em disciplinas como, por exemplo, Português
Instrumental: Garcia (2004) e Martins e Zilberk-
nop (2010). 4.1 O inventário de formas
Enquanto esta proposta considera que o DR é
Três oposições são fundamentais para estrutu-
um fato metalinguageiro (cf. AUTHIER-REVUZ,
rar esse campo de estudo, durante a observação
2012), ou seja, “discurso no discurso, a enun-
das formas: 1) signo padrão e signo autoními-
ciação na enunciação, [...] discurso sobre o dis-
co; 2) DR em sentido estrito e modalização em
curso, uma enunciação sobre a enunciação”
discurso segundo; 3) Formas explícitas e formas
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 129), a que vi-
interpretativas.
gora em vários livros didáticos é de que se trata
de uma mera tipologia que cita fielmente frases
de outrem. 4.1.1 DD versus DI

Destaco, então, os apontamentos de Au- Partindo da noção saussureana, o signo padrão


thier-Revuz (1998) sobre o tratamento é aquele com o par significado/ significante; já o
que é dado geralmente nas gramáticas autônimo é o que fala de si, ou seja, o significado
em relação ao DR: 1) O DD é considerado é um outro par significado/significante. Vejamos
simples no plano sintático, além de fiel com simples exemplos:
ao que se relata, ou seja, no campo se-
mântico-enunciativo; 2) o DI seria ape- (1a) Pernambuco fica ao sul da Paraíba
nas uma derivação do DD, ou seja, uma
variante morfossintática com regras de (1b) Pernambuco vem do tupi.
transformação de pessoas e tempos; 3)
O DIL seria a junção dos dois primeiros,
algo sempre vinculado ao domínio lite-
rário. É assim que vemos em Martins e Em (1a) “Pernambuco” é signo padrão; em (1b)
Zilberknop (2010, p.92): “[...] Fala não “Pernambuco” é signo autônimo, ele é mencio-
visível das personagens, cuja voz pare- nado, mostrado. Uma característica essencial
ce mesclar-se com a do narrador, mas, da autonímia é a inexistência de sinonímia. As-
no fundo, é a personagem que surge sim em (1a) pode-se substituir “Pernambuco”
sub-repticimente”. Garcia (2004) sim- por “O Estado do Frevo”; “A terra de Alceu Va-
plifica as formas em apenas três, com lença” e por aí vai; em “1b”, não se pode estabe-
foco para as regras morfossintáticas de lecer tais relações. Desse modo, o DI é da ordem
transformação. do padrão, em que o discurso outro é apresen-
tado sob predicação nova; já o DD é da ordem da
autonímia, em que não basta trazer o conteúdo
Cunha (2005), em sua análise sobre li- de ato de enunciação, mas também as próprias
vros didáticos do português, afirma que palavras que haviam sido proferidas. Vejamos
o DR é estudado com atividades que que, no DI, as sinonímias são capazes de gerar
visam a: 1) identificação das vozes da múltiplos caminhos de interpretação: como no
narrativa; 2) colocação de pontuação caso dos títulos das notícias abaixo sobre o mes-
para separar as vozes; 3) transforma- mo fato.
ção do DD em DI apenas com regras
morfossintáticas; 4) identificação das 1. (2a) TRE julga embargos, decide
marcas tipográficas do DD. Destaca, por corrigir data de acórdão, mas não
fim, que tais exercícios levam o aluno a acolhe representação contra cassa-
manipular as formas da língua sem re- ção.
lacioná-las com o sentido, sem consi-
derar as múltiplas funções que elas po- (2b) TRE admite erros em ação contra
dem desempenhar nos textos: ironizar, Cássio, mas rejeita embargos.
autorizar, confrontar...

Existem, então, dois problemas: um no Já o DD não admitiria sinonímia por se tratar de

200
uma mostração de palavras, ou seja, o que fica 4.1.2 DD e DI versus Modalizações em discurso
entre aspas ou destacado após verbo dicendi é, segundo (MDS)
em tese, a mesma forma linguística do ato de
enunciação anterior, a qual é mencionada no ato O DI e DD constituem formas de DR em
de enunciação apresentador. sentido, ao passo que existem outras
Authier-Revuz (1998) explica duas diferenças formas marcadas. Authier-Revuz (1998)
entre essas categorias. Em primeiro lugar no destaca tipos específicos de modaliza-
estatuto semiótico: enquanto em DI há uma re- ções. Vejamos os exemplos a seguir,
formulação global do dizer tanto no sintagma retirados e adaptados de corpus de no-
introdutor quanto na parte citada; no DD há, si- tícias e artigos sobre o julgamento no
multaneamente, uso de palavras do um no sin- Tribunal Regional Eleitoral sobre o pro-
tagma introdutor e menção às palavras. Além cesso de cassação do então governador
disso, o DI apresenta uma estrutura sintática da Paraíba em 2008 (BATISTA, 2009):
simples – sujeito + verbo dicendi + complemento
objeto direto (oracional ou não); já o DD possui
uma monstruosidade sintática, pois, após as (3) A última sessão do TRE produziu al-
marcas tipográficas como dois-pontos e aspas, teração na questão da data do programa
pode vir qualquer coisa. social.
Em ambas obras analisadas, está posta uma
ideia de pura expressão do pensamento de al- (4) O jornalista disse que a última ses-
guém através do discurso reportado: são do TRE produziu alteração na ques-
tão da data do programa social.
[...] o Autor transmite com as suas pró-
prias palavras apenas a essência do
pensamento da personagem ou interlo- (5) Segundo o jornalista, a última sessão
cutora [...]. Trata-se de discurso indire- do TRE produziu alteração na questão
to. da data do programa social.
Em (3) existe uma afirmação sobre um fato: a
[...] discurso direto: as palavras que tra- última sessão do TRE alterou a data do progra-
duzem o pensamento das personagens ma social; em (4) existe uma afirmação diferen-
(uma das quais é o próprio narrador) te sobre outro fato, “o jornalista disse [...]”, ou
são as mesmas que teriam sito, presu- seja, o fato é o dizer do jornalista; já em (5), te-
mivelmente, proferidas. (GARCIA, 2004, mos uma afirmação sobre o mesmo fato de (3),
p. 147) porém ela é modalizada, e necessariamente se
remete a outro discurso, um discurso segundo.
Há também uma simplificação das variantes, Essa modalização é epistêmica, ou seja, o enun-
com comentários que se limitam ao aspecto sin- ciador problematiza em relação à verdade da-
tático-formal: quilo que diz:
(5a) Segundo Fulano/ De acordo com
Discurso Direto Fulano/ Como todos sabem, Talvez/
Certamente/Tecnicamente/, a última
Características
sessão do TRE produziu alteração na
a) Fala visível dos interlocutores ou per- questão da data do programa social.
sonagens; Formas do tipo segundo fulano e de acordo com
b) Geralmente, um verbo “dicendi”. marcam a tentativa de isenção de responsabi-
lidade por parte do enunciador acerca do con-
c) Na falta do verbo “dicendi”, um re- teúdo, ou seja, ao não aderir ao conteúdo dito,
curso de pontuação: dois-pontos, tra- o enunciador limita a consideração de verdade
vessão, aspas ou mudança de linha. dentro de critérios interlocutivos, como se hou-
(MARTINS e ZILBERKNOP, 2004, p. vesse uma barreira separando geograficamente
91) os dois atos enunciativos, apresentado e apre-
sentador, e este relembrasse que o que diz é
verdade nos limites daquele, mas não necessa-
riamente no seu.
As formas do tipo como todos sabem, como se
sabe, conforme conhecimento de todos marcam

201
a tentativa de fechamento de interpretações por 4.1.3 DD, DI e MDS versus DIL, alusões....
parte do enunciador, a barreira geográfica é
aberta, e a verdade só é válida no terreno do ato A terceira oposição diz respeito à consideração
enunciativo apresentador porque esse grupo de de que o DD, o DI e os tipos de MDS constituem
formas pode entrar sem problemas. O efeito de formas explícitas ao passo que o DIL, as alusões,
sentido é o de que a responsabilidade é compar- reminiscências, alguns casos de intertextuali-
tilhada por todos, o ato apresentador assevera dade também reportam o discurso outro, porém
como verdade aquilo que apresenta sem delimi- exigem um trabalho puramente interpretativo.
tá-la. Assim, as formas não estão reduzidas às mais
Com talvez ou parece que, gera-se o efeito de observáveis – as canônicas e as modalizações –,
sentido de dúvida, ou seja, não se assevera com- existem outros tantos modos, aqueles são ape-
pletamente, trata-se de uma hipótese a ser con- nas mais relativamente estabilizados.
firmada. Já as formas tecnicamente, na ciência O DIL é tratado basicamente na perspectiva sin-
X, na cultura Y, tal qual as do tipo segundo e de tático-formal, na maioria das vezes, como caso
acordo com estabelecem limites para a verdade típico de gêneros literários e como uma mistura
do que é apresentado, a diferença é a que as bar- do DD e DI. Isso reduz a categoria a um domí-
reiras agora impostas não têm critérios interlo- nio específico – algo que não acontece – além de
cutivos diretos, ou seja, a validade do enunciado não explicar o que seria, então, esse hibridismo.
não depende do par apresentador-apresentado, Existe, segundo Authier-Revuz (2004b), uma bi-
mas sim de domínios sociais. vocalidade, que acontece da seguinte maneira:
Enfim, no exemplo 5, não se apresenta propria- uma reformulação global do dizer – tal qual em
mente um discurso outro, mas se constrói um DI – mas com os embreantes – de tempo, pes-
novo enunciado – com o mesmo fato –, e se pro- soa ou lugar – vinculados não ao ato de enun-
blematiza acerca da verdade, delimitando-a. ciação apresentador, mas ao relatado – algo
A modalização em discurso segundo (MDS) pode característico do DD. De fato, trata-se de uma
incidir sobre o emprego de uma palavra ou so- paráfrase em que se percebem alguns termos
bre o conteúdo: esta Authier-Revuz (2012) deno- como a voz direta do outro.
mina de modalização como asserção segunda (7) João gostou do quadro de Giane, tão
(MAS) – caso de (5); já aquela, de modalização belo, tão profundo.
autonímica de empréstimo (MAE), conforme
exemplo abaixo:
(8) João disse que achou o quadro de
Giane tão belo e tão profundo e gostou
dele.
(6) Errar é humano. Corrigir é divino.
Reformar é, digamos, possível.
(9) João viu aquele belo e profundo qua-
dro de Giane e disse que gostou dele.

Aqui se enquadram formas do tipo “como di- Em (8) existe uma reformulação global, ou seja,
ria X”, “segundo as palavras de x”. “em termos discurso indireto, de modo que belo e profundo
bakhtinianos”, e até mesmo “de acordo com” e estão, no esquema sintático, relacionados ao
“segundo”, desde que incidam sobre o uso de ato de enunciação relatado. Já em (9), os mes-
certo termo ou expressão. mos adjetivos estão no sintagma introdutor, não
Enfim, enquanto no DD e DI existe um novo fato: sendo atribuídos ao enunciador relatado. Em (7),
um dizer; na MDS se trata do mesmo fato, po- temos a bivocalidade: na falsa linearidade, apa-
rém modalizado, com o enunciador podendo: rece a expressão “tão belo, tão profundo”, que é,
condicionar a verdade do discurso a outrem – de simultaneamente, da enunciação apresentadora
acordo com Fulano, segundo Beltrano – ou limi- e da apresentada.
tar as condições de verdade às de interpretação, Garcia (2004) usa apenas exemplos literários e
delimitando-a sobre certo domínio social – por os trata como aspecto de estilo subjetivo do ro-
exemplo: tecnicamente falando, nesta área, re- mance, porém Authier-Revuz (1998) aponta que
gionalmente, em termos foucaultianos. é comum em situações de conversas informais.
Nesta seção, o confronto entre as propostas Podemos também ver na imprensa, como no
se dá pelo silêncio, já que nada é dito, entre as caso do corpus de notícias já mencionado:
obras analisadas a respeito das modalizações.
(10)

Sem medo de errar, vamos aos efeitos –

202
psicológicos e jurídicos - da falta. entornos, ou seja, nas proposições introdutoras
ou posteriores aos sintagmas prototípicos, exis-
O primeiro deles recai sobre as acusa- tem uma avaliação realizada pelo enunciador
ções que pesam, por parte do próprio apresentador, que também pode acontecer no
governador, contra os juízes Carlos próprio esquema do DR, mais precisamente no
Eduardo Leite Lisboa e Nadir Valengo, verbo dicendi.
questionados em suas posições por in- Trata-se de outras modalizações – não em dis-
findáveis ações de suspeições. curso segundo – mas apreciadora de tudo sobre
o qual se fala. Vejamos exemplo abaixo de um
parágrafo de uma notícia reproduzida na ínte-
Acusado de julgar de forma pouco im- gra:
parcial, Carlos Eduardo Leite Lisboa
tinha que errar justamente para preju- (11) Num discurso contundente, duran-
dicar Cássio? Ele, que meses atrás, cri- te inauguração de obras em Mandacaru
ticou em plena sessão a decisão do TSE e Bairro dos Novaes, na Capital, Cássio
de manter Cássio no cargo por meio de alegou cerceamento de defesa e disse
liminar? (BATISTA, 2009, p. 105) que o Ministério Público Eleitoral atuou
como parte no processo e não como
Em (10), há uma bivocalidade, no fio discursivo, simples defensor da lei.
inserem-se vozes outras sem serem marcadas,
logo no discurso do um também pode estar o Chamo atenção aqui não para a forma de DI, mas
enunciador de tal ato. Destacamos o trecho “ti- para a proposição que o antecede, um comen-
nha que errar justamente para prejudicar Cás- tário avaliativo sobre o DO em questão: “num
sio?”, indagação que, em primeira análise seria discurso contundente”. O adjetivo utilizado não
atribuída apenas a um enunciador monovocal, é objetivo, o fato de emergir contundente em
mas, esse questionamento se coaduna com o vez de magoado, fracassado, vazio, grosseiro
trecho no parágrafo anterior “as acusações que gera efeitos de sentido muito diferentes duran-
pesam, por parte do próprio governador, contra te a leitura. Já na perspectiva da escrita, per-
os juízes [...]”. Assim, não seria esse também cebe-se que há outras maneiras de reformular
um questionamento deste enunciador mencio- globalmente as palavras do outro e mesmo de
nado – governador – tal qual o seguinte? lhes conferir mais crédito ou descrédito como
A bivocalidade é muito sutil, não tem marcas no caso abaixo:
unívocas, está no campo das formas meramen-
te interpretativas, logo é uma categoria impor- (12) Quando no dia primeiro de novem-
tante pelos possíveis caminhos de interpretação bro de 2006, dia  posterior ao segundo
deixados. Já na escrita, constitui, ao contrário turno das eleições, o senador Maranhão
das explícitas, uma forma de sugerir posiciona- reuniu a imprensa pra dizer que não
mentos concordantes entre enunciador apre- aceitava o resultado das urnas, ficou
sentador e ato de enunciação relatado, sem se parecendo história de perdedor.
comprometer por causa das marcas unívocas. A seleção do verbo dicendi também pode ser
Na obra de Martins e Zilberknop (2010), não há uma modalização realizada pelo enunciador
menções a quaisquer das variantes não explí- apresentador. Grosso modo há verbos “1) não-
citas. Já Garcia (2004), apesar de se limitar ao -modalizadores, [...] os quais apenas indicam o
domínio literário, apresenta um tipo da bivoca- dictum, e podem, no máximo, dar indícios de cir-
lidade, aquele em que os embreantes de tempo, cunstâncias de interlocução; 2) modalizadores,
lugar e pessoa não estão no quadro do ato de marcam uma avaliação, além de indicar o dizer”
enunciação apresentadora apesar de os demais (BATISTA, 2009, p. 52). No primeiro caso, encon-
elementos do fio discursivo estarem. tram-se, por exemplo, dizer, declarar, pergun-
tar, responder; no segundo, admitir, reclamar,
ponderar...
4.2 A apreciação do enunciador apresentador
(13) Leve-se em conta que por pouco a
radicalidade não se implantou em plena
Não se reporta discurso outro em nível de frase, segunda-feira quando o presidente do
mas sim em nível textual, considerando que no TRE, desembargador Jorge Ribeiro, re-
texto se manifestam discursos. Assim, devem- cuou de encaminhamento feito por ele
-se observar as formas de DR em manifestações de que o afastamento do governador se
concretas. Ao fazer isso, percebe-se que, nos daria de imediato.

203
Em (13) o ato de enunciação do desembargador 5. Considerações Finais
é qualificado como recuo, apenas com o uso do
verbo recuar em vez de suspender, por exemplo. O objetivo deste trabalho não era propriamente
Enquanto em (2b), o TRE admite erros, em (2a) se aprofundar nem na teoria, nem na análise da
decide corrigir, gerando, portanto, interpreta- proposta tradicional, mas sim lançar questiona-
ções distintas sobre o mesmo fato. mentos sobre como a categoria do DR vem sendo
trabalhada e como poderia ser. Para tanto, lan-
4.3 Além de um inventário de formas cei mão dos pontos acima elencados, na certeza
de que cada um merece um ou vários trabalhos
Trazer o discurso outro para o fio discursivo do específicos de discussão, mas minha finalidade
um não é questão de forma, mas de uso cons- era de discutir tudo isso sucintamente.
ciente e inconsciente, porque acontece de uma A representação do discurso outro (RDO), ou a
maneira que o sujeito crê que manipula e edi- apresentação de DR, não se constitui apenas de
ta conforme seus propósitos. No entanto, esse formas do sistema da língua, mas de variantes
fenômeno não é como o botão de liga/desliga, relativamente estabilizadas no viver da língua
acontece o tempo todo e é constitutivo do sujei- em sociedade, ou seja, na circulação dos discur-
to. O um só se constitui como tal por causa do sos pelos textos de diversos gêneros. Não pos-
outro, entretanto a ilusão de centro é necessá- sui apenas regras sintáticas, mas é um fenôme-
ria, afinal se pararmos a todo instante para con- no de ordem enunciativa.
cluirmos que nossas palavras não são nossas,
corremos o risco de não nos inserir no meio so-
cial do simbólico.
O sujeito, portanto, não constrói um conjunto de
formas, mas este pode ser alcançado posterior-
mente a partir da observação das variantes mais
regulares. Com efeito, qualquer inventário não é
fechado. Concordamos com a afirmação do Cír-
culo de Bakhtin de que
Estamos bem longe, é claro, de afirmar
que as formas sintéticas (...) exprimem
de maneira direta e imediata as tendên-
cias e as formas de apreensão ativa e
apreciativa da enunciação de outrem. É
evidente que o processo não se realiza
diretamente sob a forma de discurso di-
reto ou indireto. Essas formas são ape-
nas esquemas padronizados para citar
o discurso. Mas esses esquemas e suas
variantes só podem ter surgido e toma-
do forma de acordo com as tendências
dominantes da apreensão do discur-
so de outrem (BAKHTIN/VOLOSHINOV,
2006, p.153).
Existem, portanto, muitas maneiras de se apre-
sentar o discurso outro. Além disso, todo dis-
curso um é atravessado por discursos outros,
sejam estes apresentados ou não. Assim, o
enunciado – a palavra que sai da a-historicidade
do sistema e entra na vida – emerge em uma
cadeia ininterrupta (cf. BAKHTIN, 2003) de múl-
tiplas relações.
Não se trata, portanto, de estudo sobre as for-
mas, mas sobre o processo de apresentar o
discurso outro, de que as variantes são apenas
uma parte, e não a essência.

204
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205
A CARTOGRAFIA FUNCIONAL DA ponentes do Léxico, são:
SENTENÇA E OS UNIVERSAIS LIN- 1- Camada: Lexical (VP)
GUÍSTICOS: PROJEÇÕES DE CATE-
Função: verbo; marcação theta.
GORIAS VERBAIS NO CAMPO DO IP
2- Camada: (in)flexional (IP)
Paulo Pereira 3* Função: núcleos funcionais do verbo; li-
cenciamento de traços argumentais tais
como Caso e Concordância (agree).
RESUMO: O presente artigo aborda a questão 3- Camada: Complementizador (CP)
dos universais linguísticos sob o prisma de uma
perspectiva cartográfica da sentença, ou, mais Função: morfemas funcionais livres; operado-
detalhadamente, de parte da sentença que de- res como tópicos, focos, interrogativos, relati-
nominamos de campo do IP. O campo do IP, ou vos, pronomes etc.
campo das projeções funcionais ligadas ao ver-
bo e ao licenciamento de traços de concordân- Entretanto, e principalmente, RIZZI afirma que
cia (agree) e caso, teorizado de uma perspecti- na verdade cada uma dessas camadas, particu-
va cartográfica, apresentar-se-ia composto por larmente IP e CP, parecem ser compostas por
inúmeras projeções funcionais relacionadas ao todo um arranjo completo de projeções X-bar-
licenciamento de traços de categorias verbais ra (Ā). Os núcleos destas projeções para RIZZI
tais como Tempo, Aspecto, Modo, Voz e Núme- (pág.282) necessitam checar traços, por isso
ro. Neste artigo, além de argumentar em prol da movimentam-se formando cadeias não-triviais.
ratificação desse ponto de vista, argumentamos Além disso, para ele, normalmente, a manifes-
em prol de uma visão cartográfica do campo do tação presente ou preenchida (PF) ocorre com a
IP, baseando-se nos pressupostos teóricos do realização plena ou do núcleo ou do Spec, mas,
modelo Minimalista (Princípio da Economia lin- dificilmente, com os dois juntos 4. Os três cam-
guística, a Adequação Explicativa, a Aprendibili- pos/camadas mantêm, ainda segundo RIZZI,
dade, a Universalidade, e a Adequação Explana- relações sintáticas intrínsecas entre si. Assim,
tória). Para tanto, faz-se necessário responder IP é relacionado (uma projeção estendida) do
a duas perguntas: (i) todas as línguas têm todo VP, e CP não é relacionado diretamente ao VP
o arranjo de projeções funcionais? (ii) todas as ou IP, no sentido de ser uma projeção estendida
línguas expressam em todas as suas sentenças daqueles dois outros. Os advérbios na proposta
o arranjo completo de projeções funcionais? de RIZZI ocupam a posição de Spec dos núcleos
presentes nas camadas de CP e IP. A seguir uma
PALAVRAS-CHAVE: Universais Linguísticos; representação esquemática da Zona-de-CP de
Projeções Funcionais; Economia Linguística; RIZZI:
Teoria da Gramática; Interface Sintaxe-Semân- Esquema (17): O sistema ou camada de CP (RIZ-
tica. ZI, 1997, pág.281).

Introdução: o Campo do IP
RIZZI (1997, pág.281) propõe que a ar-
quitetura sintática das línguas seja cingida em
três grandes “campos” ou “camadas” especí-
ficas. Cada uma dessas camadas compõe zo-
nas, segundo o autor, nas quais são satisfeitas
certas necessidades específicas para que uma
computação linguística “bem-feita” possa deri-
var para os níveis de interfaces bem-sucedidas
(gramaticais). Assim, estas três grandes zonas,
com suas respectivas funções na computação
linguística e seus respectivos elementos com-
3 Atualmente é professor auxiliar da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, Campus X – Teixeira de Freitas. Doutorando em
Letras e Linguística na área de Descrição e Análises Linguísticas
pela Universidade Federal de Alagoas/CAPES. Mestre em Letras
e Linguística na área de Descrição e Análises Linguísticas pela
Universidade Federal da Bahia. É, ainda, graduado em Letras 4 Neste ponto a teoria de RIZZI encontra um paralelo único com a
Vernáculas (Bacharel e Licenciado) e Jornalismo (Bacharel) pela teoria da sintaxe adverbiais de CINQUE (1999), como intencionamos
UFBA. Contato: paulorpereiras@gmail.com ou prpsantos@uneb.br demonstrar em nosso trabalho.

206
Partindo da análise de RIZZI, o interessante aqui oretical linguist is to devise a theory of
para os objetivos centrais deste artigo é salien- grammar. A theory of grammar is a set
tar que as projeções teorizadas por CINQUE of hypotheses about the nature of possi-
compõem justamente o Campo do IP, responsá- ble and impossible grammars of natural
vel pelos núcleos funcionais e pelo licenciamen- (i.e. human) languages: hence, a theory
to de traços argumentais do verbo tais como of grammar answers questions like:
Caso e Concordância (agree). Concordamos ‘what are the inherent properties whi-
com (RIZZI, 1997, pág.301) quando afirma que ch natural language grammars do and
os advérbios movimentam-se para o Spec de don’t possess?
um dos núcleos da camada de CP, porém acres-
centamos que eles vieram originariamente já de
outras posições de Spec, a saber: a de Spec de
Dessa forma, assim como há critérios de descri-
uma das projeções da camada de IP postuladas
ção das gramáticas particulares (os critérios de
por CINQUE (1999).
adequação descritiva) também há critérios que
devem estar presentes na descrição de todas as
II- A teoria gerativa e os universais lin- línguas naturais humanas. São eles:
guísticos
(ii) Universalidade

O critério da universalidade afirma que uma te-


CHOMSKY (1994) propõe que quatro proprieda- oria da gramática deve permitir elaborar descri-
des são apontadas como fundamentais para as ções adequadas (adequação descritiva) de todas
teorias linguísticas. Aqui elas são retomadas as línguas naturais para, assim, desenvolver
a partir da explanação resumida de RADFORD uma teoria da UG que especifique suas proprie-
(1997), por fins de facilitação da exposição: dades. Ele culmina justamente no terceiro crité-
rio: a adequação explanatória.

(i) Adequação descritiva (pág.4): (iii) Adequação explanatória


A adequação descritiva é satisfeita quan- O critério da adequação explanatória afirma,
do se consegue descrever e delimitar as senten- justamente, que uma teoria da UG deve explicar
ças gramaticais das agramaticais de uma dada as propriedades universais que a UG tem. To-
língua particular humana e, também, quando se davia, não basta apenas descrever os padrões
descreve quais as interpretações relevantes que linguísticas universais, mas também explicá-los
essas sentenças têm (RADFORD, 1997, supra): em suas propriedades fundamentais. Daí a im-
portância do critério de adequação explanatória
Given that a grammar of a language is e de sua característica principal que é a de res-
a model of the competence of a fluent tringir a amplitude explanatória da teoria para
speaker of the language, and given that ter escopo analítico exclusivamente sob o seu
competence is reflected in intuitions objeto central de estudo. Chama-se a essa ca-
about the grammaticality and interpre- racterística do critério de adequação explanató-
tation, an important criterion of adequa- ria de restrição máxima. 5
cy for a grammar of any natural langua- A restrição máxima afirma que a descrição lin-
ge is that of descriptive adequacy.t guística deve ser tão geral que dê conta de ex-
plicar o mecanismo de funcionamento de todas
Entretanto, enquanto o linguista descritivo quer as línguas naturais, mas, ao mesmo tempo, seja
elaborar tão somente descrições das gramáti- tão específico a ponto de dar conta de descre-
cas de línguas particulares, o linguista teórico ver só e somente só a linguagem humana e mais
quer elaborar uma Teoria da gramática, ou seja, nenhum outro tipo de linguagem (as linguagens
uma descrição das possibilidades e impossibili- da ciência da computação, a linguagem animal,
dades estruturais de todas as línguas naturais as línguas artificiais – o esperanto – e outras lin-
humanas, não somente de certas gramáticas guagens e sistemas comunicativos que não se
(línguas) particulares. Ou, ainda, nas palavras constituem como línguas naturais, por exem-
de RADFORD (supra): plos). A restrição máxima deve dar conta de
fornecer um modelo explicativo para aprendiza-
While the concern of the descriptive lin- gem de uma dada língua natural.
guist is to devise grammars of particu- 5 Tradução livre minha dos vocábulos ingleses restrictive,
lar languages, the concern of the the- constrained.

207
(iv) A aprendibilidade6 1.

O quarto e último critério apresentado LÉXICO


por RADFORD (1997), retomando os conceitos
de CHMOSKY (1994), traduzimos aqui como o da
aprendibilidade.

A teoria dos P&P, nascida nos anos 80, funda-


menta-se, ainda, em alguns conceitos-chaves,
como o da gramática modular. Nesse critério, SINTAXE
prescreve-se que a gramática descrita deve
dar contar do fato de que as crianças em fase
de LA aprendem rapidamente uma determinada
língua natural em um curto período de tempo.
Dessa forma, os princípios presentes na UG não
podem ser em número ilimitado ou infinito, nem FONOLOGIA SEMÂNTICA
tampouco terem propriedades extremamente
complexas, já que a marcação paramétrica pela
criança se dá de forma espontânea, rápida e au- Da junção de todos aqueles quatro crité-
tônoma em um espaço temporal relativamente rios de adequação da descrição linguística teó-
curto. rica expostos no início desta seção (adequação
CHOMSKY (1998) afirma, e com ele (RAPOSO, descritiva, universalidade, adequação explana-
1992) e (MIOTO, 2003, pág.23) também, que os tória, aprendibilidade), portanto, surge o fato de
componentes da gramática devem ser analisa- que uma teoria da gramática, na perspectiva do
dos como módulos autônomos, independentes linguista teórico, deve realizar-se com a utiliza-
entre si, no sentido de que são governados por ção de um aparato técnico mínimo (daí, portanto,
suas próprias regras e não sofrem influência o qualificador minimalista) para fornecer uma
direta dos outros módulos mentais (como o da caracterização descritiva e explanatoriamente
memória, da música, das artes, do raciocínio ló- adequada, completa, satisfatória e condizente
gico etc.). Além desse, outro conceito muito res- do fenômeno linguístico estudado, utilizando-se,
saltado dentro do modelo dos P&P é o da recur- contanto, do mínimo arcabouço teórico neces-
sividade, que afirma que o processo de geração sário. Disso, advém a proposta do atual Progra-
ou construção das sentenças dá-se de forma re- ma Minimalista, que nada mais é do que, senão,
cursiva e ilimitada na mente humana. A impor- sob este ponto de vista, um desenvolvimento
tância de tal conceito fundamenta-se no fato de contemporâneo das ideias do modelo dos P&P 7.
ele fornecer uma explicação para a criatividade
linguística dos falantes, propriedade tida como III- A proposta de CINQUE (1999): a car-
uma das mais importantes características das tografia do campo do IP e os univer-
línguas naturais. sais linguísticos
A FL é composta por Princípios gerais válidos
para todas as línguas naturais e por Parâmetros,
que são os princípios ou propriedades específi-
cas de cada uma das diferentes línguas naturais, Segundo CINQUE (1999, 2006 a, 2006 b, 2006 c,
servindo para dar conta de explicar a diversida- 2006 d), o posicionamento sintático dos sintag-
de linguística humana. Com isso, as gramáticas mas adverbiais pode ser melhor compreendido
de uma determinada língua natural qualquer, a partir de uma análise na qual esses sintagmas
a exemplo do português, francês, holandês ou sejam entendidos como especificadores (ou ar-
alemão, são os resultados da marcação/escolha gumentos externos) únicos ou exclusivos de
de parâmetros particulares dessas línguas atra- projeções funcionais máximas distintas, mais do
vés das opções (normalmente disponíveis em que como adjuntos. Para tanto, CINQUE (1999),
forma de algoritmos binários positivos ou nega- a partir do estudo do comportamento sintático,
tivos [+ ou -]) dos princípios universais da UG. O mais também levando em consideração alguns
esquema 1, a seguir, então, é o representativo aspectos semânticos desses itens lexicais, ar-
do modelo de gramática adotando no P&P, na gumenta a favor do estabelecimento de uma
7 A teoria dos P&P, criada em meados dos anos 80, como já se
versão até agora explicitada: disse, pode ser dividida em duas grandes fases: a primeira, de-
nominada de Teoria da Regência e Ligação15(TRL), que perdurou
durante toda a década de 80 até o início dos anos 90; e a segunda,
o Programa Minimalista (MP), que se estende desde o início da
6 Tradução livre minha para o termo learnibility. década de 90 até o tempo presente atual (CHOMSKY, 1999b).

208
Hierarquia Linear Universal (HLU) fixa das pro- os valores marcados de cada projeção funcio-
jeções funcionais, e consequentemente, dos sin- nal visualizada. Nessa tabela, CINQUE fornece
tagmas adverbiais. os traços caracterizadores de cada um daque-
Grande parte dos autores cujo objeto de estu- les núcleos funcionais vistos, num contexto de
do são os advérbios coadunam com a proposta oposição entre marcação e não-marcação. Essa
da adjunção para entender a sintaxe adverbial. tabela contém todas as projeções funcionais
COSTA (1999, 2004), um desses autores, por sentenciais mencionadas por CINQUE (1999) ao
exemplo, afirma que as categorias funcionais longo de sua obra. Com isso, temos o seguinte
da sentença somente são projetadas quando Quadro I adiante (supra, pág.130)10:
são necessárias ou para criarem locus sintático
para “hospedar” núcleos lexicais ou para satis- QUADRO I – Valores do traço default
fazer as propriedades de subcategorização 8 de (não-marcado) e marcado dos núcleos das pro-
classes verbais específicas. jeções funcionais da cartografia do IP:
CINQUE (1999), pelo contrário, argumenta con-
tra tal hipótese. Para ele, ao contrário do que já CINQUE cria, ainda, uma tabela que re-
foi afirmando por COSTA (1999, 2004) e outros presenta os valores default (não-marcados) e
autores (KAYNE, 1994, apud CINQUE, 1999) – os valores marcados de cada projeção funcio-
dentre eles o próprio (CHOMSKY, 1995)9 – a UG nal visualizada. Nessa tabela, CINQUE fornece
não permite que a projeção dos núcleos funcio- os traços caracterizadores de cada um daque-
nais seja diversificada de uma língua para ou- les núcleos funcionais vistos, num contexto de
tra ou mesmo entre estruturas diferentes de oposição entre marcação e não-marcação. Essa
uma mesma língua. Segundo CINQUE, tal varia- tabela contém todas as projeções funcionais
ção não seria muito permitida pela UG, pois o sentenciais mencionadas por CINQUE (1999) ao
mesmo número, tipo e ordem (hierárquica) de longo de sua obra. Com isso, temos o seguinte
projeções funcionais mantêm-se através das di- Quadro I adiante (supra, pág.130)11:
versas línguas naturais e através dos diversos
tipos de construções sentenciais. Desse modo, - [- neces- - neces-
ModP aleth necess
os advérbios são os especificadores de proje- sary sary
ções funcionais diferentes, as quais em certas ModP volition - [- volition - volition
línguas também se manifestariam via material
preenchido (do inglês, overt material) interpre- - [- obliga-
ModP obligation - obligation
tável no componente de interface do Sistema tion
articulatório-conceptual – ou seja, realizado fo- - [- ability/ - ability/
ModP ability/permiss
neticamente – nas posições de núcleos corres- permission permission
pondentes. AspP habitual - [+ habitual] + habitual
- [+ repeti-
AspP repetitive (I) + repetitive
IV- A Cartografia funcional da sentença: tive]
o Campo do IP - [+ frequen- + frequen-
AspP frequentative (I)
tative] tative
Sob a perspectiva de uma cartografia das
- [+ celera-
projeções funcionais da sentença, então, como AspP celerative (I)
tive]
+ celerative
propõe CINQUE (1999), o IP seria constituído por
todo um arranjo de projeções (pelo menos 32) TP(anterior) E, R2 E_R2
apresentando a opcionalidade binária de preen-
chimento marcado ou não (default ou não-mar-
cado e marcado). 10 Todo o quadro está como encontrado no original re-
ferenciado, em língua inglesa. Achei melhor fazê-lo assim para
que possíveis traduções não adequadas não viessem a promover
CINQUE cria, ainda, uma tabela que re-
dúvidas ao leitor acerca do entendimento da proposta formal de
presenta os valores default (não-marcados) e CINQUE. Contudo, todos os termos utilizados já foram traduzidos
8 RAPOSO (1992, pág.89) afirma o seguinte acerca do fenômeno da e apresentados anteriormente ao longo de nossa explanação. Cre-
subcategorização: “(...) Cada verbo particular é sensível à compo- mos que, os diversos núcleos funcionais, a esse momento do texto,
sição categorial do VP em que ocorre. Visto de outro modo, cada já não são totalmente inéditos para o nosso leitor.
verbo [62] ‘escolhe’ a categoria gramatical dos constituintes com 11 Todo o quadro está como encontrado no original re-
os quais pode, ou não pode, ou deve ocorrer no interior do VP.” ferenciado, em língua inglesa. Achei melhor fazê-lo assim para
Confira, também, (CHOMSKY, 1994, Pág.99) falando sobre algu- que possíveis traduções não adequadas não viessem a promover
mas das propriedades do léxico. dúvidas ao leitor acerca do entendimento da proposta formal de
9CHOMSKY (1995) e KAYNE (1994, apud CINQUE, 1999, pág.132, CINQUE. Contudo, todos os termos utilizados já foram traduzidos
133) propõem que a UG humana permitiria uma ampla e larga va- e apresentados anteriormente ao longo de nossa explanação. Cre-
riação dentre as línguas naturais no número e tipo de projeções mos que, os diversos núcleos funcionais, a esse momento do texto,
funcionais que essas admitem e na sua ordem relativa. já não são totalmente inéditos para o nosso leitor.

209
- [+ termina- + termina- Partindo da perspectiva teórica e descri-
AspP terminative tiva que adotamos e defendemos, a cartografia,
tive] tive
- [+ continua- + continua-
responderíamos que sim ao menos à primeira
AspP continuative indagação. Sim. A nosso ver, é mais elegan-
tive] tive
te, simples e, sobretudo, econômico (pensando
AspP perfect Imperfect + perfect aqui nas propriedades fundamentais do Minima-
- [+ retros- + retros- lismo) postular a sintaxe adverbial imaginando
AspP retrospective que sintagmas adverbiais ocupam a posição de
pective] pective
especificadores de projeções funcionais ligadas
- [+ proxima- + proxima-
AspP proximative às categorias verbais e que, por sua vez, tais
tive] tive
projeções são organizadas hierarquicamente
AspP durative - [+ durative] + durative em posições fixas que num estudo minucioso
+ progres- do comportamento sintático dos advérbios nas
AspP progressive Generic diferentes línguas naturais poderia ser desven-
sive
dado.
- [+ prospec- + prospec-
AspP prospective
tive] tive
É nesse prisma que nosso estudo de
- [+ comple- + comple- mestrado e doutorado se insere: o de descrever
AspP completiveSg
tive] tive a sintaxe adverbial com base na teoria cartográ-
AspP completivePl
- [+ comple- + comple- fica, verificando sua aplicabilidade.
tive] tive
VoiceP Active Passive Os resultados encontrados por nós até o
momento presente vêm ratificando tal proposta,
V- Considerações finais: os Universais o que nos levou a ratificá-la como a de maior po-
Linguísticos e a Cartografia Funcio- der de adequação descritiva e explanatória para
nal da sentença a sintaxe adverbial na língua portuguesa.

