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Calvino e seus inimigos: Memória da vida, caráter e princípios do Reformador

Thomas Smyth
Originalmente publicado em inglês sob o título: Calvin and His Enemies, Thomas Smyth, D.
D.
© Rev. Thomas Smyth, D. D.
© Books For The Ages, AGES Software, Albany, OR USA
CD-Room, Version 1.0, 1998.
Editora CLIRE/Os Puritanos

1.a edição digital — setembro de 2017


Tradução: Valter Graciano Martins
Designer: Heraldo Almeida
Gravura da capa: Karla Araújo
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios sem
permissão por escrito dos editores, salvo em breves citações, com indicação de fonte.
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CALVINO E SEUS INIMIGOS
Memória da vida, caráter e princípios do reformador
Thomas Smyth D.D.
Quid enim tota ejus vita nisi tempestas veluti quaedam perpetua
fuit? — Morus
Tradução
Valter Graciano Martins
S U M Á R IO

Capa
Créditos
— Palavra de apreço do tradutor
— Prefácio
Capítulo 1 — Observações introdutórias
Capítulo 2 — Calvino foi um dos mais eminentes de todos os reformadores,
notável por sua coragem
Capítulo 3 — O gênio e obras de Calvino
Capítulo 4 — Calvino defendido da acusação de ambição. demonstram-se sua
verdadeira grandeza e maravilhosa influência
Capítulo 5 — Calvino defendido da acusação de mesquinhez, intolerância e
perseguição
Capítulo 6 — Calvino defendido da acusação de falta de afeto e amizade naturais
Capítulo 7 — Ilustradas as obrigações de que somos devedores para com Calvino
como cidadãos e cristãosamericanos
Capítulo 8 — As cenas finais da vida de Calvino
Capítulo 9 — Defesa suplementar ordenação de Calvino
Apêndice 1 — O caso de Serveto
Apêndice 2 — A vontade de joão Calvino
Apêndice 3 — Origem da calúnia de que Calvino pretendera anular o dia do
senhor
Apêndice 4 — A esposa de Calvino
Mídias
Nossos livros
PA L AV R A D E A P R E Ç O D O T R A D U T O R

E ste pequeno e precioso livro se encontra no CDroom1 que


contém a maior parte das obras do Reformador. Por ser
pequeno e de beleza rara, diferente da maioria dos tratados sobre
ele vertidos para nosso vernáculo, decidi traduzi-lo e doá-lo, com
profunda emoção, a todos os cristãos estudiosos do Brasil e dos
países de fala portuguesa, uma vez que já é do domínio público, a
fim de que seja lido e relido por todos quantos desejam conhecer o
verdadeiro retrato do grande Reformador não só genebrino, mas,
sobretudo, universal, neste ano da Reforma Protestante.
Sentindo-me um homem destituído de qualquer chance de
articular o discurso verbal nas escolas teológicas e do púlpito das
igrejas, e não querendo terminar meus dias no ócio (assim aprendi
com João Calvino), resolvi articular o discurso das letras na forma da
mais excelente literatura teológica. Possuo ainda uma estrutura física
em boa forma, embora já com 78 anos de idade, porém bem sei que
minha reta final já começou, porém não sei quando terminará. Assim
como Calvino viveu toda sua vida terrena, ainda que bem mais curta
que a minha, doando à Igreja de nosso Senhor obras imortais de sua
lavra, também tenho usado meus dias finais escrevendo meus
próprios livros e traduzindo suas obras e, agora, vertendo uma mui
preciosa e pequena análise da vida e obra do Reformador para que
seja de valor perene aos ministros do evangelho, aos oficiais das
igrejas e aos leigos estudiosos. Que o Brasil, que viveu por séculos
ensinando ou aprendendo uma abjeta caricatura dos Reformadores
para manter o povo brasileiro não só em densa escuridão pela
mentira, mas, sobretudo, descaracterizando de uma forma diabólica
aqueles santos varões que deram suas vidas à Igreja de Jesus
Cristo, sim, que o Brasil aprenda a não mais difamar e caluniar os
verdadeiros santos de Deus. Por isso e ainda mais deixo este livro
aberto a todos que queiram conhecer a verdadeira imagem de um
dos mais sábios e poderosos servos de nosso Senhor Jesus Cristo
depois dos Apóstolos — João Calvino.