Imaginar que todas as línguas naturais


apresentam todo o arranjo ou série de proje-
Com base em todos os conhecimentos ções funcionais postuladas no modelo expla-
teóricos expostos anteriormente, afirma-se e nado neste trabalho é imaginar justamente a
defende-se neste presente trabalho que a pers- homogeneidade e abrangência generalista que
pectiva cartográfica da sintaxe adverbial que in- o modelo da Sintaxe Gerativa tem que ter para
tenciona relacionar a postulação de projeções dar conta de explicar o comportamento univer-
funcionais relacionadas às categorias do verbo sal da sintaxe das línguas humanas, ou, dito em
(Tempo, Modo, Aspecto, Número e Voz) coadu- termos mais conhecidos, os parâmetros, a parte
na-se perfeitamente com uma visão minimalis- universal da linguagem.
ta da sintaxe na qual o modelo teórico torna-se
mais elegante e enxuto. Nesta ótica, o modelo de CINQUE de-
monstra-se proeminente, pois, aplicado à sinta-
A motivação maior para a ratificação xe de diferentes línguas naturais, tem-se mos-
dessa proposta citada vem do nosso estudo de trado capaz de explica-la satisfatoriamente.
mestrado (concluído) e doutorado (em curso).
Neles, pudemos aplicar a chamada cartografia Em termos minimalistas, é mais eco-
do Campo do IP à sintaxe da língua portuguesa nômico imaginarmos que todas as têm as tais
em sua variação padrão utilizada no Brasil e o projeções, do que imaginar que haveria uma
que constatamos foi a adequação explanatória e variação em termos das categorias funcionais
explicativa da teoria de CINQUE para descrever apresentadas pelos diferentes idiomas. A última
a sintaxe portuguesa (cf. PEREIRA, 2011). perspectiva seria um entrave aos estudos sin-
táticos gerativistas, pois focalizaria mais a dife-
Dizemos isso porque, a nosso ver, tal pro- rença paramétrica subjacente sem um princípio
posta responde melhor a duas questões cruciais universal geral.
para se pensar os modelos descritivos e repre-
sentativos da Gramática Universal pela Sintaxe Quanto à tentativa de responder se to-
Gerativa, a saber: (i) todas as línguas têm todo das as línguas naturais expressam em todas as
o arranjo de projeções funcionais? (ii) todas as suas sentenças o arranjo completo de projeções
línguas expressam em todas as suas sentenças funcionais, não nos atreveremos a fornecer um
o arranjo completo de projeções funcionais? posicionamento pessoal, pois imaginamos que
ainda não há dados quantitativos e descritivos

210
suficientes para afirmar-se que sim ou não. Structure. In: Restructuring and Functional Hea-
CINQUE (1999) também não fornece uma res- ds - The Cartography of Syntactic Structures. Vol.4.
posta definitiva à questão. CINQUE, G. (org.). New York: Oxford University Press,
2006 a. Págs. 11 - 63.
Contudo, à guisa de uma conclusão de- _________,______. Issues in adverbial syntax. In:
finitiva, o que fica deste trabalho, sobretudo, é Restructuring and Functional Heads - The Cartogra-
a inovação da proposta teórica apesentada e a phy of Syntactic Structures. Vol.4. CINQUE, G. (org.).
sua coadunação com os pressupostos teóricos New York: Oxford University Press, 2006 b. Págs. 119
do minimalismo. - 144.
Sem concluir com dados definitivos, mais _________,______. The status of “mobile” suffixes.
acreditando que por isso mesmo nosso traba- In: Restructuring and Functional Heads - The Car-
lho demonstra-se rico enquanto parte do fazer tography of Syntactic Structures. Vol.4. CINQUE, G.
cientifico, terminamos nossa comunicação res- (org.). New York: Oxford University Press, 2006 c.
saltando a contundente relação existente entre Págs. 167 - 173.
a perspectiva teórica adotada aqui e o recente _________,______. A note on Mood, Modality, Ten-
modelo do MP da Teoria da Gramática. Para nós, se, and Aspect affixes in Turkish. In: Restructuring
o ato de postular a existência de núcleos funcio- and Functional Heads - The Cartography of Syntactic
nais universais para as diversas categorias ver- Structures. Vol.4. CINQUE, G. (org.). New York: Ox-
bais vistas (Tempo, Modo/Modalidade, Aspecto, ford University Press, 2006 d. Págs. 175 - 185.
Número, Voz e Pessoa), nos quais os sintagmas SANTOS, P. R. P. Os sintagmas adverbiais predica-
adverbiais preenchem o lugar de Spec, é pensar tivos de constituintes no português brasileiro: uma
mais economicamente a UG e a Teoria da Gra- perspectiva cartográfica do IP. Dissertação de mes-
mática. trado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras e Linguística do Instituto de Letras da Uni-
Essa economia demonstra-se, a nosso
versidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, 2011.
ver, principalmente, nas evidências de dados de
180 f.
línguas naturais que exemplificam a possibili-
dade binária de realização morfofonológica ou RIZZI, Luigi. The fine structure of the left periphery.
não, tanto de núcleos quanto de especificadores In: Elements of grammar; Handbook in generative
de projeções funcionais dentro das gramáticas syntax. HAEGEMAN, Liliane (editora). Kluwer Acade-
das línguas. Dessa forma, cremos que é bem mic Publishers: Países Baixos, 1997. Págs.281 - 337.
mais econômico e pertinente à descrição formal _____,___. Locality and left periphery. In: Structures
da linguagem humana supor a cartografia do IP and beyond: the cartography of syntactic structures.
estendido, que adotamos e defendemos em nos- Vol.3. Oxford University: New York, 2004. Págs.223-
sos trabalhos de pós-graduação, como parte da 251. Disponível também em: www.uni-leipzig.de/~-
UG do que não fazê-lo. muellerg/rizzi.doc. Acesso em 20 de maio de 2010.
ROBERTS, Ian. Diachronic Syntax. Oxford University
Press: New York, 2007.
VI- REFERÊNCIAS
CHOMSKY, Noam. The Minimalist Program. MIT
Press, Cambridge Massachussetts, 1995.
________,_____. Derivation by phase. MIT occasional
papers in Linguistics 8, 1999 a.
_________,______. O Programa Minimalista. Tradu-
ção, apresentação e notas à tradução: Eduardo Rapo-
so Paiva. Lisboa: Caminho, 1999 b.
_________,______. Sobre a natureza e linguagem.
In: BELLETTI, Adriana; RIZZI, Lorenzo (orgs.). Tradu-
ção de Marylene Pinto Michael. Revisão da tradução
Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
CINQUE, Guglielmo. Adverbs and functional heads: a
cross-linguistic perspective. New York: Oxford Uni-
versity Press, 1999.
_________,______. “Restructuring” and Functional

211
LETRAMENTO VISUAL EM CURSOS sas que têm como objeto a leitura ou a escrita
em diversas áreas do conhecimento, especial-
ONLINE: UMA PRÁTICA DEMANDA- mente, numa perspectiva cognitiva. Porém, os
DA NA ELABORAÇÃO DE MATERIAL estudos relativos aos usos e às práticas sociais
DIDÁTICO que são mediados pela escrita surgiram somen-
te no final da década de 70 do século passado,
Regina Cláudia Pinheiro nos Estados Unidos e na Inglaterra, e foram de-
nominados naquele contexto por letramento (li-
teracy) (BARTON, 2001).
RESUMO: Este artigo tem o objetivo de identi- Esse termo, que se originou do latim
ficar e analisar as práticas de letramento visu- literatus, significava, para Cícero, uma pessoa
al dos elaboradores de material didático para o culta, erudita. Na ocasião, quem era conside-
ensino on-line. Tendo como embasamento teó- rado culto não dominava, necessariamente, o
rico, principalmente, os estudos de Kress e Van código escrito. A escrita somente foi incorpo-
Leeuwen (1996), Soares (2000), Barton (2001), rada à definição ao termo latino literatus a par-
Semalli (2001), Cavalcante Jr. (2003) e Kress tir da ampliação da língua vernácula, passando
(2004), acompanhamos o processo de elabora- a significar “aquele que poderia ler e escrever
ção de três disciplinas de dois cursos de gradu- em uma língua nativa” (VENEZKY, 1990, p. 3).
ação semipresenciais Universidade Federal do Desse modo, para Venezky (1990, p.3), “apesar
Ceará (UFC), em parceria com a Universidade do termo literacy não aparecer no léxico inglês
Aberta do Brasil (UAB), no qual empreendemos até próximo ao final do século XIX, a concepção
um estudo de caso da produção desse material moderna de literate e illiterate datam da última
didático. Os sujeitos que participaram da pes- metade do século XVI”.
quisa foram três professores – elaboradores do
material didático das disciplinas - e dois mem- Naquele momento histórico – final do
bros da equipe de transição didática - respon- século XIX – a preocupação daqueles países de
sáveis por sugerir os recursos adequados para língua inglesa não era a alfabetização dos indiví-
que o material seja apropriado para a web. Os duos, pois esse aspecto já havia sido alcançado
instrumentos e técnicas utilizados para cons- em massa. Nessa perspectiva, surgiu a neces-
trução dos dados foram: (i) entrevista semies- sidade de um novo enfoque para as pesquisas
truturada com os sujeitos, (ii) acompanhamento de leitura e de escrita que, na ocasião, eram
da elaboração do material didático por parte dos voltadas aos seus aspectos psicológicos. Assim,
professores e (iii) análise do material elabora- os estudos sobre letramento surgiram como
do. Os resultados demonstraram que os parti- críticas direcionadas aos modelos psicológicos
cipantes da pesquisa exercem diversas práticas de leitura e de escrita, considerados simplistas
de letramento visual e que estas se constituem por não levarem em conta os fenômenos sociais
sob três formas diferentes, a saber: inserção de da linguagem e criticarem inadequadamente as
imagens sem áudio no material elaborado, in- visões educacionais (BARTON, 2001; RIBEIRO,
serção de vídeos nas disciplinas e produção de 2008). Portanto, a necessidade de se considerar
um texto visual. Concluímos que o letramento os usos sociais da escrita surgiu pela percepção
visual auxilia na construção do conhecimento e de que a linguagem se desenvolve na interação
na comunicação de ideias, já que a linguagem de seus usuários em contextos reais e significa-
multimidiática da tela é capaz de construir sig- tivos e não somente a partir de suas habilidades
nificados complexos, independentemente do individuais.
texto escrito.
No entanto, a definição de letramento
PALAVRAS-CHAVE: Letramentos; Letramento tem suscitado muitas polêmicas. Por ser um fe-
visual; Elaboração de material didático. nômeno social, é natural que seu(s) conceito(s)
esteja(m) pautado(s) pelo contexto sócio-histó-
rico e cultural em que se insere(m). Assim, a di-
1. LETRAMENTOS ficuldade de se definir o termo advém das dife-
renças inerentes às diversas comunidades e das
Os atos de ler e escrever, desde a in- mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo.
venção da tecnologia de escrita, têm sido neces- Nesse sentido, as concepções de letramento di-
sários às comunidades letradas, demandando, versificam-se no tempo e no espaço, não sendo
por isso, estudos relativos a esses aspectos. As- possível, segundo Soares (2000, p.65), uma “de-
sim, nessas sociedades, são muitas as pesqui- finição precisa e universal” do fenômeno. No

212
Brasil, por exemplo, a partir de seu surgimento, no processo, numa construção em que o fazer e
a palavra letramento vem perdendo seu signifi- o refazer são partes do todo, consideramos este
cado dicionarizado, que também remontava ao momento importante para nos dar respostas e/
sentido atribuído ao termo latino, ganhando o ou suscitar indagações essenciais para a pes-
mesmo conceito atribuído por alguns autores de quisa. Na análise subsequente, as transcrições
língua inglesa, que o concebem como relaciona- desse momento serão registradas pela sigla EL-
do aos usos da escrita, haja vista o termo ser DISC, de elaboração de disciplina.
uma tradução de literacy.
Para finalizar, percebemos que os da-
Nesta perspectiva, como são diversos dos ficariam incompletos se não considerásse-
os contextos, também são diversas as dificul- mos na pesquisa as diversas versões, as quais
dades e tentativas de definição de letramento. tivemos acesso, do material didático elaborado
Apesar do consenso dos autores em afirmar para o curso semipresencial. Em função dessa
que não pode haver uma única definição de le- percepção, decidimos por considerar, para a
tramento, muitos estudiosos, em seus contextos análise dos dados, as três versões pelas quais
específicos, apresentam concepções do termo. as disciplinas passaram. A primeira versão do
Dentre estas, podemos destacar a clássica de- material didático (MD) se refere ao texto elabo-
finição de Soares (2000, p. 36) para quem le- rado pelo professor e enviado para a equipe de
tramento é “o estado ou condição daquele que transição didática e foi identificada como Versão
não só sabe ler e escrever, mas também faz 1 do MD. A segunda, denominada de versão 2 do
uso competente e frequente da leitura e escri- MD, é o material refeito pela equipe de transição
ta”. Na definição da referida autora, a escrita didática com as devidas sugestões de recursos
é a ancora que sustenta as práticas exercidas para web. Essa versão é retornada para o pro-
pelos cidadãos, no entanto, outras concepções fessor conteudista que procedia a um exercício
do termo admitem outras formas de linguagem. de revisão para, na sequência, afirmar se con-
Sendo assim, para Cavalcante Jr. (2003, p. 26), cordava ou não com as sugestões da referida
letramento é “um processo de leitura diária do equipe. A terceira versão, identificada como ver-
mundo – o mundo interior e exterior de cada são 3 do MD, se refere ao material já publicado
ser humano – e a composição desses mundos na web e pronto para ser utilizado pelos alunos
através do uso de múltiplas linguagens de (re) com o auxílio da mediação pedagógica dos tuto-
presentação de sentidos”, tais como a sonora, res. Consideramos importante essa análise, vis-
a corporal, a literária, a espacial, a espiritual, to que, através da comparação das três versões,
a visual e a multiforme. Dentre essas diversas foi possível obter mais dados sobre o processo
formas de linguagem, destacamos, neste artigo, de elaboração do material e das práticas de le-
o letramento visual o qual está sendo conce- tramento visual dos sujeitos nessa elaboração.
bido aqui, conforme Semalli (2001, s/p.), como
“múltiplas habilidades de ler, ver, compreender,
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
avaliar e interpretar os textos visuais, incluindo
artefatos, imagens, desenhos ou pinturas que
representam um evento, ideia ou emoção”. O Esta pesquisa se constitui como um es-
autor ainda o considera como a capacidade de tudo de caso da elaboração do material didáti-
interpretar e criar mensagens visuais, incluindo co para a educação a distância que se destina a
competências para agrupar experiências senso- cursos de graduação a distância da Universida-
riais, traduzir imagens para a linguagem verbal de Federal do Ceará (UFC), em parceria com a
e vice-versa e procurar e avaliar informações vi- Universidade Aberta do Brasil (UAB), e foi rea-
suais na mídia. lizado no período de junho a dezembro de 2011.
No caso da referida instituição, os cursos são
umas vezes, inadequados para o acom- semipresenciais e o material didático é disponi-
panhamento. Para tanto, obtivemos a permissão bilizado em um Ambiente Virtual de Aprendiza-
para instalar um programa em seus computa- gem (AVA) da própria universidade, denominado
dores que rastreasse seus passos no momen- SOLAR. No presente estudo de caso, acompa-
to da elaboração e também possuísse recur- nhamos o processo de elaboração de três disci-
sos para gravação de voz. O referido programa, plinas dos cursos semipresenciais de Licencia-
denominado Cantasia Studio, permitiu filmar, turas em Letras-Português e Letras-Espanhol,
através de vídeo, a tela do computador no mo- a saber: Estágio em Literaturas de Língua Por-
mento da elaboração do material didático e gra- tuguesa, Estágio em Análise Linguística e Fono-
var a voz do docente que narrava seus passos. logia do Espanhol II.
Tendo consciência de que o conhecimento se dá

213
Os sujeitos que colaboraram com essenciais para a pesquisa. Na análise subse-
este estudo foram três professores conteudis- quente, as transcrições desse momento serão
tas (PROF), que elaboram o material do curso, registradas pela sigla ELDISC, de elaboração de
e equipe de transição didática (TD), que é res- disciplina.
ponsável pela transformação desse material
em formato web. O primeiro grupo, geralmen- Para finalizar, percebemos que os da-
te, pertence ao quadro de docentes efetivos da dos ficariam incompletos se não considerásse-
Universidade Federal do Ceará que são convida- mos na pesquisa as diversas versões, as quais
dos para elaborar o conteúdo das disciplinas de tivemos acesso, do material didático elaborado
sua competência. O segundo grupo com o qual para o curso semipresencial. Em função dessa
trabalhamos foi dois profissionais da equipe de percepção, decidimos por considerar, para a
transição didática, que são responsáveis por análise dos dados, as três versões pelas quais
transformar o material didático elaborado pelo as disciplinas passaram. A primeira versão do
professor conteudista em um formato web, o material didático (MD) se refere ao texto elabo-
qual será disponibilizado na plataforma SOLAR. rado pelo professor e enviado para a equipe de
Sua tarefa consiste em ler todo o material ela- transição didática e foi identificada como Versão
borado pelo professor e sugerir recursos para 1 do MD. A segunda, denominada de versão 2 do
tornar o conteúdo mais apropriado para a web, MD, é o material refeito pela equipe de transição
tais como imagens, tabelas dinâmicas, vídeos didática com as devidas sugestões de recursos
etc. para web. Essa versão é retornada para o pro-
fessor conteudista que procedia a um exercício
Os instrumentos/técnicas utilizados de revisão para, na sequência, afirmar se con-
para geração de dados foram entrevista semies- cordava ou não com as sugestões da referida
truturada, acompanhamento da elaboração das equipe. A terceira versão, identificada como ver-
disciplinas por parte dos professores conteudis- são 3 do MD, se refere ao material já publicado
tas e análise do material elaborado. A realiza- na web e pronto para ser utilizado pelos alunos
ção da entrevista, que se deu individualmente, com o auxílio da mediação pedagógica dos tuto-
foi realizada através do programa Audacity, um res. Consideramos importante essa análise, vis-
software gratuito que grava e reproduz sons e to que, através da comparação das três versões,
possui fácil usabilidade, e com um microfone foi possível obter mais dados sobre o processo
acoplado a um computador e, subsequentemen- de elaboração do material e das práticas de le-
te, foi transcrita para posterior análise, sendo tramento visual dos sujeitos nessa elaboração.
identificada, na análise que se segue, pela sigla
ENTRE.
3. ANÁLISE DE DADOS
Após a entrevista e compreendendo
que o processo é mais importante que o produ- As imagens, desde os primórdios da
to final, optamos por acompanhar as ações dos escrita, são utilizadas para transmitir informa-
professores conteudistas ao elaborar o material ções e se harmonizam com o texto verbal. Como
em um editor de texto. Esse acompanhamento exemplos, citamos as escritas rupestres, notici-
aconteceu sem o pesquisador estivesse presen- ários na televisão, livros didáticos, jornais e, mais
te no momento da elaboração, haja vista a elabo- recentemente, os textos publicados na web. Em
ração do material didático por parte dos profes- muitos dos exemplos citados, não era possível a
sores se dar em horários e locais, alg algumas animação das imagens ou a congregação texto/
vezes, inadequados para o acompanhamento. imagem/som, porém, com o advento das TIC, a
Para tanto, obtivemos a permissão para instalar possibilidade de harmonizar essas três anuncia-
um programa em seus computadores que ras- ções tornou-se concreta. Cabe lembrar também
treasse seus passos no momento da elaboração que, muitas comunidades discursivas, tais como
e também possuísse recursos para gravação de acadêmica, judiciária, etc, dão primazia à escri-
voz. O referido programa, denominado Cantasia ta desconsiderando, muitas vezes, o poder que
Studio, permitiu filmar, através de vídeo, a tela as imagens têm para transmissão do conheci-
do computador no momento da elaboração do mento. Outras tantas comunidades, como a pu-
material didático e gravar a voz do docente que blicitária, já as utilizam há bastante tempo, de-
narrava seus passos. Tendo consciência de que monstrando a compreensão de sua importância.
o conhecimento se dá no processo, numa cons- Entendemos, contudo, que cada comunidade
trução em que o fazer e o refazer são partes do discursiva tem suas especificações e, algumas
todo, consideramos este momento importante delas, são menos flexíveis do que outras.
para nos dar respostas e/ou suscitar indagações

214
A academia, apesar de ser uma institui- vem incluir não somente textos escritos, mas as
ção mais rígida, já vem incorporando, em suas imagens também devem fazer parte dos con-
aulas, as imagens como um recurso a mais no teúdos acadêmicos. Corroborando essa ideia,
processo ensino-aprendizagem. E com o ad- Semali (2001, s/p.) afirma que o ensino atual-
vento das TIC e a chegada da web 2.0, o ensino mente deve se pautar no ensino do letramento
on-line tem incorporado diversos recursos para tradicional e de textos típicos da era multimídia
tornar as aulas mais dinâmicas e mais apropria- e que professores estão reconhecendo o poder
das para o ambiente virtual. No entanto, Daley dos novos letramentos cuja definição se refere
(2010) reflete sobre a dificuldade de trazer o ver- aos letramentos que surgiram na era pós-tipo-
náculo da mídia contemporânea para a acade- gráfica. Para ele, “os estudantes precisam ser
mia devido à valorização que esta instituição dá letrados em imagens dinâmicas e gráficos, bem
ao racional, ao abstrato e ao contextualizado em como no texto impresso”, pois, nessa era, hou-
detrimento do afetivo, do concreto e do contex- ve uma desestabilização das concepções de le-
tualizado respectivamente. Apesar de reconhe- tramento, exigindo de alunos e professores um
cer que a linguagem do cinema já oferece um reexame das hipóteses sobre leitura, escrita e
importante corpo teórico, ela acredita que, sen- livro na prática curricular.
do a linguagem multimidiática mais relaciona-
da ao afetivo e à subjetividade da arte, aceitá-la Constatamos, além disso, que os le-
“como tão importante quanto o texto escrito vai tramentos visuais exigidos na elaboração do
requerer uma significativa mudança de paradig- material didático se constitui de três diferentes
ma, que desafie a dominação da ciência e da ra- maneiras: inserção de imagens sem áudio (es-
cionalidade, da abstração e da teoria” (p. 484). A táticas e dinâmicas), inserção de vídeos e visu-
autora apresenta diferenças entre os textos im- alização textual (cores e tamanhos de fontes,
pressos e a multimídia, citando os processos de divisão em tópicos e subtópicos, tabelas etc).
montagem e justaposição de elementos, a inte-
ratividade, o vocabulário da multimídia, técnicas Com relação à inserção de imagens,
de produção e distribuição. pudemos perceber que o material pode estar de
forma estática ou dinâmica. As imagens estáti-
Um dos recursos citados acima é pre- cas são incorporadas aos textos escritos para
sença de imagens, animadas ou inanimadas, complementar-lhe o sentido, conforme atestam
que demanda de seus usuários um certo nível os seguintes comentários:
letramento visual. Nesse sentido, nas disciplinas
observadas para serem publicadas on-line no (03) O material que vai para a web ou
ambiente virtual Solar, percebemos uma gran- mesmo o que vai impresso são mate-
de preocupação por parte de todos os envolvi- riais que recorrem bastante ao uso de
dos em inserir a linguagem visual no material imagens, fotografias, outras lingua-
e também a preocupação de que esse aspecto gens. (...) Para mim, a figura é mais um
não seja somente mais um acessório. Professo- texto para construir um sentido. Então a
res conteudistas e equipe de transição didática figura não é uma mera ilustração; a fi-
demonstram, conforme relatos abaixo, a impor- gura é parte constitutiva do texto. Como
tância da harmonia entre imagem e texto verbal: é que eu sei se ela é ilustrativa? Se você
tem um material que você tira do texto,
(01) Para fazer a transformação, lemos então é ilustrativo (ENTRE - PROF 3).
o conteúdo e averiguamos onde cabe
uma imagem (ENTRE - TD 1). (04) (...) que tipo de imagem que estou
buscando?... Qualquer tipo? Foto de
(02) Procuramos colocar a aula de uma rosto? Foto de clip art, desenho linear.
maneira limpa, tomando cuidado para Então sempre clico nesta opção, clip
que o recurso [visual] não chame mais art... o Google vai me dar apenas ima-
atenção do que o conteúdo da aula, de gens com desenhos e não com fotos
modo que dê para o aluno ler e enten- de pessoas de verdade (...) (ELADISC –
der e que não dificulte o acesso à leitura PROF 2).
complementar (ENTRE - TD 2).
Os exemplos mostrados nos revelam
As afirmações acima comprovam que que a academia, pelo menos nos cursos on-li-
os participantes da pesquisa têm consciência de ne, já incorpora o letramento visual em suas
que os letramentos exigidos na era digital de- práticas, demonstrando que o texto escrito não

215
tem mais primazia. Sobre essa questão, o pen- não teria disponibilidade de preparar
samento de Kress e Van Leeuwen (1996, p. 183) um vídeo explicativo... Já aconteceu:
confirma nossa constatação. Nas palavras dos nós fomos ao laboratório com o profes-
autores: sor, gravamos o vídeo explicativo e in-
serimos na aula. Fica muito mais claro
Procuramos romper as fronteiras aca- para o aluno (ENTRE - TD 2).
dêmicas entre o estudo da linguagem e
o estudo das imagens, e procuramos, na Como visto acima, a aula escrita se
medida do possível, utilizar uma lingua- transforma em vídeo ao qual o aluno pode assis-
gem e uma terminologia compatíveis ao tir, em um misto de som, imagem em movimen-
falar sobre ambas, uma vez que, em co- to e texto, além de contar com a presença virtual
municações reais, as duas e certamen- do professor. Essa realidade confirma a tese de
te muitas outras [semioses] aparecem Araújo e Lima-Neto (2012, p. 65) que afirmam
reunidas para produzir textos integra- haver, no hipertexto digital, uma heterogeneida-
dos (itálico dos autores). de semiótica cujos “recursos mobilizam pistas
para a construção de sentidos”.
Outra forma de letramento visual en-
contrada nos cursos pesquisados é a inserção Além dos vídeos gravados no próprio
de vídeos, muito utilizados no material on-line, estúdio da UFC Virtual, o material didático pos-
especialmente, com a chegada da web 2.0. Des- sibilita a inserção de outros vídeos, que podem
se modo, os alunos podem assistir a entrevistas, estar em sites externos ao Solar, como, por
fragmentos de filmes ou mesmo vídeos grava- exemplo, no youtube, ou vídeos de produção
dos para própria aula. não profissional gravados pelo próprio profes-
sor conteudista. Os comentários abaixo atestam
Como exemplo dessa prática, os pro- essa tendência:
fessores conteudistas são convidados a gravar
um vídeo para introduzir a disciplina. Nesse (06) O nosso tempo é um tempo de tex-
vídeo, para acesso do qual se exige diversos to escrito, mas também é um tempo do
letramentos, tais como oral, visual, escrito, o texto oral das diversas formas, digamos
professor se apresenta e relata como será a de cinema, de vídeo, de arquivos musi-
disciplina, explicitando aspectos tais como, ob- cais. Por exemplo, quantas vezes nós
jetivos, conteúdo e divisão da disciplina, impor- indicamos para que o aluno vá ao you-
tância de cada tópico, atividades avaliativas etc. tube para observar uma palestra, por
Esse vídeo é legendado e se constitui, por isso, exemplo, de um profissional. O Sara-
de uma amálgama de diversas linguagens. Para mago quando estava vivo, nesse tempo
essa gravação, o professor, geralmente, escreve nós diziamos: olha, tem uma palestra
o texto anteriormente, o que exige um certo ní- que foi gravada de Saramago no youtu-
vel de letramento escrito, mas sobretudo preci- be (ENTRE - PROF 1).
sa cuidar para que sua fala no vídeo seja clara e
lógica, assumindo uma postura física e oral exi- (07) Bom... inicialmente nós temos um
gida para aquele contexto. O discente também vídeo, temos quatro vídeos, vou abrir o
necessita de um certo grau de letramento visual vídeo (...) (ELADISC - PROF 2).
para compreender o texto falado-escrito pelo
professor e estabelecer as conexões necessá-
rias entre os diversos letramentos exigidos. (08) Então, assim, eu preciso de alguns
recursos de vídeos, de nativos que fa-
Além desse vídeo de introdução, ou- lem essa língua (ENTRE - PROF 2).
tros podem ser incorporados no material on-li-
ne para apresentar algum conteúdo, conforme É possível constatar que nessa era da
mostra o comentário a seguir de uma partici- informação, os vídeos, algumas vezes, tomam
pante da equipe de transição didática: lugar dos textos escritos para transmissão de
conhecimento. Assim, no ensino on-line da UFC
(05) Numa disciplina de exatas... de Virtual, professores e equipe de transição didá-
Química onde tem um experimento, se tica lançam mão ora do texto verbal, ora de víde-
fosse escrito, não mostraria para o alu- os para substituir sua fala, compreendendo que
no o que um vídeo mostraria... Quando “há coisas que você pode fazer com o som que
um professor dessa área manda textos, você não pode fazer facilmente ou de jeito ne-
normalmente, nós perguntamos se ele nhum com material gráfico; nem mesmo imitar

216
tudo graficamente com sucesso (KRESS, 2004, Os comentários seguintes comprovam a pre-
p. 3). sença deste aspecto nos cursos pesquisados:

Há ainda os vídeos musicais, muito uti- (10) Muitas vezes [os professores con-
lizados para o ensino de algumas disciplinas, teudistas] mandam só o texto e temos
especialmente, as de línguas estrangeiras, con- que transformar, pois não há tópicos,
forme atesta o comentário seguinte: divisões, imagens, nada... (ENTRE - TD
(09) os vídeos musicais nas aulas de línguas 1)
que são uma distração, uma maneira lúdica de
aprender (ENTRE - TD 1). (11) Na área de exatas, por exemplo, as
Vejamos a seguir as imagens de um tabelas são muito importantes... (EN-
vídeo disponível no youtube e utilizado em uma TRE - TD 2)
das aulas que acompanhamos neste trabalho.
Infelizmente não podemos reproduzi-lo aqui Os comentários acima comprovam que
devido às limitações do papel, mas tentaremos os usuários dos cursos on-line compreendem
descrever o percurso do vídeo. A imagem cen- que o texto verbal se compõe de palavras que
tral é uma simulação da página do youtube na necessitam de arranjo na página para facilitar
qual o vídeo está hospedado. As imagens que a representação dos sentidos, pois conforme
circulam a figura do centro são fotos inanima- Kress (2004, p. 2),
das que se sobrepõem no vídeo à proporção que
o som é tocado, como em um slideshow.

o signo - uma mensagem complexa for-


mada de palavras, letras, cores e tipos
de fontes com todas as suas ressonân-
cias culturais - reflete tanto os interes-
ses de seu escritor, quanto o sentido
imaginado por este de quem vai ver e
lê-lo. O signo é baseado em um propósi-
to retórico específico e intenta persua-
dir, através de todos os meios possíveis,
aqueles que passam por ele e o notam.

O exemplo seguinte demonstra como a


organização visual do texto na web se diferencia
do texto impresso:

Figura 01: Exemplo da inserção de vídeos ex-


ternos em uma das disciplinas (Versão 3 do MD)

Os exemplos mostrados anteriormente


comprovam as constatações de Semalli (2001, 1
s/p.) ao afirmar que a educação atualmente deve

2
se pautar no ensino do letramento tradicional e
de textos típicos da era multimídia e que pro-
fessores estão reconhecendo o poder dos novos
letramentos cuja definição se refere aos letra- Figura 02: Exemplo de organização visual do
mentos que surgiram na era pós-tipográfica. texto na web (Versão 3 do MD)
Para ele, “os estudantes precisam ser letrados
em imagens dinâmicas e gráficos, bem como no
A imagem representa a página inicial
texto impresso”.
do curso a partir da qual o usuário pode aden-
Outro aspecto que comprova o letra- trar em qualquer parte, demonstrando que sua
mento visual é a disposição do texto na página, organização textual permite a realização das
representada através de cores, diferentes tama- partes do hipertexto que estão em potencial e
nhos e formatos de fontes, tópicos, tabelas etc. podem ser acionados a partir de um clique. Os
números (vide número 1) que estão dispostos

217
à esquerda são links que levam os alunos para REFERÊNCIAS
as aulas da disciplina. Cada aula está dividida
em tópicos, que podem ser acionados na área
onde se localizam os botões de navegação da
aula (número 2). O botão localizado à esquer- ARAÚJO, J. C; LIMA-NETO, V. Ruptura não,
da é uma espécie de sumário que transporta o linkagem sim: o hipertexto e as enunciações na
usuário para qualquer tópico da aula e as setas web. Revista Veredas. V. 16, nº 2/2012.
o levam para o tópico anterior ou posterior. Em BARTON, D. Directions for Literacy Research:
seguida, aparecem as letras A- e A+ as quais Analysing Language and Social Practices in a
permitem aumentar ou diminuir o tamanho da Textually Mediated World. Language and Educa-
fonte. Sendo assim, é possível perceber que a tion, Vol. 15, Nº 2 & 3, 2001, pp. 92-104.
prática com a escrita mediada pelo hipertexto é,
além de outras coisas, uma questão de perceber CAVALCANTE Jr, F. S. Por uma escola do sujeito:
a organização do texto, com seus tamanhos de o método (con)texto de letramentos múltiplos. 2.
letras e tipos de fontes e a divisão proposta por ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003.
seu produtor.
DALEY, E. Expandindo o conceito de letramen-
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS to. Trab. Ling. Apl., Campinas, Jul./Dez., 2010,
vol.49, no.2, p.481-491.
Consideramos que os participantes
desta pesquisa possuem um bom nível de le- KRESS, G. Reading images: Multimodality, re-
tramento visual e conseguem perceber que, presentation and new media. In: Expert Forum
ao elaborar material didático para a educação for Knowledge Presentation: 1st Symposium of
a distância, precisam lançar mão de recursos the Expert Forum for Knowledge Presentation.
imagéticos os quais são apropriados para a web, Chicago: IIT, 2004. Disponível em: www.know-
o que faz com essa prática se diferencie dos ledgepresentation.org./BuildingTheFuture/
letramentos exigidos para elaboração de ma- Kress2/Kress2.html. Acesso em: julho de 2011.
terial didático de uma disciplina presencial. O
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. The meaning of
letramento visual é, portanto, um aspecto muito
composition. In: KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T.
importante para o ensino on-line, pois segundo
Reading images. Tradução: Leonardo Mozd-
Daley (2010), imagens e sons têm a mesma im-
zenski. London/New York, Routledge, 1996, p.
portância para criar conhecimento e comunicar
181-229.
ideias que os textos escritos, já que a linguagem
multimidiática da tela é capaz de construir signi- LEMKE, J. L. Letramento metamidiático: trans-
ficados complexos, independentemente do tex- formando significados e mídias. Trabalhos em
to. Percebemos que, na era da TIC, as imagens Lingüística Aplicada, Campinas, nº 49, 2010, p.
articuladas a outras modalidades se fortalecem 311-524.
nessa cultura, constatando que o letramento vi-
sual se torna uma prática na elaboração de cur- RIBEIRO, A. E. Navegar lendo, ler navegando:
sos on-line da UFC Virtual, pois, segundo Lemke aspectos do letramento digital e da leitura de
(2010), os letramentos são sociais, uma vez que jornal. Belo Horizonte, UFMG, 2008 (Tese de
as conexões que fazemos são parcialmente in- Doutorado).
dividuais porque são características da nossa
sociedade e do lugar que nela ocupamos (nossa SEMALI, L. Defining new literacy in curricular
idade, nossa classe social, nossas tradições) e, practic. Reading on-line, 5(4), Nov., 2001. Dispo-
parcialmente, sociais por estarem interligados nível em: http://www.readingon-line.org/newli-
a uma rede de significados elaborada por ou- teracies/lit_index.asp?HREF=semali1/index.
tros. Sendo assim, é notável que a inserção das html. Acesso em: 24 maio 2010.
TIC possibilitou a congregação de imagem, texto
e som convivendo harmoniosamente no mesmo SOARES, M. Letramento: um tema em três gê-
espaço da tela para uma melhor compreensão neros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
dessa linguagem multimidiática.
VENEZKY, R. L. Definitions of Literacy. In: VE-
NEZKY, R. L.; WAGNER, D. A.; CILIBERTI B. S.
(eds.). Toward Defining Literacy. International
Reading Association: Newark, Delaware, 1990,
pp. 2-16.

218
ANÁLISE DIATÓPICA E DIASTRÁTI- senvolvidas nas universidades brasileiras que
conseguimos encontrar diversos estudos de
CA PARA “CIGARRO DE PALHA” E cunho dialetal e variacionista. Este artigo tam-
“TOCO DE CIGARRO” NO ATLAS LIN- bém compõe essa gama de pesquisas que hoje
GUÍSTICO DO AMAPÁ vêm ganhando gradualmente incentivos e visibi-
lidade pela sociedade brasileira de forma geral.
Romário Duarte Sanches (UFPA)
Abdelhak Razky (UFPA) Este trabalho pretende explicitar e comparar
dados encontrados nos Atlas Linguístico do Bra-
sil - ALiB (CARDOSO et al., 2014) e no Atlas Lin-
RESUMO: Este trabalho objetiva mostrar as va- guístico do Amapá - ALAP (SANCHES; RIBEIRO,
riantes linguísticas encontradas no corpus do 2013). Os itens analisados foram cigarro de pa-
projeto Atlas Linguístico do Amapá - ALAP para lha e toco do cigarro. No caso do ALiB, os itens
os itens lexicais Cigarro de palha e Toco de Ci- que foram descritos, até o momento, contem-
garro. Como pressupostos teóricos e metodoló- plam apenas as capitais brasileiras. Já no ALAP
gicos consideramos a Dialetologia Pluridimen- os mesmos itens foram descritos e analisados
sional de Thun (2000), além das contribuições em 10 pontos de inquéritos, incluindo a capital.
de pesquisas em Geolinguística realizadas por
Brandão (1991), Ferreira e Cardoso (1994), Agui- Assim, além de registrar e descrever es-
lera (2012), Cardoso (2010), Razky (2014). A pes- ses dois itens nos dados do ALAP será possível
quisa segue a abordagem metodológica da Geo- realizar uma análise comparativa com o dados
linguística, numa perspectiva pluridimensional, do ALiB, na intenção de ratificar ou complemen-
já que durante a análise dos dados não prevale- tar os estudos já realizados, ou seja, verificar se
ceu apenas o mapeamento das variantes em seu as variantes lexicais encontradas para cigarro
espaço geográfico ou diatópico, mas também, de palha e toco de cigarro são as mesmas en-
levamos em consideração o aspecto social, re- contradas nos dados do ALAP.
levando fatores como a idade e sexo dos infor-
mantes. Para coleta de dados consideramos 10 2 DIALETOLOGIA E GEOLINGUÍSTICA
municípios do estado do Amapá como pontos
São diversas as definições que hoje encon-
de inquéritos. O perfil dos sujeitos pesquisados
tramos para Dialetologia e Geolinguística. Há
seguem os mesmos parâmetros elaborados
aqueles que consideram a Dialetologia como
para o projeto Atlas Linguístico do Brasil. Para
uma ciência e a Geolinguística como um método
obtenção dos dados foi aplicado o questionário
dessa ciência. Para Ferreira e Cardoso (1994),
semântico-lexical do projeto ALiB, com 202 per-
a Dialetologia é a ciência que surgiu nos fins do
guntas, distribuídas em 14 campos semânticos.
século XIX, e que demonstra até os dias de hoje,
No entanto, delimitamos apenas os itens cigarro
um maior interesse pelos dialetos regionais, ru-
de palha e toco do cigarro do campo semântico
rais e sua distribuição e intercomparação.
Convívio e comportamento social. Os resultados
Dubois (2006) define a Dialetologia como uma
apontam que no estado do Amapá, o item cigar-
disciplina:
ro de palha apresentou 10 variantes, sendo que
as mais recorrentes foram porronca, tabaco e O termo dialetologia, usado às vezes
charuto. Já o item toco de cigarro apresentou como simples sinônimo de geografia
8 variantes, tendo como a predominante a lexia linguística, designa a disciplina que as-
Bagana, item frequente nos informantes de 2ª sumiu a tarefa de descrever comparati-
faixa etária. vamente os diferentes sistemas ou dia-
letos em que uma língua se diversifica
PALAVRAS-CHAVE: Dialetologia; Geolinguística; no espaço, e de estabelecer-lhe os li-
Variação lexical. mites. Emprega-se também para a des-
crição de falas tomadas isoladamente,
sem referência às falas vizinhas ou da
1 INTRODUÇÃO
mesma família. (DUBOIS, 2006, p. 185).
Atualmente, percebemos que a Dialetologia e a
Geolinguística brasileira estão ganhando mais Outras definições estão sendo bastan-
notoriedade e reconhecimento nos espaços so- te apreciadas em pesquisas que visam
ciais, sejam estes midiáticos ou universitários. a elaboração de atlas linguísticos, o
Ressaltamos aqui, principalmente, o âmbito principal percussor dessa nova linha de
acadêmico, já que foi através das pesquisas de- pensamento é Harald Thun (2000). Este

219
autor rompe a chamada dialetologia guística passou a ser considerada como uma
tradicional e traz novas contribuições à área de interesse dos estudos linguísticos so-
área. Digamos que ele “inaugura” essa mente no final do século XIX e início do século
nova fase dos estudos dialetais, deno- XX, na Europa Ocidental. A partir de então, ex-
minado de Dialetologia Pluridimensio- pandiu-se para outros continentes, bem como a
nal. Cardoso (2010) compartilha des- América Latina.
sas novas ideias e aprimora a definição
de dialetologia. A autora afirma que “a No Brasil, quando se fala em Dialetologia
dialetologia é um ramo dos estudos lin- e Geolinguística, é importante salientar alguns
guísticos que assume a tarefa de iden- autores renomados que deram início a esses es-
tificar, descrever e situar os diferentes tudos. Ferreira e Cardoso (1994) destacam, em
usos em que uma língua se diversifica, especial, os trabalhos de Amadeu Amaral, An-
conforme a sua distribuição espacial, tenor Nascentes, Serafim da Silva Neto e Nel-
sociocultural e cronológica” (CARDOSO, son Rossi. Estes foram os primeiros dialetólo-
2010, p. 15). gos que impulsionaram novos estudos na área e
principalmente na elaboração de inúmeros atlas
Acerca destas prévias discussões do que venha linguísticos de maior e menor domínio.
a ser Dialetologia e Geolinguística, nos delimita-
remos as definições de Dubois (2006), pois este, A partir dos estudos dialetais e geolin-
também trata a dialetologia como: guísticos já publicados e aqueles que ainda es-
tão em andamento, torna-se imprescindível não
O estudo conjunto da geografia linguís- referenciar a um dos maiores projetos firmado
tica e dos fenômenos de diferenciação no Brasil, e que segundo Callou (2010), foi um
dialetal ou dialetação, pelos quais uma projeto cogitado há mais de 50 anos, no entanto,
língua, relativamente homogênea numa colocado em prática a partir de 1996. Trata-se
dada época, sofre no curso da história do projeto Atlas Linguístico do Brasil - ALiB.
certas variações – diacrônicas em cer-
tos pontos e de outra natureza noutros – O ALiB é um dos projetos macros de dia-
até terminar em dialetos, e mesmo em letologia e geolinguística que nasce em meio as
línguas diferentes. Então, a dialetologia, discussões anteriores e de pesquisas já reali-
para explicar a propagação ou não-pro- zadas, como mostrado acima. O momento mais
pagação desta ou daquela inovação, faz importante e que deu impulso para a constru-
intervir razões geográficas (obstáculos ção do ALiB, segundo Aguilera (2012), foi o Se-
ou ausência de obstáculos), políticas minário Caminhos e Perspectivas para a Geo-
(fronteiras mais menos permeáveis), linguística no Brasil realizado na Universidade
socioeconômicas, socioculturais (riva- Federal da Bahia em 1996. Conforme Aguilera
lidades locais, noção de prestígio) ou (2012), esse espaço foi favorável à construção do
linguísticas (influência de substrato, de projeto, pois reuniu pesquisadores no campo da
superestrato, de adstrato. (DUBOIS, dialetologia e da sociolinguística, contando com
2006, p. 185-186) a presença dos autores de atlas linguísticos já
publicados, até àquela época.
Sobre a definição de Geografia Linguís-
tica ou Geolinguística, Dubois (2006) afirma ser Após 17 anos, o Atlas Linguístico do Bra-
parte da dialetologia que se ocupa em localizar sil já se encontra publicado, parcialmente, pois
as variações das línguas umas com relação às até o momento foram publicados dois volumes
outras. Mais adiante o autor diz ser: “o estudo (vol. 1. Introdução e vol. II. Cartas Linguísticas
das variações na utilização da língua por indiví- 1). O lançamento do ALiB aconteceu no III Con-
duos ou grupos sociais de origens geográficas gresso Internacional de Dialetologia e Sociolin-
diferentes” (DUBOIS, 2006, p. 307). guística, realizado na Universidade Estadual de
Londrina – UEL, em outubro de 2014.
A partir disso, assumimos a definição
sistematizada por Cardoso (2010), tratando a Vale ressaltar a importância da elabora-
Geolinguística com um método de que se utiliza ção do ALiB, pois foi fundamental para instigar
da dialetologia para localizar espacialmente as e incentivar novos atlas linguísticos de dimen-
variações das línguas umas em relação às ou- sões menores, como é o caso do projeto Atlas
tras, podendo situar socioculturalmente cada Linguístico do Amapá – ALAP, coordenado pelo
um dos falantes considerados. prof. Dr. Abdelhak Razky e profª. Me. Celeste Ri-
beiro.
De acordo com Iordan (1962), a Geolin-

220
Apresentaremos nas seções seguintes as variantes cigarro de palha e porronca podem
alguns estudos já realizados com os itens lexi- caracterizar, numa mesma proporção, o falar de
cais cigarro de palha e toco de cigarro, a partir informantes com escolaridade fundamental ou
dos dados do ALiB. Em seguida mostraremos superior.
as variantes lexicais encontradas nos dados
do ALAP. Para que assim possamos visualizar Em relação ao item toco de cigarro, os
como estão distribuídas, espacial e socialmente, autores afirmam que este apresentou 23 va-
as variantes linguísticas no Brasil e especifica- riantes distribuídas nas capitais brasileiras.
mente no Amapá. Sendo que as mais frequentes foram: bagana,
bituca e guimba. Abaixo a carta linguística do
referido item.
3 VARIAÇÃO LEXICAL DE CIGARRO DE PALHA E
TOCO DE CIGARRO NO BRASIL
A partir dos dados do Atlas Linguístico
do Brasil, passamos a vislumbrar o acervo le-
xical distribuído em todo o território. Nos es-
tudos de Razky e Costa (2014) sobre os itens
lexicais cigarro de palha e toco de cigarro, os
autores mostram que o item lexical cigarro de
palha apresentou 21 variantes linguísticas dis- Figura 02 – Carta linguística elaborada por Ra-
tribuídas nas 25 capitais brasileiras. Sendo zky et. al. (2011)
mais recorrentes as variantes cigarro de palha,
porronca, cigarro de fumo, palheiro e tabaco. A partir da elaboração desta carta lin-
Numa análise diatópica, os autores destacam guística, Razky e Costa (2014), diante de uma
a lexia cigarro de palha, onde o uso aconte- análise diatópica, inferem que há usos mais fre-
ce em todas as regiões brasileiras, no entanto, quentes de algumas variantes em determinadas
concentra-se na região Centro-Sul do Brasil regiões do Brasil. Por exemplo, na região norte
. destaca-se a variante Bagana; no nordeste te-
mos as variantes ponta, pióla, píuba, tóia e resto;
Na análise das variantes por regiões, Ra- no centro-oeste aparece toco de cigarro; no su-
zky e Costa (2014) mostram que na região norte, deste guimba é a variante mais frequente; e no
cigarro de palha e tabaco são as mais frequen- sul xepa é a lexia de maior ocorrência.
tes. Enquanto no nordeste tem-se a predomi- Em relação à análise diastrática, os au-
nância de cigarro de fumo. Já na região Centro- tores destacam bagana, guimba, toco de cigarro
-Sul aparece a lexia palheiro. Vejamos a seguir e bituca. As duas primeiras aparecem nas falas
a Carta L16 do Atlas Linguístico do Brasil (2014) de pessoas mais idosas e as duas últimas nas
que mostra as denominações registradas para falas de jovens. Quanto à variável sexo, conside-
cigarro de palha nas capitais brasileiras. rando o número de ocorrências, não revela uma
influência significativa sobre a escolha de uma
ou outra variante. Já a respeito da variável es-
colaridade, Razky e Costa (2014) mostram que
bagana é mais recorrente em pessoas de nível
Figura 01 – Carta linguística extraída do Atlas fundamental e bituca na fala de pessoas de nível
Linguístico do Brasil (2014) superior.

Como podemos notar na carta linguísti- 4 VARIAÇÃO LEXICAL DE CIGARRO DE PALHA E


ca acima, há certa delimitação espacial ao uso TOCO DE CIGARRO NO AMAPÁ
de algumas variantes, como foi bem analisado
e descrito por Razky e Costa (2014). Em uma Por meio dos dados já coletados do pro-
análise diastrática, levando em consideração a jeto ALAP, pretendemos neste artigo mostrar a
faixa etária, os autores demonstram que a va- variedade linguística aplicada a dois itens lexi-
riante tabaco ocorreu somente na fala dos infor- cais, cigarro de palha e toco de cigarro. Antes
mantes mais jovens. No diz respeito a variável de explicitar os dados, vale ressaltar brevemen-
sexo, Razky e Costa (2014) afirmam que as cinco te os procedimentos metodológicos adotados. A
variantes mais frequentes podem ocorrer inde- pesquisa conta com 40 informantes distribuídos
pendentemente do informante ser homem ou em 10 pontos de inquéritos (Macapá, Santana,
mulher. Já a variável escolaridade, mostra que Mazagão, Laranjal do Jarí, Porto Grande, Pedra

221
Branca do Amaparí, Tartarugalzinho, Calçoene, A carta 145 referente à questão 145, objetivamos
Amapá e Oiapoque). Os perfis desses informan- saber que nomes dão ao cigarro que as pesso-
tes são: 1 homem e 1 mulher entre 18 a 30 anos as faziam antigamente, enrolado à mão? Por
de ensino fundamental incompleto e 1 homem meio desta pergunta, registramos 10 variantes
e 1 mulher entre 50 a 75 anos de ensino funda- lexicais: porronca, tabaco, charuto, tabacão,
mental incompleto. Para coleta de dados utiliza- cigarrinho de palha, cigarrinho, cigarro de pa-
mos o questionário semântico-lexical elaborado
lha, cigarro, trevo e ponta de borracha. Em uma
pelo comitê científico do projeto ALiB. Tal ques-
tionário contém 202 perguntas divididas em 14 análise diatópica do item, observamos que as
campos semânticos. Assim, nos delimitamos a variantes mais frequentes são: porronca 39%,
analisar dois itens lexicais do campo semântico tabaco 25% e charuto 16%. Sendo que porronca
convívio e comportamento social: cigarro de pa- aparece distribuída em quase todos os pontos
lha e toco de cigarro. de inquéritos. A variante tabaco aparece com
frequência em 7 municípios, somente em Ma-
A análise dos dados se constituirá zagão, Porto Grande e Tartarugalzinho não há
da seguinte forma: 1) inicialmente, se- registros do uso tabaco. Já a variante charuto
rão apresentados os dados em forma de também aparece em 7 municípios, só não em
cartas linguísticas, em que serão expos- Oiapoque, Amapá e Macapá. Vale ressaltar que
tos os itens lexicais investigados, sendo apenas no município de Oiapoque há a predomi-
que nessas cartas será possível visuali- nância em todos os informantes entrevistados
zar as variantes encontradas no estado da variante tabaco.
do Amapá; 2) após a demonstração dos
dados serão feitas as descrições das va- Analisando o item em seu aspecto dias-
riantes e em seguida a análise em seu trático, as variantes porronca, tabaco e charuto,
aspecto diatópico e diastrático, no en- na figura 03, também mostram um perfil linguís-
tanto, tal análise não abrangerá todas tico. A primeira é identificada como mais frequ-
as variantes encontradas, e sim as de ência na fala de pessoas de segunda faixa etária,
maior frequência. independente da variável diassexual. A segunda
Para leitura das cartas é preciso lembrar se mostra mais recorrente na fala de homens e
que cada variante se encontra identificada por mulheres de primeira faixa etária. Já a terceira
símbolos, neste caso, as variantes serão iden- é marcada predominantemente na fala dos ho-
tificadas por cores diferenciadas. No que tange mens de segunda faixa etária. Lembrando que
ao perfil do informante, este será identificado todas essas três variantes são de conhecimento
pela cruz de estratificação (+) que indicará a po- de todos os informantes entrevistados.
sição de cada um. Deste modo, diante da cruz
de estratificação, do lado esquerdo superior se Figura 04 – Carta Linguística elaborada pelos
encontrará: informante homem, 18-30 anos, autores.
com ensino fundamental incompleto; do lado
esquerdo inferior: informante homem, 50-75
anos, com ensino fundamental incompleto; do
lado direito superior: informante mulher, 18-30
anos, com ensino fundamental incompleto; do
lado direito inferior: informante mulher, 50-75
anos, com ensino fundamental incompleto.

Analisando a carta 146 referente ao item


146, queríamos saber como as pessoas chamam
para aquele resto de cigarro que se joga fora? A
partir disso, registramos no total de 8 variantes:
bagana, toco do cigarro, cortiça, biata, toquinho,
Figura 03 – Carta Linguística elaborada pelos pituca, resto do cigarro e borra. A variante de
autores. maior frequência foi bagana com 77% de ocor-

222
rência. O termo bagana está predominantemen- REFERÊNCIAS
te distribuído em todos os pontos de inquéritos
(conforme a figura 04). AGUILERA, V.; ALTINO, F. Para um atlas pluridi-
mensional: pesquisa e pesquisadores. São Pau-
A carta linguística 146 também mostra lo: Alfa, v. 56, p. 871-889, 2012.
que bagana é predominante na fala de pessoas
de segunda faixa etária, já que em FB aparece BRANDÃO, S. F. A geografia linguística no Bra-
com 32% e MB com 29%, enquanto FA com 26% sil. São Paulo: Ática, 1991.
e MA 13% de frequência. Desta forma, não cons-
tatamos que a variante lexical bagana é uma CALLOU, D. Quando a dialetologia e sociolin-
variante exclusiva e determinada pela variável guística se encontram. In: Estudos Linguísticos
diassexual, mas a variável faixa etária supõe e Literários. Programa de Pós-graduação em
certa influência na fala dos informantes. Literatura e Cultura da Universidade Federal da
Bahia. Salvador: UFBA, v. 41, 2010. p. 29-45.
CARDOSO, S (et al.). Atlas Linguístico do Brasil:
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES cartas linguísticas 1. Londrina: EDUEL, 2014.
Diante dos dados mostrados aqui, con- CARDOSO, S. Geolinguística: tradição e moder-
cluímos que para o item lexical cigarro de palha, nidade. São Paulo: Parábola, 2010.
mapeado no Atlas Linguístico do Brasil (figura
01), constatamos três variantes mais recorren- ______. Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Pro-
tes na capital Macapá: porronca, cigarro de ta- jeto ALiB): descrição e estágio atual. Revista da
baco e cigarro de palha. Enquanto nos dados do ABRALIN, v 8. p. 185-198, 2009.
Atlas Linguístico do Amapá foram registrados:
porronca, tabaco e charuto. Notamos que nos COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB: Atlas
dados dos dois atlas investigados, as variantes Linguístico do Brasil. Questionários. Londrina:
lexicais porronca e tabaco aparecem em ambos. UEL, 2001.
Ressaltamos também que nos dados do ALAP DUBOIS, J. (et. al.). Dicionário de Linguística.
há uma outra variante que não apareceu no da- São Paulo: Cultrix, 2006.
dos do ALiB, charuto. Essa comparação entre
os dois atlas linguísticos nos leva a afirmar que FERREIRA, C.; CARDOSO, S. A dialetologia no
no norte do Brasil a predominância lexical para Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
se referir a cigarro de palha é o uso da varian-
te lexical porronca que pode ocorrer tanto nas IORDAN, I. Introdução à Linguística Românica.
capitais como nas demais localidades da região. Trad. Julia Dias Ferreira. Lisboa: Fundação Ca-
Essa hipótese é sugerida, uma vez que registra- louste Gulbenkian, 1962.
mos nas cidades não capitais do estado do Ama- RAZKY, A.; COSTA, E. Os itens lexicais cigarro
pá a predominância do uso da variante porronca. de palha e toco de cigarro nos atlas linguísticos
Já em relação ao item toco de cigarro brasileiros. In: Estudos Sociodialetais do Portu-
(figura 02), observamos que a predominância guês Brasileiro. São Paulo: Pontes, 2014. p. 165-
de uso da variante bagana está concentrada no 181.
norte do Brasil e que também é a variante mais RAZKY, A.; COSTA, E.; OLIVEIRA, M. B. Variação
recorrente no estado do Amapá (figura 04). As- lexical de cigarro de palha no Atlas Linguístico
sim, inferimos que bagana é uso lexical predo- do Brasil. In: Pelos Caminhos da Dialetologia e
minante ao se referir a toco de cigarro na região da Sociolinguística: entrelaçando saberes e vi-
norte. das. São Luís: EDUFMA, 2010. p. 149-165.
Por fim, essas comparações entre atlas SANCHES, R.; RIBEIRO, C. Atlas Linguístico do
linguísticos são de suma importância para con- Amapá: estudos dialetais e métodos de pesqui-
trastar, ratificar ou complementar os resultados sa. Entrepalavras. Ano 3. V.3, n.1, jan/jul. 2013,
de pesquisas já publicados, levando o pesqui- p 276-286.
sador a se aprofundar cada vez mais em seus
dados, fazendo-o refletir para que as possíveis THUN, H. La géographie linguistique romane à
análises linguísticas não sejam meras descri- la fin du XXe siècle. In: CONGRES INTERNATIO-
ções superficiais da língua falada. NAL DE LINGUISTIQUE ET DE PHILOLOGIE RO-
MANES, 22., 1998, Bruxelles. ACTES. Tübingen:
Niemeyer, 2000. p. 367-388.

223
A IDENTIDADE DOS MIGRANTES IN- globalização, discussão que fomenta o estudo
de pesquisas a respeito dos encontros inter-
TERIORANOS DO ESTADO DO AMA- culturais e de sua influência na construção da
ZONAS A PARTIR DO LÉXICO: um identidade linguística e social do indivíduo. A re-
estudo sociogeolinguístico lação da língua com a construção da identidade
social e linguística dos sujeitos sofre uma inten-
Sandra Maria Godinho GONÇALVES (UFAM) sificação em contextos multiculturais, em que
diversos grupos sociais, culturais e linguísticos
interagem socialmente num mesmo espaço ge-
RESUMO: ográfico. Todavia, o encontro dos povos e das
O contato entre os povos e as línguas é favoreci- línguas sempre existiu no decorrer da história
do atualmente pela globalização, discussão que da civilização em diversas partes do mundo.
fomenta o estudo de pesquisas a respeito dos O estado do Amazonas, no século XVI, era (e
encontros interculturais e de sua influência na ainda é) constituído por um arquipélago mul-
construção da identidade linguística e social do tiétnico e plurilíngue, pertencente a diferentes
indivíduo. A relação da língua com a construção troncos linguísticos. (FREIRE, 2004). Foi invadi-
da identidade social e linguística dos sujeitos so- do pelo europeu e reorganizado político-linguis-
fre uma intensificação em contextos multicultu- ticamente na tentativa de integrar as socieda-
rais, em que diversos grupos sociais, culturais e des indígenas à economia mercantil. Quando se
linguísticos interagem socialmente num mesmo criou na região uma unidade política, os Estados
espaço geográfico. No Amazonas, o caboclo tem do Maranhão e Grão-Pará e o do Brasil, o Esta-
visto sua identidade original mudar e tem visto, do e a Igreja intervieram com propostas de se
também, seu referencial de vida perder-se face atingir uma unidade linguística em função dos
aos constantes choques culturais que o obrigam interesses coloniais, o que acarretou o desa-
a sair do interior do estado em busca de trabalho parecimento e extinção de diversas línguas e a
e melhores condições de vida, como atendimen- mudança de identidade linguística e étnica dos
to à saúde e acesso à educação. Esta pesquisa índios, chamados primeiramente de selvagens,
de caráter quantitativo busca fazer o registro do nas aldeias de origem em que eles falavam o
léxico realizado por migrantes provenientes do vernáculo materno; de índio manso nas vilas de
interior do estado do Amazonas, mais precisa- povoados (antigas aldeias de repartição) em que
mente, de Tefé, Itacoatiara e Manacapuru, que eles praticavam o bilinguismo, falando a língua
vivem em Manaus há pelo menos cinco anos; vernácula e a Língua Geral Amazônica (LGA); de
comparar os campos semântico-lexicais dos re- índio tapuio nas vilas e povoados, em que eles
gistros obtidos com o Atlas Linguístico do Ama- praticavam o monolinguismo, falando a LGA;
zonas, ALAM, de Cruz (2004); identificar se hou- de índio civilizado, praticando o bilinguismo,
ve uma mudança da identidade linguística dos falando a LGA e a língua portuguesa (LP), nas
migrantes interioranos do estado do Amazonas; cidades; até ser designado por caboclo, mono-
identificar, em caso de mudança, se esta esta- língue em LP (FREIRE, 2004), “um tipo cultural
ria em consonância com o desejo do migrante que emergiu como resultado da tupinização das
a uma mobilidade social ascendente, o que in- culturas ibéricas não-tupis” (MORAN, 1974 apud
fluenciaria sua identidade, segundo Castells ADAMS; MURRIETA; NEVES, 2006, p.19).
(1996); e, por fim, analisar se está acontecendo Esta miscigenação das culturas fez com que as
uma homogeneização ou não da cultura cabo- línguas evoluíssem: tanto a LGA quanto a LP.
cla. Esta pesquisa ampara-se nos fundamentos Essas línguas sofreram mudanças diacrônicas,
da Sociolinguística Variacionista, nos princípios como é o caso da língua portuguesa, transplan-
da dialetologia, apresentando algumas conside- tada para o Brasil de Portugal, que se fez mais
rações a respeito do léxico coletado, segundo suave, mais rico e mais eclético com as influên-
Pottier (1978) e algumas considerações sobre o cias do tupi, e com as influências dos afrodes-
aspecto ideológico do léxico, segundo Santos e cendentes, como a entonação, a modulação da
Cristianini (2012). voz, a doçura da pronúncia, a modificação dos
sons originais guturais fortes, nas vogais fecha-
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Dialetologia; das e a sua musicalidade (BENCHIMOL, 2009).
Sociogeolinguística; Léxico; Manaus. As línguas também sofreram mudanças sincrô-
nicas, já que se pôde perceber a coexistência de
1. Introdução formas linguísticas diferentes para um mesmo
significado com o mesmo valor de verdade num
Muito se fala atualmente que o contato entre os determinado tempo. É o processo de variação
povos e as línguas é favorecido atualmente pela

224
linguística tratada pela sociolinguística na Te- ciente de informantes ideais.
oria da Variação de Labov. Essas mudanças se Este artigo, que é fruto da minha pesquisa de
fizeram sentir de forma mais conturbada nos mestrado, tem como objetivo estudar o léxi-
primórdios da colonização amazônica, com o co desses migrantes interioranos do estado do
surgimento da cultura cabocla. Amazonas residentes na cidade de Manaus, que
Os caboclos, juntamente com os índios, os por- sofre atualmente uma urbanização galopante
tugueses e os cearenses, formaram a base so- devido à globalização. A hipótese que se levanta
cial da população amazônica e foram desloca- é a de que há uma mudança na identidade lin-
dos inúmeras vezes de seus sítios de origem guística desses migrantes interioranos, quando
para povoar a Amazônia desde os tempos pom- eles passam a viver na cidade. À medida que
balinos, transportados para contemplar os pro- falantes dos vernáculos ribeirinhos entram em
jetos urbanísticos de caráter estratégico para a contato com a língua padrão urbana oral, acre-
geopolítica da região (GUZMÁN, 2006, p. 70). dita-se que a ocorrência de itens lexicais ribei-
Desde seu aparecimento, o homem amazônico rinhos típicos tende a diminuir, ocasionando um
tem visto sua identidade original mudar e tem distanciamento desses dialetos estigmatizados
visto, também, seu referencial de vida perder- ou alguns léxicos da variedade urbana será as-
-se face aos constantes choques culturais que o sumido em detrimento do seu costumeiro diale-
obrigam a sair do interior do estado “em busca to ribeirinho e regional.
de trabalho e melhores condições de vida, como A primeira parte deste artigo trata da funda-
atendimento à saúde e acesso à educação” (OLI- mentação teórica que embasa a pesquisa em-
VEIRA, M., 2010, p.113). pírica e aborda os conceitos sobre identidade,
Entretanto, a identidade do caboclo amazonen- identidade linguística, léxico, sociolinguística e
se não está ligada somente ao contexto histó- dialetologia. A segunda parte trata da metodo-
rico, político ou geoeconômico. Sua identidade logia adotada na pesquisa, da seleção dos in-
também está ligada ao ato de fala. “Ao falar, um formantes, da coleta e da análise dos dados. A
indivíduo transmite, além da mensagem contida última parte trata das considerações finais.
em seu discurso, uma série de dados que permi- 2 Identidade
te a um interlocutor não só depreender seu esti- Falar sobre identidade é tratar de um tema com-
lo pessoal – seu idioleto – mas também filiá-lo a plexo e interdisciplinar. Complexo porque nun-
um determinado grupo” (BRANDÃO, 1991, p. 6). ca foi um conceito unânime pelos acadêmicos
A entonação, a pronúncia, a escolha vocabular, a das diversas áreas e interdisciplinar porque é
preferência por determinadas construções fra- compartilhado pelos domínios da Sociologia, da
sais indicam a região de que o indivíduo perten- Psicanálise, da Psicologia e da Filosofia. Assim
ce, o grupo social de que faz parte e a situação sendo, sua definição varia conforme os diversos
(formal ou informal) em que se encontra. Por- domínios e os diversos autores. Neste trabalho,
tanto, há um processo identificatório com rela- será discutido o conceito de identidade no domí-
ção à comunidade de fala ou rede social em que nio da Sociologia e da Psicologia.
o indivíduo circula (WARDHAUGH, 2010, p.119). No contexto da Sociologia, por exemplo, o con-
Cruz (2004), que elaborou o Atlas Linguístico do ceito de identidade e suas ponderações a res-
Amazonas - ALAM, investigou o falar do caboclo peito vão tomar uma característica fluida e frag-
amazonense, contemplando nove cidades re- mentária (MENDES, ICHIKAWA, 2010, p.170), em
presentantes das nove microrregiões do estado comparação com as perspectivas psicológica e
do Amazonas (Barcelos, Tefé, Lábrea, Humaitá, filosófica. Nesse domínio, refletir sobre o con-
Itacoatiara, Parintins, Benjamin Constant, Ei- ceito de identidade implica posicionar o indivíduo
runepé e Manacapuru). Por outro lado, Costa no contexto histórico e social em que ele vive e
(2010) salienta que os principais municípios de assumir que o indivíduo se desloca por diversos
origem dos migrantes que habitam a cidade de grupos sociais aos quais ele se identifica, e que
Manaus são: São Gabriel da Cachoeira, Tefé, Co- podem ser contraditórios. Implica também dis-
ari, Manacapuru, Iranduba, Itacoatiara, Maués e criminar um indivíduo (ou um grupo de indivídu-
Parintins, de forma que, este trabalho, visando os) de outro, pois ele se individualiza graças à
a tornar a comparação dos linguajares caboclos soma de suas experiências peculiares de vida
(já investigados pelo ALAM) mais consistente, e do conhecimento de mundo que ele acumula
trabalhou apenas com os migrantes oriundos durante sua existência. O sujeito passa, então,
das cidades de Tefé, Itacoatiara, Manacapuru e a se autorreconhecer e a reconhecer também o
Parintins, em que as localidades são coinciden- Outro em toda a sua alteridade.
tes, deixando de acrescentar a cidade de Parin- Esse processo de construção da identidade é
tins, por não ter encontrado um número sufi- complexo. Primeiramente, ele é simbólico, pois

225
o indivíduo usa símbolos (a língua) para criar outros” (HALL, 2006, p.39). É o exterior consti-
significados; em segundo, esse processo é so- tuindo o interior do sujeito.
cial, pois se dá no interior de uma comunidade A construção de identidades vale-se do conhe-
ou de um grupo de pessoas, e, finalmente, é psí- cimento de mundo que um indivíduo acumula
quico, tornando-se um construto mental. Assim, durante toda a vida, dado pela gama de maté-
é necessário salientar a importância do papel rias-primas fornecidas pela “história, geografia,
estruturador que a língua tem na construção biologia, instituições produtivas e reprodutivas,
da identidade e a influência da cultura de uma pela memória coletiva, por fantasias pessoais,
sociedade sobre o indivíduo, permeando todo o pelos aparatos de poder e revelações de cunho
processo de identificação social. Rajagopalan religioso” (CASTELLS, 1996, p.23), material esse
(1998) salienta que a identidade de um indiví- processado pelo indivíduo, organizado e reorga-
duo é construída na língua e através dela, não nizado dentro da estrutura social da qual o sujei-
existindo uma identidade fixa e exterior à língua. to pertence e pelos processos de identificação,
Também não se pode pensar em identidade sem aos quais o indivíduo fica sujeito. Atualmente, a
levar em conta a ideia de representação. ideia de que a identidade engloba uma multipli-
A representação de si, no mundo atu- cidade de identidades ou de identificações (que
al, no qual o fenômeno da globalização se tornam maior, à medida que mais evidentes
está disseminado nos campos econô- forem as diferenças das práticas sociais), é mais
micos, administrativos e políticos, não aceita entre os estudiosos das ciências sociais e
é tarefa fácil. Nesse período histórico psicanalíticas a respeito do termo.
, no qual encontramos a exacerbação do indivi- Pode-se sentir como sendo a mesma pessoa
dualismo, do consumismo, da ética hedonista e em todas as nossas interações, mas se posicio-
da fragmentação do tempo e do espaço “mar- na diferentemente nos diversos sistemas cultu-
cados pelo desenvolvimento de formas tecno- rais pelos quais o sujeito circula. Muda-se em
lógicas de vida que propiciam, entre outros, um diferentes momentos, em diferentes lugares, de
gigantesco fluxo de informações e produtos, acordo com os diferentes papéis sociais (WOO-
acarretando um permanente descarte das clas- DWARD, 2008, p.30) que se está exercendo, fa-
sificações e fórmulas”(MARINHO, 2009, p.82), o zendo também com que as identidades múltiplas
conceito de identidade vem sendo questionado, possam estar em conflito ou em contradição. A
desconstruindo a ideia de uma identidade única identidade nos dias de hoje passa a ser vista e
e integral e criticando os modelos essencialis- analisada como fragmentada. Castells propõe
tas de compreensão do tema tão em voga nos três formas de construção de identidades:
primórdios tempos do estudo sobre identidade.
Atualmente, a identidade é vista como um 1- Identidade legitimadora: exercida
atributo, um construto que não é inato ao indi- pelas instituições dominantes no afã
víduo, mas que passa a ser construído através de expandir sua dominação, ampliar
das práticas sociais. A identidade é internalizada e racionalizar o domínio que exer-
através de um processo de individuação particu- cem sobre os indivíduos, exemplifi-
lar que varia de indivíduo para indivíduo, e que cando: Igreja na idade média, a Es-
se constrói através da prática social dentro de cola e os meios de comunicação nos
uma comunidade, assim, o conceito de identida- Estados Totalitários e Autoritários, e
de deixa de ser puramente individual (cuja des- os meios de comunicação de massa
crição deveria partir da análise do indivíduo) e nas sociedades ocidentais contem-
ganha uma perspectiva social, ou seja, o sujeito porâneas, de forma que os valores
observado pelo Outro através das suas relações propagados por essas instituições
sociais. se assemelham aos valores propa-
Por essa razão, o conceito de identidade vincula gados pelo Estado.
o processo individual (o que eu sou) ao processo
social (como sou definido ou o que dizem que eu 1- Identidade de resistência: criada por
sou). Neste processo, a definição de si está vin- sujeitos que se encontram em po-
culada às categorias utilizadas para identificar sições desvalorizadas ou estigma-
um indivíduo num dado espaço social, de manei- tizadas, opondo-se às identidades
ra que a identidade surge não tanto da plenitude legitimadoras, buscam garantir sua
da identidade, que já está dentro de nós como sobrevivência com princípios e valo-
indivíduos, “mas de uma falta de inteireza que é res diferentes dos vigentes nas ins-
preenchida a partir do nosso exterior, pelas for- tituições sociais. Essas identidades
mas através das quais se imagina ser visto por de resistência dão origem a comu-

226
nidades que representam uma opo- ela, seus costumes, a história desse povo e faz
sição a situações de opressão e que a conexão do falante (ou grupo de falantes) ao
lutam contra o sentimento de exclu- mundo real. No mundo real, o falante tende a
são e de alienação, seguido de uma se aproximar dos membros do grupo com o qual
possível injustiça social; ele deseja se identificar. “Ele cria suas regras
linguísticas no momento do enunciado de cada
1- Identidade de projeto: quando os ato de fala” (LE PAGE, 1980 apud BACELAR,
sujeitos constroem uma nova iden- 2009, p.9), principalmente porque ele circula na
tidade capaz de redefinir sua po- sociedade por diversos grupos sociais. Podemos
sição na sociedade, objetivando a mesmo dizer que, por isso, cada ato de fala é
transformação de toda estrutura visto como um ato de identidade (seja ela pesso-
social. Nessa situação há uma res- al, social, cultural ou linguística).
significação do sujeito, há a criação
4Léxico
de um novo paradigma de existência
que poderá atingir a sociedade pela
interação social. Um exemplo disso Há diversas denominações para o léxico: unida-
foi o percurso de liberação das mu- de lexical, signo linguístico, lexema, lexia, pa-
lheres que afetou toda a sociedade lavra, item lexical e vocabulário, para citar al-
ocidental; guns. A noção de signo linguístico foi criada por
Saussure, “o pai da linguística” estruturalista.
A identidade dos migrantes enseja
Para ele, signo se refere à relação que há entre
uma resistência cultural, uma tentativa de man-
o ‘nome dado às coisas existentes’ e ‘a coisa em
ter sua identidade de origem, mas sem conse-
si’ e é composto de duas partes: significante e
guir se manter impermeável à influência cultu-
significado. O significante é a impressão acústi-
ral da sociedade que o cerca.
ca e o significado corresponde ao objeto, ou seja,
3 Identidade linguística a coisa em si. Também segundo Saussure, o sig-
no linguístico pertence a uma estrutura forma-
Língua, sociedade e cultura estão inter- da por dois eixos, paradigmático e sintagmático,
ligadas. Tomemos um exemplo em que um su- implicando dizer que toda unidade lexical tem
jeito fala “se abanquem, tchê!”, imediatamente um componente semântico e outro sintático. Já,
identificamos esse falante como natural da re- segundo Dubois (2006, p. 364), “o léxico corres-
gião sul do Brasil, porque a pronúncia, a escolha ponde ao conjunto de unidades que formam a
vocabular, a preferência por determinadas cons- língua de uma comunidade, sendo o termo lé-
truções frasais, as gírias e as expressões são ín- xico reservado à língua e o termo vocabulário
dices que identificam a região ou o país de que reservado ao discurso”.
o falante se origina e o grupo social do qual ele
faz parte (BRANDÃO, 1991, p. 6). Outro exemplo O léxico das línguas naturais cumpre
é o estudo de Labov, de 1963, a respeito de uma dois papéis fundamentais: apropriar-se do real
comunidade de negros da ilha de Martha´s Vi- simbolicamente, conectando o exterior ao in-
neyard, estado de Massachussetts, nos Estados terior do sujeito e categorizar cognitivamente a
Unidos. O estudo foi sobre a variante local, não- experiência vivenciada em lexias. Esse preceito
-padrão e conservadora a respeito dos ditongos condiz com a teoria de Sapir-Whorf, surgida na
/au/ como em house e /ay/ como em right. O uso década de 50/60, que diz que “todo o sistema lin-
vigente é das variantes locais, estigmatizadas, guístico manifesta tanto no seu léxico como na
[Əu]; [ Əy], ao invés da variante padrão trazida sua gramática, uma classificação e uma ordena-
pelos veranistas invasores da ilha. Ressentidos ção dos dados da realidade que são típicas dessa
dessa invasão, os habitantes da ilha, numa ati- língua e dessa cultura com que ela se subjuga”
tude linguística para demarcar seu espaço, seu (BIDERMAN, 2001, p.109), ou seja, cada língua
perfil de comunidade e sua identidade cultural traduz a realidade de acordo com a cultura e o
(acrescente-se também sua identidade linguís- modelo que lhe são próprios.
tica), exageram a pronúncia da forma estigma-
Ainda de acordo com Whorf, a própria
tizada (TARALLO, 2007, p.14), este marco lin-
percepção que o homem tem da realidade é pré-
guístico e cultural reflete a maneira própria de
-moldada pelo sistema linguístico que ele fala,
cada comunidade falar, ser e agir e está intrin-
“pois as categorias existentes nessa língua o
secamente ligado à identidade linguística. Neste
predispõem para certas escolhas de interpreta-
enfoque sociolinguístico, a língua é o produto da
ção do real” (BIDERMAN, 2001, p.110). O mundo
cultura de uma comunidade e traz, subjacente a

227
se apresenta como impressões, que tem que ser O léxico analisado do corpus coletado
organizadas por nossas mentes, ou seja, é pela para a pesquisa foi classificado de acordo com
palavra (nomeação) que o homem exerce sua Pottier. Para o linguista, a lexia é a unidade lexi-
capacidade de abstrair e generalizar o subjetivo cal memorizada e pronta para o uso e se divide
através de sua percepção e de sua experiência em quatro tipos: a lexia simples, a composta, a
com o mundo. complexa e a textual. A lexia simples correspon-
de à “unidade funcional significativa do discur-
A mente humana sempre reajusta sua so” (DUBOIS, 2006, p.361), por exemplo: cadei-
estrutura léxica, de acordo com as novas co- ra, saiu, entre, agora, para, entre outros. A lexia
notações do significado que vão sendo continu- composta é o resultado da integração semântica
amente introduzidas no léxico de uma língua e que se manifesta: saca-rolha, primeiro-minis-
que apontam para novas categorizações. Isto tro, olho-de-sogra, verde-garrafa, entre outros.
sem contar com as novas palavras aprendidas, A lexia complexa é uma sequência em vias de
já que, diferentemente do sistema fonológico ou lexicalização como em: estado de sítio, cesta bá-
morfossintático, o léxico constitui um sistema sica, cidade universitária, entre outros e, por úl-
aberto, pois o indivíduo está sempre aprendendo timo, a lexia textual, assim denominada quando
novos elementos léxicos (com suas denotações a lexia complexa alcança o nível de um enuncia-
e conotações) através da interação social com do ou de um texto: quem tudo quer, tudo perde.
outros indivíduos de uma mesma comunidade
linguística ou não. 5 Sociolinguística

Nesse processo, as mudanças sociais e As línguas mudam e esse fato pode ser
culturais, principalmente no mundo globalizado mais bem observado se compararmos o modo
atual, que funciona em rede, acarretam altera- como nossos avós e como nossos jovens falam.
ções nos usos vocabulares: As mudanças são sentidas não somente no nível
de registro, mas no nível de léxico, no fonoló-
gico e no de regras gramaticais. As variações
1- Daí resulta que unidades ou setores
podem ser diatópicas (quando se referem ao
complexos do léxico podem ser mar-
espaço geográfico), diastráticas (quando se re-
ginalizados, entrar em desuso e vir a
ferem aos estratos sociais como idade, gênero,
desaparecer. Inversamente, porém,
escolaridade etc) e diafásicas (quando se refe-
podem ser ressuscitados termos que
rem ao registro, formal ou informal da língua).
voltam à circulação, geralmente com
Assim, se esperamos encontrar um conjunto de
novas conotações. Enfim, novos vocábu-
regras gramaticais regulares e estáticas com-
los, ou novas significações de vocábulos
partilhadas pelos membros de uma comunida-
já existentes, surgem para enriquecer o
de, isso de fato não acontece. “O que observa-
léxico (BIDERMAN, 2001, p. 179)
mos é que as línguas parecem ser sensíveis a
Dito isso, pode-se dizer que o universo diferenças comportamentais dos indivíduos que
linguístico de uma língua é representado pela as falam e apresentam formas variáveis (de na-
unidade lexical e pelos componentes gramati- tureza individual, social, regional, entre outras)
cais. A escolha lexical do falante/informante da e mudanças que se manifestam com sua evo-
língua retrata a percepção deste sobre o mundo lução histórica” (MARTELOTTA, 2011, p.15). Ou
que o cerca, assim, é fácil compreender que o lé- seja, “o indivíduo é, a um só tempo, usuário e
xico está ligado à questão cultural do informante modificador de sua língua” (BRANDÃO, 1991),
e à comunidade da qual ele faz parte. Na intera- imprimindo mudanças que são oriundas das no-
ção social entre informante e pesquisador, que vas situações de vida com que ele se depara e da
se desenrola no momento da entrevista (para geração em que vive.
recolher os dados linguísticos do questionário
semântico-lexical) numa situação face-a-face, Essas mudanças puderam ser observa-
os sentidos do léxico vão sendo construídos e a das de maneira mais relevante com o advento da
ideologia da comunidade na qual o informante Sociolinguística Variacionista. A pesquisa reali-
está inserido se revela, assim como suas cren- zada concentrou-se no estudo do léxico, focando
ças, seus costumes, sua cultura, seus valores nas várias formas alternativas que surgem para
morais e sociais em um determinado tempo e um mesmo e determinado fenômeno linguístico.
em um determinado espaço. Assim, neste tra- Assim, os termos e as expressões de uso de uma
balho, é dado ao léxico um enfoque muito maior língua, que projetam a cultura e a identidade de
e mais abrangente que o de ser simples reposi- um indivíduo/comunidade, são manipulados nas
tório do saber linguístico de uma comunidade. interações verbais em situações de comunica-

228
ção, em que o sujeito assume uma posição sub- que as investigações no campo da linguagem se
jetiva em relação ao conteúdo que deseja emitir, desenvolviam por meio de métodos histórico-
corroborando com a visão de Labov (2008) de -comparativos. Os estudos comparatistas visa-
que a língua é heterogênea e está em constante vam, inicialmente, reconstituir a protolíngua do
processo de mudança, mas não a sua concepção indo-europeu. Por meio desses estudos, foi sur-
de comunidade de fala. gindo o interesse também em analisar os dia-
letos, considerados, então, como fontes de co-
Hymes, Wardhaugh e Gumperz, contra- nhecimento do modo como se teriam operado as
riamente a Labov, defendem a heterogeneidade transformações em fases anteriores as línguas.
da comunidade de fala, uma vez que um indiví-
duo pode participar de uma variedade de redes No final do século XIX, merece desta-
de socialização, variando seu modo de falar de que o grupo dos neogramáticos que tinham o
maneira diastrática, diatópica e diafásica. princípio de que as alterações fonéticas obede-
ciam a leis rígidas, que não admitiam exceções.
Corroborando com a visão dos linguis- Suas teorias geraram polêmicas em países
tas acima citados, Ronald Wardhaugh (2010) como a Alemanha, a Itália e a França, e moti-
acredita que o indivíduo pode pertencer a diver- varam pesquisas dialetais. Foi na França que
sas comunidades de fala, identificando-se com a Dialetologia teve maior destaque. “No ano de
uma ou outra, conforme as circunstâncias. Nes- 1881, passou a fazer parte do currículo regular
sa perspectiva, há uma relação entre o proces- da École Pratique des Hautes Études, de Paris”
so identificatório e a comunidade de fala, sendo (BRANDÃO, 1991, p.8). Ganharam impulso os
esta considerada fluida e dinâmica, o que condiz estudos dialetológicos pelo ideal da valorização
com o que foi afirmado sobre identidade, já que das manifestações populares (usos, crenças,
o sujeito se desloca por diversos grupos sociais costumes, falares) e pela evolução histórica das
com os quais ele se identifica. Nas comunida- formas linguísticas.
des de fala as identidades não são estáticas e os
sujeitos estão em constante processo de identi-
ficação, dificultando o processo de delimitação No ano de 1888, Gaston Paris, em uma
da comunidade de fala e da realização de uma conferência intitulada “Os falares da
pesquisa com enfoque no fenômeno da variação. França”, acentuava a necessidade de se
estudarem os patois franceses, que es-
À perspectiva de Ronald Wardhaugh, tavam em via de descaracterização pelo
soma-se o conhecimento da teoria da acomo- acelerado processo de nivelamento cul-
dação, desenvolvida por Giles e Powesland den- tural. Chamava a atenção também para
tro da psicologia social, que diz que um falante o fato de que as descrições dialetais de-
ajusta seu repertório linguístico e seu modo de veriam ser realizadas com o rigor exigi-
falar ao de seu interlocutor (BORTONI-RICAR- do pelas ciências naturais, obedecendo,
DO, 2011, p. 107). É um recurso para enfatizar a assim, a uma metodologia bem definida.
similaridade intragrupo e a distinção intergrupo. (BRANDÂO, 1991, p. 8).
Junto com esta convergência existe uma estra-
Gilliéron iniciou, com o apoio de Gas-
tégia de conformidade e identificação.
ton Paris, os preparativos para a elaboração
À teoria de acomodação de Giles e do Atlas Linguístico da França – ALF, uma obra
Powestand cito a hipótese de Le Page, segun- monumental que viria a constituir um marco dos
do a qual a variação linguística é uma função da estudos dialetológicos e muito contribuiria para
pertinência de grupo, ou seja, o falante cria seu o progresso da ciência da linguagem. Aos pou-
sistema de comportamento verbal de maneira a cos, o método dialetológico foi sendo aperfeiço-
assemelhar-se ao que é comum ao grupo com o ado e os atlas passaram a retratar peculiarida-
qual ele deseja ser identificado a cada momento des etnográficas e, modernamente, variações
(apud BORTONI-RICARDO, 2011, p.137). Esses diastráticas, sobretudo porque os interesses da
vieses tentam explicar porque as pessoas falam dialetologia voltaram-se também para a fala dos
da forma que falam em diferentes situações so- grandes centros urbanos. A geografia linguísti-
ciais. ca, método científico da dialetologia, constitui-
-se em um dos mais significativos métodos de
6 Dialetologia registro e de análise da diversidade linguística,
principalmente na Europa e nas Américas, o que
A dialetologia, ou o estudo sistemáti- pode ser comprovado pelos inúmeros atlas lin-
co das variações linguísticas de natureza geo- guísticos regionais e nacionais já publicados, e
gráfica, formalizou-se no século XIX, época em

229
também pelos diferentes e inovadores projetos questão 292 a 293 – questões acrescen-
em curso que abrangem determinados domí- tadas pela pesquisadora para avaliar a
nios linguísticos, registrados através de ques- identidade.
tionários fonético-fonológicos e questionários
semântico-lexicais. A geografia linguística vem O questionário semântico-lexical (QSL) abar-
sendo enriquecida com avanços técnicos e com cou os seguintes campos semânticos:
novas tendências metodológicas.
(I) Meio Físico: (a) A Terra e os Rios, (b)
6 A Pesquisa Fenômenos Atmosféricos (astros, clima); (II)
Meio Biótico: (a)Fauna (aves, peixes, répteis,
Pode-se dizer que os migrantes inte- quelônios e mamíferos), (b) Flora (aquática e
rioranos do estado do Amazonas compartilham terrestre); (III) Meio Antrópico: (a) O Homem
traços da cultura dominante e apresentam ele- (características físicas, relações familiares, ali-
mentos que não pertencem a essa cultura. Eles mentação e saúde, habitação, vestuário e cal-
lidam com um processo dialético que permite çados, crenças, superstições e lendas, relações
que eles se adaptem às relações capitalistas sociais – ciclos de vida, vida social, expressões
de produção (e à língua padrão urbana oral) por populares);
um lado e, por outro, mantenham sua identida-
de étnica ou de migrante. A escolha vocabular A pesquisa ainda se encontra em fase de
demonstra esse estado de coisas, que varia de andamento, mas algumas observações foram
acordo com as redes sociais em que o indivíduo notadas. Por exemplo, na questão de número
se desloca. dois do QSL da pesquisa, “como se chama um
rio pequeno de uns dois metros de largura?” o
A pesquisa de cunho quantitativo levou item lexical mais produtivo encontrado nesta
em conta os pressupostos da Sociolinguística pesquisa foi ‘encontro das águas’, que, de acor-
Variacionista e da Dialetologia e procurou ob- do com Pottier, é uma lexia complexa. Etimolo-
servar como o repertório linguístico dos cabo- gicamente, esta lexia complexa deve ser classi-
clos provenientes das cidades de Tefé, Itacoa- ficada por partes: primeiramente, o item lexical
tiara e Manacapuru se comporta depois de um ‘encontro’ se origina do latim ῐncǒntrǎre, que
período de tempo vivendo na capital (um mínimo significa ir cǒntra, e, em segundo, o item lexical
de cinco anos). Primeiramente, foi selecionado ‘água’ se origina do latim ǎqua e se refere a um
um critério para a escolha dos informantes, uti- líquido incolor, inodoro e insípido, essencial à
lizando as variáveis sociais de idade, gênero e vida, de acordo com o Dicionário Etimológico da
escolaridade. Para a idade, foram estabelecidas Língua Portuguesa (CUNHA, 2010). O conceito
três faixas etárias: 18-35 anos, 36-55 anos, 56 dessa lexia complexa significa nesta comunida-
anos em diante. Para o gênero, foram estabele- de de fala ‘lugar onde um rio encontra outro rio’.
cidos o masculino e o feminino. Para o nível de No ALAM, esta pergunta não foi produtiva e não
escolaridade, foi estipulado que seriam selecio- gerou carta lexical, ou cartograma, que pudes-
nados desde informantes analfabetos até aque- se ser utilizado para uma comparação com os
les que houvessem completado o ensino funda- dados desta pesquisa, no entanto, esta resposta
mental. Foram escolhidos seis informantes por revela a influência do aspecto físico-geográfico
município, sendo três homens e três mulheres, na vida dos migrantes na cidade e revela tam-
perfazendo um total de 18 informantes. bém como o rio e a natureza são importantes na
vida deles, caracterizando o aspecto ideológico
A próxima fase da pesquisa, a do léxico encontrado, conforme se pode confe-
coleta de dados in loco pela pesquisado- rir na transcrição:
ra, consistiu na aplicação de um ques-
tionário semântico-lexical, num total de Quando termina e en-
293 questões, que serviu de corpus para contra um outro rio?... é
a análise. As questões foram elaboradas o encontro das águas...
da seguinte maneira: Da questão 1 a 199 aqui...quando a gente
– questões baseadas no ALAM (CRUZ, vê, né, é o encontro da
2004); da questão 200 a 218 – questões água branca com a água
acrescentadas pela pesquisadora para o preta (C.G.A, 2014)
campo lexical vestuário; da questão 219
a 266 – questões baseadas no ALAM; da Na questão de número 47, “e aquela
questão 267 a 291 – questões baseadas luz forte e rápida que sai das nuvens, podendo
no livro Amazonês (SOUZA, 2011); da queimar uma árvore em dias de mau tempo?”,