O menor dentre os servos de Jesus Cristo,


Goiânia, junho de 2017
— Valter Graciano Martins

1 Books For The Ages — AGES Software , Albany, OR USA — Version 1.0 ©
1998.
P R E F Á C IO

O fato de João Calvino ser guiado, pela graça de Deus, a abraçar e


a defender todos os princípios essenciais da doutrina e da política,
os quais distinguem o sistema do presbiterianismo, tem-no exposto a
incessante calúnia de todos para os quais esse sistema é
insustentável. Romanistas, prelazias e equivocados de todos os tipos
têm variado entre si em seus esforços de denegrir seu caráter e
empobrecer sua fama. A defesa de Calvino contra estas
deturpações se faz necessária para a glória daquele Deus que o
chamara por sua rica graça; para a honra daquela verdade por cuja
causa Calvino viveu e morreu; e para a manutenção daquela igreja à
qual ele aderiu e a qual está edificada sobre o fundamento lançado
pelos apóstolos e profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a principal
pedra angular. E esta defesa é de certa maneira o privilégio e dever
dos presbiterianos com quem em geral Calvino tem sido assim
identificado.
Acionado por esses conceitos, o corpo docente do Seminário
Teológico de Princeton designou o autor para enunciar um discurso
em defesa da vida e caráter de Calvino, em sua reunião de
aniversário em maio de 1843. A substância desta pequena obra foi
concordemente enunciada na Filadélfia, na Segunda Igreja
Presbiteriana, durante as sessões da Assembleia Geral. A pedido do
corpo docente, esta pequena obra foi publicada em alguns de nossos
periódicos religiosos; e agora é preparada, cedendo ao desejo da
Junta de Publicação da Igreja Presbiteriana, para fazer parte de
seus volumes.
Para que os membros de nossa amada Igreja sejam levados a
estimar e valorizar ainda mais o caráter e realizações de Calvino;
para que, assim, sejam estimulados a bendizer a Deus (o qual
levantou Calvino e o qualificou para sua obra) por seus tratos
pretéritos com sua Igreja, enquanto esta humildemente visualiza sua
contínua diretriz e proteção — e para que os habitantes deste país
sejam conduzidos por ela a apreciar mais profundamente a influência
de Calvino e o sistema que ele advogou, assegurando aquelas
bênçãos da liberdade religiosa e civil pelas quais são distinguidos —
é a oração sincera do Autor.
Vid a e Ca r á t e r d e Ca lvino
C AP Í T U L O 1
O B S E R VA Ç Õ E S IN T R O D U T Ó R IA S