230
uma resposta interessante foi ‘corisco’, apesar vai morrê um...sonhá com pirarucu....
desta lexia não ser a mais produtiva. De acordo porque na canoa você pega um pira-
com Pottier, é uma lexia simples. Existe o verbo rucu e bota na canoa...é morte...sonhá
coriscar, que vem do latim coruscȃre. O item le- com a sua casa quebrando...é morte na
xical ‘corisco’ existe desde o século XIII, signifi- sua família...viu? Sonhá com essas coi-
cando faiscar ou relampejar, desde o século XVI. sas é morte...de parente...de vizinho...
Percebe-se que o tema da natureza é relevante (M.L.M.O., 2014).
para o caboclo na seguinte transcrição:
Na questão de número 134,
“como se chama a pessoa que tem uma perna
É porque assim, muitas vezes de ma- só?”, temos como resposta mais produtiva a
drugada, quando a gente tá pescando, lexia saci/Pererê para os informantes das cida-
né...pode ser que assim o vento se mu- des de Itacoatiara e de Manacapuru com 33% de
dou com a estrela, né...aí tem o coris- frequência. Esta é uma lexia composta, de acor-
co...corisco já é a pedra que sai...ele é do o com Pottier. Segundo Cunha, vem do tupi
uma pedra, é uma pedra com o formato sa´si. É uma entidade fantástica do folclore bra-
de um machado...onde ele batê ele des- sileiro que assume a forma de um negrinho de
trói tudo...ele parte e abre...o corisco já uma perna só, que usa cachimbo e um pequeno
é a fagulha (A.C.S., 2014) barrete vermelho na cabeça, e que persegue
os viajantes nos caminhos. Segundo Houaiss e
Na questão de número 229, “tipo de sonho
Villar (2001) o conceito encontrado refere-se a
que pressupõe a morte de alguém”, pode-se no-
uma entidade fantástica, negrinho de uma per-
tar como a crença, seja ela folclórica, religiosa
na só, que fuma cachimbo e usa um barretinho
ou mística, é algo bastante entranhado na vida
vermelho, fonte de seus poderes de magia e
deles. O sonho que prenuncia a morte é algo crí-
que, segundo a crença popular, diverte-se es-
vel, conforme pode-se ver na seguinte transcri-
pantando o gado e espavorindo os viajantes nos
ção:
caminhos solitários, com seus longos assobios
no meio da noite. Apresenta como variação le-
O dia que minha mãe faleceu eu sonhei xical saci-cererê. Este item lexical simbolizou
com minha casa quebrando...quando a correlação com esta entidade fantástica da
ela adoeceu...no dia que ela adoeceu... crença popular. Assim, quando o informante foi
era uma horas dessa...ela adoeceu...ela perguntado sobre como se chama a pessoa que
foi pro hospital...eu não dormi...me deu tem uma só perna, a resposta, saci/pererê, indi-
um aperto aqui, ó...aquele aperto, aque- ca que o místico se faz ainda muito presente no
la falta de paciência...eu queria chorar imaginário do homem caboclo.
e era aquele nó engatado aqui...meu
Deus, eu passei a noite todinha assim... Como foi dito anteriormente, a pes-
quando...no dia que ela MOrreu eu não quisa ainda se encontra em andamento, mas é
tinha mais sossego, eu passei a semana necessário observar que apenas os dados mais
todinha assim....eu passei a semana to- produtivos em ambas as pesquisas foram leva-
dinha...parece que eu tava com febre... dos em consideração. Procedendo-se à compa-
quando foi no dia que ela faleceu eu dor- ração apenas com os dados do ALAM, pode-se
mi...quando eu me acordei...os grito...eu afirmar que 58, 94% dos informantes que resi-
acordei gritando mesmo chamando por dem em Manaus alteraram o seu modo de fa-
ela..aí meu marido me balançando, me lar, utilizando lexias não habituais às que são
balançando...eu disse minha mãe mor- empregadas por caboclos que vivem no interior
reu...a minha casa quebrava aqui...ó... de Tefé, Itacoatiara e Manacapuru. Observou-se
ela quebrava bem no meio...ela que- que expressões que tem similares em outras
brava bem aqui em cima e descia as- regiões do país como ‘até o pescoço’ co-variam
sim...que era a cova...aí eu queria ver com a forma típica da região ‘até o tucupi’. O
ela queria ver ela e ela na minha frente mesmo acontece com ´tá de bode’ e ‘TPM’, ‘ton-
(M.L.M.O., 2014). tom’ e ‘cangote ou pescoço’, ‘maceta’ e ‘gran-
de’, ‘jerimum’ e ‘abóbora’, talvez já denotando
os efeitos da globalização. Ainda sob esse enfo-
Eu vou logo dizer pra senhora...quando
que, foi encontrada a lexia ‘avexar’, tipicamente
você sonha com ingá...você pega aquela
nordestina, como co-variação de ‘pegar o beco’,
ingá de casca aquela branquinha com
tipicamente amazonense.
caroço às vezes, aí pode contar que

231
7 Considerações Finais viver na cidade grande, com valores diferentes
dos vigentes nas instituições sociais. A grande
Apesar da pesquisa ainda estar em maioria possui uma rede social bastante restri-
fase de andamento, já é possível notar que hou- ta, normalmente ligados apenas à família, tra-
ve uma mudança no repertório linguístico dos balho e vizinhos, não sendo observado ensejo de
migrantes que vieram das cidades de Tefé, Ita- mobilidade social. Muitos são trazidos à capital
coatiara e Manacapuru, acarretando mudança em busca de melhores condições de trabalho,
linguística. Todavia, esta mudança linguística saúde e educação, mas as condições de sub-
não implica em mudança étnica, uma vez todos sistência são frágeis e limitadas, uma vez que a
os informantes da pesquisa se mostraram or- maioria não possui qualificação adequada às de-
gulhosos da identidade cabocla pela qual eles mandas sociais e trabalhistas. No entanto, para
se identificam (comprovada pela resposta de as demais conclusões, faz-se necessário aguar-
número 292 e 293 que tratam especificamente dar o término das análises, assim como é mis-
da identidade), o que, segundo a classificação de ter que novas pesquisas sejam realizadas para
Castells, remete à identidade de resistência. o entendimento de como as produções linguís-
ticas reais e a situação sociológica dos falantes
Trata-se de sujeitos que se encontram se relacionam.
em posições desvalorizadas, buscando sobre-

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233
ESCRITA PROCESSUAL DE UMA RE- os elementos envolvidos no processo de escrita,
detendo conhecimento acerca de perspectivas,
VISTA POR PROFESSORES EM FOR- princípios e modelos de ensino e aprendizagem
MAÇÃO desta habilidade. Tomando como referencia
Silva (1994) exporemos, primeiramente, qua-
Sara de Paula Lima12
tro abordagens de ensino da produção textual
Vládia Maria Cabral Borges13
bastante difundidas entre 1945 e 1990, para, em
seguida, aprofundarmos na discussão da abor-
RESUMO: Neste artigo discutimos o processo dagem processual. Ressaltamos que muitas
de ensino e aprendizagem da produção escri- dessas abordagens seguem vigentes em mate-
ta em língua estrangeira por meio da criação riais didáticos de LE, o que contribui para a falta
de uma revista por professores em formação. de clareza de professores de LE no ensino da
Com esse propósito, organizamos nossa expo- produção escrita.
sição da seguinte maneira: iniciamos com uma
A primeira abordagem é a da composi-
apresentação da escrita em língua estrangeira;
ção controlada, consolidada por meio de méto-
tratamos de analisar a escrita como processo,
dos estruturalistas de ensino e aprendizagem
discutindo o modelo cognitivo de Hayes (1996);
de LE, como o audiolingual. O ensino da escrita
em seguida, introduzimos o gênero revista e
consiste em manipular padrões fixos da língua,
algumas considerações a respeito da contri-
em exercícios de substituição, transformação
buição dos gêneros na produção de textos, e
e expansão da estrutura frasal. Relegada a um
concluiremos com a exposição do trabalho re-
segundo plano, a aprendizagem da escrita toma
alizado em uma disciplina de Produção Textual
lugar após a prática da oralidade e é adquirida
ministrada a alunos do Curso de Licenciatura
pela imitação, repetição e reforço para a for-
em Letras Espanhol.
mação de um hábito. A teoria de aprendizagem
PALAVRAS-CHAVE: Escrita processual; Língua subjacente é, pois, o behaviorismo.
estrangeira; Professores em formação.
A retórica tradicional revisada, segunda
abordagem, surge na década de 1960 eviden-
ciando que a produção extensiva do discurso im-
1 Considerações iniciais plicava no fracasso da composição controlada.
Constatou-se que as dificuldades do escritor em
Este artigo discute o processo de ensino LE ultrapassavam o nível da sentença, deven-
e aprendizagem da produção escrita em sala de do-se muito mais a um desconhecimento das
aula de língua estrangeira (doravante, LE). Se os estruturas retóricas, isto é, da organização tex-
alunos enfrentam dificuldades em ler e escrever tual em maiores padrões. O parágrafo torna-se
em língua materna, em uma LE essas habilida- o principal foco de interesse para a construção
des se tornam ainda mais complexas, haja vis- lógica das formas do discurso. Cassany (2009a,
ta que muitas vezes o aprendiz da LE não tem o p.84-85) define o parágrafo “como um conjun-
conhecimento prévio amplo de vocabulário, gra- to de frases relacionadas que desenvolvem um
mática e estruturas retóricas como um nativo único tema”15. Outras características dos pará-
para a produção e leitura de textos (LEKI, 1994, grafos recebem atenção, sendo trabalhadas na
p.59). Daí a relevância e pertinência de uma re- sala de aula, como sua função externa (intro-
flexão sobre aquisição14 das habilidades de pro- dução, conclusão, recapitulação, resumo, etc.),
dução escrita em uma LE. a estrutura interna (sentença tópico, sentenças
de suporte, sentenças de conclusão e os marca-
O professor de LE tem papel ativo no dores textuais) e a tipologia (narrativo, expositi-
desenvolvimtento da produção da escrita dos vo, argumentativo, etc.). Resumidamente, para
alunos por ser responsável em proporcionar o desenvolvimento da produção textual nesta
situações comunicativas significativas em sala perspectiva, exigia-se a realização de padrões
de aula. Neste sentido, conforme afirma Silva pré-definidos de organização de sentenças e
(1994, p. 11), é necessário que este compreenda parágrafos, enfatizando uma estrutura linear e
12 Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação
em Linguística da Universidade Federal do Ceará. Docente do Ins-
prescritiva dos discursos, o que desencorajava o
tituto Federal do Ceará (IFCE): profasaralima@gmail.com livre pensamento e a produção escrita.
13 Profa. Dra. do Programa de Pós-graduação da Universidade
Federal do Ceará: vladiaborges@gmail.com Devido ao fracasso das duas abordagens
14 Neste estudo empregaremos aquisição como sinônimo de 15“(…) como un conjunto de frases relacionadas que desarrollan
aprendizagem, apesar da diferença proposta por Stephen Krashen un único tema”. Esta e demais traduções deste artigo foram feitas
(1976), em sua teoria do Monitor. pelas autoras.

234
anteriores, uma terceira perspectiva surge na crição da abordagem processual, foco deste
década de 1970: a escrita processual. Com a estudo, com a exposição do modelo cognitivo de
observação da escrita em língua materna (do- Hayes (1996), que sistematiza alguns aspectos
ravante, LM), constatou-se que os escritores em pertinentes à produção textual.
LE usam estratégias cognitivas semelhantes a
aquelas empregadas na escrita em LM. Isto é,
o escritor em LE não escreve segundo um fluxo 2 Modelo cognitivo de Hayes (1996)
contínuo do pensamento, ao contrário, prevale-
cem as pausas nas quais ele reflete sobre a situ- Antes de iniciarmos a descrição do mo-
ação comunicativa e o leitor, elabora esquemas delo cognitivo de Hayes (1996), faz-se necessá-
e rascunhos, em diversas tentativas de constru- rio a discussão de problemas teóricos e práticos
ção e reconstrução do texto. da abordagem processual da escrita. A primeira
crítica firma-se no destaque dado ao escritor,
Cassany (2009b, p. 19) afirma que os “sujeito psicológico, individual, dono e contro-
escritores proficientes se diferenciam dos ini- lador de sua vontade e de suas ações” (KOCH;
ciantes em muitos dos subprocessos da escrita, ELIAS, 2010, p.33), e aos processos mentais,
porém, principalmente, no processo de revisão haja vista que a escrita é entendida como ex-
do texto. Este autor elenca algumas diferenças pressão do pensamento, desconsiderando o en-
entre escritores proficientes e não proficientes: torno social, as experiências e os conhecimentos
adquiridos. Uma segunda crítica apontada por
Horowitz (1986) diz respeito à condução do pro-
• Os proficientes costumam ler ou re- cesso de produção escrita em sala de aula que,
ler o que escrevem mais vezes que por não se assemelhar ao processo de escrita
os iniciantes, mais que o dobro. no contexto fora da escola, não se repetirá em
outras situações de produção. O autor também
• Os proficientes costumam corrigir explica que esta abordagem não leva a prática
e retocar o texto mais vezes que os de gêneros textuais acadêmicos e analisa que
iniciantes. dois de seus princípios básicos (“conteúdo de-
termina a forma” e “boa escrita envolve escre-
• Os proficientes se concentram em ve”) não são verdadeiros em muitos contextos.
aspectos do conteúdo e da forma No que concerne a primeira crítica à
segundo o momento, enquanto que abordagem processual, apoiaremo-nos em
os iniciantes somente detém-se na Hayes para elucidá-la. Hayes (1996) reconhe-
forma. ce as limitações de um modelo cognitivo para
Conforme a perspectiva processual, es- escrita, uma vez que dificilmente será possível
crever é um processo não linear, complexo, ex- descrever todos os processos envolvidos. O re-
ploratório e criativo em que o escritor é o ele- ferido autor também explica que a ênfase maior
mento principal. nos aspectos individuais da escrita do que nos
sociais deve-se a uma escolha de objeto, isto é,
Por fim, a escrita com propósitos aca- embora se reconheça a escrita como um ato co-
dêmicos, representa uma reação à abordagem municativo inserido em uma sociedade, também
processual, a qual se sugere negligenciaria o é uma atividade intelectual que mobiliza proces-
contexto sociocultural por enfatizar demasiada- sos cognitivos e memória, e pode-se optar por
mente o indivíduo e sua cognição. Essa última analisar, descrever e interpretar esses aspec-
abordagem requer tarefas de escrita implicadas tos. A segunda crítica, ao nosso entendimento,
no contexto universitário, que proporcionam a desconsidera os ganhos em estratégias para o
análise dos discursos e a pesquisa para o trata- escritor proporcionados pela abordagem. Por-
mento de uma questão ou tema. tanto, os subprocessos de planejamento, textu-
alização e revisão acabam por ser automatiza-
A conclusão do autor (SILVA, 1994, p. 20) dos e são constituintes de qualquer produção
acerca das quatro abordagens descritas é que escrita, o que permite refutar a afirmação de
nenhuma delas em si é suficiente, sendo impor- que essa abordagem se limita à sala de aula e a
tante considerar a escrita como uma interação determinados gêneros.
que tem um propósito e que exige a construção
e transformação do conhecimento. O modelo de Hayes de 1996 configura-se
como uma releitura ao modelo Hayes e Flowers
No tópico seguinte, retomamos a des- de 1980 e, por conseguinte, grandes mudanças

235
podem ser constatadas. O autor enumera quatro
principais (HAYES, 1996, p.5):
Para o contexto da tarefa, temos dois
componentes o contexto social (audiência e co-
Primeiro, e mais importante, é a ênfase laboradores) e o contexto físico (o texto produ-
no papel central da memória de trabalho zido e o meio de composição). O contexto social
na escrita. Segundo, o modelo inclui re- consiste da audiência (real ou imaginada), assim
presentações visual-espacial bem como como de algum colaborador no processo de es-
lingüística. (...) Terceiro, um espaço sig- crita. O contexto físico inclui o texto escrito até
nificativo é reservado para motivação e o momento e o meio de composição (se o texto
afeto nesta estrutura (...). Finalmente, é escrito à mão ou com a ajuda de um computa-
a seção dos processos cognitivos do dor, por exemplo). Este último componente foi
modelo experimentou uma maior or- incluído devido ao avanço tecnológico que in-
ganização. A revisão foi substituída por fluencia profundamente os aspectos cognitivos
interpretação textual; o planejamento e sociais da escrita.
foi renomeado por uma categoria mais
geral, reflexão; a tradução foi renome- Os aspectos individuais da escrita envol-
ada por um processo mais geral, texto vem a interação de quatro componentes: me-
em produção.16 mória de trabalho, motivação e afeto, processos
cognitivos e memória de longo prazo.
Também destacamos que, diferente do Modelo
de 1980, que possui três componentes maiores, A memória de trabalho para Hayes con-
o Modelo de Hayes (1996) estabelece dois planos siste de três componentes: memória fonológica,
de composição textual (Cf. Figura 1): o contexto rascunho visual-espacial e memória semânti-
ca. O papel central da memória de trabalho no
modelo consiste em ser acessada por todos os
processos. Descobertas apontam para o caráter
único e pessoal da memória de trabalho, sendo
sua capacidade de armazenamento uma carac-
terística que varia em cada individual.

Este modelo cognitivo reconhece o im-


portante papel que a motivação e o afeto atri-
buem à escrita, ou seja, como os objetivos do es-
critor, suas predisposições, crenças e atitudes e
o cálculo custo/benefício podem influenciar seu
desempenho ao realizar a tarefa de escrever.

Os processos cognitivos descritos no


modelo original foram mantidos, entretanto fo-
ram reconceituados e ganharam em profundi-
dade no Modelo de Hayes (1996), sendo nome-
ados de: interpretação textual, reflexão e texto
produzido. A interpretação textual corresponde
à compreensão auditiva e à compreensão leito-
ra, que são as vias de entrada do input que con-
da tarefa e o indivíduo. dicionará as representações internas. A reflexão
é o subprocesso pelo qual novas interpretações
Figura1 - Modelo cognitivo Hayes (1996) internas são criadas a partir da re-elaboração
16 “First, and most important, is the emphasis on
de representações já existentes. Na produção
the central role of working memory in writing. Second, the textual, um output linguístico é produzido.
model includes visual-spatial as well as linguistic repre-
O quarto e último componente do pla-
sentations. (…) Third, a significant place is reserved for
motivation and affect in the framework. (…) Finally, the
no do indivíduo é a memória de longo prazo, na
cognitive process section of the model has undergone a qual conhecimento e informação relevantes são
major reorganization. Revision has been replaced by text armazenados. A memória de longo prazo inclui
interpretation; planning has been subsumed under the esquemas de tarefas, conhecimentos do tema,
more general category, reflection; translation has been conhecimento da audiência, conhecimento de
subsumed under a more general text production process”. gêneros e conhecimentos lingüísticos.

236
A leitura ganha destaque neste modelo, 3 Gênero revistat
de maneira que Hayes afirma que o texto em
produção modifica o próprio entorno da tarefa. A escolha pelo gênero revista para a dis-
Isto é, o processo de revisão é substituído pela ciplina deve-se a possibilidade de elaboração
leitura, que detectará e diagnosticará os proble- colaborativa de diferentes tipos de gêneros em
mas textuais. Em outras palavras, o letramen- um projeto unificador. Neste sentido, concor-
to do autor influenciará fortemente sua escrita, damos com Bonini (2008, p.50-51) que afirma
pois somente a sua compreensão leitora lhe haver uma “sobreposição entre gênero e su-
permitirá ter em mente uma representação do porte. Ou seja, um gênero pode ser convencio-
discurso, do autor e sua audiência e do gênero nado como suporte de um outro gênero (ou de
textual. Para Arias-Gundín e García-Sánchez outros)”. A revista, portanto, é um exemplo de
(2006, p. 40) o processo de revisão foi ampliado gênero/suporte por ser constituída por vários
e denominado de interpretação textual: outros gêneros.

Nossas práticas comunicativas se cons-


este processo de interpretação permite troem a partir de modelos textuais, isto é, “for-
ao escritor elaborar um texto de melhor mas-padrão relativamente estáveis de estrutu-
qualidade, uma vez que lhe permite ir ração de um todo a que denominamos gênero”
lendo-o e compreendendo-o ao mesmo (KOCH; ELIAS, 2010, p. 55). Esta definição, enten-
tempo que o edita ou transcreve, isto é, dida como uma apropriação do que nos afirma
lhe permite realizar uma revisão tanto a Bakhtin (2003), parece-nos limitada se não fa-
nível conceitual como linguístico da par- larmos que as formas de um gênero são influen-
te editada, se necessário, ou continuar ciadas por discursos que se estão em constante
com a elaboração do texto se não existe movimento nas interações sociais. Por isso, em-
nenhuma discrepância entre o texto in- pregaremos o termo gêneros discursivos neste
tencionado e o elaborado. artigo, defendendo a forte relação entre escrita
e leitura, uma vez que a compreensão desses
O Modelo proposto por Hayes (1996) en- só se dá efetivamente se o aluno assumir uma
fatiza muito mais o plano do indivíduo do que postura de leitor crítico, sendo capaz de inferir
o contexto da tarefa (o ambiente de produção). a escolha vocabular, o uso de recursos linguísti-
Ressaltamos que, embora não seja possível ex- cos e não linguísticos, a seleção de informações
plicitar com precisão as atividades cognitivas presentes no texto, a omissão de informações, o
realizadas durante a escrita, acreditamos que tom e o estilo que se unem a atitudes e crenças
este modelo seja adequado para o contexto da do autor, etc.
sala de aula por configurar vários fatores que in-
fluenciam esse processo, dentre eles os diferen- A iniciativa de trabalhar a escrita como
tes modos de produção do significado, aspecto processo vinculada a um gênero discursivo con-
discutido e investigado para a elaboração da re- verge com as propostas presentes nas Orienta-
vista, gênero proposto nesse estudo. Com a ve- ções Curriculares para o Ensino Médio: Lingua-
locidade das nossas interações, a imagem passa gens, códigos e suas tecnologias (Brasil, 2006).
a ter destaque e a somar-se ao verbal durante Enfatiza-se neste documento que a aquisição da
a comunicação. Hayes (1996, p.5) afirma que é língua estrangeira pelo aluno deve ir além da
essencial a interpretação dos elementos visuais instrumentação linguística e consistir, de fato,
e a disposição espacial destes para a constru- em um recurso para ampliar sua cidadania.
ção do significado, uma vez que muitos textos Para tanto, afirma-se que “o valor educacional
com os quais nos deparamos no dia a dia, como da aprendizagem de uma língua estrangeira vai
“periódicos científico, livros didáticos, revistas, muito além de meramente capacitar o aprendiz
jornais, propagandas e manuais de instrução a usar uma determinada língua estrangeira para
frequentemente incluem gráficos, tabelas ou fi- fins comunicativos” (BRASIL, 2006, p. 92), consi-
guras que são essenciais para compreensão da derando que o aluno tenha em mente a hetero-
mensagem do texto”. Para a elaboração da re- geneidade (histórica, cultural, social) desta lín-
vista, discutimos intensamente acerca da fonte gua, evidenciada em suas variantes linguísticas
dos textos, tamanho da fonte, cores do pano de fortemente relacionadas ao contexto social.
fundo, imagens e direito autoral, disposição do
texto e imagem, etc., elementos que enriquece-
ram todo o processo de escrita e garantiram um
excelente resultado.

237
4 Experiências de criação\ 1- A disciplina foi muito divertida, aprendi
espanhol produzindo textos em espa-
A disciplina Produção Textual em Lín- nhol, isso me deu mais motivação e se-
gua Espanhola foi ministrada pela pesquisadora gurança na hora de escrever, trabalhar
durante os dois anos em que atuou como pro- com as mídias digitais foi muito interes-
fessora substituta do Curso de Licenciatura em sante, sair do padrão e entrar realmen-
Letras Espanhol na Universidade Estadual do te na minha realidade, pois uso muito
Ceará. O relato aqui tecido diz respeito ao traba- mais a Internet que o papel. O blog foi
lho desenvolvido no segundo semestre de 2012 uma experiência tão legal que eu acabei
e no primeiro semestre de 2013. criando uma página no facebook e um
blog (…) (Aluna T1)
Denominaremos de T1, a turma do perí-
odo de 2012.1, e de T2, a do período de 2013.1.
Na T1 havia 11 alunos, 9 do sexo feminino e 2
do sexo masculino, todos com 19 anos de idade, Por fim, a quarta e última atividade da
cursando o quarto semestre do Curso de Letras. disciplina foi a elaboração da revista, a partir
Esses alunos também frequentavam cursos de da abordagem processual. A proposta da revis-
língua espanhola17 (Núcleo de Línguas e IM- ta foi desafiadora, pois exigiu que os grupos de
PARH), nível intermediário (4º semestre). Já T2 alunos pesquisassem acerca de diversos temas
tinha 8 alunas, de idade entre 19 e 30 anos, cur- para expressar opiniões coerentes, respeitan-
sando o 5º semestre de Letras. Em relação ao do a composição de cada gênero discursivo e
conhecimento de espanhol, na T2 havia alunas os aspectos lingüísticos. Para tanto, professora
que freqüentavam cursos de língua espanhola, e alunos tiveram um momento para a leitura de
outras já o tinham concluído e uma aluna era revistas em sala de aula, visando enriquecer a
uruguaia. percepção do gênero e contribuir para maior
compreensão da organização textual. Para esta
A disciplina Produção Textual em Língua discussão empregamos perguntas como: Quais
Espanhola possui a carga horária de sessenta gêneros são veiculados em uma revista? Quem
e oito horas/aula (68h/a), em que executamos escreve esses gêneros? Com que propósito?
quatro atividades. Primeiramente discutimos Onde? Como? Quando? Com base em que infor-
com as turmas a abordagem da escrita como mações? Como o autor obtém as informações?
processo (HAYES, 1996; KATO, 2005; CASSANY, Quem é o leitor deste gênero/suporte? Por que
2009a; 2009b) por meio de leituras, exposição tem interesse neste gênero/suporte?
oral da professora e interações entre o grupo,
esclarecendo, assim, o modelo cognitivo da es- Devido à forte concorrência de modos
crita de Hayes (1996). Depois, realizamos algu- na construção do sentido, durante a leitura das
mas tarefas de escrita, como: uma carta a partir revistas procuramos discutir também: a forma
da interpretação de imagens, a re-escrita de um de organização do texto (a distribuição das infor-
conto alterando o narrador e a continuação de mações) e a composição geral, que inclui deter-
uma história. Essas tarefas foram produzidas minados elementos não-verbais, por exemplo:
em pares, e para correção, os pares deveriam cor, padrão gráfico, imagens, fotos, quadros.
trocar os textos. Após a refacção de cada texto, a Estas características do gênero devem ser tra-
professora também fazia a correção, e os alunos balhadas em sala de aula, conforme afirma Lo-
reescreviam os textos pela terceira vez. As tare- pes-Rossi (2008, p. 65-66)
fas de produção, correção e refacção decorriam
em sala de aula. A terceira atividade consistiu na
Na perspectiva do ensino atual, é fun-
criação e manutenção de um blog, sem encon-
damental que consideremos como par-
tros presenciais. A comunicação durante essa
te das características composicionais
atividade deu-se por e-mails. A experiência do
dos gêneros não apenas o texto verbal,
blog foi bastante válida, pois muitos alunos nun-
mas também todos os elementos não-
ca havia utilizado esta ferramenta, mas passa-
-verbais que os compõem. Uma repor-
ram a familiarizar-se com o ambiente virtual e
tagem de revista, por exemplo, permite
adotaram como prática, conforme o comentário
a construção de inúmeros significados
abaixo:
pelo leitor a partir do tamanho e tipo
das letras – especialmente do título –,
divisões do texto, foto, cores, posição na
página, posição na revista, tamanho do
17 texto e das fotos, tipo de revista em que

238
está publicada, entre outros. de um profissional de design gráfico.
Este primeiro momento, de contato com Como já mencionado, o grupo e a pro-
o gênero discursivo, foi importante para que os fessora realizaram a leitura dos textos, sendo
alunos assimilassem a organização composicio- empregadas duas refacções: a primeira revisão/
nal de uma revista, bem como as condições de edição foi feita no rascunho do papel e a segun-
produção, contribuindo para a etapa de produ- da revisão/edição no arquivo do Publisher.
ção escrita, descrita a seguir.
A realização dessas atividades de produ-
Seguindo a orientação do Modelo de ção escrita de uma revista com a T1 serviu como
Hayes (1996), foi estabelecido previamente o pú- modelo de sequencia de passos já previamente
blico-alvo da revista da T1: adolescentes femini- testados, dando maior segurança para a profes-
nas, com idade entre 15 e 25 anos. Nesta etapa sora-pesquisadora. Portanto, o processo de ela-
realizamos a leitura de revistas, como Capricho boração da revista por T2, no semestre seguinte,
e Todateen, e iniciamos a tomada de decisões foi facilitado.
importantes para o planejamento: gêneros que
deveriam configurar a revista, título da revista, O público-alvo escolhido para a revista
títulos das seções, imagens, cores, fonte, e es- da T2 foi mulheres grávidas. Após a leitura de
crita de rascunhos. revistas, como Pais e Filhos e Casa e Ambiente
Bebê, iniciamos o planejamento. O título da re-
A T1 optou pelo título De Ellas (em portu- vista pensado pela segunda turma foi Embara-
guês, Delas), enfatizando a audiência. Os gêne- zada (em português, Grávida), também bastan-
ros selecionados foram: editorial, reportagem, te sugestivo haja vista a temática. Mantivemos
entrevista, receita culinária e teste. É importan- os gêneros: editorial, reportagem, entrevista,
te dizer que exploramos as características com- receita culinária e teste. As seções recebe-
posicionais desses gêneros antes da produção. ram títulos conforme o tema desenvolvido, por
As seções receberam títulos conforme o tema exemplo: (a) madre y niño, uma reportagem que
desenvolvido, por exemplo: (a) mercado laboral, aponta o uso de canções para estimular o bebê;
uma reportagem que expôs a posição da mulher decoración: apresentação de conselhos para a
em cargos antes somente para homens; salud y decoração do quarto do bebê; moda: sugestões
deporte: apresentação de práticas físicas como de roupas e estilos para a grávida e o bebê; Quiz:
treinamento funcional e pilates; salud es preve- conjunto de perguntas para as futuras mamães
nir: entrevista com um ginocologista; e outras e outras seções, tais como alimentación e ejer-
seções, tais como, maquillaje, uñas, moda, gas- cicios.
tronomía.
Durante as aulas, realizamos a leitura
A etapa de textualização consiste na em grupo dos textos produzidos. Novamente,
escrita do texto. A T1 teve a iniciativa de criar empregamos duas refacções: a primeira re-
um grupo no facebook para a leitura dos textos, visão/edição foi feita no rascunho do papel e a
utilizando este espaço fora da sala de aula para segunda revisão/edição no arquivo digital. Siste-
tirar dúvidas, dividir dificuldades e sugerir alte- matizamos que os textos deveriam ser escritos
rações ao colega. Ressaltamos, assim, a parti- com o programa Publisher e optamos por uma
cipação de colaboradores ao longo do processo fonte e tamanho da fonte para todos os textos.
de escrita, pois não somente a professora, mas As alunas criaram sozinhas os textos, inclusive
os alunos também revisavam os textos dos co- a capa (Cf. ANEXOS).
legas.
A impressão da versão final das revistas
A turma se preocupou com questões de representou um momento de celebração, bas-
direito autoral para o uso de imagens e optou tante gratificante para todos envolvidos, pro-
por empregar imagens próprias, como a foto fessora e alunos. Aproveitamos estes trabalhos
da capa da revista (Cf. ANEXOS); as demais para divulgar o processo criativo das turmas
imagens, retiradas da Internet, traziam o link com os demais professores do Curso de Letras
acessado. Para a organização gráfica dos gêne- Espanhol.
ros, o grupo se apropriou de um programa do
Microsoft Officer, chamado Publisher, que per- Ao final da disciplina aplicamos um
mitiu uma melhor organização visual dos textos Questionário avaliativo do semestre. Obtivemos
verbal e não verbal, mantendo uma coerência respostas positivas dos alunos, transcritas abai-
no conjunto. Cada aluno escreveu sozinho seu xo:
texto, somente a produção da capa teve auxílio

239
Até hoje mostro aos meu alunos o re-
sultado do nosso trabalho e ainda pre-
tendo desenvolvê-lo em sala de aula.
1- A disciplina foi muito importante pois
(Aluna T1)
em cada aula tínhamos a oportunida-
de de aprofundar ou desenvolver nossa
produção escrita, produzindo textos ou
mesmo interpretando-os. As aulas com
o tempo ficaram mais interessantes e a Foi muito prazeroso, principalmente
turma se uniu bastante, mais ainda com elaborar a revista, pois pude aprender
a produção da revista. Acredito que ao a usar o publish e me diverti elaboran-
final da disciplina todos nós consegui- do o questionário e conversando com as
mos entender e ficamos, de alguma for- futuras mamães sobre suas ansiedades
ma, mais aptos à trabalhar e compreen- e felicidades. (Aluna T2)
der textos na língua espanhola. (Aluna 5 Considerações finais
T1)
Iniciamos este artigo discutindo as abor-
1- dagens de escrita que podem definir a prática
desta habilidade em sala de aula. Destacamos,
também, o papel ativo do professor no processo
1- A disciplina de Escrita em Língua es-
de aquisição e aperfeiçoamento da produção de
panhola foi de grande amadurecimento
textos escritos. Para tanto, ressaltamos como é
profissional e pessoal mim. Me ajudou
necessário que esse tenha consciência do pro-
a desenvolver melhor a competência
cesso de escrita e de como fomentar atividades
da escrita, que na época eu tinha uma
significativas em sala de aula.
grande dificuldade. A revista, além de
nos fazer escrever sobre assuntos atu- Ao compartilhar a experiência da criação
ais e interessantes, nos fez criar um de revistas em sala de aula de língua estrangei-
gosto ainda maior, não só pela escrita, ra, espero ter motivado professores e futuros
mas também pelo espanhol e pela dis- professores (alunos do Curso de Letras) à ela-
ciplina. Senti uma sintonia muito grande boração de novos projetos, visando caminhos di-
entre todos, alunos e professora, e to- ferentes, criativos, motivadores para um ensino
dos estavam muito ansiosos para ver o melhor.
resultado, que para mim foi excelente.

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241
TENSÕES ENTRE AS LÍNGUAS DE faz com que existam sujeitos. Pela interpelação
ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a
TIMOR-LESTE EM PRÓLOGOS DO DI- discursividade (ORLANDI, 2009); e de formação
CIONÁRIO PORTUGUÊS-TÉTUM E DO discursiva enquanto aquilo que, numa formação
CATECISMO DA DOUTRINA CHRISTÃ ideológica, pode e deve ser dito pelo sujeito (PÊ-
EM TÉTUM CHEUX, 2009).

Simone Michelle Silvestre18 PALAVRAS-CHAVE: Análise de discurso pêcheu-


tiana; Política de línguas; Línguas; Dispositivos
discursivos; Timor-Leste.
RESUMO: Para esta comunicação, pretende-se
apresentar e analisar, do ponto de vista discur-
sivo, sequências de prólogos de dois dispositi- 1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-ME-
vos discursivos, um dicionário português-tétum TODOLÓGICAS
e um catecismo em tétum, produzidos no final
do século XIX. Gramáticas e dicionários são dispositivos lin-
Eles apontam para as tensões entre as línguas guísticos que integram a política de línguas192 de
do país e a uma variedade de português, além de qualquer país.
produzirem sentidos a uma Política de Línguas, De acordo com Sylvain Auroux (1992), a pro-
inicialmente, proposta pelos missionários cató- dução maciça de gramáticas e dicionários nos
licos atuantes em Timor-Leste, desde o século vernáculos europeus e nas línguas dos mundos
XVII, que estabiliza a tomada de posição da Igre- recém-descobertos, deu-se a partir do Renasci-
ja Católica, que, desde 1659, por meio da “Pro- mento e ficou conhecido como processo de gra-
paganda Fide”, obrigava todos os missionários matização. Este, segundo Auroux, é, depois da
a aprender as línguas nativas para onde eram invenção da escrita, a “segunda revolução téc-
enviados à missionação. nico-linguística” (ibidem, p.35), e estabeleceu, a
Desta forma, o “Catecismo da Doutrina Christã partir da tradição linguística grego-latina, uma
em Tétum” e o “Diccionario de Portuguez-Té- trama homogênea de comunicação com início na
tum”, ambos da autoria do missionário portu- Europa, onde cada nova língua integrada a esse
guês Sebastião Maria Apparicio da Silva, foram universo de saberes linguísticos aumenta o su-
elaborados, em um primeiro momento, com o cesso da trama e de seu desarranjo em proveito
propósito de facilitar a aprendizagem da língua de uma só região do globo. Tudo isso foi possível
tétum pelos futuros missionários, para que es- uma vez que a gramatização das línguas euro-
tes pudessem dispor do primeiro como instru- peias aconteceu ao mesmo tempo da exploração
mento de inculcação de dogmas e das tradições dos outros continentes do planeta e da coloniza-
cristãs da época na língua do nativo e o segun- ção e controle desses pelos europeus.
do tivesse o propósito de civilizar os timorenses O processo de gramatização, que se iniciou no
através do “dialecto” que, segundo os missio- fim do século XV, conforme defende Auroux, per-
nários da época, era a língua falada por parcela mitiu a descrição e a instrumentação das línguas
significativa da população. a partir de duas tecnologias, ainda hoje, pilares
De filiação pechêutiana, na análise, adotam-se do saber metalinguístico: a gramática e o dicio-
os conceitos de discurso, compreendido en- nário. Outro aspecto conferido pelo estudioso da
quanto objeto que é atingido ao mesmo tempo linguagem é o fato de os dicionários e as gramá-
pela língua e pela ideologia e irredutível a uma ticas serem compreendidos como instrumentos
ou a outra (PÊCHEUX, 1969); de posição sujei- linguísticos do mesmo modo que um martelo
to sendo que este não é o dono absoluto que prolonga o gesto da mão, transformando-o, ou
controla de maneira estratégica e intencional seja, uma gramática e um dicionário ampliam
o sentido daquilo que enuncia como se fosse a fala natural e a competência linguística e dão
“seu” (ZOPPI FONTANA, 1997); de ideologia/for-
192 Para o estudo em questão, entende-se que a noção de polí-
mação ideológica sendo que é a ideologia que tica de línguas, proposta por Orlandi (2007), não apaga da língua
18 Bolsista de Doutorado em Linguística do aquilo que lhe é próprio, no caso o político. Segundo a analista de
discurso: “Não há possibilidade de se ter a língua que não este-
CNPq junto ao Programa de Pós-Graduação em ja já afetada desde sempre pelo político. Uma língua é um corpo
simbólico político que faz parte das relações entre sujeitos na sua
Línguística do Instituto de Estudos da Lingua- vida social e histórica. Assim, quando pensamos em políticas de
gem - IEL - na Universidade Estadual de Cam- línguas, já pensamos de imediato nas formas sociais sendo signifi-
cadas por e para sujeitos históricos e simbólicos, em suas formas
pinas, Unicamp. E-mail acadêmico: simone.mi- de existência, de experiência, no espaço político de seus sentidos”
chelle@gmail.com (ibidem, p. 8).

242
acesso a um corpo de regras, de formas e a uma observasse situações diversas de diálogo entre
grande quantidade de palavras que não estão na diferentes falantes. Na descrição da língua des-
competência de um mesmo locutor. conhecida, como o missionário europeu não co-
O Dicionário Português-Tétum e o Catecismo da nhecia a estrutura da língua em questão, fez uso
Doutrina Christã em Tétum, ambos da autoria do das caracterizações da sua própria língua, no
jesuíta português Pe. Sebastião Maria Apparicio caso, a língua portuguesa, e/ou a latina, e esta-
da Silva, foram impressos no século XIX e são beleceu suas equivalentes. Porém, essa trans-
parte do processo que não apenas descreveu e ferência de tecnologia de uma língua para outra
instrumentou as línguas, mas também produziu não acontece sem que certos embates e tensões
sentidos a essas mesmas. a respeito do que é dito sobre as línguas e sobre
No caso de Timor-Leste, a primeira língua que a prática de descrição das mesmas apareçam
passou pelo processo de gramatização foi o Té- discursivizados e produzam sentidos.
tum. Este foi descrito e instrumentado primeiro
na forma de catecismo (1885) com o propósito Para a análise do que é dito sobre as línguas,
de ensinar em língua tétum as orações e os dog- o entendimento da relação de tensão entre as
mas da igreja católica e, alguns anos depois, em mesmas e os sentidos produzidos a respeito de
1889, publica-se o primeiro dicionário português tais embates que se materializam nos discur-
tétum para que os missionários e as pessoas in- sos da posição sujeito ocupada pelo missionário
teressadas pudessem compreender os ensina- que interpelado pela ideologia encontra-se em
mentos propostos no catecismo e aprendessem uma determinada formação discursiva, interes-
o tétum. sam-nos noções que são da Análise de Discur-
Ao narrar o seu processo de produção do cate- so Francesa (ADF) Pêcheutiana. Estão entre os
cismo e do dicionário, especialmente com re- conceitos: o discurso que é compreendido como
lação ao segundo, o missionário enuncia a res- objeto integralmente linguístico e histórico, ou
peito da importância da escrita na divulgação seja, o lugar teórico que possibilita analisar a re-
desses saberes e da importância da imprensa lação entre a língua (sistema de signos linguís-
na circulação dessas produções. ticos) e a ideologia compreendida como deter-
Outro aspecto do processo de gramatização minação histórica do sentido pelas relações de
a ser considerado, levando-se em conta o que forças que se confrontam em uma dada forma-
propõe Auroux, é o de que o sujeito quando se ção social (ZOPPI FONTANA,1997); a ideologia,
propõe a descrever uma língua que não a conhe- ou formação ideológica, que não é compreendi-
ce, inaugura o processo de gramatização pela da como visão de mundo ou ocultação da reali-
“transferência de tecnologia de uma língua para dade, mas como efeito da relação necessária do
outra(s) língua(s)” e que esta “nunca é totalmen- sujeito com a língua e dessa com a história para
te independente de uma transferência cultural que haja sentido. É também a ideologia que faz
mais ampla, sendo aquele o locutor nativo, ou com que haja sujeitos. Essa interpela indivídu-
não, da língua para a qual ocorre a transferên- os em sujeitos de seu discurso. E a interpela-
cia” (ibidem, p. 76). ção do indivíduo em sujeito pela ideologia traz
Na preparação dos instrumentos linguísticos necessariamente o apagamento da inscrição da
em questão, temos o que Auroux (1992) designa língua na história para que ela signifique produ-
por exogramatização, sendo que: zindo o efeito de evidência do sentido (o sentido
lá) e a impressão do sujeito ser a origem do que
diz. Efeitos que trabalham, ambos, a ilusão da
transparência da linguagem (ORLANDI, 2009);
Na ausência da tradição linguística, nin- e a noção de sujeito é convocada para formu-
guém inventa uma para descrever uma lar o conceito de formação discursiva, uma vez
língua viva que não conheça. É comple- que ambos estão extremamente imbricados na
tamente diferente para os missionários produção de sentido. É a ideologia, juntamente
(ou exploradores, ou atualmente, os lin- com o sujeito, que é tomada como princípio or-
guistas) que gramaticalizam vernáculos ganizador da formação discursiva. A formação
sem escrita: estamos no caso de uma discursiva consiste naquilo que, numa formação
exogramatização (e, quando se trata de ideológica determinada pelo estado da luta de
propagar a doutrina religiosa, de uma classes, pode e deve ser dito pelo sujeito (PÊ-
exotransferência) (ibidem,76 e 77). CHEUX, 2009).
No caso da exogramatização da língua tétum, o
conhecimento epilinguístico da língua a ser des-
crita não existia e era preciso que o missionário 2. UMA NARRATIVIDADE PARA A LÍNGUA TÉ-
TUM DE TIMOR-LESTE

243
momento, a diversidade línguística de Timor-
-Leste é posta em tensão nos diferentes discur-
Em uma das primeiras narrativas da segunda sos produzidos por sujeitos das mais diferentes
metade do século XVI que se tem notícia a res- épocas.
peito da língua de Timor, o missionário enuncia:
“(...). A gente deste Timor (grifo nosso) he a mais Já numa outra narratividade que marca a fixação
besta gente que ha nestas partes. (...). A lingoa dos primeiros portugueses em solo timorense,
desta gente dizem ser muito curta, conforme de acordo com o historiador Luís Filipe Thomaz
em algumas cousas com a malaia (grifo nosso). (2002), o que é posto em confronto é a relação do
(...).” (Padre Baltasar Dias, em Malaca, ao Padre tétum com uma outra língua de Timor, no caso o
Provincial da Índia, dezembro de 1559, apud Sá, baiqueno. Menciona-se que nas duas partes da
1954, p. 345). Tal discursividade já aponta para a costa setentrional da ilha, a única que os por-
visão etnocêntrica do missionário que compre- tugueses conheciam até aquele momento, duas
ende a língua do outro pelo déficit, pela falta de línguas eram faladas: a língua dos belos e a dos
algo que há na sua língua e não é encontrada na baiquenos. Sendo que na parte ocidental da cos-
do outro. Esse tipo de discurso povoará as nar- ta, o baiqueno estende-se, de fato, por uma zona
rativas de muitos outros viajantes e explorado- considerável, do enclave de Oé-cússi a maior
res que estiveram pela região da Insulíndia que, parte do Timor Indonésio; e na parte oriental
na época, compreendia Sólor e Timor. falam-se numerosas línguas, sem ser dito o
nome de nenhuma delas, mas que se supõe que
Outra narratividade já da segunda metade do sé- uma delas seja o Tétum. Defende-se tal hipóte-
culo XIX, 1867, um pouco antes da impressão dos se, uma vez que encontra-se, na historiografia
primeiros instrumentos linguísticos em língua portuguesa, o fato de, até o século XVIII, todos
tétum, reconhece que em Timor fala-se mais de os régulos de Timor estabelecerem relações
uma língua, porém, de nada adianta tamanha di- de suserania a dois outros reinos configurados
versidade linguística, se as línguas não têm es- desde antes da chegada dos portugueses: o de
crita e nem mesmo foram descritas ainda. Senobai, conhecido como Província do Servião,
atualmente Timor Indonésio, e o de Bé-Háli, na
De acordo com o militar e governador de Timor, Província do Belos, na metade oriental da ilha,
de 1859 a 1863, Afonso de Castro (1867, p.328 e junto ao de Luca, perto de Viqueque. Ainda que
329): outras línguas circulassem nesses territórios, é
a língua de Bé-Háli, zona de tétum, que será a
língua mencionada como comum.