O s presbiterianos, isto é, a grande corporação da Igreja


Reformada por todo o mundo, são comumente denominados de
calvinistas; não que sejam seguidores de Calvino, quer em doutrina,
quer em disciplina, visto que as doutrinas e a disciplina endossadas
pelos presbiterianos já existiam antes mesmo de Calvino aparecer no
palco da história, e foram adotadas, e não originadas por ele.
Entretanto, Calvino, sendo o grande teólogo dos Reformadores, de
tal modo defendeu, e claramente expôs, e sistematizou tão
perfeitamente estes princípios, que associou com eles, onde quer
que sejam conhecidos, seu ilustre nome. O termo calvinista foi
empregado pela primeira vez no ano de 1562, em referência aos
padrões dos huguenotes ou igreja reformada francesa, os quais
vicejaram; vindo a ser desde então empregados como característico
de todos os que adotaram princípios doutrinais semelhantes.2 No
entanto, estes princípios não têm sua origem em Calvino, como
também não o tem a Bíblia, pois estes são os mesmos que foram
codificados pelos apóstolos — e os quais foram proclamados em
todas as igrejas apostólicas — os quais foram mantidos pelos
antigos monges, pelos valdenses e pelas corporações puras e
bíblicas — e os quais foram eminentemente defendidos pelo célebre
Agostinho e por outros doutores, em cada período da Igreja.
Como presbiterianos, não adotamos nenhum princípio que não
se encontre na Palavra de Deus. Não reivindicamos antiguidade que
seja menos recente que a organização primitiva da Igreja de Deus
sobre a terra. Em nossa forma cristã, edificamos sobre o único
fundamento lançado em Sião, o fundamento dos apóstolos e
profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a principal pedra angular. A
nenhum homem chamamos Senhor sobre a terra. Não conhecemos a
ninguém segundo a carne. Tampouco denominamos Abraão, ou
Moisés, ou Paulo, ou Agostinho, ou Lutero, ou Calvino como sendo
“nosso Pai”. Nossa sujeição não está no homem, nem usamos o
nome ou a provisão de alguém. Somos cristãos na doutrina, e
presbiterianos na administração, sendo nossa doutrina deduzida das
Escrituras, e sendo o presbitério a única administração conhecida
dos apóstolos, ou das igrejas apostólicas e primitivas de Cristo.
Mas, enquanto afirmamos isso, não presumamos que
denegrimos o nome e o caráter de Calvino, seja para depreciar, por
exemplo, nos envergonhando ou censurando a aplicação do termo
calvinistas. Concordamos com o grande conjunto dos princípios de
Calvino — ainda que de modo algum em todos. Visualizamos com
reverência e elevada estima à vida, caráter e conduta de Calvino. E
enquanto não o inocentamos por seus erros ou suas debilidades,
muito embora se exija de nós que sejamos chamados por algum
cognome humano, possivelmente não há nenhum outro, desde os
dias dos apóstolos, por cujo nome preferimos nós ser assim
chamados.
A reputação e caráter deste eminente Reformador têm
enfrentado a oposição de todo artifício da engenhosidade, sofisma e
malignidade. Têm-se amontoado sobre sua memória as mais abjetas
e as mais vis calúnias. Têm-se inventado as histórias mais
descabidas e improváveis com o fim de denegrir seu caráter e
empobrecer sua eminente fama. Um só evento, distorcido, mal
interpretado, e em todas as circunstâncias imputado como provindo
unicamente dele, embora consumado pelas autoridades civis da
república, e embora em concordância com os sentimentos
estabelecidos da época, tem sido tomado para borrar toda sua vida,
para retratar sua conduta habitual e para cobrir com infâmia o
homem e sua causa.
Ora, nestes mesmos esforços de seus inimigos, em todo o
mundo religioso e intelectual, e em sua natureza, fonte e desígnio
evidente, encontramos um nobre testemunho do gênio, poder e
dignidade de Calvino. Aquele que se opõe aos costumes existentes e
opiniões prevalecentes deveria antecipar a resistência em proporção
ao sucesso com que seus esforços são acompanhados. E enquanto
tal oposição, considerada em si mesma, não prove que esse homem
está certo em seu esquema de reforma, mas somente que seu plano
envolve a subversão das formas estabelecidas, contudo podemos
aprender do caráter dele uma reforma tencionada e, do mesmo, um
ousado reformador, pela mesma natureza dessa oposição que é
gerada para manter contra ele. E se, como no presente caso,
descobrirmos que, a fim de torcer e esmagar a influência desse
homem, seus inimigos forem levados à invenção de artifícios e às
mais grosseiras fabricações, com certeza podemos inferir que seu
caráter pessoal era irrepreensível. De modo semelhante, quando
estes inimigos são levados a responder aos argumentos desse
homem, pelo uso de invectiva e abuso pessoal, podemos assegurar-
nos igualmente que sua causa é a da verdade e retidão, e que a
causa deles é a do erro.
A verdade é forte em sua virtude cônscia e imperecível.
Portanto, ela busca a luz, se abre à investigação e se oferece ao
mais imparcial escrutínio. O erro, ao contrário, não tendo força em si
mesmo, é fraco e covarde. Ele busca o disfarce e a sombra. Ele se
veste das roupagens da ocultação. Ele toma emprestados roupas e
nomes, e se comporta por meio de artifício e traição para cumprir
seus vis desígnios. Portanto, temos em Calvino uma torre edificada
sobre a rocha, pairando sua cabeça majestosa acima das nuvens,
vista de longe e aberta à observação de todos os homens, a qual,
ainda que estrondeiem os dilúvios e os ventos soprem contra ela,
não cede à fúria da tempestade — porque seus fundamentos são
inabaláveis. Visualizamos nos inimigos de Calvino os conspiradores
de sua ruína, os quais, cônscios de sua invencibilidade quando
oposto por qualquer assalto justo ou honroso, cavam um abismo no
seio da terra e ali jazem envoltos em trevas e totalmente sepultados
da vista humana, exercem suas artes nefandas para exaurir e minar,
e por meio de um bem concertado estratagema mergulhar na
destruição uma vítima inocente e insuspeita.
2 Continuação de Milner Scott, p. 472 — A Vida de Calvino de Waterman, p. 210.
C AP Í T U L O 2
C A LV IN O F O I U M D O S M A IS E M IN E N T E S D E
T OD OS OS R EFOR MA D OR ES, N OT Á VEL
POR SU A C OR A GEM