Falam-se em Timor diferentes dialectos Segundo Thomaz (2002), o emprego do tétum


(grifo nosso), entre eles mencionare- como língua comum entre falantes de línguas
mos o Teto, o Vaiqueno, o Galolo e o Ca- diferentes pode estar relacionado com o do-
lado. O Teto é a língua por assim dizer mínio da porção oriental da ilha por um grupo
oficial, a que falam os chefes, e que está detentor do poder militar e falante também de
generalizada em Dili e mais presídios tétum, os datos belos, e com a soberania dos
portugueses, e nos reinos do centro e reinos de Bé-Háli, na parte ocidental, mas na
do poente até Batugadé. (...). São muito fronteira com Timor Oriental, porção dos Be-
pobres todos estes dialectos e nenhum los. A segmentação da ilha em dois grupos e
deles tem gramática nem escrita (grifo as disputas de poder entre os reinos de Bé-Há-
nosso). Línguas inteiramente selvagens, li, Luca e Senobai já aconteciam antes mesmo
mui ásperas e nada parecidas com a su- da chegada dos portugueses. Thomaz também
ave língua malaia, que tem seus poetas menciona que uma aristocracia anterior a dos
e bons prosadores. datos belos, chamada os loros, existiu e exer-
ceu simultaneamente o poder religioso e civil na
região. E é provável que a expansão do tétum,
entre os timorenses, tenha sido resultado da
Diferente do que aconteceu com a língua malaia
relação de domínio e poder dos datos belos, de
que também é do conhecimento dos timorenses
língua tétum, sob os loros.
e já conta com gramática e tornou-se uma lín-
gua literária. Se no século XVI, tanto a língua de Como os portugueses estabeleceram relações
Timor quanto a malaia estavam em situação de políticas e econômicas justamente com a pro-
igualdade, no século XIX, a situação do malaio víncia dos Belos, reduto do tétum, foi o Timor
supera a das línguas timorenses. A quase todo Oriental que ficou conhecido como Timor Portu-

244
guês e onde os missionários portugueses pude- tispicio da primeira impressão que em tetum
ram adotar a língua tétum como língua de cate- apparece, o respeitavel nome de Vossa Excel-
quese e de oração em boa parte do país, exceto lencia Reverendissima, porque:
no Enclave de Oecussi onde se fala o baiqueno e
na região de Manatuto com o galóli, imprimindo- (...).
-se, mais tarde, catecismos, livros de orações,
gramáticas e dicionários. ... é a V. Exa. Rma. que se deve a publicação
d´este catecismo; pois eu não pensaria em tal,
Ainda que bastante fragmentada e sem uma se V. Exa. Rma. não mostrasse empenho em que
historiografia capaz de recuperar a trajetória de mais facilmente fosse instruida aquella porção
formação da língua tétum no Timor Português, do Seu rebanho, dando-lhe a doutrina christã
nota-se que o que está dito sobre o tétum já é escripta na linguagem que lhe é propria.
o suficiente para traçar que os discursos sobre
a língua tétum e sobre o processo de gramati- Parecerá arrojo da minha parte esta empreza,
zação da mesma são marcados pela UNIDADE por nada haver escripto em qualquer dos mui-
que apaga/silencia a DIVERSIDADE de falares e tos dialectos que n´aquella ilha ha, como V. Exa.
a heterogeneidade línguística presente nas lín- Rma. muito bem sabe, que me podesse servir de
guas do país e entre as suas variantes. Os diver- guia para aprender bem a lingua em que escrevi
sos grupos e as diferentes línguas faladas são este catecismo, accrescendo a grande dificulda-
silenciadas do discurso e encontram-se subor- de de explicar algumas verdades da nossa Santa
dinadas a um único grupo, a dos Belos, falan- Religião, pela deficiencia de termos para expri-
tes de tétum, que se encontra geograficamente mir ideias abstractas: ...
dividido e detém o poder militar e político sob (...)
os demais reinos de Timor-Leste. Porém, as ou-
tras línguas de Timor-Leste resistem e os mis- (Trecho da carta de abertura do Catecismo do
sionários, em outras regiões que se pretendem Pe. Sebastião da Silva endereçada ao Bispo de
cristianizar e que não são de domínio dos que Macau e Timor, D. Antonio Joaquim de Medei-
falam o tétum, e/ou onde o tétum não se fixou ros)
como língua comum, continuam o seu traba-
lho de conversão e de cristianização, por meio II.
de saberes e ensinamentos que, com empenho,
no século XX, começaram a ser traduzidos para Ill mo. Revmo. Snr.
outras línguas, sendo a língua tétum a primeira
Macau 26-11-1885
língua de Timor a ser descrita nos instrumentos
linguísticos, como orações, catecismos, gramá- Acaba V. Revma. de concluir o catecismo da
ticas e dicionários, de acordo com as narrativi- doutrina christan em lingua tetum, e offerece-
dades que chegaram até nós. -me o seu trabalho, pelas razões que aponta na
sua carta, que me dirigiu sobre este assumpto.

... é com verdadeira emoção que eu vejo os pri-


meiros fructos d´um trabalho ... que eu reputo
3. A TÍTULO DE ANÁLISE: TENSÕES ENTRE A de grande valor para a civilisação dos povos ma-
LÍNGUA QUE SE PRETENDE DESCREVER, AS lasios da nossa colonia de Timor, sabendo por
LÍNGUAS DE TIMOR E O PORTUGUÊS experiencia, que recebem mais ideias d´uma
I. Catecismo da Doutrina Christã em Tétum pratica em lingua do paiz, que de muitas pales-
(1885), pelo missionário Pe. Sebastião Maria tras no algaraviado portuguez d´aquelle paiz.
Apparicio da Silva.
(...).
Excelentissimo e Reverendissimo
Concluido o diccionario da lingua tetum, ... , terá
Senhor D. Antonio Joaquim de Medeiros, V. Revma. feito o mais relevante serviço às nos-
sas missões, porque o sacerdote novamente
Bispo de Macau e Timor. chegado a Timor, podendo manusear o catecis-
mo em lingua do paiz e um diccionario que lhe
(...). sirva de interprete, terá os elementos para ser
bom missionario ...
Seria, Excelentissimo e Reverendissimo Senhor,
uma injustiça deixar de collocar, logo no forn- (...)

245
(Trecho da carta-resposta de D. Antonio Joa- religiosos entre europeus e timorenses também
quim de Medeiros ao Pe. Sebastião da Silva) está nas duas línguas, sendo que cada língua
conta com estruturas linguísticas próprias que
A apresentação do Catecismo da Doutrina Chris- não encontram equivalentes. Não é o caso de
tã em Tétum está marcada pela publicação de uma língua ser mais equipada/dotada do que a
duas cartas, uma da autoria do Padre Sebastião outra, mas cada língua faz uso daquilo que pre-
e endereçada a D. António Joaquim de Medeiros, cisa para designar, para significar etc. As dife-
na época, Bispo de Macau e Timor, e a resposta renças entre os saberes de cada crença também
deste superior ao missionário que seria o pro- estão nas línguas.
dutor do primeiro catecismo em língua tétum.
Por outro lado, a posição sujeito da carta 2 é
O que é dito em diferentes momentos das cartas marcada pela ideologia do confronto entre o
marca não apenas a posição da Igreja Católica português falado em Timor-Leste, nomeado
com relação à conversão dos nativos da colónia como língua infrutífera no processo civilizató-
de Timor sob os ensinamentos cristãos do cato- rio da doutrina cristã, e a língua tétum, língua
licismo, mas, principalmente, qual era o discur- do país. Na discursividade em questão, civilizar
so dos missionários sobre a língua a ser descrita o nativo da colônia de Timor não é ensiná-lo a
e a relação dela com as línguas do país e com língua europeia, dotá-lo de saberes literários e
o próprio português. É justamente esse aspecto de noções de escrita, mas consiste em inculcar
ligado às línguas que interessa ser analisado. valores cristãos através da língua tétum. Para
tal missão civilizadora, contam com o manual de
De modo bem geral, o missionário que se encon- ensinamentos cristãos, agora, traduzido para a
tra em trabalho de missionação em Tmor, agra- língua do nativo, e o dicionário da língua a ser
dece ao seu superior por este ter acreditado e traduzida e decifrada. A tensão dá-se entre a
viabilizado a publicação da primeira obra cristã língua do missionário, o português, e a língua
escrita em língua tétum. Sendo que esta, segun- tétum que precisa ser aprendida.
do o jesuíta português, seria importante nos en-
sinamentos cristãos necessários à conversão e
à aprendizagem da doutrina cristã na língua dos
nativos. O Pe. Sebastião menciona que alguns III.
ensinamentos da religião católica não encon-
traram termos equivalentes na língua tétum por Prólogo do Diccionario de Portuguez-Tetum
conterem tais termos “ideias abstractas”, o que (1889), pelo Pe. Sebastião Maria Apparicio da
lhe deu muito trabalho. Silva.

Já na carta-resposta do superior, a civilização


dos povos de Timor ancorada em valores cris-
tãos é possível de modo mais efetivo quando os Apparecendo o primeiro diccionario em tétum,
ensinamentos são feitos na língua do nativo, e dialecto o mais generalisado na ilha de Timor,
não na língua do europeu, no caso o português. pelo menos na parte que pertence a Portugal, fi-
O sucesso da cruzada missionária em solo timo- cam realisados os desejos do Exmo. Revmo. Sr.
rense está na publicação de dicionários e cate- D. Antonio Joaquim de Medeiros, actual Bispo de
cismos em língua tétum em favor do missionário Macau, a quem se deve esta humilde publicação.
que precisa civilizar em nome da Igreja Católica (...).
e da Pátria Portuguesa.
Não sabendo eu lingua alguma de Timor, ... , tive
O discurso da posição sujeito na primeira carta de valer-me de todos os timorenses com quem
é marcado pela tensão entre a doutrina cristã, convivi como meus mestres.
composta por dogmas e valores abstratos tra-
duzidos pela língua portuguesa, e uma outra que Podendo, sempre os ia escutar quando fallavam
toma forma/ganha força na língua de Timor que uns com os outros, tomando apontamentos de
ainda não dispõe/não conta com palavras/vocá- tudo.
bulos que não são do saber religioso, da crença
timorense. A posição sujeito aponta que o déficit Os que, porem, mais me auxiliaram, foram: Em
está na língua de Timor, no tétum, apagando o Lacluta, o Sr. D. Francisco Victorino de Carva-
fato de que há também saberes das crenças ti- lho, Tenente Coronel de Lacluta e Dilor; em Ba-
morenses em língua tétum que não existem na rique, o Sr. D. Hypolito dos Reis e Cunha Hornay,
língua portuguesa. O conflito entre os dogmas Brigadeiro-Rei de Barique e D. Thomaz da Costa
Hornay, Principal de Barique, ... pelas explica-

246
ções que me deram, principalmente o último - ferentes falantes. Os informantes que o ajuda-
meu discipulo em portuguez e mestre em tétum. ram de alguma maneira no aperfeiçoamento e
no entendimento do funcionamento do tétum a
Sem qualidade de escripto algum que me ser- ser descrito eram autoridades timorenses. Já o
visse de guia, pois em Timor nada ha escripto tétum descrito pelo Pe. Sebastião era uma das
em qualquer dos dialectos, ... variantes de tétum, no caso, o tétum falado na
capital do país, Díli; porém aponta para os sinô-
(...). nimos em tétum usados no interior de Timor-
Erros, ha de havel-os, não o duvido. -Leste e menciona que entre as variedades de
tétum do interior a diferença entre estas é me-
Defeitos também não faltarão, ... nor quando comparado o tétum do interior com
o tétum da cidade.
... e é ter formulado as phrases e exemplos em
tétum segundo a construcção de Dili, devendo Além disso, afirma que nem todas as palavras
ser segundo a do interior por ser a mais correc- dicionarizadas em língua portuguesa encontram
ta. (...). um correspondente em tétum o que lhe dificul-
tou transpor alguns provérbios, expressões fi-
Não se encontrarão todas as palavras que em guradas, conceitos e palavras abstratas do por-
portuguez trazem os nossos diccionarios, por tuguês para a língua tétum.
não as haver correspondentes em tétum, pois
não as ha senão para exprimir o que é conheci- Finaliza desejando que outros missionários te-
do em Timor. nham o seu trabalho sobre a língua tétum como
referência na aprendizagem da língua e que o
(...). utilizem para a descrição e o estudo de outras
línguas de Timor.
As dificuldades foram innumeras para poder
estabelecer algumas regras, e para conhecer o O discurso da posição sujeito é atravessado pelo
maior numero possivel de palavras, por causa o que é dito para o processo de exogramatização
dos differentes dialectos. Nos reinos do interior, das línguas dos países descobertos, pois, uma
onde se falla melhor, de reino para reino ha al- vez que desconhecendo a língua a ser descrita,
guma differença, apezar de não ser tão grande uma estrutura e um funcionamento precisam
como a que se nota entre o de Dilli e o interior ser criados. Para isso, lança mão dos conheci-
da ilha, sendo o modo de construir outro, prin- mentos da sua língua, de base latina, passa a
cipalmente quanto a uma especie de conjugação observar situações de diálogos e a contar com
de verbos, que só no interior ha, ... falantes de tétum para lhe auxiliar na descrição
do funcionamento da língua. E é no momento de
(...), havendo em todos os reinos quem, mais ou transpor a palavra “mais adequada” em língua
menos, falle tétum, podem os missionários ser- portuguesa que traduza o objeto e/ou a ideia em
vir-se d´este trabalho como de ponto de partida língua tétum que embates aparecem e produ-
para o estudo da lingua que tiverem de apren- zem sentidos.
der, ou que já aprenderam.
Um dos primeiros embates no discurso da po-
(...). sição sujeito dá-se exatamente entre a língua
portuguesa e a língua tétum pelo viés da “ide-
(Trechos do Prólogo do Diccionario de Portu-
ologia do déficit” (Mariani, 2004): já que o tétum
guez-Tetum, da autoria do jesuíta português,
não dispõe de estrutura de língua, de letras, de
Pe. Sebastião da Silva)
palavras etc. para todos os conceitos, cabe à lín-
Na discursividade em questão, o sujeito falante gua portuguesa, dotada de gramática e conven-
expõe as dificuldades encontradas na elabora- ção ortográfica, suprir o que o tétum não tem.
ção do primeiro dicionário em língua tétum do
Em outro momento, é a tensão entre o tétum
Timor Português.
da cidade (o tétum de díli) e o tétum do interior
Menciona que não conhecia nenhuma língua que marca presença. Para a posição sujeito em
timorense e como a amizade e a convivência questão, o tétum de Díli é corrompido e detur-
com os nativos que encontrava lhe auxiliaram pado, uma vez que é constituído por expressões
na composição do dicionário da primeira língua e palavras de outras línguas e um mesmo obje-
timorense a ser descrita. Toda a elaboração do to pode ser nomeado por palavras diferentes; já
dicionário deu-se com base na escuta entre di- o tétum do interior, e mesmo suas variedades,

247
mantém a unidade, é mais estável e mais “cor- neamente, o processo de descrevê-las reifica
recto”. a imagem da deficiência linguístico-cultural já
pré-construída e que aparece em diferentes
Há, no discurso, portanto, um tétum “corrom- momentos no discurso dos religiosos.
pido” e outro puro, sendo o segundo de maior
prestígio entre os falantes. O tétum do interior Uma vez que o “algaraviado” português falado
era visto como menos corrompido por ter tido na ilha, segundo o Bispo de Macau e Timor, era
menos contato com as línguas vindas de fora, pouco efetivo na conversão dos nativos, o cami-
até mesmo com a própria língua portuguesa. nho mais direto para a expansão da evangeliza-
ção no país, realizar-se-ia através da língua lo-
Para a composição do tétum, a posição sujeito cal, no caso, o tétum, a língua do primeiro reino
discursiviza que há uma tensão entre as outras que, na historiografia oficial, afirma-se ter sido
línguas de Timor-Leste nomeadas como “di- o primeiro a converter-se ao cristianismo. Sen-
ferentes dialectos”, ainda não descritas, e as do assim, até aquele momento de relação entre
variedades de tétum faladas no interior, uma as línguas de Timor, uma única língua foi con-
vez que encontra dificuldades para reconhecer vocada e descrita, silenciando a diversidade de
quando uma palavra/estrutura é de alguma das línguas e falantes, civilizando os nativos numa
variedades de tétum do interior ou se trata-se única língua que pretende um sujeito colonizado
de alguma outra línguas de Timor-Leste. cristão e obediente ao império português e que
deve aprender os ensinamentos cristãos dota-
A partir desse discurso, a posição sujeito assu- dos nessa língua que surge.
me que a gramatização da língua tétum é o mo-
delo para que outras línguas da ilha possam ser O próprio processo de gramatização da língua
descritas já que outro missionário pode apren- tétum configurou uma política entre as línguas.
der o tétum e tê-lo como língua de apoio para a Para que tal política seja bem sucedida, ou seja,
compreensão e a aprendizagem de outras lín- passe a existir a unidade, a clareza e o entendi-
guas. mento na comunicação, tenta-se apagar, exata-
mente, a política de sentidos das línguas. E foi
Apagam-se todas as tensões e os embates entre exatamente o que o processo de gramatização
as línguas presentes no processo de gramatiza- do tétum, nesse momento de descrição das lín-
ção pela exogramatização e passa a circular o guas de Timor, fez com as outras línguas e seus
discurso de que o tétum é uma língua com dicio- falantes.
nário, já descrito com um padrão ortográfico e
uma gramática mínima, ou seja, o tétum é a lín-
gua capaz de produzir saberes para a compre-
ensão e a sistematização das línguas de Timor.

Funda-se, assim, uma discursividade que inte-


gra uma Política de Língua para Timor-Leste.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um primeiro gesto de análise, verifica-se
que há uma situação de tensão entre o tétum da
cidade (da capital, Díli) e o tétum do interior (do
campo), na relação destes com os outros “dia-
lectos” de Timor-Leste e que há um embate en-
tre o tétum e a língua portuguesa que é falada
na ilha, sendo que todas essas tensões produ-
zem sentidos.

As tensões que o processo de gramatização de


uma política de línguas para o tétum produziram
aponta que diante da diversidade de línguas e de
falares e do desconhecimento da língua a ser
descrita pelo missionário, a noção de falta tra-
duzida pela “ideologia do déficit” faz das línguas
objeto de observações linguísticas e, simulta-

248
5. REFERÊNCIAS
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ZOPPI FONTANA, M. G. Cidadãos modernos. Discurso e representação política. Campinas: Editora


da Unicamp, 1997.

249
MOTIVAÇÕES E ATITUDES DE UMA Introdução
EDUCADORA DE ESCOLA PÚBLICA: Neste artigo, apresento um recorte da pesqui-
REALISMO CRÍTICO E ANÁLISE CRÍ- sa desenvolvida em uma escola pública, envol-
TICA DO DISCURSORESUMO: vendo uma professora que trabalha com jovens
e adolescentes que estão sob guarda judicial e
Nos últimos anos, pesquisadores e estudiosos em situação de risco. Busco conhecer, através
da linguagem têm enfatizado sobre a necessi- da participação coletiva em grupos de estudos
dade de uma formação crítico-reflexiva para realizados na própria escola, as motivações e
os educadores de línguas na pós-modernidade atitudes da professora acerca da instituição,
(BARBARA E RAMOS, 2003; MAGAHLÃES, 2004; da sua participação no grupo de estudos, bem
PAPA, 2005; BARROS, 2010, entre outros). O de- como dos alunos com os quais trabalha.
bate sobre cursos de formação continuada, com Várias são as questões sociais que norteiam
base na reflexão, tem sido considerado de suma os debates realizados pelos professores sobre
importância para que os participantes da escola a real situação dos adolescentes e jovens que
e comunidade tornem-se agentes ativos do pro- estão sob guarda judicial. Temas como discri-
cesso histórico-social, conscientizando-se do minação, opressão, dominação e a própria mar-
próprio discurso, isto é, explorando a natureza ginalização desses jovens são quase sempre
histórica e social de suas relações como atores apresentadas nas discussões realizadas pelos
no processo educacional. Temas com enfoque grupos de estudos da escola. E a frutífera refle-
nos problemas sociais da escola e da comunida- xão aflorada desses temas acaba gerando ques-
de, por exemplo, podem contribuir para formar tionamentos sobre como superar as barreiras
educadores e educandos como agentes críti- sociais da escola e da sala de aula. Certamente
cos de mudança, posicionando-lhes de maneira não é um problema recente. Alguns trabalhos na
mais próxima da realidade social. O Realismo área da linguística aplicada, mais precisamente
crítico de Bhaskar (1998; 2002) tem servido de na linguística crítica, têm focalizado questões
base para uma reflexão acerca da emancipa- políticas e ideológicas que afetam substancial-
ção humana. Conforme o autor, a sociedade não mente a prática pedagógica na escola pública
consistiria apenas de indivíduos, mas da soma (MOITA LOPES, 2003; PAPA, 2005; BARROS,
das relações dentro das quais os indivíduos se 2010).
situam. A emancipação envolveria, na visão des- Nos últimos anos, pesquisadores e estudiosos
se pensador, a transformação do próprio indi- da linguagem têm enfatizado sobre a necessi-
víduo. Nessa mesma esteira, a abordagem da dade de uma formação crítico-reflexiva para
Análise Crítica do Discurso tem como objetivo os educadores de línguas na pós-modernidade
desvelar o modo como as práticas discursivas (BARBARA E RAMOS, 2003; MAGAHLÃES, 2004;
imbricam nas estruturas sociopolíticas do po- PAPA, 2005; BARROS, 2010, entre outros). O de-
der e dominação, buscando com isso, operar bate sobre cursos de formação continuada, com
mudanças não apenas nas práticas discursivas, base na reflexão, tem sido considerado de suma
mas também nas práticas e estruturas de poder importância para que os participantes da escola
em nível macro. Para Fairclough (1989) o termo e comunidade tornem-se agentes ativos do pro-
“crítico” implica em mostrar conexões e causas cesso histórico-social, conscientizando-se do
que estão ocultas; implica também em interven- próprio discurso, isto é, explorando a natureza
ção, isto é, fornece recursos por meio de mu- histórica e social de suas relações como atores
dança para aqueles que possam encontrar-se no processo educacional. Temas com enfoque
em desvantagem. Nesta apresentação, exponho nos problemas sociais da escola e da comunida-
parte de uma pesquisa desenvolvida em uma de, por exemplo, podem contribuir para formar
escola pública, envolvendo uma professora que educadores e educandos como agentes críti-
trabalha com jovens e adolescentes em situação cos de mudança, posicionando-lhes de maneira
de risco. Busco conhecer, através da sua partici- mais próxima da realidade social.
pação em grupos de estudos na escola, as suas Neste estudo, proponho desvendar as impres-
motivações e atitudes acerca da instituição, dos sões, motivações e atitudes de uma professo-
alunos e do seu envolvimento no grupo de estu- ra de língua estrangeira. Compreender a sua
dos. participação nos grupos de estudos, bem a sua
PALAVRAS-CHAVE: Realismo crítico; análise relação com os alunos. Está dividido em quatro
critica do discurso; escola pública; jovens em seções. Na primeira, teço considerações acer-
situação de risco ca da filosofia do realismo crítico. Em seguida,
apresento algumas reflexões teóricas sobre a
abordagem da análise crítica do discurso e lin-

250
guística sistêmico-funcional, incluindo também 2. Análise crítica do discurso (ACD)
reflexões sobre o uso de narrativas de vida como
instrumento de coleta de dados. Na terceira se- A linguagem é elemento básico na vida social,
ção, descrevo sobre o desenho da pesquisa. Por sendo, portanto, parte da sociedade (Fairclough,
último, apresento uma análise da entrevista e 1989). Como prática social, a linguagem é dota-
sessão de estudos com a professora, participan- da de intencionalidade, portanto, não é neutra,
te da pesquisa. inocente; ao contrário subjaz uma ideologia.
Nesse sentido, a ideologia é parte integrante do
1. Realismo crítico discurso, porque as estruturas que o determi-
nam estão relacionadas às representações ide-
O realismo crítico tem como expoente o filóso- ológicas das instituições marcadas na sociedade
fo inglês Roy Bhaskar. Trata-se de um movi- (Fairclough, 1989). Segundo este autor, há um
mento internacional na filosofia e nas ciências elo interdependente entre discurso, ideologia e
humanas, considerada uma alternativa para poder. O discurso é produzido pelas estruturas
as ciências naturais e sociais, destacando a on- sociais e que, portanto, são ideológicas porque
tologia (questão do ser), em que o Real é mais (re) produzem esse discurso.
denso, ou seja, consiste em um mundo objetivo A ACD tem como objetivo desvelar o modo como
em que distingue uma superfície de algo ainda as práticas discursivas imbricam nas estruturas
mais profundo. O realismo crítico defende uma sociopolíticas do poder e dominação, buscan-
ontologia não empiricista, em que o mundo não do com isso, operar mudanças não apenas nas
é feito somente de acontecimentos ou fatos. práticas discursivas, mas também nas práticas
Bhaskar (1998) denomina de “falácia epistêmi- e estruturas de poder em nível macro. Para
ca” as proposições sobre o ‘ser’. Para ele, há Fairclough (1989) o termo “crítico” implica em
um equívoco metafísico querer adotar questões mostrar conexões e causas que estão ocultas;
ontológicas como epistemológicas. Esse pensa- implica também em intervenção, isto é, forne-
mento errôneo levou a dissolução da ontologia. ce recursos por meio de mudança para aqueles
Na visão do filósofo, os objetos de conhecimento que possam encontrar-se em desvantagem.
não são os fatos ou eventos atômicos (empiris-
mo), nem fenômenos apreendidos por meio de A ACD dá ênfase na relação dialética
construções mentais (idealismo), “mas estrutu- entre discurso e outros elementos das
ras reais que operam e agem no mundo inde- práticas sociais (FAIRCLOUGH, 1989,
pendentemente do nosso conhecimento, nossa 2003). É um tipo de abordagem que
experiência” (BHASKAR, 1998, p. 19). fornece um caminho mais detalhado
Se o mundo é constituído de mecanismos e não para analisar a relação dialética en-
de eventos, então eles geram fluxos de eventos, tre discursos (incluindo a linguagem e
formando, consequentemente, os acontecimen- também outras formas de semioses:
tos do mundo ao nosso redor. Conforme o autor, linguagem corporal, imagens visuais e
os mecanismos agem independentemente dos outros elementos das práticas sociais).
seres humanos (agentes causais). É por essa Uma abordagem intimamente relacionada à
razão que ele assegura não sermos totalmente ACD é a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF),
livres. desenvolvida por Halliday (1994). A GSF e ACD
O Realismo crítico de Bhaskar (1998; 2002) tem podem contribuir para realizar uma análise mais
servido de base para uma reflexão acerca da detalhada dos textos, buscando compreender a
emancipação humana. Conforme o autor, a so- relação entre os níveis micro e macrossociais,
ciedade não consistiria apenas de indivíduos, ou seja, entre estrutura social e eventos sociais.
mas da soma das relações dentro das quais os Do ponto de vista da LSF, a atenção se volta
indivíduos se situam. A emancipação envolveria, para a descrição minuciosa e sistemática dos
na visão desse pensador, a transformação do padrões linguísticos. As escolhas que o falante/
próprio indivíduo. Ao organizar filosoficamente escritor faz, segundo Halliday (1994), operam
o Realismo crítico, Bhaskar (1998, p.410) suge- em todos os níveis do discurso: lexical, sintático,
re uma proposta emancipatória: (i) conhecer os modal, e é por meio delas que se pode perceber
reais interesses; (ii) possuir habilidades e recur- o nível de expressividade presente numa deter-
sos, e oportunidade de agir sobre eles (poder); minada situação comunicativa. O léxico utiliza-
(iii) estar disposto a fazer isso. do num texto carrega traços da identidade do
É uma promessa para a ciência social, uma vez falante/escritor, uma vez que as escolhas feitas
que apresenta condições para a emancipação, pelo falante/escritor podem estar transparentes
pois os mecanismos que geram problema pode- ou não, precisando, portanto, ser desveladas. A
rão ser removidos ou bloqueados.

251
análise linguística permite, portanto, interpretar textos orais ou escritos. Essa abertura de possi-
os significados presentes nos textos. bilidades transdisciplinares permitiu que a ACD
Uma outra abordagem que pode servir como fer- se disseminasse na ciência social crítica, per-
ramenta para a ACD é a narrativa das de vida. A mitindo que os analistas de discurso pudessem
narrativa de vida embora tenha uma abordagem desenvolver uma compreensão mais ampla da
metodológica própria de análise, contribui com vida social, relacionando os elementos micro e
a ACD, uma vez que fornece ao analista uma vi- macrossociais.
são macrossocial do contexto de investigação, Chouliaraki e Fairclough entendem que a pes-
ampliando, assim, o olhar crítico do pesquisa- quisa em ACD deve concentrar-se nas questões
dor. práticas da vida social, visando a uma crítica ex-
As narrativas de vida podem ser entendidas planatória, fundamentada em observações de
em diferentes níveis de abstração. Para a abor- problemas sociais, com vistas à sua superação.
dagem da ACD, podemos considerar as narra- Fairclough (2003a) propõe uma abordagem de
tivas de vida como descrição de eventos onde análise de discurso que pode contribuir para a
são apreendidos os significados das ações dos pesquisa social crítica, uma vez que a ACD enfa-
atores sociais, crenças, valores e experiências tiza outras formas de semiose: linguagem cor-
vividas e como elas se desenvolvem. Conforme poral, imagens visuais, etc).
Clandinin e Connely (2004, p. 415), as experi- O modelo de análise proposto por Chouliaraki
ências são as histórias de vida das pessoas e e Fairclough (1999) é baseado na crítica expla-
consiste não apenas de fatos, mas também de natória de Bhaskar (1998; 2002), a qual sugere
valores, emoções e memórias. Nessa mesma cinco etapas:
perspectiva, Goodson e Sike (2001) argumentam
que “todas as histórias são memórias e todas as
(1) Dar ênfase a um injustiça social;
memórias são histórias”. Ou seja, quando fala-
mos sobre nós mesmos, estamos nos referindo (2) Identificar os obstáculos para que a
a nossa identidade, sentimentos, imagens, e a injustiça seja resolvida;
narrativa permite contar histórias, revelando o (3) Função do problema na prática;
modo como experienciamos o mundo.
Ouvindo as histórias pessoais e profissionais da (4) Considerar se a injustiça social é
professora durante a sua participação nos gru- um problema ou não;
pos de estudos realizados na escola, foi possí- (5) Refletir criticamente sobre a análi-
vel vaticinar os sentidos materializados em seus se
enunciados.

Explico, a seguir, cada uma dessas etapas.


3. ACD e RC: aproximações Na primeira, conforme Chouliaraki e Fairclou-
gh (1999), o analista crítico do discurso precisa
A abordagem da ACD proposta por Fairclou-
identificar um problema que afeta a vida social,
gh (2003a) converge com o realismo crítico de
em algum nível (por exemplo: educação, políti-
Bhaskar, por considerar o mundo social como
ca, economia etc.).
um sistema aberto, em constante transforma-
Na segunda, o analista do discurso deve reco-
ções. Conforme Fairclough (2003a), a ACD está
nhecer possíveis obstáculos a serem enfren-
baseada numa ontologia social realista (SAYER,
tados, realizando uma análise denominada por
2000), a qual entende que eventos sociais con-
esses autores como análise de conjuntura. Se-
cretos e estruturas sociais são parte da realida-
gundo eles, a conjuntura a que se referem re-
de social.
presenta um caminho particular de uma rede de
Chouliaraki & Fairclough (1999), em consonân-
práticas que constituem as estruturas sociais.
cia com Bhaskar (1998), entendem que há várias
Ao realizar uma análise da conjuntura, o pesqui-
dimensões da vida social, incluindo físico, quí-
sador deve concentrar-se na análise de uma de-
mico, biológico, econômico, social, psicológico e
terminada prática ou práticas sociais. Choulia-
lingüístico e que estes possuem estruturas dis-
raki e Fairclough identificam quatro momentos
tintas, com efeitos gerativos nos eventos, atra-
de prática social: atividade material, relações
vés de mecanismos particulares.
sociais, fenômenos mentais e discurso. Um as-
Inspirados no Realismo Crítico de Bhaskar
pecto importante apontado por esses estudiosos
(1998; 2002), Chouliaraki e Fairclough (1999) de-
é trabalhar em conjunto com outros métodos
senvolveram um modelo de análise que pudesse
científicos sociais, particularmente a etnografia.
identificar problemas sociais materializados em
Essa abordagem exige a presença do pesquisa-

252
dor no contexto da prática social, por um perío- 5. Análise dos dados
do de tempo que o ajude a ir além do texto.
Na terceira - função do problema na prática - ,
Chouliaraki e Fairclough apontam para a neces-
Como ponto de partida para uma primeira in-
sidade de avaliar ‘como’ e ‘se’ o aspecto proble-
terpretação dos discursos proferidos por Keila,
mático do discurso tem uma função específica
perfila-se, através de entrevistas, suas impres-
na prática social. Isso significa que o analista
sões sobre a experiência de estar pela primei-
deve se concentrar apenas em um aspecto da
ra vez em um ambiente escolar marcado pela
análise, a fim de tentar solucionar o problema.
hostilidade social. Foi nesse ambiente que Keila
Na quarta - possíveis formas ultrapassar os
iniciou suas atividades pedagógicas. Ela diz:
obstáculos -, o analista crítico do discurso pre-
cisa mudar de “é” par “deve”. Em outras pala-
vras, se as práticas socias são identificadas de-
ve-se, então, mudá-las. É necessário, portanto, Exemplo 01:
olhar para os efeitos geradores das práticas.
Na quinta e última etapa - reflexão na análise eu vim sem conhecer, me deu a cami-
-, o analista crítico do discurso deve adotar uma seta tá?. Isso aqui que você vai usar, vai
abordagem reflexiva, aproximando-se da pes- entrar e tal, aí eu cheguei me apresentei
quisa social do ponto de vista da pesquisa críti- pro Arlon e quando me deparei com a
ca, visando a algum tipo de mudança na prática situação, eu logo fiz assim uma leitura
social. e pensei comigo mesma, aqui não é pra
A seguir, apresento o Modelo Transformacional mim, não vou ficar porque, assim que
da Atividade Textual (MTAT), com base no RC e eu entrei tinha um menino algemado,
na ACD. acorrentado porque estava em processo
de overdose e estava fazendo esse tra-
4. Metodologia tamento, e eu não sabia que tinha esse
tipo de coisa aqui.
A pesquisa foi desenvolvida com os professores
da Escola Estadual ‘Meninos do Futuro’, loca-
lizada no Centro socioeducativo do Complexo
Pomeri, na cidade de Cuiabá/MT e teve como Keila relata suas primeiras impressões em re-
objetivo verificar, através da participação cole- lação à escola e aos adolescentes que vivem no
tiva dos professores em grupos de estudos, as Complexo Pomeri. Ao dizer: “quando me deparei
impressões, motivações e atitudes de uma pro- com a situação” , revela que não tinha conhe-
fessora de língua espanhola acerca da escola e cimento do que se passava naquele contexto es-
dos alunos. colar. Da mesma forma no enunciado “fiz assim
Os dados foram coletados através de gravações uma leitura” , onde o processo mental “fiz” é
nas sessões de estudo e entrevistas, incluindo identificado através da ação cognitiva para mos-
também as narrativas de vida da professora. As trar a realidade social que se descortinava à sua
gravações da entrevista e sessões de estudos frente.
foram feitas na escola, no ano de 2006. Keila usa também expressões negativas como
A professora Keila trabalha na escola desde “aqui não é pra mim”, “não ...não vou ficar” ,
2003. Ensina espanhol. Diz nunca ter trabalhado sinalizando sua incapacidade emocional para
com adolescentes e jovens em situação de risco. trabalhar com essa clientela estudantil. Os itens
É a sua primeira experiência com essa clientela lexicais “algemado, acorrentado” aparecem
estudantil. Ao narrar suas histórias de vida, em para qualificar os adolescentes que vivem nessa
conversas informais, em alguns momentos sem escola.
o uso de gravador, ela menciona sobre a sua fa- É interessante observar, no exemplo seguinte, a
mília. Diz não ter conhecido sua mãe biológica. decisão tomada por Keila para mudar a sua per-
Fora criada pelo pai biológico e sua madrasta cepção em relação aos alunos:
desde tenra idade. Por não ter tido uma filha
mulher, sua madrasta adotou-a como legítima, Exemplo 02
dando-lhe todo o amor e carinho. Keila relata
também que vivenciou ainda criança, o drama eu vim, só que qdo me deparei, qdo fui
da sua madrasta com um filho legítimo envol- pra sala de aula, o que que aconteceu
vido com drogas. Afirma ter sofrido, juntamente que fez com que eu ficasse, eu encon-
com a mãe adotiva, ao ver o seu irmão escolher trei com uns adolescentes do meu bair-
o caminho das drogas. ro onde eu trabalhei como alfabetizado-

253
ra seis anos na escola Santos Dumont.
Eles tinham sido meus alunos na pré
escola, no jardim e aquilo me chocou Exemplo 03
muito. Eu vi que eu não estava num lu-
gar estranho, tava num lugar familiar,
que eram meninos que já tinham pas- ... esse curso está sendo de
sado por minha mão e que estava aqui grande validade né? .... e eu
pelo próprio social. Aí eu fui conversan- sinto pelos meus
do,conversando com eles e eles tam-
bém foram me apresentando pros ou- colegas que não estão parti-
tros colegas, “aí essa aqui foi, é minha cipando...porque muitos as-
professora na alfabetização, ela mora suntos os quais estamos tra-
lá no bairro”, e isso foi fazendo assim tando....eles estão relatando e
que visse eles com outros olhos. atribuindo também para nossa
capacitação profissional...com
o profissionalismo...com a pró-
Keila relata sobre a sua decisão em traba- pria didática...com o relaciona-
lhar na escola. Ao dizer: “eu encontrei com uns mento...tanto professora aluno
adolescentes do meu bairro ” sinaliza seu co- quanto colegas né?...porque eu
nhecimento em relação aos alunos. O pronome percebo que isso estava pre-
possessivo ‘meu’ é identificado para revelar que cisando mesmo...quanto trata
tanto ela quanto os alunos pertenciam a uma de seminários....de autores...
mesma realidade social. O processo material, de estar prestigiando outros ti-
marcado através da forma verbal ‘trabalhar’, pos de assunto que às vezes o
presente no enunciado “eu trabalhei como al- próprio professor se acomoda
fabetizadora” sinaliza o seu ofício como educa- ...não vai atrás...e tá ouvindo e
dora do bairro onde ela e alguns de seus alunos pessoas como você que é es-
residiam. tranha...que tá trazendo coisas
novas porque de repente um
Para Keila, o lugar que aparentemente lhe colega ouvindo do outro ele vê
era ‘estranho’ passa a ser ‘familiar’. O reconhe- como uma crítica...e ele ouvin-
cimento dos alunos a fez mudar de idéia. A sua do de uma forma como capaci-
identificação com eles é claramente marcada tação...talvez isso vai tocar nele
quando usa a polifonia, ou seja, a sua própria voz e ele vai começar a influenciar
para fazer a voz dos alunos. Ao dizer: “essa aqui mais...e eu já percebi que hou-
foi, é minha professora na alfabetização, ela ve mudanças....que está haven-
mora lá no bairro” . As vozes ocultas dos alu- do mudanças aqui...
nos são materializadas em seu próprio discurso,
numa demonstração clara do quanto eles signi-
ficam para ela. É a presença do outro, conforme
A observação positiva feita por Keila so-
assegura Moita Lopes (2003, p. 32), com o qual
bre a realização do grupo de estudos na própria
estamos engajados, é que molda o que dizemos
escola revela a importância de os professores
e o que o outro significa para nós.
estarem se atualizando. Ao dizer “eu sinto pe-
Keila reconhece na voz do aluno a sua res- los meus colegas que não estão participando” ,
ponsabilidade como educadora. Revela, através ela usa o processo mental ‘sentir’ para revelar
do enunciado “estava aqui pelo próprio social” , a perda da oportunidade dos colegas em estar
o olhar oculto da sociedade em relação aos jo- se aprimorando, uma vez que ela considera ser
vens que se encontram sem direção, totalmen- relevante para todos. Essa confirmação é anun-
te à deriva. O seu interesse em permanecer na ciada logo em seguida quando diz: “eu percebo
escola para ajudar seus alunos parece sinalizar que isso estava precisando”. O processo mental
a tentativa de colocar-se como agente crítica de de cognição ‘perceber’ sinaliza a sua percepção
mudança nas práticas sociais de exclusão so- sobre a validade do grupo de estudo.
cial.
Para Keila, o não envolvimento do pro-
Sobre a sua experiência em participar pela fessor no grupo de estudo faz com que ele se
primeira vez no grupo de estudos realizado na acomode. Ela afirma isso ao dizer: “às vezes o
escola, Keila assim se pronunciou: próprio professor se acomoda...não vai atrás”

254
. Ou seja, o professor que não está engajado interesse do aluno em manipular seus colegas
em grupo de estudos acaba se desatualizando para colocarem-se contra os professores. É in-
e perdendo a motivação. Para ela, o professor teressante observar também o mesmo jogo po-
deve estar sempre buscando se aprimorar. lifônico como marca da presença do aluno em
seu próprio discurso. O uso de expressões ne-
É interessante destacar a presença mar- gativas “não...não quero este caderno ”, “este
cante do processo existencial, através da forma não é o meu” confirma a atitude de indignação
verbal ‘haver’ sendo enfatizada no tempo pre- do aluno. Keila traz a voz do aluno para marcar a
sente e passado. O uso desse processo sinaliza atitude de rejeição, pelo fato do mesmo não ter
as experiências positivas já realizadas na escola o seu próprio caderno em mãos. O seu discur-
e que ainda tem perdurado até a atualidade. Ke- so revela também a atitude de poder do próprio
ila ao dizer: “eu já percebi que houve mudanças aluno cuja identidade é marcada como um parti-
...que está havendo mudanças aqui”, enfatiza cipante ativo nas práticas sociais educativas.
que no decorrer de um determinado período
temporal experiências relevantes estão ocor- Da mesma forma no enunciado “pegou o
rendo na escola. E ao dizer: “está havendo mu- caderno e jogou no chão’ , onde as formas ver-
danças” , ela deixa transparecer a atuação po- bais ‘pegar’ e ‘jogar’ revelam a ação feita pelo
sitiva do grupo de estudos realizado na escola. aluno, marcando claramente o seu contradis-
curso frente às decisões impostas pela escola,
Durante a sua participação no grupo de no que tange aos materiais escolares, recolhi-
estudos com os colegas e esta pesquisadora, dos após as aulas.
Keila comenta sobre sua experiência vivenciada
na sala de aula, com um de seus alunos consi- Percebe-se pelos exemplos apresentados,
derado líder na escola. No exemplo ilustrado a que Keila conhece bem o contexto social onde
seguir, Keila fala da atitude do aluno na aula do trabalha, fazendo com que se sinta mais próxi-
seu colega e professor de Matemática Albano. ma dos problemas vividos pelos alunos. O seu
Ela diz: olhar parece focalizar não apenas a escola e a
sala de aula, mas também o que está além dos
muros e portões em torno dela. As experiências
vividas com sua família, por exemplo, contri-
Exemplo 04 buem para que ela tenha uma melhor compre-
ensão acerca da realidade desses alunos. Novos
valores, atitudes e identidade tendem a flores-
ele tentou passar, fez com que cer, bem como novos horizontes emancipató-
os colegas dele né? viessem rios (PAPA, 2005; BARROS, 2010). Suas atitudes
contra nós porque houve uma parecem revelar interesse em entender as co-
história do caderno, o cader- nexões e as causas ocultas de seus alunos. Im-
no sumiu e aí ele exigiu o ca- plica, conforme Fairclough (1989), em interven-
derno. Nós não conseguimos ção, fornecendo, assim, “recursos para aqueles
encontrar o caderno dele, e aí que se encontram em desvantagem”. Remetem
nós oferecemos um outro ca- também ao que Bhaskar (2002) chamou de ‘ato
derno pra ele. Era aula do prof. de vontade’, ou seja, um sentimento interior que
Albano. O prof. Albano pediu atinge nossas emoções, fazendo-nos reconhe-
para que eu fosse até lá tentar cer quem somos, como agimos no mundo e pra
conversar. Eu comecei a con- quem.
versar, e até então ele aceitou
numa boa, depois ele falou: Ao se interessar por esses alunos Keila
“não, não quero este caderno sinaliza o seu engajamento e responsabilidade
porque este não é o meu”. Pe- solidária. Sua identidade social se molda com a
gou o caderno e jogou no chão, de seus alunos, novos ‘eus’ vão ganhando for-
então aquele nervosismo dele. mas e significados, construindo o que Bhaskar
(2002, p. 41) chamou de “auto-realização uni-
versal”. A “auto-realização universal”, confor-
me assegura Bhaskar (2002), somente pode vir
Conforme Keila, o aluno tinha a intenção de dentro, nunca imposta. Nesse prisma, as ati-
de envolver seus colegas contra os professores. tudes de Keila remetem ao nível mais profundo
Ao dizer: “ele tentou passar”, “viessem contra da sua identidade, ou seja, no nível de “estru-
nós” sinaliza, através de processos mentais, o tura interna” (Baskar, 2002, p. 41), envolvendo

255
não apenas a sua ‘consciência crítico-reflexiva’, BHASKAR, R. From Science to Emancipation.
mas, sobretudo, a ‘ação’, num processo dialéti- Alienation and the Actuality of Enlightenment.
co constante (PAPA, 2005; BARROS, 2010). Sage Publications. New Delhi/London, 2002.

CELANI, M. A. 2003. Professores Formadores


À guisa de conclusão em Mudança. Relatos de um processo de refle-
xão e transformação da prática docente. Campi-
Este estudo nucleou-se pelo desejo de descobrir nas, SP: Mercado de Letras.
as experiências de uma professora envolvida em CLANDININ, D.J. & CONNELLY, F.M. Narrative
grupos de estudos na escola pública, com pro- Inquiry: Experience and Story in Qualitative Re-
pósito de conhecer suas impressões e motiva- search. San Francisco: Jossey-Bass Publishers,
ções sobre a escola e atitudes em relação aos 2004.
alunos que estão em situação de risco, os quais
cumprem medidas sócioeducativas, sob guarda FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse. Routle-
judicial. dge: Taylor & Francis Group. London and New
Considerei as narrativas das histórias de vida York, 2003.
como uma ferramenta de coleta de dados para
a ACD. Argumentei que as narrativas de vida po- FAIRCLOUGH, N. Language and power. London:
dem ajudar a ACD numa melhor compreensão Longman, 1989.
dos mecanismos sociais de dominação e resis-
tência ou emancipação e transformação social. GOODSON, I & SIKE, P Life History Research in
O uso desse instrumento permitiu, por exemplo, Education Settings. Open University Press: Bu-
capturar outros significados que não estavam ckingham – Philadelphia, 2001.
presentes no discursivo de Keila, através da sua
própria história de vida, a fim de conhecer o seu HALLIDAY, M. A. K.) An Introduction to Functio-
interesse em trabalhar na escola ‘Meninos do nal Grammar.. London: Edward Arnold, 1994.
Futuro’.
Procurei focalizar não apenas os aspectos lin- MAGALHÃES, M.C.C. 2004. A linguagem na for-
güísticos, mas também o contexto social mais mação de professores reflexivos críticos. In:
amplo. A análise dos recortes da entrevista e da Magalhães, M.C.C. (org). A formação do profes-
sessão de estudos revelou algumas impressões sor como profissional crítico. Linguagem e re-
e motivações de Keila sobre a escola onde tra- flexão. Campinas/SP: Mercado de Letras.
balha, bem como suas atitudes em relação aos
alunos. MOITA LOPES, L. P. A nova ordem mundial, os
O interesse de Keila pela escola, bem como o parâmetros curriculares nacionais e o ensino
trabalho realizado com os alunos sinalizam de inglês no Brasil: A base intelectual para uma
que ela é uma participante ativa no processo de ação política. In: Barbara, L. e Ramos, R. (orgs).
transformação social. Ao privilegiar o desenvol- Reflexões e Ações no Ensino-Aprendizagem de
vimento de práticas sociais libertadoras, Keila Línguas. Campinas,SP: Mercado de Letras, 2003
está também contribuindo para que a sua pró-
pria prática pedagógica seja de fato transforma- PAPA, S. M. de. B. I. O Professor Reflexivo em
dora. Processo de Mudança na Sala de Aula de Língua
Estrangeira: Caminhos para a Auto-Emancipa-
ção e Transformação Social. Tese de Doutorado.
LAEL/PUC/SP. 2005.
Referências bibliográficas
BARROS, S. M. Formação Crítica do educador PAPA, S. M. de B. I. Discurso, argumentação
de línguas: por uma política emancipatória e de e práticas sociais. Texto apresentado em Mesa
transformação social. In: BARROS, S. M. & AS- Redonda: Métodos Qualitativos nas Ciências So-
SIS PETERSON, A. A. (Org.) Formação de profes- ciais e na Prática Social. I Simpósio Internacio-
sores de línguas: desejos e possibilidades. São nal em Pesquisa Social, UFPE, 2007 pp. 84-96.
Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística critica.
BARBARA, L. & RAMOS, R. C.G. (Orgs) Reflexão linguagem, identidade e a questão ética. Pará-
e Ações no Ensino-Aprendizagem de Línguas. bola Editorial, São Paulo, 2003.
Campinas-SP, Mercado de Letras, 2003.

256
três décadas da história da semântica moderna.
OPERAÇÕES DE PRESSUPOSIÇÃO E No entanto, tal crédito tem representado certos
contratempos para aqueles que pretendem uma
O PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA TEC- abordagem da questão, que seja capaz de ultra-
NOLOGIA DA ESCRITA passar uma certa intuição generalizada do seu
alcance. Ainda, segundo o autor, a pressuposi-
ção é quase sempre referida como um processo
Suelen Érica Costa da Silva20 que permite deduzir certos fatos não explicita-
dos, a partir de outros que são explícitos; ou, en-
RESUMO: O eixo central que norteou esta inves- tão, o produto dessa operação.
tigação foi a análise e descrição das operações
de pressuposição realizadas por um falante no Dessarte, o território destinado a uma interven-
processo de aquisição da tecnologia da escrita. ção a respeito da pressuposição aparece, con-
Nesse contexto, sustentou-se a tese de que o tudo, distribuído entre conceitos concorrentes,
aprendiz da escrita realiza tais operações como em dimensões diversas, como: implícito, suben-
uma forma de intervenção na linguagem, ma- tendido, posto, não dito e implicação. Esses con-
neira pela qual o enunciador apresenta o seu ceitos nem sempre são colocados lado a lado, o
ato de enunciação, a imagem que pretende im- que dificulta falar da sua diferença e podem de-
por ao destinatário de sua escrita, uma atitude marcar fronteira e, quando o são, quase sempre
assumida em relação ao dito, do enunciado, da representam um formato de discussão ad hoc,
enunciação escrita. Assim, o eixo central desta circunscrito a exemplos particulares, cujo valor
comunicação - o fato linguístico denominado teórico, operacional, ainda está por ser desco-
pressuposição - foi investigado a partir do viés berto, se, de fato, existe algum.
teórico proposto pela Semântica da Enunciação, Além dos aspectos referidos por Mari (2013),
de Ducrot e do Aparelho Formal da Enuncia- o desenvolvimento da temática pressuposição
ção, de Benveniste. Foi utilizado o procedimen- carece, a priori, da definição de um status, já
to metodológico intitulado paradigma indiciário que ora é considerada como um elemento dig-
de investigação para realizar análise dos dados no da pragmática, ora considerada como um
linguísticos presentes no corpus em questão. elemento digno da semântica. Nesse contexto,
Os resultados demonstram que o falante, para é importante frisar que o eixo central deste pa-
construção do posto bem como do pressupos- per – o fato linguístico denominado pressupo-
to, utiliza índices específicos da língua - verbos, sição – será investigado a partir do viés teórico
conjunções, advérbios, pronomes - a fim de de Ducrot (1972, 1987) intitulado Semântica da
obrigar o seu destinatário a conservar os pres- Enunciação.
supostos construídos, tomá-los como quadro de
sua própria fala. Desse modo, embora o falante A escolha teórica justifica-se porque se acredi-
tenha, na forma de pressuposto ou de subenten- ta, assim como Ducrot (1987), que a pressuposi-
dido, a possibilidade de retirar-se da sua fala, ção é um ato ilocucional21, um ato de linguagem
eximindo-se da responsabilidade dela, ele deixa e parte integrante do sentido dos enunciados.
marcas de intersubjetividade na linguagem que Este último, por sua vez, é a maneira pela qual
opera. O sujeito, portanto, aparece em sua alte- o enunciador apresenta seu ato de enunciação,
ridade. a imagem que pretende impor ao destinatário
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição da escrita; Pres- de sua fala, ou seja, obrigar o destinatário, no
suposição; Operações de pressuposição, Enun- momento mesmo da enunciação, a fazer esta ou
ciação escrita, Intersubjetividade. aquela coisa, a crer nesta ou naquela proposi-
ção, a continuar o diálogo nesta ou naquela dire-
ção ou mesmo não continuá-lo nesta ou naquela
1. Considerações iniciais outra. Nesses termos, “A pressuposição é, en-
tão, um elemento do sentido – se se considera o
O tema desta interlocução escrita – a pressupo- sentido como acabo de propor, como uma espé-
sição – é, segundo Mari (2013), um dos concei- cie de retrato da enunciação” (p.42)
tos que mais adquiriram prestígio ao longo das
20 Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pelo Pro- Além da proposta de Ducrot (1987) – as opera-
grama de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade ções de pressuposição como retrato da enuncia-
Católica de Minas Gerais - PUC-MG (2013). Bolsista, modalidade
taxa, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino 21 De acordo com Cabral (2011), o ato ilocucional associa uma
Superior- CAPES. Professora do quadro efetivo do Centro Federal força à enunciação, considerando a língua como um meio para se
de Educação Tecnológica de Minas Gerais – (CEFET-MG), unidade atingir um fim, é o ato por meio do qual não apenas se diz algo, é o
Araxá. E-mail: suelenerica@gmail.com ato que constitui o centro das atenções da Teoria dos Atos de Fala.

257
ção – será utilizada também a Teoria da Enun- to fenômeno da linguagem – ocorre em textos
ciação apresentada em “O Aparelho Formal da empíricos produzidos por falantes em fase de
Enunciação” por Émile Benveniste. A enuncia- aquisição da tecnologia da escrita, o enfoque
ção, para o referido autor, é este colocar a lín- deste trabalho é estritamente linguístico-dis-
gua por um ato individual de utilização” (BENVE- cursivo. Serão explicitados os postos – o que se
NISTE, 1988 p.82), em outros termos, enunciar é afirma como locutor, pertencentes ao “eu”, bem
fazer uso da língua, de seus índices específicos como os pressupostos – pertencentes ao domí-
como, por exemplo, verbos, pronomes, conjun- nio “eu-tu”, como “objeto da cumplicidade do
ções, advérbios etc. Desse modo, a enunciação ato da comunicação” (DUCROT, 1987, p.20).
pode ser compreendida como a conversão da
língua em discurso. Os falantes utilizam a lín- Ao distinguir o posto do pressuposto levando em
gua, na perspectiva teórica de Benveniste (1995), conta as pessoas do discurso, como proposto
para enunciar e produzir discurso. pelo autor, não serão desconsideradas, portan-
to, as marcas do “Aparelho Formal da Enun-
A enunciação – definida em seu quadro formal – ciação”, na terminologia de Benveniste (1988),
é, nesse sentido, um processo de apropriação, já que revelam a relação entre pressupostos e a
que o falante se apropria do aparelho formal da intersubjetividade. Para tanto, o presente artigo
língua e se enuncia. É esse ato de apropriação está dividido da seguinte forma: (i) breve apre-
que instaura o falante em seu discurso. De acor- sentação do que é o ato de pressupor na visão
do com Benveniste (1970), o falante, na posição de Ducrot; (ii) a origem do corpus de análise; (ii)
de locutor, ao se apropriar do aparelho formal discussão dos dados linguísticos e, por fim, (iii)
da língua, torna significantes as palavras vazias as considerações finais como também as refe-
e instaura um interlocutor, o espaço, o tempo rências bibliográficas.
em seu discurso. Logo, a apropriação do apare-
lho formal da enunciação pelo locutor permite
a manifestação da (inter)subjetividade por meio 2. Um breve histórico do ato de pressuposição
de marcadores da subjetividade, a saber: prono- na perspectiva de Ducrot
mes, advérbios, adjetivos e outras estratégias
e recursos que também são acionados pelo lo- Para Ducrot (1972), seja A um enunciado qual-
cutor para marcar a sua presença no discurso. quer será dito então que ele pressupõe a sig-
Ao se apropriar, de modo individual, do apare- nificação expressa por B, se, de uma parte, A
lho formal da língua e marcar a sua presença contém todas as informações veiculadas por B
no discurso, o falante marca também um “eu” e e se, por outro lado, a frase interrogativa “Será
um “tu” em um “aqui” e “agora”, sempre atrela- que A” comportar ainda as mesmas informa-
dos ao momento da enunciação. A subjetividade, ções. Então, A pressupõe B, da mesma forma
portanto, na teoria da enunciação de Benvenis- que “Será que A?” pressupõe B. O referido crité-
te, surge de um processo de intersubjetividade, rio – de cunho operacional – permite distinguir,
isto é, um homem falando com outro homem. nos enunciados, aquilo que é posto daquilo que é
pressuposto, como mostram os exemplos a se-
Como o objetivo desta investigação é descre- guir, a partir da frase “Pedro deixou de fumar”:
ver as operações de pressuposição realizadas S – Pedro deixou de fumar /S1- (Pressupos-
por falantes ao produzir textos no processo de to) Pedro fumava antes/ S2- (Posto) Pedro não
aquisição da tecnologia da escrita, sustenta-se fuma mais /S3 – (Interrogação) Será que Pedro
a tese de que os aprendizes realizam tais opera- deixou de fumar.
ções como uma forma de intervenção na lingua-
gem, maneira pela qual o enunciador apresenta O esquema acima permite afirmar, segundo Du-
seu ato de enunciação, a imagem que pretende crot, que S1 “Pedro fumava antes” é um pres-
impor ao destinatário de sua escrita, uma ati- suposto, pois as informações que veicula estão
tude assumida em relação ao conteúdo do dito, contidas em SS -“Pedro deixou de fumar”, em
do enunciado, da enunciação escrita. Para tan- S2 “Pedro não fuma mais”, como também em S3
to, marca a sua presença no discurso, a partir “Será que Pedro deixou de fumar?”. Já S2 “Pe-
de índices específicos da língua, como também dro não fuma mais” é o posto porque seu sig-
marca ou outro, um “tu”, um “aqui” e um “ago- nificado não se faz presente na interrogação S3
ra” do ato enunciativo. “Será que Pedro deixou de fumar?”. S2 é, por-
tanto, um posto para S.
As operações de pressuposição possuem, então,
implicações (inter)subjetivas. Por conseguinte, No entanto, Ducrot (1972) considera inadequa-
para descrever como a pressuposição – enquan- do supor a pressuposição como uma condição

258
de emprego dos enunciados22.O falante afirma causa de q”, nem “p é a condição de q”, mesmo
a evidência da pressuposição do seu enunciado, que possa indicar tais relações. Ela permite a
uma vez que a evidência não é afirmada, mas é realização sucessiva de dois atos ilocucionais: i)
testada. Desse modo, o locutor julga que o alo- pedir ao ouvinte que imagine “p”; (ii) introduzin-
cutário já possua informações sobre a pressu- do o diálogo nesta situação imaginária, afirmar
posição. A esse respeito, o autor afirma que “... ai “q”.
pressupor não é dizer o que o ouvinte sabe ou
o que se pensa que ele sabe ou deveria saber, Em Ducrot (1987) o pressuposto é caracterizado
mas situar o diálogo na hipótese de que ele já como um elemento do universo do discurso, um
soubesse.” (DUCROT, 1972, p.77) quadro incontestável no interior do qual a con-
versação (como também a escrita)23 deve neces-
Pode-se dizer então que o referido autor con- sariamente inscrever-se: o do discursivo. Ainda
sidera que a verdade não está no mundo, mas afirma que quando um falante introduz uma
sim na construção que os falantes fazem dele ideia sob a forma de pressuposto procede como
no jogo interlocutivo e argumentativo. Desse se ele e seu interlocutor não pudessem deixar
modo, os interlocutores devem, portanto, admi- de aceitá-lo:
tir a verdade de certos pressupostos para que o
enunciado faça sentido. É por isso que a pres-
Se o posto é o que afirmo, enquanto lo-
suposição, segundo Ducrot (1972), é parte inte-
cutor, se o subentendido é o que deixo
grante do sentido.
o meu ouvinte concluir, o pressuposto é
O estudioso discute ainda a respeito da rela- o que apresento como pertencendo ao
ção entre suposição e pressuposição a partir domínio comum das duas personagens
da seguinte indagação: “Como representar, no do diálogo, como o objeto de uma cum-
componente linguístico, os enunciados do por- plicidade fundamental que liga entre si
tuguês que comportem uma proposição condi- os participantes da comunicação. ( DU-
cional introduzida por se e constituídos segundo CROT, 1987,p.20).
o esquema se p, q?” (p.178). Na visão do teórico, O referido linguísta, na passagem supracita-
a definição de se deve indicar o ato de suposição da e em outros pontos de sua obra, diz que se
realizado quando o empregamos, e não uma re- considerado o sistema de pronomes, em outros
presentação intelectual - uma relação - de que termos, as pessoas do discurso, o pressuposto
o se seria a expressão. O ato de suposição con- é apresentado como pertencendo a “nós” – do-
siste, então, em pedir ao auditor que aceite, por mínio comum das duas personagens do diálogo.
um breve tempo, certa proposição “p” que se Já o posto é reivindicado pelo “eu” – o que o fa-
torna, provisoriamente, o quadro do discurso, e, lante afirma enquanto locutor e, por sua vez, o
sobretudo, da proposição principal “q”. subentendido é repassado ao “tu” – o que deixo
meu ouvinte concluir.
Afirma que entre a frase condicional e a frase
com pressupostos há semelhanças ocultas. A A respeito das imagens temporais para constru-
hipótese da proposição condicional, embora ção do posto, do pressuposto e do subentendido,
apresentada como as pressuposições – solicita- o autor salienta que o posto se apresenta simul-
da e não imposta – pode ser considerada, uma taneamente ao ato da comunicação, como se ti-
vez apresentada, como pressuposto ordinário, já vesse surgido pela primeira vez no universo do
que o locutor pede ao ouvinte, numa condicional, discurso, no momento da realização desse ato.
exatamente aquilo que ele obriga, pôr-se numa Em contrapartida, o subentendido ocorre em
certa situação intelectual que servirá de pano de momento posterior a esse ato, como se tivesse
fundo para o diálogo. sido acrescentado através da interpretação do
ouvinte. Já o pressuposto procura sempre situar
O ouvinte é, então, solicitado a fazer uma hipó-
em um passado do conhecimento, eventualmen-
tese e cuja eventual anulação, por isso mesmo,
te fictício, ao qual o locutor parece referir-se.
é visualizada no próprio momento em que o se
é pronunciado. Logo, uma proposição do tipo se Destarte, Ducrot (1987), em sua teoria intitulada
p, q, não tem como significação primeira “p é a Semântica da Enunciação, considera que o fa-
22 Além disso, foi Fregue (1978) quem fez notar que a pressupo- lante, ao produzir o seu discurso, constitui-se
sição é preservada quer pela negação quer pela interrogação. A como “eu” enunciador e, simultaneamente, ins-
estes critérios, Ducrot acrescenta um outro - o do encadeamento. titui um “tu”, seu interlocutor, ao produzir um
Para este último autor, todos os três critérios são insuficientes
para estabelecer a distinção do que é posto e do que é pressu- uma ação. Dessa forma, a pressuposição seria
posto. 23 Grifo meu.

259
o objeto da cumplicidade do ato da comunica- um enunciado é a maneira pela qual o enuncia-
ção do “eu”, do “tu”, portanto, do “eu-tu.” A tí- dor apresenta o seu ato de enunciação, a ima-
tulo de exemplificação, considera-se o seguinte gem que pretende impor ao destinatário de sua
exemplo proposto pelo autor: “Pedro deixou de fala. Desse modo, o sentido de um enunciado é,
fumar”. então,

Ao analisar a sentença supracitada, são per-


cebidas, num primeiro nível, informações con- (...) a pretensão manifestada de obrigar
tidas no próprio sentido das palavras, ou seja, o destinatário, no momento mesmo da
informações literais 1) “Pedro não fuma mais” e, enunciação, a fazer esta ou aquela coi-
num segundo nível, informações que não foram sa, a crer nesta ou naquela proposição,
afirmadas literalmente, mas inferidas a partir da a continuar o diálogo nesta ou naquela
sentença 2)“Pedro fumava antes”. Em 1) o locu- direção – ou, o que vem a ser o mesmo,
tor, o “eu”, ao produzir um ato, uma ação de lin- a não continuá-lo nesta ou naquela ou-
guagem, afirma para o “tu”, o seu interlocutor, tra. (DUCROT, 1987, p.41, 42.)
de modo literal, em outras palavras, posto, que a Nesse quadro teórico, o linguísta afirma que
pessoa referida no momento da enunciação não quando um falante pressupõe X, na verdade diz
fuma mais. Essa informação é denominada por que pretende obrigar o destinatário a admitir X,
Ducrot (1987) como conteúdo posto. Logo, se foi sem por isso dar-lhe o direito de prosseguir o
posto ao “tu” que “Pedro não fuma atualmente”, diálogo a propósito de X. Ao contrário, o suben-
esse interlocutor será, então, conduzido a inferir tendido diz respeito à maneira pela qual esse
que “Se Pedro parou de fumar, portanto, fumava sentido é manifestado, ou seja, refere-se ao
antes”. Essa possível inferência realizada pelo processo, ao término do qual deve-se descobrir
“tu” é denominada por Ducrot (1987) como con- a imagem que o falante pretende dar de sua fala.
teúdo pressuposto.
Ducrot parte da ideia de que as frases pronun-
O linguista diz ainda que a pressuposição apare- ciadas se mostram como parte de um discurso
ce como uma tática argumentativa dos interlo- mais amplo, como a continuação de trocas de
cutores sendo, portanto, relativa à maneira pela falas que as precedeu. Desse modo, compor-
qual eles se provocam e pretendem impor-se tam-se como respostas, objeções, confirmações
uns aos outros, um certo modo de continuar o e, por outro lado, como exigências de uma dis-
discurso. Nesses termos, o autor considera a cussão ulterior, a pedir para serem confirmadas
pressuposição como um ato – o que se pres- e ponderadas, para servir de base a deduções,
supõe é o conteúdo, ou seja, uma “proposição”. etc. Em suma, pressupor um conteúdo, na visão
O subentendido também é um ato, já que “Su- do linguísta, é colocar a aceitação de tal conteú-
bentende-se que se afirma, coloca em questão, do como condição do diálogo ulterior.
pergunta, ou mesmo pressupõe este ou aquele
conteúdo.” (p.41). É a resposta a perguntas – Por Por tal, a escolha dos pressupostos apresenta-
que o locutor disse o que disse? ou “O que tor- -se como um ato de fala particular – o ato de
nou possível a sua fala?24” – sobre a possibili- pressupor – com valor jurídico e, portanto, ilo-
dade da enunciação e, por tal, só pode aparecer cucional – transformando imediatamente as
no momento dessa enunciação, dependente do possibilidades de fala do interlocutor. O que é
próprio enunciado. Pertence ao sentido sem, no modificado no ouvinte é o seu direito de falar, na
entanto, estar antecipado ou mesmo prefigura- medida em que ele quer que sua fala se inscreva
do na significação. no interior do diálogo precedente. Para prosse-
guir o discurso esboçado, o ouvinte é obrigado a
Mesmo não sendo totalmente contrários, pres- conservar os pressupostos, tomá-los como qua-
suposto e subentendido não estão situados no dro de sua própria fala.
mesmo nível, já que a pressuposição “é parte
integrante do sentido dos enunciados.” (p.41) e
o subentendido, por sua vez, “diz respeito à ma- 3. A origem do corpus para análise
neira pela qual esse sentido deve ser decifrado
pelo destinatário.” (p.41). Pressuposto e suben-
tendido se opõem pelo fato de não terem sua 3.1 Os corpora
origem no mesmo momento de interpretação.
O texto utilizado nesta investigação - produzido
Além disso, segundo Ducrot (1987), o sentido de por um falante da 2ª série, do gênero masculino,
24 Ou ainda: Porque o locutor escreveu o que escreveu? e O que oriundo de uma escola pública de Belo Horizon-
tornou possível a sua escrita?.

260
te e pertencente à classe popular - foi coletado O texto produzido pelo falante, aluno da 2ª série,
pelo professor Dr. Marco Antônio de Oliveira25, apresenta: (i) informações literais, ou seja, in-
no ano de 1987, durante uma pesquisa a res- formações que, no vocabulário de Ducrot, foram
peito do processo de aquisição da tecnologia da postas pelo “eu” locutor e que estão contidas no
escrita, realizada na Faculdade de Letras e na próprio sentido das palavras e (ii) informações
Faculdade de Educação da Universidade Federal que não foram ditas literalmente pelo locutor,
de Minas Gerais – UFMG. mas que devem ser inferidas pelo ouvinte, de-
Os critérios de organização dos 320 textos cole- vem ser, portanto, pressupostas. Nesse senti-
tados, incluindo o escolhido para ser analisado do, quando o “eu-locutor”, no papel de aluno,
nesta investigação, foram os seguintes: (i) insti- afirma ao “tu-professor”, “Se eu pudesse agora
tuição escolar de origem (pública ou privada); (ii) andar de bicicleta, brincar, estar na casa da tia,
grau de escolaridade (primeira à quarta série); brincar com o cachorro e conhecer a cidade”, o
(iii) classe social (privilegiada ou popular); gêne- locutor enuncia o posto: não pode realizar, no
ro (masculino e feminino). Além de tais critérios, agora, no presente da enunciação escrita, mar-
os textos que compõem os corpora de estudo cado pelo advérbio “agora”, ações como andar
são do tipo textual narrativo (Era uma vez...) e de bicicleta, brincar, estar na casa da tia, brincar
majoritariamente do tipo argumentativo (Se eu com o cachorro e conhecer a cidade.
pudesse...).
Por questões de tempo e espaço não será pos- Desse modo, o falante institui um “eu-locutor”
sível analisar, no escopo deste artigo, os 320 e um “tu-professor”, no “agora” do ato de enun-
corpora coletados e cedidos para pesquisa. Por- ciação escrito, aspecto que revela o proposto
tanto, será analisado apenas um texto, conside- por Benveniste ao dizer que o indivíduo se apro-
rado como representativo para análise das ope- pria de índices específicos da língua, dando-lhe
rações de pressuposição realizadas por falantes vida. E como todo ato enunciativo é caracteriza-
ao produzir textos no processo de aquisição da do pela irrepetibilidade da cena enunciativa, são
tecnologia da escrita. instauradas no momento da enunciação condi-
Para tanto, antes de iniciar descrição dos dados ções de tempo (agora), espaço (aqui) e pessoa
supracitados, é importante frisar que para reali- (eu-tu) que revelam a relação dialógica e (inter)
zar a análise da produção textual levar-se-á em subjetiva na construção do posto, uma opera-
consideração as marcas do “Aparelho Formal ção de pressuposição, portanto, uma operação
da Enunciação”, na terminologia de Benveniste de linguagem.
(1988), que revelam a relação entre pressupos-
tos e a intersubjetividade como também seguin- Ao enunciar o conteúdo posto o falante - em fase
tes aspectos propostos por Ducrot (1972,1987): de aquisição da tecnologia da escrita – instaura
a distinção de posto, pressuposto e subentendi- o “eu”, marcado pela 1ª pessoa do discurso, em
do associada ao sistema de pronomes, as ima- “Se eu pudesse”. Esse “eu-locutor”, na posição
gens temporais, a ação jurídica e ilocutória, bem de aluno, é aquele responsável pela enunciação.
como a relação entre suposição e pressuposi- Quando diz “eu” ao anunciar o posto atribui a si
ção. a responsabilidade da produção física do texto,
do ato de linguagem. Ao mesmo tempo, ao pro-
ferir “eu” instaura - dialética e dialogicamente
4. A análise e descrição: o que dizem os dados?
- um “tu”, o professor, para com ele partilhar
Para iniciar a descrição e análise dos dados, o os pressupostos, pertencentes ao domínio do
leitor deste artigo está convidado a observar a “eu-tu”, estabelecendo assim a cumplicidade do
seguinte produção textual: ato de enunciação, como posto por Ducrot bem
como evidenciando e acentuando uma caracte-
rística basilar da enunciação para Benveniste: a
Falante pertencente à classe popular – 2ª série relação discursiva do “eu” como o seu parceiro,
Se eu pudesse agora andar de bicicleta seja ele real ou imaginário, individual ou coleti-
Se eu pudesse agora brincar vo. Nesse contexto, Os interlocutores “eu” e “tu”
alternam suas funções e podem ser, portanto,
Se eu pudesse agora estar na casa da minha tia parceiros ou protagonistas na situação enuncia-
Se eu pudesse brincar com o cachorro tiva, aspecto que funda a relação (inter)subjetiva
Se eu pudesse conhecer a cidade das pessoas do discurso.
Fonte: dados da pesquisa Como o falante foi convidado pelo “tu-profes-
sor” a escrever sobre o tema “Se eu pudesse”,
25 Atualmente é prof. adjunto da Pontifícia Universidade Católica ou seja, a produzir uma ação de linguagem, ma-
de Minas Gerais – (PUC-MG).

261
terializada, processada por meio de um texto e do subentendido, incluindo nele as imagens
escrito, o “eu-aluno” sabe que o seu ouvinte-lei- temporais e o sistema de pronomes utilizados
tor possui informações sobre a pressuposição pelo falante para construção do ato de enuncia-
construída: existe um empecilho para realização ção escrito:
do que o falante gostaria, caso ele “pudesse”, no
“agora”, de fazer e de conhecer. Por conseguin-
te, o “tu-professor” é então conduzido pelo “eu-
-locutor”, no jogo argumentativo, no domínio do Quadro 1 – Posto, pressuposto e suben-
eu-tu, como afirma Ducrot, a inferir bem como tendido.
admitir, aceitar como verdade que há, no pre-
Temporalidade: o pre-
sente da enunciação, um empecilho (a atividade sente da enunciação
escolar) que impossibilita o locutor de andar de O locutor não marcado, inscrito pelo
bicicleta, de brincar, de estar na casa da tia, de pode “agora” advérbio “agora”.
brincar com o cachorro e de conhecer a cidade. andar de bicicle-
ta, brincar, estar Indivíduos linguísticos
Posto
na casa da tia, (pessoas do discurso):
Questionamentos que poderiam ser levantados brincar com o ca- “eu”, marcado em “Se
pelo “tu-professor”, na cumplicidade do ato da chorro, conhecer eu pudesse” que institui
enunciação, seriam os seguintes: Qual o motivo? a cidade. o “tu”, o professor. O
Por quê? Ao fazê-los, o “tu-professor” admite a “eu” é o responsável
existência do empecilho, ou seja, ao perguntar pelo posto.
o motivo – qual é o empecilho? – o “tu” aceita Temporalidade: o “ago-
Existe um empe- ra”, momento da enun-
como verdade o pressuposto. Por isso, assim cilho (a atividade ciação, mas que para o
como Ducrot, acredita-se que a verdade não escolar) que “tu” já é passado.
está no mundo, mas sim na construção que os Pressupos-
impossibilita o
falantes fazem dele no jogo interlocutivo e ar- locutor de andar Indivíduos linguísticos
to
de bicicleta, de (pessoas do discurso):
gumentativo. Portanto, como os pressupostos brincar, de estar “eu-tu”, ou seja, “nós”,
dizem respeito à relação de cumplicidade “eu- na casa da tia, co-responsáveis pela
-tu”, são os interlocutores que, no jogo da ar- de brincar com o cumplicidade do ato
gumentação, devem admitir a verdade de certos cachorro e de co- enunciativo, pela cons-
nhecer a cidade. trução da pressuposi-
pressupostos para que o texto faça sentido.
ção.
Além do posto – o que o “eu” afirma, enquanto O “eu-aluno” gos-
taria, no “agora” Temporalidade: mo-
locutor, simultaneamente ao ato da enunciação, do ato enunciati- mento posterior ao
“no agora”, no momento da escrita do texto – vo”, fazer coisas “agora”, ao presente do
e do pressuposto – o que pertence ao domínio mais interessan- ato enunciativo escrito
do “eu-tu”, situado para o “tu” num “passado tes - andar de produzido pelo “eu”.
bicicleta, brincar,
do conhecimento” no qual o “eu” situa-se – há Subenten- estar na casa da Indivíduos linguísticos
ainda o subentendido, o que o “eu” deixa o seu dido tia, brincar com (pessoas do discurso):
interlocutor, o “tu”, concluir, por meio de mar- o cachorro e co- o “eu” repassa ao tu
cadores de subjetividade ou de topoi, num mo- nhecer a cidade a responsabilidade de
mento posterior a esse ato, ou seja, no momento – do que estar na construir o subenten-
escola, produ- dido num momento
que o texto será lido pelo interlocutor. Logo, o zindo a atividade posterior ao ato enun-
subentendido está, portanto, inscrito no texto escolar solicitada ciativo.
produzido pelo falante e cabe ao “tu” realizar o pelo professor.
processo inferencial, perceber a força enuncia-
tiva dos índices de subjetividade. Fonte: dados da pesquisa.

Assim, ao ler o texto do “eu-aluno”, o “tu-profe-


sor” poderá acrescentar a seguinte interpreta-
Vale pontuar também a relação entre suposi-
ção, ou seja, o seguinte subentendido: o “eu-lo-
ção e pressuposição, evidenciada no texto pro-
cutor” gostaria de, no momento da enunciação,
duzido pelo falante a partir da conjunção con-
no “agora”, que já é passado, fazer coisas mais
dicional “se” e do verbo “pudesse”, no pretérito
interessantes - andar de bicicleta, brincar, estar
imperfeito do subjuntivo “Se eu pudesse”. Ao
na casa da tia, brincar com o cachorro e conhe-
retomar tal expressão e temática proposta pelo
cer a cidade– do que estar na escola, produzindo
professor na (sua) escrita, o “eu-aluno, a partir
a atividade escolar solicitada pelo professor, o
da conjunção condicional “se” realiza um ato de
ato de enunciação escrita. Desse modo, pode-se
suposição. Por conseguinte, pode-se dizer que o
apresentar o quadro do posto, do pressuposto
“eu-aluno” solicita ao “tu-professor”, como afir-

262
ma Ducrot, que aceite, por um breve tempo, no - andar de bicicleta, brincar, estar na casa da tia,
agora da enunciação, a proposição condicional e brincar com o cachorro e conhecer a cidade – do
que faça dela o quadro da enunciação. que estar na escola, produzindo a atividade es-
colar solicitada pelo professor.
Outra atitude do locutor a respeito daquilo que
enuncia é marcada pelo verbo no pretérito per- Enfim, ao se apropriar das formas específicas
feito do subjuntivo - “pudesse” – que indica, ao da enunciação - a condicional “se” associada
longo das cinco frases produzidas pelo falante, ao verbo “pudesse”, os índices de pessoa “eu”,
o desejo e, ao mesmo tempo, o impedimento do “tu”, “nós”, a temporalidade marcada pelo ad-
“eu-aluno” de, no ato da enunciação, andar de vérbio “agora” – o falante enuncia sua posição
bicicleta, brincar, estar na casa da tia, brincar de locutor, construindo o posto, estabelecendo
com o cachorro e conhecer a cidade. na relação “eu-tu” o pressuposto. Além disso,
repassa ao “tu” a responsabilidade de construir
Então, a condicional “Se” associada ao índice de o subentendido - inscrito no texto por meio do
pessoa “eu”, ao “tu”, bem como ao verbo “pu- topoi se eu pudesse ® gostaria - num momento
desse” e ao advérbio “agora”, põe que o locutor posterior ao ato enunciativo.
não pode realizar as ações que deseja - andar de
bicicleta, de brincar, de estar na casa da tia, de
brincar com o cachorro e de conhecer a cidade 5. Considerações Finais
- e, ao mesmo tempo, pressupõe que as afirma-
ções proferidas são verdadeiras, não admitindo, Na introdução desta investigação foi afirmado,
portanto, que o “tu-professor” questione a ver- com base na teoria de Ducrot, que a pressupo-
dade construída. Assim, o falante realiza um ato sição é um ato ilocucional, um ato de linguagem
ilocucional, pois não apenas põe ou pressupõe e parte integrante do sentido dos enunciados.
algo, mas considerando a língua como um meio Este último, por sua vez, é a maneira pela qual
para atingir um fim, realiza algo, uma ação de o enunciador apresenta seu ato de enunciação,
linguagem, impõe que o seu interlocutor acei- a imagem que pretende impor ao destinatário
te seus pressupostos como sendo verdadeiros, de sua fala, ou seja, obrigar o destinatário, no
transformando assim as possibilidades de fala momento mesmo da enunciação, a fazer esta ou
do “tu-professor”. aquela coisa, a crer nesta ou naquela proposi-
ção, etc.
Pode-se dizer também que a repetição da ex-
pressão “Se eu pudesse”, ao longo de todo o Essas considerações teóricas foram confirma-
texto, comprova que cada frase iniciada por tal das a partir da análise das operações de pressu-
expressão, produzida pelo falante, faz parte de posição realizadas pelo falante em processo de
um discurso ulterior, ou seja, é a resposta do aquisição da tecnologia da escrita. Verificou-se
“eu-aluno” direcionada ao “tu-professor” que, que o falante, ao construir o posto bem como o
num momento anterior ao da enunciação escri- pressuposto, o faz a partir de índices específi-
ta, solicitou ao falante a produção de um texto a cos – verbo (pudesse), conjunção (se), advérbio
partir da temática “Se eu pudesse”. (agora), pronomes (eu, tu e nós) – a fim de obri-
gar o seu destinatário a conservar os pressu-
Se considerado o topoi26 - se eu pudesse ® gos- postos construídos, tomá-los como quadro de
taria - que deve ser subentendido pelo “tu-pro- sua própria fala.
fessor”, será observado que a enunciação es-
crita produzida pelo falante é mais do que uma Logo, pode-se afirmar que o pressuposto - exis-
resposta. Ela é, na verdade, uma objeção, uma te um empecilho (a atividade escolar) que im-
crítica, um discurso de insatisfação do aluno possibilita o locutor de andar de bicicleta, de
que gostaria de fazer coisas mais interessantes brincar, de estar na casa da tia, de brincar com
26 Segundo Campos (2007, p144-145.), os topoi apresentam três o cachorro e de conhecer a cidade – já está pre-
propriedades, a saber: “a) são tratados como “universais”, o que visto na significação das cinco frases por meio
não significa que de fato o sejam, mas que são apresentados no
enunciado como se fossem compartilhados por uma coletividade
de índices específicos do “Aparelho Formal da
– são comuns pelo menos ao enunciador e ao destinatário; b) são Enunciação”, que permitirão ao “tu-professor”
gerais, porque se aplicam a um grande número de situações, não reconstruir o sentido pretendido pelo “eu-alu-
apenas a do momento em que se fala; c) são graduais, caracterís-
tica que permite a passagem para a conclusão e que quer dizer
no”. Ou seja, o fenômeno da pressuposição está
que os topoi relacionam duas escalas, tal que o movimento em inscrito na língua.
uma delas implica movimento também na outra, e a direção do
movimento de uma condiciona a direção do movimento da outra; Além disso, ao construir o pressuposto supraci-
isto é, se o valor apresentado em uma das escalas cresce, o valor
presente na outra também crescerá; se ele decresce, o outro tam-
tado, a partir da apropriação do “Aparelho For-
bém decrescerá.” mal da Enunciação”, o “eu-aluno”, responsá-

263
vel pelo que afirma, realiza um ato ilocucional, Em síntese, ao construir o posto, o pressupos-
um ato de linguagem, pois quer fazer crer que to bem como o subentendido, o “eu-aluno” se
o conteúdo do seu pressuposto é verdadeiro e, institui como “eu” e institui outrem, o professor,
portanto, não quer ser, no jogo argumentativo, como o “tu” para, dialética e dialogicamente,
questionado pelo seu interlocutor, o “tu-profes- falar de si, do que, no momento da enunciação,
sor”. O pressuposto, apesar de ser partilhado “no agora”, quer fazer, mas está impossibilitado
pelo locutor, ou seja, ser um ato de cumplicida- de realizar. Para tanto, o “eu-aluno” “implanta
de entre o “eu-tu”, ele se dá por imposição. O o outro diante de si, qualquer que seja o grau
subentendido também é um ato de linguagem de presença que ele atribua a este outro. Toda
realizado pelo “eu” e repassado ao “tu”. Do enunciação e, explicita ou implicitamente, uma
mesmo modo que o pressuposto, o subentendi- alocução, ela postula um alocutário.” (BENVE-
do está inscrito no texto produzido pelo falante, NISTE, 1988, p.84)
isto é, no ato de linguagem. Portanto, é de res-
ponsabilidade do “tu-professor” perceber os ín- Impõe ao “tu”, no jogo da linguagem, a compre-
dices de (inter)subjetividade proposto por Ben- endê-lo, a fazer parte do quadro de sua fala. Faz
veniste, como o advérbio “agora” ou mesmo, na uma crítica, polida e subentendida, à escola, à
terminologia de Ducrot, o topoi se eu pudesse ® atividade escolar. Desse modo, embora o falante
gostaria, que expressam a insatisfação do “eu” tenha, na forma de pressuposto ou de subenten-
em relação à atividade escolar quando afirma ao dido, a possibilidade de retirar-se da sua fala,
“tu”, de forma polida, que gostaria de fazer coi- eximindo-se da responsabilidade dela, ele deixa
sas mais interessantes como andar de bicicleta, marcas de intersubjetividade e de alteridade na
brincar, estar na casa da tia, brincar com o ca- linguagem que opera. O sujeito, portanto, apare-
chorro e conhecer a cidade. ce em sua alteridade.

6. REFERÊNCIAS
BENVENISTE, É Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al.Campinas:
Pontes, 1988.

CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. A força das palavras: dizer e argumentar. São Paulo, Contexto, 2011.

CAMPOS, Claudia Mendes. O percurso de Ducrot na Teoria da Argumentação da Língua. Revista da


ABRALIN, v. 6, n. 2, p. 139-169, jul./dez. 2007.

DUCROT, O. Princípios de semântica linguística. São Paulo: Cultrix, 1972.

___________ O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes Editores, 1987.

FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix, 1978.

MARI, Hugo. Conceitos de Pressuposição: históricos. Belo Horizonte: PUC-MG, 2013. Disponível
em: > http://www.ich.pucminas.br/posletras/SEMANTICAconceitos_de_pressuposicao.pdf<.
Acesso em: 3 de fev.2013.

264
SAÍMOS DO FACEBOOK: UMA ANÁLI- condições de possibilidade de nossa
SE DOS EFEITOS DAS REDES SOCIAIS convivência neste mundo, dada a ne-
cessidade da contínua constituição de
VIRTUAIS NAS MANIFESTAÇÕES DE grupos comuns em limitados espaços e
JUNHO DE 2013 NA PERSPECTIVA DA simultâneos tempos.
COMPLEXIDADE/CAOS
Silva (2008) argumenta que as redes
sociais on-line são inerentemente redes com-
plexas e dinâmicas, uma vez que sua estrutura
Valdir SILVA (UNEMAT) 27 está em constante mutação, em função das in-
Rodrigo de Santana SILVA (UNEMAT) 28 terações entre suas partes e, nesse processo,
tanto pode se modificar quanto modificar o todo
em que as partes se encontram inseridas, possi-
Resumo: Norteada pela teoria do caos/comple- bilitando assim, a emergência de novos estados
xidade esta pesquisa tem por objetivo analisar organizacionais no sistema. Nesta perspectiva
os níveis de complexidade das manifestações complexa de rede social, tornam-se pertinentes
iniciadas no dia 06 de junho de 2013, a partir do as palavras de Waldrop (1992) quando diz que a
contexto das redes sociais virtuais e seus efei- complexidade só pode existir se tanto a ordem
tos para a dinâmica das manifestações tanto nas quanto a desordem estiverem presentes em um
infovias como nas ruas do país. Tomamos como sistema, uma vez que são esses aspectos con-
condições iniciais para este trabalho, o cartaz de traditórios que devem co-existir em proporções
cartolina com o dizer SAÍMOS DO FACEBOOK. equilibradas, de modo que não tornem o sistema
Procuraremos refletir o significado prático des- perfeitamente ordenado, nem completamente
te enunciado, enquanto acontecimento típico do desordenado, a ponto de não existir uma estru-
mundo contemporâneo. Para tanto, tomaremos tura delimitada. Como procuraremos mostrar,
para análise os perfis/páginas do Facebook e de as redes sociais eletrônicas comportam muito
outras fontes disponíveis na internet. desta perspectiva dinâmica e altamente com-
Palavras-chave: Redes sociais; Facebook; Caos/ plexa.
complexidade; Contemporaneidade

Algumas conceitualizações sobre a natureza SAÍMOS DO FACEBOOK


dinâmica e complexa das redes sociais virtuais
Nas manifestações ocorridas em São
Rede social é um termo bem massifica- Paulo, em junho de 2013, a exemplo do que se
do e constitutivo da sociedade contemporânea, verificou em outros cantos do país, os protestos
em virtude da emergência dos sistemas digitais eram feitos, em sua maioria, em papel cartolina,
da informação e da comunicação atualmente como podemos verificar na foto abaixo:
disponíveis no contexto da internet e das dife-
rentes plataformas eletrônicas, tais como, com-
putadores (PCs), notebooks, tablets e os celula-
res smartphones.
A ideia de rede social começou a ser
usada há cerca de um século atrás, com o pro-
pósito de designar um conjunto complexo de re-
lações entre membros de um sistema social em
diferentes dimensões, desde a interpessoal à
internacional. Uma rede, conforme Rocha (2005,
p.1) nos dá a noção de auto-organização, que:

[...] interligados entre si, permitem a Figura 1 - Fonte: Google imagens


união, a comutação, a troca, a trans-
formação. Estar em rede é uma das Em meio à profusão de cartazes coloridos com
27 Professor titular do curso de Letras UNEMAT/Cáceres e diferentes enunciados de protestos, um nos
do Programa de Mestrado da UNEMAT (ollule4@yahoo.com) chamou a atenção. Trata-se do cartaz Saímos
28 Acadêmico do curso de Licenciatura em Letras (UNEMAT/Cá-
ceres-MT, bolsista PIBID/Inglês e bolsista voluntário da Iniciação do Facebook, como é possível de se verificar na
Científica. rodrigosantana.unemat@gmail.com)

265
Figura 2: Fazer-se visível na totalidade ou par-
cialmente; 7 deixar o lugar em que se
está, com destino determinado ou não;
8. Aparecer ou pôr-se diante de alguém,
para enfrentá-lo ou embaraçá-lo; 9 dei-
xar de estar em determinado lugar, em
certo estado, deixar de fazer tal coisa
etc.; 10. Deixar (o lugar onde se estava);
11. Ir para fora do seu lugar precípuo ou
do que o continha (falando de coisas que
devem ali se manter); 12. Encontrar-se
em (determinado estado ou condição)
depois de (determinada experiência);
13. Começar um novo período ou uma
Figura 2 - Fonte: Google imagens nova época; mudar de estado ou posi-
ção; 14. Transcorrer (como um todo);
Saímos do Facebook é uma frase emblemática, decorrer, desenrolar-se, desenvolver-
pois dá visibilidade a uma série de interpreta- -se. (Grifos nossos)
ções relacionadas direta e indiretamente com
Todos os significados de sair, como podemos
as questões contemporâneas, particularmente
verificar, remetem a uma dinâmica de movên-
as decorrentes das tecnologias digitais, como
cia de um espaço para o outro. Por outro lado,
são os casos das redes sociais eletrônicas. Em
chama a atenção também para a acepção que
outros termos, todas as manifestações que se
remete a uma posição-sujeito de resistência,
materializavam através dos milhares de perfis
como se pode verificar nas definições em desta-
do Facebook e que percorriam as infovias da in-
que no Houaiss.
ternet, bifurcavam-se também para as vias pú-
Outro aspecto expresso na frase Saímos do Fa-
blicas das cidades, para então retornarem no-
cebook diz respeito à estratégia linguística em-
vamente para o contexto eletrônico. É como se
pregada na frase, ou seja, o sublinhamento da
existisse uma única grande via de mão dupla que
palavra Facebook. Podemos afirmar que não se
unia o mundo virtual e o real e por onde passa-
trata de uma alegoria do cartaz, mas sim uma
vam milhares e milhares de manifestações com
ação refletida para chamar a atenção dos leito-
suas vozes ampliadas e reverberadas dinamica-
res do cartaz para algo que se quer enfatizar,
mente em todos os cantos do país e também do
acentuar, enfim, conferir uma inflexão especial
mundo. Uma via feita ora de bits ora de asfalto,
da voz marcada no escrito. Ou seja, o autor quer
pedras, concreto, terra. Um espaço público onde
deixar explícito - GRITADO - e de forma inequí-
a linguagem, em todas as suas modalidades, se
voca o lugar de onde saíram para tomar as ruas.
moldava plasticamente e se materializava, com
É uma estratégia linguística que expressa a
vistas a produção de sentidos, através de ima-
dinâmica que nos permite pensar também na
gens, vídeos, mensagens escritas, mas também
desconstrução de um entendimento equivocado
de papéis, panos, plásticos, roupas, acessórios,
de que as pessoas por trás de seus computado-
etc.
res, tablets, smartphones e dentro da internet
Na frase Saímos do Facebook, a palavra saímos
são pessoas alienadas da realidade das coisas
é derivada do verbo regular sair e expressa o
da sociedade e da cultura do mundo físico. Na
tempo presente e o pretérito perfeito do modo
verdade, estes nativos e emigrantes digitais
indicativo para a primeira pessoa do plural
(PRENSKY, 2014), estão na interface do mundo
(nós). Sair, conforme o dicionário Houaiss (2001,
real. Movem com desenvoltura entre os dois
p. 2497), apresenta uma série de significados.
mundos que conformam a realidade contempo-
Dentre eles destacamos os seguintes:
rânea e que ainda pouco entendemos e que por
1.  Passar do interior para o exterior; esta razão é em muito negligenciada. Não pode-
2.  Deixar um local, uma morada, um mos apagar o que já é constitutivo de uma par-
pouso e seus ocupantes; conhecer pes- cela considerável da sociedade. Ela é a vanguar-
soas, entreter-se; 3  manter relaciona- da do contemporâneo altamente conectada.
mento de companheirismo, amoroso ou As dinâmicas relacionadas às manifestações
erótico (com); frequentar-se, ver-se; 4 de julho de 2013, sejam elas virtuais ou reais,
passar para o outro lado de (algo), por conformaram um sistema altamente comple-
cima ou através de; atravessar, cruzar; xo, não-linear, aberto, imprevisível, sensível às
5 ir para fora de (falando de coisas); 6. condições iniciais, bifurcativos e adaptativos.

266
Pigott (2012, p. 353) aponta, reverberando o en- te do sistema, incessantemente valorizada, co-
tendimento de outros estudiosos da complexi- ordenada em tempo real, que resulta em uma
dade, que: mobilização efetiva das competências” e da di-
nâmica complexa da rede social.
Sistemas complexos são complexos por-
que consistem de “múltiplas interações
entre muitos componentes diferentes”
(Rind, 1999, p. 105), cada variável é um Sensibilidade às Condições Iniciais: Efeito Bor-
jogador mais ou menos significativo em boleta
uma rede interconectada de influências
interativas. Eles são não-lineares no Conforme aponta Lorenz (1963), tido como o
sentido de que uma perturbação do sis- criador da Teoria do Caos, os sistemas dinâ-
tema pode causar um efeito significati- micos são marcados pela imprevisibilidade por
vo e desproporcional, um efeito propor- serem hipersensíveis às condições iniciais, ou
cional ou um efeito insignificantemente seja, são sistemas de dinamicidade tal, que tor-
desproporcional (tradução nossa). na impossível prever os seus comportamentos
futuro. São sistemas que têm a estabilidade
Neste sentido, tomaremos a rede social, Face- - equilíbrio - afetada por pequenas perturba-
book, como um Sistema Adaptativo Complexo ções. Em outros termos, são sistemas sujeitos
(SACs). Conceito formulado por Holland (1995), ao Efeito Borboleta29 (GLEICK, 1989), como ficou
os SACs referem-se aos sistemas que são ca- popularmente conhecida a Teoria do Caos. Estes
pazes de se auto-configurarem para se adap- sistemas têm comportamento inverso aos tidos
tarem às características correntes do proces- como perfeitamente regulares, ou seja, aqueles
so ou do ambiente em que estão inseridos, ou que permitem saber com exatidão seus compor-
seja, sistemas que atingem a solução através de tamentos futuros, independentemente do tempo
sucessivos ajustes e interações. Nos SACs tor- de verificação.
na-se contraditória a vigência da dinâmica cen- Nesta direção, podemos perguntar: Qual ou
tralizadora e hierarquizada, uma vez que não se quais foram as condições iniciais que, em seus
tem apenas um sujeito dinamizador, mas um efeitos, tornaram o sistema das manifestações
conjunto deles e todos estão aptos para contri- nas redes sociais e nas ruas algo tão dinâmico.
buir na solução de um problema, compartilhar Embora saibamos que não seja uma tarefa fácil
informações ou conhecimentos de interesse da determinar com exatidão as reais condições ini-
rede, etc. Um SAC tem duas características im- ciais do movimento, pois teríamos de consideras
portantes: a diversidade (HOLLAND, 1995; VAN variáveis que nos escapam por envolverem uma
LIER, 2004) e a redundância (DAVIS e SUMARA, multiplicidade de variáveis de natureza social,
2006), em decorrência de fatores relacionados política, cultural, econômica, ideológica, psi-
os próprios sujeitos (bio-psico-social) e também cológica, mercadológica, etc, tomaremos, para
fenômenos externos (os outros, as condições de efeito deste artigo, o valor do aumento defendi-
produção, etc) que provocam a evolução e a di- do pela Prefeitura de São Paulo para a tarifa dos
nâmica complexa da rede social, tanto em suas ônibus e metros: 0,20 centavos.
partes como em seu todo sistêmico. Os 0,20 centavos de reais que elevava o pre-
Quanto maior a diversidade da rede, maiores ço das passagens de 3,00, para 3,20 reais. Na
são as chances de o sistema possuir redundân- perspectiva da Teoria do Caos, os 0,20 centavos
cia em sua dinâmica. A redundância, conforme se configuraram nas condições iniciais - Efeito
apontam Davis e Sumara (2006), refere-se à ca- Borboleta - do movimento como um todo, pois
pacidade dos sujeitos, enquanto agentes do sis- foi este valor que marcou o inicio da trajetória do
tema, substituírem funcionalmente o outro em sistema imprevisível e caótico do sistema dinâ-
situação de desestabilização do sistema, ou seja, mico das manifestações e que tornaram difíceis
um dos sujeitos assume, ainda que momen- à época - e ainda hoje em seus efeitos – prever
taneamente, a dianteira do processo, e pode, os seus resultados finais.
com isso, reorganizar o sistema. Conforme Sil-
va (2008), trata-se de uma assunção espontâ-
nea e, portanto, imprevisível como mecanismo
de manutenção da estabilidade do sistema que
conforma a rede social. Os SACs, nesta direção,
abrigam em seu interior uma inteligência distri-
buída, que, conforme Levy (1998), configura-se
em “uma inteligência distribuída por toda par- 29 “O bater de asas de uma borboleta no Brasil
pode desencadear um tornado no Texas”

267
ção do sistema são modificadas de tal
forma que seus níveis de adaptação são
aperfeiçoados a partir da relação com
outros sistemas.
Como podemos perceber nas palavras de Glei-
ck, Waldrop e de forma mais contundente em
Ockerman, o termo que expressa essa dinâmi-
Figura 4 – Fonte: Google imagens ca está relacionado com processos adaptativos.
Figura 5 - Fonte: Google imagens Independentemente de tempo, os movimentos
de ordem/desordem/ordem constitutivos de um
Movidos pelo interesse em ter suas reivindica- sistema dinâmico seriam fases de adaptação do
ções atendidas pelos setores políticos e eco- sistema, independemente de tempo de duração
nômicos de São Paulo e das demais cidades de cada uma das fases e do espaço em que ocor-
do país, teve inicio, no contexto da internet, por rem.
meio das redes sociais, em particular o Face- Nesta direção, é interessante a observação de
book, um ciclo elevadíssimo de manifestações Colom (2004) quando diz que o resultado da or-
por meio de mensagens, vídeos, memes, fotos, dem interna é o caos do conjunto que se auto-
etc que impulsionou grande parte da população -organiza em formas ordenadas e que rapida-
do país – jovens, na sua maioria – a se informa- mente se desordena para formar outras ordens,
rem e posicionarem de forma contundente e ir- às quais, sucessivamente, se seguirão novas de-
reversível no contexto desterritorializado da in- sordens propiciadoras de outras novas ordens.
ternet. Podemos dizer que o movimento foi viral,
pois muitas pessoas, em certa medida, de uma As bifurcações
forma ou de outra já estavam contaminadas e
com o passar dos dias o grau de virulência as- Conceito formulado por Prigogine (1988), a bi-
sumiu proporções nunca vistas no país, conse- furcação refere-se às encruzilhadas que produ-
quentemente, imprevisíveis. zem ramificações dentro de um sistema. Para
Para Gleick (1987) e Waldrop (1992) são siste- o autor, trata-se de determinadas ocorrências
mas que estão à beira do caos, em decorrência que podem significar o fim, a origem e um novo
dos níveis de turbulência que o sistema come- começo do sistema. No entendimento do autor, o
ça a apresentar, ou seja, comportamentos que futuro evolutivo do sistema não está determina-
possibilitam a criação de um tipo especial de do, pois se encontra imerso na incerteza, aberto
equilíbrio entre ordem e o caos. Para Waldrop e em contínua construção. Ainda sobre a bifur-
(1993, p. 12), trata-se de uma fase de máxima cação, Colom (2004) diz que ela ocorre no ins-
criatividade em que o sistema opera entre a or- tante em que um microfenômeno (por exemplo,
dem e a aleatoriedade do caos. Para o autor, a um ruído) se repete de tal forma que chega a al-
beira do caos é “a zona de batalha em constante cançar grandes magnitudes, fazendo com que o
alternância entre a estagnação e a anarquia, o sistema mude o seu rumo evolutivo (nascimento
ponto onde um sistema complexo pode ser es- da bifurcação). Dessa forma, segue o autor, a
pontâneo, criativo, e vivo”. bifurcação se caracteriza como um processo de
Neste sentido, são pertinentes as observações realimentação positiva, permitindo supor que a
de Ockerman (apud Paiva, 2009) quando diz: origem dos estados caóticos pode, mais tarde,
adaptar-se a situações mais equilibradas (esta-
[a] beira do caos é um estado parado- bilizadas), em função da realimentação negativa
xal, um acaso em espiral entre a ordem que diminui ou subtrai as diferenças. Para Silva
e o caos, uma oscilação ativa entre dois (2008, p. 48):
extremos, caracterizada pelo risco, pela
exploração, e pela experimentação. É Um sistema pode ficar estabilizado
aqui que o sistema opera no seu mais por um número determinado de tempo
alto nível de funcionamento, onde acon- até que ocorra uma nova perturbação,
tece o processamento de informação, como consequência de processos itera-
onde se correm riscos e onde se expe- tivos, e crie uma nova bifurcação. Nessa
rimenta novo comportamento. Dizemos direção, a bifurcação refere-se ao pon-
que uma mudança é inovadora e que o to crítico do sistema, isto é, o momento
sistema aprendeu e evoluiu quando um que pode conduzir a desestabilização do
novo comportamento emerge e quando sistema e, no decorrer do tempo, gerar
a função primária e as regras de opera- um novo tipo de ordem. As possibilida-

268
des das ramificações ou bifurcações causalidade aja em cada instante, as ramifica-
apresentam uma variedade de opções ções acontecem imprevisivelmente e neste pro-
de comportamento e, devido ao seu grau cesso podem possibilitar a emergência de sis-
de liberdade, o sistema pode apresentar temas que apresentam auto-referenciações, ou
também uma multiplicidade de escolha, seja, fractais.
tendo, assim, as mais diferentes possi-
bilidades de se auto-organizar.
A relação do conceito de bifurcações com as Atrator estranho
manifestações está exatamente nos comparti-
lhamentos. Podemos tomar como exemplo as Para terminar estas conceitualizações sobre os
informações e reflexões realizadas anterior- sistemas dinâmicos aplicados metaforicamente
mente com base dos dados fornecidos pelo site nestas reflexões sobre as dinâmicas complexas
Causa Brasil. Cada informação que é lançada na das manifestações no Brasil, apresentaremos o
rede por um perfil público no Facebook é aces- conceito caótico denominado atrator estranho.
sada pelo número de amigos que esse perfil Formulado por Takens (1971), o atrator estranho
possui. As bifurcações podem ocorrer, então, no diz respeito a um ponto para onde todas as tra-
momento em que um post é publicado e com- jetórias do sistema são conduzidas. Em outras
partilhado milhares e milhares de vezes entre palavras, trata-se da posição preferida pelo sis-
os participantes da rede. Quando temos uma tema. Caso haja outra posição inicial, o sistema
postagem realizada por determinado perfil em evoluirá em direção ao atrator localizado nessa
seu mural, um número x de outros perfis que posição e, não havendo maiores interferências
tem acesso a ele recebe essa postagem em seu de forças externas, a trajetória do sistema ficará
feed de notícias imediatamente. No momento circunscrita ao limites do atrator seja ele pontu-
que há o compartilhamento desta postagem por al ou periódico. O atrator pontual refere-se aos
outro perfil, naturalmente o número de pessoas sistemas, cujas dinâmicas sempre tenderão a
que tem acesso a esse conteúdo se multiplica girar em torno de um único ponto, já o periódico
de acordo com as variáveis. Essas variáveis re- apresenta um padrão cíclico, ou seja, oscila en-
ferem-se ao número de amigos adicionado em tre certo número de estados fixos. É a natureza
cada perfil. Um exemplo desta dinâmica bifurca- dispersiva dos atratores no sistema que provo-
tiva, em termos numéricos, pode ser verificado ca a turbulência de um sistema e, consequen-
no vídeo publicado no YouTube, intitulado Poli- temente, seu caráter não-linear. Ruelle (1993)
cial quebra vidro da própria viatura, publicado diz que os atratores estranhos têm um aspecto
no dia 13/06/2013. estranho e estão relacionados ao fenômeno de
dependência hipersensível das condições ini-
ciais (Lorenz, 1996). Para Colom (2004), a evo-
lução e as constantes mudanças de estado dos
sistemas caóticos jamais são idênticas porque
esses sistemas obedecem a atratores estranhos
que são os causadores das condutas imprevis-
tas – tipicamente caóticas. É uma modalidade
de atrator que comporta a idéia de ser um fe-
nômeno relacionado com os estados turbulen-
tos de um sistema que pode conduzir ao caos
e, paradoxalmente, também funciona como um
Figura 6 – Fonte: youtube auto-organizador do caos, conforme defendem
vários autores, dentre eles Briggs e Peat (1999).
Este vídeo teve 2.333.783 de visualizações, um Senge (1990) e Wheatley (1999) dizem que a re-
número extremamente expressivo no contexto corrência dos atratores estranhos podem ser
do Youtube, e gerou 8.302 comentários (contra estruturais e/ou comportamentais, isto é, eles
e a favor) e o mais importante para a reflexão podem apresentar padrões de forma e/ou fun-
sobre bifurcação, o vídeo foi compartilhado por ção que influenciam e são fortemente influen-
6.795 pessoas, nos mais diferentes sistemas, ciados pela dinâmica interna do sistema.
em particular no Facebook. Estas considerações metafóricas sobre o con-
Briggs e Peat (1999) dizem que cada decisão ceito de atrator estranho, quando transpostas
tomada em um determinado momento da ra- para o contexto das manifestações reais ou vir-
mificação implica a ampliação de algo peque- tuais podem ser referenciadas em dois eventos
no (microfenômeno). Dessa forma, ainda que a distintos: a atuação policial e a dos blackblocs

269
uma melhor compreensão da dinâmica comple-
xa das redes sociais e seus efeitos para as ma-
nifestações populares ocorridas no Brasil em
junho de 2013. Para tanto, apresentamos alguns
conceitos de rede social tanto no contexto da
cultura real como da cibercultura. O Facebook
foi a rede social delimitada por nós, em virtu-
de de sua popularidade e, claro, seu papel nas
manifestações. Toda a reflexão foi norteada com
base nos conceitos dos denominados sistemas
Figura 7 – Fonte: Google imagens dinâmicos, ou seja, sensibilidade às condições
Como discutido anteriormente, as redes sociais, iniciais (Efeito Borboleta), bifurcação e atrator
como o caso do Facebook, tiveram papeis deci- estranho.
sivos para a emergência das manifestações no O estudo possibilitou em primeiro lugar per-
Brasil. Toda a organização para as manifesta- ceber que, as redes sociais, sejam elas reais
ções nas ruas teve suas condições inicias dentro ou virtuais são espaços de práticas sociais nos
das redes sociais. Foram elas, em particular, quais as pessoas se inscrevem para comparti-
que mobilizaram os milhões de manifestantes lharem objetivos comuns. No entanto, é preciso
pelo Brasil afora. Apesar de toda a dinâmica ressaltar que apesar de suas semelhanças elas
complexa dentro das redes e nas ruas, o sistema guardam traços bastante distintos. Por exem-
das manifestações apresentava em suas partes plo, no contexto virtual as redes sociais apre-
e em seu todo, uma ordem. Eram passeatas de sentam um comportamento típico dos Sistemas
protestos relativamente pacíficas feitas por pes- Adaptativos Complexos (HOLLAND, 1997), pois
soas de todas as classes e idades da sociedade. podem constantemente se auto-configurarem
Apesar de alguns episódios isolados de maior e se adaptarem às novas realidades, em de-
turbulência em meio às pessoas, tais fenôme- corrência da diversidade (HOLLAND, 1997; VAN
nos não perturbavam a ordem da dinâmica das LIER, 2004) e a redundância (DAVID e SUMARA,
manifestações. Podemos dizer que o atrator era 2006) que conformam suas estruturas, pois elas
periódico, pois apresenta um padrão cíclico, ou abrigam em seu interior inteligências distribuí-
seja, oscila entre certo número de estados fixos, das (LEVY, 1998), que incessantemente mudam
podemos dizer entre os sistemas da rede e os e provocam novos formatos, em decorrência do
da rua. que os sujeitos provocam, quando, por exemplo,
Apesar de não termos a intenção de fazermos postam suas mensagens, seus vídeos, suas fo-
aqui nenhum juízo de valor sobre a atuação da tos, etc.
polícia e dos blackblocs durante as manifes- Uma outra questão que se tornou visível tam-
tações, podemos assegurar que estes dois fe- bém foi a natureza hibrida entre virtual – redes
nômenos configuram-se em dois exemplos de sociais – e o real – as ruas. Ou seja, virtual e
atratores estranhos – imprevisíveis – pois não real configuram um espaço formado por suas
se esperava uma atuação tão violenta por par- próprias interfaces. Cada interface funcionaria
te dos policiais e também dos blackblocs. Estes como “portais” do tempo-espaço das duas reali-
dois atratores mudaram totalmente e de forma dades que se impõem.
irreversível a rota do sistema, pois muitas das Por fim, corroborando o que muitos pesquisa-
milhares de pessoas, com medo e se sentido dores da área da Lingüística Aplicada, tais como
inseguras esvaziaram as ruas. A violência nas Larsen-Freeman, 1997; Paiva, 2002; van Lier,
ruas alimentou os protestos “seguros” nas re- 2004; Lantolf, 2006; Cameron e Deignan, 2006,
des sociais. Esta situação nos remete a Colom entre outros, vêm sustentando, a teoria do caos/
(2004) quando diz que o resultado da ordem in- complexidade se apresenta em uma proposição
terna é o caos do conjunto que se auto-organi- teórico-metodológica bastante pertinente, en-
za em formas ordenadas e que rapidamente se quanto metáforas, para melhor descrevermos
desordena para formar outras ordens, às quais, e compreendermos os sistemas dinâmicos das
sucessivamente, se seguirão novas desordens práticas sociais no mundo contemporâneo.
propiciadoras de outras novas ordens.

Considerações Finais
Para este trabalho tomamos o cartaz Saímos do
Facebook como ponto de partida de estudo para

270
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272
CIRCUITO CURRICULAR MEDIADO 1 Introdução
POR GÊNEROS: PRÁTICAS DE LEITU- Este trabalho apresenta uma pesquisa-ação que
RA E ANÁLISE LINGUÍSTICA visa a investigar numa escola da rede pública
municipal de Marabá, Estado do Pará, em uma
turma de 6º ano (5ª série) do Ensino Fundamen-
tal como atividades de letramento mediadas por
Vera Barros Brandão Rodrigues Garcia30 gênero podem ser desenvolvidas numa turma
Wagner Rodrigues Silva 31 considerada defasada por terem dificuldades
de leitura e escrita. Pretende ainda investigar
como essas atividades podem ajudar no desen-
RESUMO:
volvimento das práticas de produção e de anali-
Nesta pesquisa, investigamos como atividades se linguística desses alunos considerados com
de letramento mediadas por gênero podem ser dificuldades de aprendizagem.
desenvolvidas numa turma considerada defa- No processo de planejamento para intervenção
sada pelo fato dos alunos terem dificuldades de em sala de aula, elaboramos uma unidade di-
leitura e escrita. A pesquisa-ação é realizada dática com planos de aulas, elaborados a partir
numa escola da rede pública municipal de Ma- de um Circuito Curricular Mediado por Gênero
rabá, em uma turma de 6º ano (5ª série) do Ensi- – CCMG (CALLAGHAN, KNAPP e NOBLE, 1993).
no Fundamental. Pretendemos ainda investigar As atividades didáticas serão aplicadas por duas
como essas atividades podem ajudar no desen- professoras-pesquisadoras32, na sala de aula do
volvimento das práticas de produção e de ana- 6º. Ano do Ensino Fundamental, integrada pe-
lise linguística desses alunos com dificuldades los alunos mencionados no parágrafo anterior.
de aprendizagem. No processo de planejamento Com essas atividades, pretendemos observar
para intervenção em sala de aula, elaboramos o envolvimento e a participação dos alunos nas
uma unidade didática composta por planos de aulas propostas, queremos ainda experimentar
aula orientados pela proposta pedagógica do e avaliar a metodologia do CCMG33 em cada eta-
Circuito Curricular Mediado por Gênero (CCMG). pa respondendo assim a pergunta principal des-
Pretendemos com essas atividades observar o ta pesquisa-ação: Como as atividades de leitura
desenvolvimento e a participação dos alunos nas e de análise linguísticas mediadas pelo CCMG
aulas propostas, queremos ainda experimentar podem provocar mudanças no ensino e aprendi-
e avaliar a metodologia do CCMG em cada eta- zagem de língua portuguesa?
pa respondendo assim a pergunta principal da A unidade didática é entendida aqui como um
pesquisa-ação: como as atividades de leitura e conjunto de atividades escolares organizadas,
de análise linguísticas mediadas pelo CCMG po- de maneira sistemática, em torno de um gêne-
dem provocar mudanças no ensino e aprendiza- ro textual oral ou escrito e articula-se perfeita-
gem de língua portuguesa? Caracterizamos este mente com a noção de projeto de letramento,
trabalho como uma pesquisa-ação, pois não se onde são as práticas sociais que irão desenca-
trata de simples levantamento de dados ou de dear ações de leitura e de escrita. Nesse tipo de
relatórios a serem arquivados. Conforme Thiol- projeto assume-se uma forma de aprender que
lent (2002) “com a pesquisa-ação os pesquisa- deve ser entendida, não como um conteúdo a
dores pretendem desempenhar um papel ativo ser transmitido, mas como algo a ser (re)cons-
na própria realidade dos fatos observados.” Esta truído, (re)contextualizado respondendo assim,
pesquisa também é caracterizada como um es- a uma necessidade vinculada a uma prática so-
tudo de caso, pois investiga e explora exaustiva- cial.
mente a unidade didática aplicada na interven- Dessa forma, caracterizamos este trabalho como
ção pedagógica. Para subsidiar a intervenção uma pesquisa-ação, pois não se trata apenas de
proposta, revisaremos alguns estudos aplicados levantamento de dados ou de relatórios investi-
a respeito dos gêneros textuais, estudos de le- gativos a serem arquivados. Conforme Thiollent
tramento; Linguística Aplicada e da Linguística (2002) “com a pesquisa-ação os pesquisadores
Sistêmico-Funcional. pretendem desempenhar um papel ativo na pró-
pria realidade dos fatos observados.” Esta pes-
PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa-ação; Língua ma- quisa também é caracterizada como um estudo
terna; Material didático de caso, pois investiga e explora exaustivamente
30 Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Letras – as unidades didáticas aplicadas no local selecio-
PROFLETRAS da Universidade Federal do Tocantins – UFT. E-mail:
verabbrgarcia@gmail.com 32 As professoras-pesquisadoras são a autora deste projeto e
31 Professor Doutor vinculado ao Programa de Mestrado Profis- Seane Xavier, as quais desenvolvem uma mesma intervenção para
sional em Letras – PROFLETRAS da Universidade Federal do To- enfoques investigativos diferenciados e complementares.
cantins – UFT. E-mail: wagnerodriguesilva@hotmail.com 33 Circuito Curricular Mediado por Gênero.

273
nado para intervenção pedagógica, a saber: uma a transformação na maneira como esse ensino
turma do 6º. Ano do Ensino Fundamental, inte- tem sido efetivado nas escolas públicas, me-
grada por alunos considerados com defasagem diante a intervenção feita através da aplicação
no aprendizado. Para tanto, Yin (2001) diz que o de uma unidade didática elaborada para realiza-
objetivo do estudo de caso é explorar, descrever ção da pesquisa-ação.
ou explicar o evento em estudo.
Em virtude do exposto, é necessário pensar em 2 Referencial Teórico
uma educação que seja alicerçada em práticas
de letramento, “entendido como o desenvolvi- A Linguística Aplicada faz parte da base
mento de comportamentos e habilidades de uso teórica de nossa pesquisa por se tratar de uma
competente da leitura e da escrita em práticas área interdisciplinar/transdisciplinar, empe-
sociais” (SOARES, 2012, p.16). A importância da nhada na solução de problemas humanos que
leitura e da escrita serem trabalhadas como fer- se referem aos vários usos da linguagem(CE-
ramenta para a agência social significa na vida LANI, 1992, p.20). Logo, pensar pesquisa em LA,
do aluno, dentro e fora da sala de aula, garan- além de adotar uma postura interdisciplinar, é
tia de emancipação e autonomia, requisitos in- também considerar os atores sociais envolvidos
dispensáveis ao exercício da cidadania. Desse como participantes merecedores de respeito no
modo, é necessário buscar métodos ou estra- contexto em que vivem.
tégias didáticas que promovam tais práticas e Nesse sentido, entendemos que a LA com seu
que possibilitem o ensino da língua materna de conhecimento das práticas de uso e de aprendi-
forma contextualizada, articulada, significativa, zagem da língua pode nos ajudar a entender os
possibilitando que o sujeito faça uso social da fatores que influenciam a linguagem em algu-
língua nas mais variadas situações do seu co- mas das diversas manifestações da vida diária,
tidiano. podendo assim contribuir com o nosso estudo
Nessa perspectiva, para subsidiar a investigação sobre letramento mediado por gênero.
proposta em nosso plano de trabalho, revisare-
Acredito que é na escola, agência de
mos alguns estudos aplicados a respeito dos
letramento por excelência de nossa so-
gêneros textuais e unidade didática, tomando
ciedade, que devem ser criados espaços
como principais referências bibliográficas Mar-
para experimentar formas de participa-
cuschi (2008) e Silva (2012; 2013). Além dessas
ção nas práticas sociais letradas e, por-
referências, também nos utilizamos dos traba-
tanto, acredito também na pertinência
lhos de Silva (2012), Kleiman (1995; 2000; 2007),
de assumir o letramento, ou melhor,
Soares (2012), ao focalizarmos os estudos do
os múltiplos letramentos da vida social,
letramento. Para focalizarmos os estudos com
como o objetivo estruturante do trabalho
relação à linguística aplicada recorreremos aos
escolar em todos os ciclos. [...] A prática
trabalhos de Celani (1992) e Silva (2010); para
social não pode senão viabilizar o ensi-
melhor entender a Linguística Sistêmico-Fun-
no do gênero, pois é seu conhecimento
cional (LSF) utilizaremos Cunha e Souza (2011);
o que permite participar nos eventos de
Silva e Espíndola (2013). Para contribuição com
diversas instituições e realizar as ativi-
os estudos do círculo do gênero recorreremos a
dades próprias dessas instituições com
Callaghan, Knapp e Noble (1993); entre outros.
legitimidade. (KLEIMAN, 2007, p. 8)
Cabe ressaltar que, nesta pesquisa, a noção teó-
rica do letramento aparece junto com a noção de Nessa perspectiva e devido ao fato de que traba-
gênero, contribuindo para a leitura e análise lin- lharemos com gênero textual, a concepção ado-
guística, visto que não basta à apresentação de tada de escrita e gênero textual será de funda-
exemplos de textos, nos moldes que queremos mental importância a fim de que se possa iniciar
como garantia da eficiência da produção do gê- a unidade didática34 que trabalharemos na tur-
nero proposto. Os modelos são muito importan- ma de 6º ano. Assim, adotamos as concepções
tes, mas é mais importante ainda que os alunos apresentadas por Franchi (1992) em relação ao
estejam inseridos em uma situação real ou ima- trabalho com a linguagem:
ginária em que o gênero a ser elaborado tenha
significado, ou função, como propõe o CCMG. A linguagem é uma práxis histórica. Em
A presente pesquisa tem por objetivo compre- outros termos a linguagem é uma prá-
ender a prática pedagógica e refletir sobre o en- tica que está inserida em contextos so-
sino de língua materna orientado pela proposta ciais. Isolar a linguagem, despojá-la do
pedagógica do CCMG. Também pretendemos meio onde funciona, é retirar dela toda
34 Uma “unidade didática” é um conjunto de atividades escolares
apontar caminhos que possam contribuir para organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero tex-
tual oral ou escrito.

274
sua capacidade expressiva. As condi- escrita em que os indivíduos se envol-
ções de significação da linguagem estão vem em seu contexto social. (SOARES
intimamente relacionadas ao uso que 2012, p.72)
dela se faz na sociedade. As formas lin-
guísticas adquirem significações dentro
do ‘contexto vital’. (FRANCHI, 1992, p. 5)
O trabalho na perspectiva do letramento ao ser
adotado na escola vincula práticas em que a lei-
tura e a escrita são instrumentos para agir so-
Tendo em vista tais considerações, percebe- cialmente. Nesse sentido elaboramos um pro-
-se que organizar uma proposta pedagógica jeto de letramento na escola orientado por um
articulando os gêneros textuais e os recursos circuito curricular mediado por gênero, onde as
gramaticais de forma contextualizada, exige atividades envolvem a leitura de textos que, de
apropriação de conhecimentos teóricos e, prin- fato, circulam na sociedade e a produção de tex-
cipalmente, um planejamento cuidadoso por tos que serão lidos, em um trabalho coletivo de
parte dos professores, que nem sempre têm su- aluno e professor. Assim, o projeto de letramen-
portes para desenvolver suas aulas, ou mesmo, to seguindo o percurso do CCMG pode ser consi-
não foram preparados para trabalhar com uma derado como uma prática social que vai além da
nova abordagem de linguagem. mera escolarização do gênero.
Diante dessa realidade, faz-se necessário bus- O esquema a seguir apresenta, de forma sinte-
car uma organização metodológica que viabilize tizada, como se realizam as etapas do trabalho
um planejamento sistematizado e contínuo, per- com letramento delineado pelas professoras-
mitindo que o aluno reflita ao longo do processo -pesquisadoras, através da unidade didática,
de aprendizagem sobre os conteúdos propostos. auxiliando o leitor a compreender melhor o pro-
Com base nessa discussão, a unidade didática jeto em questão.
se caracteriza como um procedimento bastante
apropriado.
Para os autores Dolz, Noverraz & Schneuwly
(2004, p. 97) o conjunto de atividades escolares
organizadas, de forma sistemática tem, preci-
samente, a finalidade de ajudar o aluno a domi-
nar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe,
assim, escrever ou falar de uma maneira mais
adequada numa determinada situação de co-
municação. Em face disso, elaboramos nossa
unidade didática com o propósito de atender aos Figura 1: Gêneros âncoras
objetivos esperados, bem como guiar as inter-
venções do professor ao trabalhar com a pro-
posta circuito curricular mediado por gênero Todos os gêneros elencados na figura são objeto
(CCMG). de ensino, porém desempenham funções didáti-
Certamente uma prática menos exaustiva e cas diferentes. Nos dois círculos centralizados,
mais eficaz do que a memorização de nomen- estão dispostos os gêneros âncoras, diário fic-
claturas e suas infinitas subdivisões se torna tício e autobiografia, os quais foram seleciona-
mais relevante para os estudantes. Possibilitar dos como produto intermediário e produto final,
aos alunos o acesso a gêneros textuais significa respectivamente. As atividades desenvolvidas
habituá-los com outros eventos e, inseri-los em ao longo da unidade didática são realizadas em
novas práticas de letramento. À luz das habilida- função da produção desses dois gêneros, que
des do letramento diz Soares (2012): ganham maior relevância na sequência de ativi-
Letramento é o que as pessoas fazem dades planejadas. Os demais gêneros, localiza-
com habilidades de leitura e de escri- dos nas laterais da Figura 1 (anotação, anotação
ta, em um contexto específico, e como escolar, bilhete, biografia, calendário, entrevis-
essas habilidades se relacionam com ta, resumo, vídeo) são identificados como gêne-
as necessidades, valores e práticas so- ros satélites. Eles configuram as atividades de
ciais. Em outras palavras, letramento leitura, escrita e análise linguística, necessárias
não é pura e simplesmente um conjunto para alcançar as etapas finais, quando são pro-
de habilidades individuais; é o conjunto duzidos os gêneros âncoras.
de práticas sociais ligadas à leitura e à

275
2.1. CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA SISTÊ-
MICO-FUNCIONAL PARA O ENSINO DE LÍNGUA
MATERNA
Uma importante corrente funcionalista da lin-
guagem é a teoria do linguista inglês Michael A.
K. Halliday, denominada Linguística Sistêmico-
-Funcional (LSF). A linguagem, nessa corrente
teórica, é considerada uma prática social. Mais
do que um processo de representação, por meio
dela, construímos a realidade social.
A LSF analisa sempre produtos autênticos da in-
teração social, os texto, os quais são responsá-
veis pela realização dos gêneros textuais. Uma
gramática funcional é, portanto, não um conjun-
to de regras, mas uma série de recursos para
descrever, interpretar e fazer significados (cf.
CUNHA e SOUZA, 2011).
As abordagens sistêmico-funcionais de gêne-
ro têm dado uma grande contribuição ao modo
como os gêneros são entendidos e aplicados no Figura 2: Circuito Curricular Mediado por Gêne-
ensino de língua fora do Brasil e, só mais recen- ro - CCMG35
temente, parece influenciar o cenário nacional, Observando a Figura 2, temos três estágios a
mesmo que ainda muito timidamente. Uma das serem seguidos em nosso Circuito Curricular. O
contribuições se deu através da pedagogia de primeiro momento é o da modelagem: durante
gêneros australiana, que se tornou conhecida esse estágio estudantes e professor identificam
como “ciclo de ensino-aprendizagem”, o que o contexto cultural e situacional em que os tex-
neste trabalho, optamos por denominar CCMG, tos daquele gênero funcionam, a que propósitos
o qual é representado na forma de uma roda. O sociais servem, apresenta-se, porém nesse es-
ciclo de ensino-aprendizagem foi adaptado por tágio o contexto e o texto, como bem ilustra a
vários pesquisadores envolvidos com o que de- figura em questão.
nominados de educação linguística, orientada No segundo momento, a ser observado na fi-
pela LSF. Os componentes básicos do ciclo in- gura estudantes e professor se envolvem numa
cluem três estágios: (i) Modelagem, (ii) Negocia- negociação conjunta, seguida da construção de
ção conjunta de texto e (iii) Construção indepen- um texto dentro do gênero a ser trabalhado, pri-
dente do texto. meiramente observando, pesquisando, tomando
A proposta didática do CCMG orientada pela teo- notas, desenvolvendo conhecimentos sobre o
ria da LSF tende a favorecer o desenvolvimento conteúdo, e por fim, trabalhando conjuntamente
de uma nova dinâmica na sala de aula, pois apre- para produzir uma versão do gênero.
senta uma forma diferenciada de ver os conte- Já no terceiro estágio (3) os estudantes constro-
údos, planejar as aulas, orientar as atividades, em de forma independente uma versão do gêne-
entendemos que muitos são os ganhos com tal ro, pesquisando para desenvolver conhecimento
proposta. Chegamos a perceber na aplicação sobre o conteúdo, rascunhando o texto, trocan-
da UD em anexo, que os alunos colaboradores do ideias com os colegas, revisando, avaliando e
compreendiam de forma eficiente o estudo rea- por fim publicando um volume com autobiogra-
lizado por meio de terminologias mais simples, fias produzidas pelos alunos.
a grande maioria da turma colaboradora conse- Vale ressaltar, que o Circuito Curricular não é
guiu interpretar os textos a partir da mediação um procedimento de sequência fixa. Ele permite
da atividade de leitura articulada com a análise que o professor tenha autonomia e possa desen-
linguística. volver as atividades adequando-as para melhor
atender às necessidades da turma trabalhada.
É possível voltar a qualquer estágio do ciclo,
em qualquer momento, se necessário. É possí-
vel também passar o tempo que for necessário
em determinado estágio do ciclo, por exemplo,
pode-se produzir vários textos em conjunto (es-
35 The Genre Curriculum Cycle or “Wheel” (CALLAGHAN, KNAPP
e NOBLE, 1993, p.1).

276
tágio 2), para somente assim prosseguir para a tradicional se dá através das atividades de aná-
construção independente (estágio 3). lise linguística, as quais aplicam maior destaque
Considerando a abordagem funcional da lingua- aos efeitos de sentido dos usos dos elementos
gem, podemos concluir com relação às etapas da língua no texto em uso, que consequente-
presentes no CCMG que: na Modelagem (Con- mente, se moldam em gêneros textuais especí-
texto) – Há o predomínio da leitura; na Modela- ficos, como os que trabalhamos na UD: diário,
gem (Texto) - Há primazia da análise linguística; entrevista, autobiografia, anotações escolares e
na Negociação conjunta de texto – Predomina- outros.
-se leitura e produção textual; na Construção do Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Na-
texto de forma independente – A leitura aparece cionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998),
de modo mais sutil e há predominância da pro- mostram que através das atividades de análise
dução de texto. linguística, o professor poderá mediar os conhe-
cimentos sistemáticos da língua, através de uma
2.2. Práticas escolares de linguagem proposta que associe “reflexão” e “uso”, e levar
o aluno a utilizar tais conhecimentos de forma
Os PCN de Língua Portuguesa para o Ensino eficiente e consciente, efetivando seu desempe-
Fundamental deixam claro que perspectiva deve nho linguístico.
ser adotada quanto à leitura dizendo que “a lei- Na elaboração da UD utilizamos algumas ques-
tura é o processo no qual o leitor realiza um tra- tões de análise linguística, tentando evitar a me-
balho ativo de compreensão e interpretação do talinguagem e procurando tornar as questões
texto, a partir de seus objetivos, de seu conheci- acessíveis à compreensão dos discentes do 6º.
mento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o Ano, tomando como referência a noção de ativi-
que se sabe sobre a linguagem etc” (p. 69). dade epilinguística. Vale ressaltar que as diretri-
Nesse contexto, os PCN (1998) sugerem que o zes curriculares vigentes orientam que o ensino
trabalho com a leitura seja diário, dessa forma, de gramática seja reconfigurado pelas ativida-
passamos a listar as várias leituras que os parâ- des epilinguísticas, as quais podem contribuir
metros recomendam, lembrando que a escolha para o desenvolvimento do aluno (cf. BRASIL,
de determinada leitura vai ocorrer em função 1998 e SILVA, 2006).
dos objetivos de ensino-aprendizagem: leitura Acreditamos que as teorias da LSF e do CCMG
autônoma, leitura colaborativa, leitura em voz podem contribuir para o desenvolvimento de
alta pelo professor, leitura programada, leitura práticas escolares de linguagem: leitura, pro-
de escolha pessoal. dução e análise linguísticas, mais proveitosas
No que diz respeito à leitura, as Diretrizes Curri- para o letramento do aluno, conforme aparece
culares do Município de Marabá (2006) apontam no centro da figura 2 onde todas as setas con-
que é necessário refletir com os alunos sobre as vergem para a aproximação do uso do gênero,
diferentes modalidades de leitura e os procedi- identificando que todo o circuito é, portanto, le-
mentos que elas requerem do leitor. São coisas tramento.
muito diferentes ler para se divertir, ler para es-
crever, ler para estudar, ler para descobrir o que 3 Metodologia
deve ser feito, ler buscando identificar a inten-
ção do escritor, ler para revisar. Desta forma, o A pesquisa aqui apresentada caracteriza-se
professor de língua materna estará propiciando como pesquisa-ação e será organizada em três
“a inserção do aluno em situações diversas de momentos: 1. Momento da elaboração da uni-
leitura, fazendo com que o educando ultrapasse dade didática; 2. Momento da intervenção peda-
o domínio da simples apreensão, e se direcione gógica que foi realizada numa sala de aula, de
a prática e conhecimento de sua língua” (Mara- uma escola pública da rede municipal da cida-
bá, 2006, p. 30). de de Marabá/PA; 3. Momento da organização
No que diz respeito à prática de análise linguísti- e análise interpretativa de diferentes registros
ca, sabemos que é essencial no ensino de língua orais, escritos e vídeos gerados na intervenção
portuguesa, pois habilita o aluno a compreen- proposta através do CCMG.
der os usos dos mecanismos linguísticos, bem A abordagem da pesquisa-ação como proces-
como, aplicá-los nos diversos gêneros textuais. so de produção de conhecimento desenvolve-
Segundo afirma Silva (2010, p.28), “os PCN ado- -se com vistas às necessidades que surgem da
tam a nomenclatura análise linguística para fa- prática social. Nessa modalidade de pesquisa
zer referência às práticas de reflexão sobre a o levantamento dos dados necessários à análi-
língua em uso. Evitam utilizar a nomenclatura se do objeto de estudo realiza-se em um pro-
análise linguística como sinônimo de ensino de cedimento metodológico no qual os sujeitos da
gramática.” O redirecionamento da gramática pesquisa problematizam, analisam e realizam

277
intervenções nas suas práticas pedagógicas (cf. EXCERTO 2
THIOLLENT, 2002).

A pesquisa em questão terá uma abordagem


qualitativa e trará em seu corpus dados de di-
versas naturezas como: nota de campo, comen-
tário de entrevista, documentos recolhidos na
aplicação das UD – como textos de aluno, planos
de aula, pôsteres e gravações em áudio e vídeo.

4 Análise e Discussão

Um dos vídeos escolhidos previamente pelo Nos excertos 1 e 2 gerados no momento


professor: da intervenção pedagógica pudemos observar
práticas sociais resultando no compartilhamen-
Vídeo 1: Consulta médica. 36 (2:50) to de experiências vividas pelo aluno-respon-
dente das questões mencionadas acima, esses
questionamentos se fizeram presentes a fim de
que os alunos pudessem emitir suas opiniões
37
sobre o vídeo e, mais ainda que ele pudesse ir
além, ou seja, não se restringir ao vídeo assisti-
Os excertos que seguem fazem parte do mo- do. Observemos que o aluno diz “na cidade onde
mento de acionamento de conhecimento prévio, eu moro os médicos são muito competentes”
se refere à primeira aula da unidade didática comprovando que ele fez uma relação com sua
aplicada na intervenção, onde os alunos após vida pessoal e emitiu juízo quando coloca que o
assistirem aos vídeos, são instigados a utilizar o médico de sua cidade é “competente”, deixando
seu repertório em atividades interativas, envol- subentendido que o profissional do vídeo era in-
vendo a oralidade e a escrita, como se observa competente: “não atende o paciente certo”; “se
a seguir. Na perspectiva do CCMG essa ativida- trata de um médico preguiçoso”.
de se encontra no estágio 1 do circuito curricu- Essa atividade foi proposta com intuito
lar, onde se trabalha a MODELAGEM (Contexto), de acionar conhecimentos prévios, e também,
nessa etapa aparece os questionamentos no mostrar alguns usos da leitura e escrita que te-
contexto de experiências compartilhadas, e con- mos em nossa sociedade, no item C dos excer-
sequentemente, a função social do gênero. tos temos o comando: Tente lembrar de sua úl-
tima consulta e conte-a ao colega de sua dupla.
EXCERTO 1 Procure dar detalhes da fala do médico e tam-
bém das ações dele durante a conversa, ou seja,
o que os médicos fazem durante as consultas.
Sobre o excerto 2, item C temos a seguinte res-
posta: “eles perguntam o que a gente está sen-
tindo, depois eles passam as receitas e nos dão
remédios, ou vacina, para a gente melhorar.”
Fica claro na fala do aluno-respondente que ele
consegue identificar os usos da escrita presen-
tes numa consulta médica, o aluno diz que o mé-
dico pergunta o quê o paciente tem, passa re-
ceita, dá remédio ou vacina, são as experiências
de vida do escritor impressas em sua resposta.
Nesse sentido, esses atores sociais contam um
pouco do que é significativo e que compõe a sua
história de vida.

Sobre o excerto 1, no item B “Eu já ouvi, quan-


do a mulher do meu irmão foi ter um bebê, não
36 Cenas congeladas do vídeo Consulta Médica: https://www. tinha como ter normal e o médico queria que
youtube.com/watch?v=IdIrQdiD17M fosse normal” notamos que a questão elabora-

278
da ofereceu possibilidade de criação ao aluno, cola básica, esperamos que os gêneros textuais
essa oportunidade de criar sua resposta, o leva- sejam recebidos e produzidos, na escola e fora
rá a uma postura independente e provavelmen- dela, como poderosas ferramentas de lingua-
te mais crítica, e observamos que o aluno teve gens para agir sobre o mundo. Consideramos,
competência de relatar uma situação onde um pois, a pedagogia dos gêneros textuais na esco-
médico da vida real foi relapso em suas funções, la uma necessidade, já que a multiplicidade de
o que se configura numa abordagem discursiva textos orais e escritos compõe um conjunto de
e enriquecedora do conhecimento. manifestações socioculturais que merece ser
Assim, verificamos que o real objetivo do traba- reconhecido, apreciado e valorizado por nossos
lho com a unidade didática desenvolvida no gru- alunos. Esses são passos fundamentais para a
po de pesquisa é favorecer a análise do mundo inserção dos alunos, como sujeitos autônomos
que nos cerca, propiciando aos educandos atra- e críticos, nas várias práticas sociais de escrita.
vés das práticas de letramento se tornar cida- Esperamos, com este trabalho, instigar pesqui-
dãos críticos, conquistando assim a condição e sadores e professores, no sentido de estimulá-
a capacidade de participação com relação a di- -los ao diálogo mais próximo a ser estabelecido
mensões da vida social, isto é, seu empodera- entre a teoria acadêmica e a prática do profes-
mento. sor, contribuindo para o ensino-aprendizado de
língua materna, em especial no que tange as te-
5 Considerações Finais orias desenvolvidas no domínio da LA.

No percurso de mudanças desejadas para a es-

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280
A COMPREENSÃO DO MITO POR 1 Introdução
MEIO DAS NARRATIVAS POPULARES O homem que sobrevive da terra é dependen-
DA CULTURA INDÍGENA te desse solo que gera a vida, uma cosmogonia
natural, que do nascer ao morrer, a origem e o
meio são constituídos no seio da mesma terra
que o originou. Na mitologia, respeitando-se
Walmir Nogueira Moraes as tradições, independente da localização ge-
ográfica ou situação econômica, é possível que
uma parcela da população ou povo tradicional se
RESUMO: A presença do indígena na cultura apoiará na mitologia para perpetuar, buscar ex-
brasileira tem estreita relação com o imaginário plicações ou modelar sua existência; fenômeno
popular, que permeia a construção da realida- natural que ocorre mesmo nas sociedades ditas
de social, religiosa e até no universo psicológico mais desenvolvidas.
nacional. Consensualmente ou não, o elemento O conhecimento mítico está presente em todas
indígena e principalmente a cultura desses po- as culturas e influencia inconscientemente seg-
vos tradicionais, são marcas de tradição e aju- mentos sociais, comunidades, povos e países.
dou na construção da identidade brasileira; uma Esses conhecimentos, por meio das narrativas
realidade iniciada desde a descoberta do Brasil. explicam fatos e mistérios da vida, produto de
Na verdade, a imagem do “índio” ainda é mui- atitudes heróicas ou sobrenaturais, capazes,
to emblemática no país, mas é notório que essa inclusive, de explicar a cosmogonia de povos e
comunidade possui vasta e riquíssima compre- sociedades.
ensão do imaginário, já que muitas etnias ainda As comunidades tradicionais indígenas
dependem das florestas e rios para sua subsis- apresentam em seu patrimônio cultural, um
tência e cuja materialização mítica é o sobrena- conjunto riquíssimo de mitos e lendas. São ge-
tural encontrado nas narrativas oriundas dessas ralmente histórias que envolvem narrativas da
culturas tradicionais. No entanto, essa riqueza natureza e que buscam explicar suas origens,
literária não vem sendo aproveitada como mais subsistência e perpetuação ao longo dos sé-
um recurso no aspecto da leitura nos espaços culos, por meio dos elementos mitificados vin-
da escola e no processo ensino-aprendizagem; culados à existência indígena; constituindo-se
ao contrário, percebe-se que ainda existe uma elemento de coesão social e em consequência,
dicotomia na compreensão do mito presente a preservação da identidade.
nesses textos ditos folclóricos, em relação aos Na Amazônia, indígenas são ainda mais
mitos da antiguidade. Nesse sentido, este artigo dependentes do imaginário que permeia cada
buscou juntar elementos do mito que pudessem indivíduo local, pois sofrem os mesmos refle-
auxiliar nessa compreensão mítica, presente xos sociais negativos, comuns aos povos tradi-
nas narrativas populares de origem indígena; cionais do Brasil e das Américas, resultante das
elencando a possibilidade de que a síntese míti- ações dos colonizadores. Mesmo assim, o fato
ca das narrativas pode servir efetivamente como de viverem nas florestas e rios e ainda depen-
recurso pedagógico nos espaços escolares. derem, na maioria das vezes, da preservação do
Para isso, foram construídos argumentos a par- meio ambiente para sua própria subsistência e
tir de quatro mitos brasileiros da cultura indíge- seus hábitos culturais, faz com que a riqueza de
na sintetizados em suas respectivas narrativas: seus mitos e narrativas lendárias, sejam regis-
Iara a rainha das águas; Vitória Régia, Mandioca, tros marcantes vivos e ricos em simbologias,
o pão indígena e O Curupira; e a partir de uma como entende Eliade (1989).
análise comparativa, traçar uma relação com os
conceitos e inferências presentes nas obras de
três conhecidos estudiosos do mito: CAMPBELL Os mitos dos “primitivos” ainda refle-
(1991); ROCHA (1988) e ELIADE (1989), estudo tem um estado primordial. Trata-se,
que levanta a possibilidade do mito e sua com- ademais, de sociedades onde os mitos
preensão em aplicabilidade como recurso didá- ainda estão vivos, onde fundamentam e
tico. justificam todo o comportamento e toda
a atividade do homem (ELIADE, 1989,
PALAVRAS-CHAVE: Narrativas; Indígenas; Mi-
p.10).
tos; Compreensão; Identidade

A partir de observações pedagógicas no

281
universo escolar, percebe-se que a leitura das população 25,7 mil indígenas. Entre as etnias
narrativas míticas de origem indígena são vis- indígenas a Tikúna é a maior, com 6,8% da po-
tas apenas como folclore, desconsiderando-se a pulação indígena. Segundo o IBGE, dessa popu-
essência do mito que envolve o texto. E mesmo lação de indivíduo indígena 52,9% não possuem
que essas narrativas se constituam em leituras “ rendimento”. A etnia Tenetehara que corres-
prescritas destinadas às crianças, a conotação ponde aos Tembé (Pará) e Guajajara (Maranhão)
mítica só agrega valores pedagógicos para o possui uma população de 24.428 indígenas (fon-
educando, quando o texto relata ações fantásti- te: IBGE, Censo Demográfico 1991/2010). Esses
cas atribuídas aos heróis da antiguidade, da mi- dados estatísticos servem para uma reflexão da
tologia clássica. atual população indígena em relação ao passa-
Dessa forma, não seria mais pedagógico, se nas do, já que existem registros de que a população
aulas de leitura as narrativas míticas de origem indígena no Brasil do século XVI estava entre 02
indígenas também fossem objetos de estudo e a 04 milhões de pessoas distribuídos por mais
compreensão textual? de 1000 povos diferentes. (AZEVEDO, 2010).
As aulas práticas de leitura não seriam mais efi- A terminologia “índio” é produto de um equí-
cientes se a compreensão do mito clássico par- voco histórico dos primeiros colonizadores que
tisse da realidade mítica latente, que permeia o chegaram às Américas e que entendiam estar
imaginário do povo brasileiro? na Índia, por vários fatores de ordem geográfica.
Entendemos que as respostas para esses sim- Da mesma forma, o termo silvícola (que nasce
ples questionamentos resultariam em ações ou vive na selva), foi erroneamente muito utiliza-
pedagógicas, que permitiriam aos nossos es- do até bem pouco tempo, visto que, não é o fato
tudantes uma compreensão mítica valorizando de viver ou nascer na selva que caracteriza uma
essa cultura popular de origem indígena tanto pessoa indígena. No entanto, o uso contínuo da
quanto a mitologia clássica, sem a concepção de palavra “índio” atualmente é aceito e substitui
“colonizado”, que muitas vezes é construída so- o termo indivíduo indígena. (Povos Indígenas no
cialmente nos espaços escolares. Brasil, 2010).
Diante disso, este artigo objetiva levantar ar-
gumentos de aplicabilidade à compreensão e 3 O que é Mito?
leitura, a partir de uma análise comparativa
de quatro textos míticos, a fim de identificar Genericamente, sabemos que mito é o relato de
traços elementares dos mitos da antiguidade uma história verdadeira, no entanto, seria muito
presentes nas narrativas populares de origem reducionista definir um conceito pronto e aca-
indígena; atendo-se principalmente aos mitos bado pelo fato dessa significação possuir uma
cosmogônicos. Dessa forma, demonstrar que a conotação muito profunda e complexa. A pa-
compreensão mítica indígena, abre uma possi- lavra Mito tem seu registro na literatura como
bilidade como recurso importante no processo oriunda do grego Mythos, que deriva de dois ver-
de ensino-aprendizagem. bos mytheyo (contar, narrar) e do verbo mytheo
A análise comparativa perpassará por quatro (conversar, designar, nomear).
mitos populares de origem indígena, integran- Nessa concepção, desde a antiguidade, a busca
tes do folclore nacional: Iara a rainha das águas, pelo conhecimento é uma característica própria
Vitória Régia, Mandioca - o pão indígena, e o do homem e a espécie humana sempre procu-
Curupira; numa relação com os conceitos ge- rou explicações da sua existência, sendo que, a
neralizados e inferências presentes nos estudos narrativa foi eficiente para fundamentar o inex-
de CAMPBELL (1991), ROCHA (1988) e ELIADE plicável de gerações para gerações por meio da
(1989); com ênfase às funções pedagógicas do religião, e dos mitos.
mito, apresentadas por CAMPBELL (1991). Assim, ao pensar o que são mitos ou mitologias,
surge automaticamente na mente, imagens
2 Situação atual dos povos indígenas no Brasil ilustrativas de seres com poderes fantásticos
– contexto geopolítico presentes nas grandes obras mitológicas da an-
tiguidade. Essa reação é natural, pois essa ideia
Segundo o IBGE - Instituto Brasileiro de Geogra- vem sendo construída e veiculada ao longo dos
fia e Estatística, atualmente a população indíge- tempos e está internalizada, até quase cristali-
na do Brasil é de 896,9 mil, com 305 etnias e 274 zada no seio de grande parte das sociedades.
idiomas. Do total da população declarada indíge- Diante disso, uma afirmação que contrarie esse
na 36,2% vivem em área urbana e 63,8% na área entendimento inato, pode insurgir à pergunta. A
rural. As terras indígenas representam 12,5% mítica, presente em narrativas populares indí-
do território brasileiro, sendo a reserva yano- genas possui o mesmo valor pedagógico atribu-
mami do Amazonas e de Roraima, a de maior ído aos mitos clássicos?

282
Para CAMPBELL (1991), entre as várias defini- é uma função que está desatualizada. A quar-
ções registra o seguinte entendimento sobre o ta função do mito corresponde à pedagógica;
mito: quando os mitos ensinam a viver sobre quais-
quer circunstâncias.
Dessa forma, a cosmogonia mítica é
elemento indispensável para correspondência
Aquilo que os seres humanos tem em
entre os mitos populares e elementos do mito
comum se revela nos mitos. Mitos são
clássicos, por meio de analogias, nesse aspecto,
histórias de nossa busca da verdade,
torna-se necessário destacar alguns conceitos
de sentido, de significação, através dos
dos autores abaixo:
tempos. Precisamos tocar o eterno,
Para ROCHA (1988), o mito é a possibilidade de
compreender o misterioso, descobrir o
compreensão do mundo através da cosmogo-
que somos (CAMPBELL, 1991, p.5).
nia, da psicanálise e da verdade, pois em mui-
tos povos, as cosmogonias ainda servem de re-
ferenciais que explicam lutas e relações entre
Uma concepção social do mito pode ser conce- homens e forças sobrenaturais que justificam o
bida a partir da definição de ROCHA (1988). que não se quer saber ou o que pertence ao psi-
cológico. O que existe de comum é a possibilida-
O Mito é uma narrativa. É um discurso, de de o mito ser sempre objeto de interpretação.
uma fala. É uma forma de as socieda- ELIADE (1989), externa como o mito pode ser
des espelharem suas contradições, compreendido acerca dos conhecimentos, ritos
exprimirem seus paradoxos, dúvidas e religiosos e as origens dos deuses e dos mun-
inquietações. Pode ser visto como uma dos.
possibilidade de se refletir sobre a exis-
tência, o cosmos, as situações de “estar Em suma, esses mitos do fim do mun-
no mundo” ou as relações sociais (RO- do, implicando claramente a recriação
CHA, 1988, p.5). de um novo Universo, exprimem a mes-
ma ideia arcaica e extremamente difun-
dida da “degradação” progressiva do
ELIADE (1989), apresenta uma síntese da impor- Cosmos, requerendo sua destruição e
tância do tempo e cosmogonia do mito em rela- sua recriação periódicas (ELIADE, 1989,
ção à narrativa. p.58).
Diante do vasto universo exploratório que pode
ser direcionada a esta pesquisa, delimitaremos
O mito conta uma história sagrada; ele nossos esforços à aplicabilidade da função pe-
relata um acontecimento ocorrido no dagógica do mito, apresentada em CAMPBELL
tempo primordial, o tempo fabuloso do (1991); e nesse sentido, questionado sobre de
“princípio”. Em outros termos, o mito onde os adolescentes, que nascem na Rua 125,
narra como, graças às façanhas dos En- com a Broadway, tiram hoje os mitos, o estudio-
tes Sobrenaturais, uma realidade pas- so tece uma crítica aos EUA (Estados Unidos das
sou a existir, seja uma realidade total, o Américas).
Cosmo, ou apenas um fragmento (ELIA-
Eles os fabricam por sua conta. Por isso
DE, 1989, p.11).
é que temos grafites por toda a cida-
de. Esses adolescentes têm suas pró-
prias gangues, suas próprias iniciações,
sua própria moralidade. Estão fazendo
4 O que revelam os mitos. o melhor que podem. Mas são perigo-
sos,por que suas leis não são as mes-
Em CAMPBELL (1991), o autor defende que o mas da cidade. Eles não foram iniciados
mito tem quatro funções: a função mística é a na nossa sociedade (CAMPBELL, 1991,
que denota o espanto diante do mistério. A se- p.9).
gunda função é a dimensão cosmológica, que
mesmo sob o olhar da ciência, o mistério tam- E reitera que o alto grau de violência é
bém se manifesta. A terceira função é a socioló- motivada pela ausência do Ethos na América. O
gica, a que determina a ordem social, e aqui os autor entende que hoje temos um mundo des-
mitos variam de lugar para lugar determinan- mitologizado e em consequência os estudantes
do comportamentos sociais e segundo o autor, estão ávidos por mitologia, mas a escola não

283
oferece essa possibilidade de conhecimento, ig- tivo da narrativa. Nos mitos da antiguidade há
nora o excitamento que o assunto provoca entre uma correlação bem ilustrativa a essa narrati-
os estudantes. va, é o mito da sereia, descrito pelos antigos
navegadores, cujo conteúdo literário é de amplo
O que estamos aprendendo em nossas conhecimento mundial. Outro mito da antiguida-
escolas não é sabedoria de vida. Es- de, que perpassa uma correlação muito próxima
tamos aprendendo tecnologias, esta- à narrativa da Iara é o mito da origem do fogo,
mos acumulando informações. Há uma quando Prometeu roubou o fogo do Olimpo para
curiosa relutância de parte da admi- entregá-lo aos mortais ocasionando ganhos e
nistração universitária em indicar os castigos. Na narrativa indígena, a água vem ser
valores de vida de seus assuntos (CAM- o elemento mítico que permite a cosmogonia
PBELL, 1991, p.10). que acontece, compensação permitida pelo “es-
pírito das águas”; a criação de um novo ser.

5 As Narrativas de origem indígena


5.2 Vitória - régia
5.1 Uiara (Yara ou Iara) - a rainha das águas
Maraí era uma jovem e bela índia, que
amava muito a natureza e tinha o hábito
A jovem Tupi Uiara era a mais formo- de contemplar chegada da Lua e das es-
sa mulher das tribos que habitavam ao trelas. Nasceu nela, então, um forte de-
longo do Rio Amazonas. Por sua doçura, sejo de se tornar uma estrela. Perguntou
todos os animais e plantas a amavam. ao pai como surgiam aqueles pontinhos
Mantinha-se, entretanto, indiferente brilhantes no céu e, com grande alegria,
aos muitos admiradores da tribo. Em soube que Jacy, a Lua, ouvia os desejos
uma tarde de verão, após o Sol se pôr, das moças e, ao se esconder atrás das
Uiara permanecia no banho, quando foi montanhas, transformava-as em estre-
surpreendida por um grupo de homens las. Muitos dias se passaram sem que
estranhos. Sem condições de fugir, a jo- a jovem realizasse seu sonho. Maraí
vem foi agarrada e amordaçada. Acabou resolveu, então, aguardar a chegada da
por desmaiar, sendo violentada e atira- Lua junto aos peixes do lago. Assim que
da ao rio. O espírito das águas transfor- ela apareceu, Maraí, encantada com
mou o corpo de Uiara em um ser duplo. sua imagem refletida na água, foi sen-
Continuaria humana da cintura para do atraída para dentro do lago, de onde
cima, tornando-se peixe no restante. nunca mais voltou. A pedido dos peixes,
Uiara passou a ser uma sereia, cujo pássaros e outros animais, Maraí não foi
canto atrai os homens de maneira irre- levada para o céu. Jacy transformou-a
sistível. Ao verem a linda criatura, eles em uma bela planta aquática, que rece-
se aproximam e são arrastados para as beu o nome de vitória-régia (ou mumu-
profundezas, de onde nunca mais volta- ru), a estrela dos lagos. (WHAN, 2012).
rão. (WHAN, 2012).
O mito da Iara é uma analogia às sereias, nar-
rativa no modelo helênico, que descreve uma O fascínio do homem pelos astros tem registro
bela mulher de uma voz melodiosa, cujo canto milenar e em muitas civilizações antigas foram
é capaz de enfeitiçar. Essa narrativa destaca a o fundamentos do conhecimento. Os indígenas
capacidade compensatória do mito. Quando a jo- também construíram uma realidade em relação
vem índia, formosa e amada por todos, sofre a aos astros e como comunidades tradicionais,
violência provocada pela representação do mal, suas atividades de subsistência se relacionam
entra em cena o sobrenatural, “o espírito das diretamente ao processo cósmico, tanto para os
águas”. A transformação da jovem em um ser que habitam o litoral, cujo efeito das marés tem
híbrido, mulher com a cauda de peixe, é a com- relação direta à pesca, quanto aos da Amazônia
pensação pela tragédia ocorrida. Essa personi- que, muitas vezes, dependem da caça; e a lua
ficação aparece atrelada ao poder representado e as estrelas indiciam os melhores momentos
pelo canto mágico que enfeitiça os homens que para a prática de caçar animais silvestres.
o escutam, tornando-se, assim, o condão puni- No mito da Vitória Régia, o elemento água cons-
titui a cosmogênese das narrativas, um condutor

284
comum, pois é o elemento que produz vida, bem desejasse dali sair. Resolveu então re-
como pode retirá-la, evidenciando a presença de mover a terra, encontrando apenas raí-
vários elementos míticos que constroem essa zes muito brancas, como Mandi (Maní),
narrativa: o fascínio pelos astros, lua e estrelas, que, ao serem raspadas, exalavam um
os corpos celestes, o amor e o sacrifício. aroma agradável. Todos entenderam
A história permite visualizar a relação que criança havia vindo a Terra para ter
que ocorre por meio do sacrifício de um ser, para seu corpo transformado no principal
que haja o início de uma vida completamente di- alimento indígena. O novo alimento re-
ferente, a imersão à morte, para uma nova vida. cebeu o nome de Mandioca, pois Mandi
O amor inacessível entre uma jovem e a lua, uma (Maní) fora sepultada na oca. (WHAN,
construção mítica que pode ser compreendida a 2012).
partir de CAMPBELL (1989), que atribui ao mito
o poder de explicar o significado de um sacrifício Essa narrativa popular basicamente explica a
de uma entidade visível em nome de um deus subsistência humana, no contexto indígena, já
transcendente. que a mandioca tem papel fundamental, até os
Então, essa narrativa pode ser assim sintetiza- dias de hoje na alimentação de vários povos.
da: a presença da água, elemento primordial e Traçando um paralelo analítico com os mitos
mais materializável da cosmogonia, a relação do antigos vislumbra-se uma rica representativi-
sacrifício pela morte, que atribui sobrenaturali- dade da mitologia mundial.
dade aos seres, ação exclusiva da manifestação Sob o aspecto da cosmogonia, segundo ELIADE
do criador, do senhor do domínio e da justiça, (1989, p. 25), “toda história mítica que relata a
em que Jacy, a lua, adquire os poderes de Zeus, origem de alguma coisa pressupõe a cosmogo-
agindo por meio do “espírito das águas”. nia” sustentando que essa afirmação justifica
uma aparição de um novo elemento, animal ou
instituição, “uma situação nova”, neste caso, a
origem da mandioca.
5.3 Mandioca - o pão indígena A riqueza mítica que entrelaça essa narrativa
revela traços da mitologia de origem egípcia,
característica encontrada na deusa Ísis, a pro-
vedora das mulheres desamparadas e da produ-
Mara era uma jovem índia, filha de um ção agrícola na antiguidade.
cacique, que vivia sonhando com o amor “Osíris era cultuado como o deus do sol, fonte do
e um casamento feliz. Certa noite, Mara calor, da vida e da fecundidade, além do que era
adormeceu na rede e teve um sonho es- também considerado como deus do Nilo, que
tranho. Um jovem loiro e belo descia da anualmente visitava sua esposa, Isis (a Terra),
Lua e dizia que a amava. O jovem, depois por meio de uma inundação” (BULFINCH, 2002,
de lhe haver conquistado o coração, de- p. 344).
sapareceu de seus sonhos como por en- Literaturas antigas registram uma divindade
canto. Passado algum tempo, a filha do ligada a agricultura, a mulher dá à luz, assim
cacique, embora virgem, percebeu que como da terra se originam as plantas. A mãe
esperava um filho. Para surpresa de to- terra, conhecida também por Deusa, “é a figu-
dos, Mara deu à luz uma linda menina, ra mítica dominante no mundo agrário da antiga
de pele muito alva e cabelos tão loiros Mesopotâmia, do Egito e dos primitivos siste-
quanto a luz do luar. Deram-lhe o nome mas de plantio.” (CAMPBELL,1991). Na narra-
de Mandi (ou Maní) e na tribo ela era tiva apresentada, a mandioca, que é um produto
adorada como uma divindade. Pouco agrícola, tem sua origem na terra, no caso pro-
tempo depois, a menina adoeceu e aca- duto de uma metamorfose de uma mítica se-
bou falecendo, deixando todos amar- mente, a criança.
gurados. Mara sepultou a filha em sua O mito da mandioca pode ser associado à difusão
oca, por não querer separar-se dela. de outros mitos de sociedades que se desenvol-
Desconsolada, chorava todos os dias, vem por meio da agricultura, pelo ato de fertili-
de joelhos diante do local, deixando cair zar o solo, plantar, cultivar plantas alimentícias.
leite de seus seios na sepultura. Talvez A tecitura do texto revela uma origem, traduzida
assim sua filha voltasse à vida, pensa- no benefício do alimento básico da tribo. “Existe
va. Até que um dia surgiu uma fenda na um outro tema, no qual o homem é concebido
terra de onde brotou um arbusto. A mãe como tendo vindo, não do alto, mas do útero da
se surpreendeu. Talvez o corpo da filha terra mãe” (CAMPBELL,1991, p.56)

285
5.4. O Curupira fome e de outras calamidades e realizando ou-
tras façanhas nobres e salutares”.
As histórias do ente Curupira aproximam-se
muito da teoria naturalista. No caso da relação
Trata-se de um ser do tamanho de uma desse ente com os Tembé (Tenetehara), perce-
criança de seis ou sete anos, peludo bemos uma cumplicidade e respeito, fato que
como o bicho preguiça, de unhas com- de certa forma se contrapõe às narrativas mais
pridas e afiadas, com o calcanhar para comuns, em que o mito é apresentado como um
frente e os dedos dos pés para trás, que ser punitivo aos que desrespeitam a natureza.
anda nu pela floresta. Ele toma conta da Com os Tembé o Curupira apresenta uma rela-
mata e dos animais e mora nos buracos ção de reciprocidade, como denota Rocha(1988).
das árvores que tem raízes gigantescas,
muito comuns na Floresta Amazôni-
ca. O curupira ajuda os caçadores e os 1- Parte da ideia de que nos momentos
pescadores que lhe oferecem cachaça, primitivos, “na aurora” da humanida-
fósforo e fumo. Esta oferta é para que de, os fenômenos naturais marcavam
o indivíduo tenha fartura nas caçadas, fortemente os interesses deste homem
pescarias e roçados. As pessoas que “primitivo” dada a sua fragilidade rente
não têm devoção pelo curupira sentem ao espetáculo, ao quadro, destas forças
medo, enjôo e náuseas a quilômetros em ação (ROCHA, 1988, p.28).
de distância dele. Com essas pessoas,
ele brinca fazendo com se percam na
mata. Para se livrar do curupira deve-
-se cortar uma vara, fazer uma cruz e Narrativas diversas sobre o Curupira, muitas
colocar em um rolo de cipó tumbuí, bem vezes, apresentam a personificação desse ser
apertado. Ele vê esse objeto e procura da floresta com outras descrições quando ocor-
desmanchar o enrolado. Enquanto fica re o processo de metamorfose entre o mito e o
entretido em desmanchar o enrolado, a porco do mato ou com o Caapora. Essas narrati-
pessoa tem tempo para fugir. (WHAN, vas estão relacionadas com o espaço da floresta
2012). e no contexto geral, com o meio ambiente. Uma
relação muito intensa com as sociedades que
Para os indígenas tembé (Tenetehara), habitan- subsistem da caça e o extrativismo da floresta. O
tes do Rio Gurupi- PA, o mito do Curupira apre- poder do Curupira transcende o senso comum e
senta-se com uma particularidade diferente de a racionalidade humana, diferindo muito quanto
muitos relatos, pois além de proteger os ani- à mensagem que transmite.
mais e a floresta, o Curupira ajuda os indígenas O texto do Curupira retrata a busca do “acor-
que coletam o óleo de copaíba, produto tradicio- do com o mistério”, que origina o poder. Ele é
nalmente comercializado por aquelas comuni- o próprio poder, o domínio representado pelos
dades, indicando com o assovio onde estão as deuses da antiguidade, revestido no mistério de
árvores produtivas (fonte do autor). um ser protetor das florestas da Amazônia.
Também, há depoimentos de nativos que dizem
ocorrer manifestações do Curupira durante as
caçadas de inverno, tempo em que escasseiam
os alimentos, o personagem facilita que os ani- 6 Considerações Finais
mais silvestres sejam capturados, tornado-se,
assim, um “parceiro da tribo tembé”. Em contra-
partida, os indígenas oferecem penas, esteiras,
Os valores dos mitos são extremamente im-
cobertores e fumo como presentes, para deleite
portantes na constituição da cultura, e para as
do ser mítico. O fumo, como oferta ao Curupira,
crianças e os jovens certamente ganham uma
é um elemento comum em muitas variações de
conotação diferenciada em relação ao sentido
narrativas que se tem registro ( Fonte do autor).
da vida e experiência. A compreensão dos mitos
De qualquer maneira esse mito interfere nos
proporciona ao sujeito visualizar a realidade so-
povos e habitantes da floresta, protegendo a
cial construída por meio da interferência mítica
mata e os animais. O Curupira para o povo Tem-
à cultura e à tradição que envolve cada socieda-
bé é uma “história verdadeira”, ação do mito em
de, como sustenta Campbell(1991).
conformidade com a realidade apresentada por
Eliade (1989, p.14) “se tornou redentor de seu
povo, livrando-o de monstros, salvando-o da

286
A mitologia lhes ensina o que está por e em todas as atividades pedagógicas realizadas
trás da literatura e das artes, ensina nas escolas brasileiras, e não somente como um
sobre sua própria vida. È um assunto gênero de conteúdo, que é lido, estudado, mas
vasto, excitante, um alimento vital. A sem o aprofundamento pedagógico que a temá-
mitologia tem muito a ver com os está- tica oferece.
gios da vida, as cerimônias de iniciação, Estudar o mito como recurso pedagógico é uma
quando você passa da infância para as forma prazerosa e criativa de aprender nas au-
responsabilidades do adulto, da con- las de língua portuguesa, história, geografia, li-
dição de solteiro para a de casado. To- teratura, filosofia e sociologia. Desde que, ocor-
dos esses rituais são ritos mitológicos ra a interação analítica das narrativas míticas
(CAMPBELL, 1991, p.12). populares e os mitos da antiguidade, prática que
exige um pouco mais de aprofundamento teóri-
co por parte do educador.
Dessa forma, essa aplicabilidade pedagógica
As narrativas populares de origem indígena, são
do estudo do mito, estaria próxima da proposta
constituídas de atmosfera mítica, que possibilita
apresentada pela linguista INGEDORE, (1992), O
uma analogia próxima às narrativas cosmogô-
Texto: Construção de Sentidos, cujo teor pode
nicas da antiguidade e que segundo CAMPBELL
ser sintetizado no trecho abaixo:
(1991), essas histórias acolhem o mesmo tema
universal. Dessa forma,é possível até evidenciar,
que essas narrativas são vertentes da cosmo-
gonia dos diversos mitos clássicos, pois esses 1- Poder-se-ia, assim, conceituar o texto
textos estudados estão em conformidade com a como uma manifestação verbal consti-
definição de mito apresentada pelos autores que tuída de elementos linguísticos inten-
embasam este trabalho, possuem semelhança cionalmente selecionados e ordenados
com possíveis revelações que os mitos da anti- em sequência, durante a atividade ver-
guidade possam atribuir; e apresentam a expli- bal, de modo a permitir aos parceiros,
cação para uma origem ou a coisificação daquilo na interação, não apenas a depreensão
que não se pode explicar. de conteúdos semânticos, em decorrên-
Diante disso, o uso dessas narrativas populares cia da ativação de processos e estraté-
míticas só ampliaria a validação dos valores so- gias de ordem cognitiva, como também
ciais às crianças e jovens; valorizando os heróis a interação (ou atuação) de acordo com
desses textos de origem popular, revelando-os práticas socioculturais (KOCH,1992).
como seres revestidos dos mesmos poderes
sobrenaturais atribuídos aos heróis da antigui-
dade, da mitologia clássica, respeitando-se as
Nesse entendimento, para aprofundar o univer-
especificidades culturais, os diferentes conjun-
so mítico e a pedagogia, o recurso da tecnolo-
tos de valores, crenças, o tempo histórico e a
gia seria elemento eficaz como complemento
organização social dos povos.
metodológico, com a exibição de filmes, jogos
Os mitos da cultura indígena, poderiam ser con-
de games ou apresentação de documentários
cebidos com a mesma ressonância didática e o
sobre mitologia, adequando esses recursos às
mesmo valor cultural atribuído aos mitos clás-
aulas de literatura, leitura, sociologia etc. com
sicos, se fossem estudados com a intensidade
extensão ao debate e à produção textual; me-
de sua essência. Pois, pedagogicamente a efici-
todologias simples capazes de tornar o proces-
ência mítica traduz uma compreensão que pode
so de leitura mais criativo e eficiente, em que a
ser um recurso que produza reflexões atenuan-
materialização do pensamento e do imaginário
tes quanto a situações reais de discriminação
conceituariam naturalmente a compreensão do
social, religiosa ou de orientação sexual; já que
mito.
filosoficamente a compreensão mítica possibili-
ta ao aluno quebrar paradigmas pela percepção
de compreender e conhecer a essência da alma
humana, administrar diferenças e convergên-
cias.
As míticas avaliadas apresentam a ex-
plicação da origem, do heroísmo, da proteção, e
religiosidade. É a revelação do mito em seu con-
teúdo. Assim, deveriam ser aproveitadas com
mais ênfase nos espaços de nossas bibliotecas

287
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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19:30 h.

(Footnotes)
1 A letra B significa português brasileiro, a letra F identifica o Estado do Pará, o nú-
mero 5 é o código da zona Urbana Mocajuba e os números pares finais referem-se
sexo masculino e os números impares ao sexo feminino, os numeros 1 e 2 idenficam
o Ensino Fundamental, 3 e 4 Ensino Medio e 5, 6 nível superior de escolaridad

288
289
http://ixcongresso.abralin.com.br

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