“C alvino”, disse o Bispo Andrews, “foi uma pessoa


eminentíssima, e nunca deve ser mencionado sem um
prefácio da mais elevada honra.” “Vale dizer”, diz seu grande
oponente, Hooker, “que o Mestre das Sentenças viveu na Igreja de
Roma; e que Calvino adquiriu o mesmo ou mais ainda entre os
pregadores das igrejas reformadas. De modo que os doutores que
eram julgados os mais perfeitos, também foram os mais habilidosos
nos escritos de Calvino; seus livros foram quase a própria medida
para julgar tanto a doutrina como a disciplina.” E, reiterando,
concernente aos seus Comentários e suas Institutas, os quais juntos
perfazem oito partes de nove de suas obras, Hooker acrescenta:
“seríamos injuriosos para com a própria virtude, se derrogássemos
daqueles cujo esforço foi gigantesco. Existem aqui duas coisas de
primordial importância, as quais merecidamente lhe têm granjeado
honra através do mundo inteiro: uma, sua excessiva luta para compor
a Instituição da Religião Cristã; a outra, seus esforços não menos
industriosos para a exposição da Santa Escritura, em concordância
com as mesmas Instituições. Nessas duas coisas, não importa quem
labutasse depois dele, ele granjeou a vantagem de sobrepô-los, se
contestados, e de glória acima deles, se consentidos.”
Tal foi a estima com que Calvino foi tido por seus
contemporâneos, tanto pelos continentais como pelos anglicanos.
Para Cranmer e seus associados na Reforma Inglesa, ele era sem
paralelo. Buscavam seu conselho, aprendiam de sua sabedoria,
eram guiados por suas diretrizes e sustentados por suas
consolações. Seu nome se encontra honrosamente arrolado no Livro
de Convocação já no décimo sétimo século, e seu espírito ainda
bafeja através daqueles Artigos que têm preservado o
Protestantismo e a ortodoxia da igreja inglesa.3
Entre os Reformadores continentais, Calvino foi igualmente
preeminente. Gigantes como foram eles no intelecto, no
conhecimento e na bravura, ele se elevou acima de todos eles, como
Saul entre o povo de Israel. Onde todos eram grandes, ele se
mostrou maior. Ainda que naturalmente menos ousado que Lutero,
contudo foi dotado da capacidade de manifestar bravura sobre-
humana; no entanto, mesmo neste aspecto, ele não foi um zumbido
na retaguarda daqueles nobres companheiros da verdade. No dizer
de Bayle, “ele não recuava diante de nada.” Estranhamente sensível
e tímido pela própria constituição, ele se viu, desde seus primeiros
anos, obrigado a curvar-se ante a inflexível regra do dever; e, assim,
se habituou ao autossacrifício. Quando por sua graça Deus o
chamou ao conhecimento da verdade e do poder do evangelho, ele
tomou sua cruz a fim de seguir a Jesus, sofrendo a perda de todas
as coisas e não considerando sua vida como se lhe fosse tão
querida.
A tempestade da perseguição estava então em seu auge. Seus
furiosos raios espalhavam consternação e medo por toda a França.
O Parlamento estava em seu posto de vigia. Os espiões da
Sorbonne e dos monges eram vistos penetrando sorrateiramente nas
igrejas e colégios, e inclusive nos recessos das residências privadas.
Os gens d’armes [mestres das armas] patrulhavam as rodovias em
busca de todos quantos favorecessem a Reforma.4 Foi então que
Calvino se alistou como um bom soldado sob o Capitão da Salvação;
revestiu-se da armadura de Deus e se lançou ousadamente ao lado
do Senhor. Todo o seu curso subsequente prova que, pela graça de
Deus, seu valor chegou às raias da audácia. Com risco da própria
vida, ele se aventurou a voltar a Paris, em 1532, em meio ao afluir da
perseguição com o fim de defender a verdade. Enquanto toda a
cidade de Genebra se encontrava sob o fermento da fúria, ele não
hesitou em não suspender a celebração da comunhão e quando
publicamente barrado de usar o púlpito e de comparecer nele
segundo o costume. Quando estalou a praga e ao redor tudo
arrastava à morte e à destruição, Calvino foi encontrado pronto a
oferecer-se como capelão às suas vítimas infectadas.
Durante suas disputas contra a facção libertina, com frequência
atendia às convocações do senado, quando sua vida estava exposta
a perigo iminente das espadas dos partidos rivais, muitos deles se
mostravam ansiosos por uma oportunidade, de acordo com seu
método sumário de punição, de lançá-lo no Reno. No ano de 1553,
através da influência de Bertelier, o Grande Conselho dos Duzentos
decretou que todos os casos de excomunhão fossem da
competência do senado, de cujo corpo Bertelier obteve duas cartas
de absolvição. Entretanto, a resolução de Calvino foi tomada, e ele
não ficou amedrontado. Primeiramente, ele levou o senado a reunir-
se, apresentou seus pontos de vista e sua determinação, e tudo fez,
porém em vão, para induzi-los a revogar sua indulgência concedida a
Bertelier, recebendo como resposta que “o senado nada mudou em
sua decisão anterior”.
No entanto, depois de pregar na manhã dominical antes da
ministração da Ceia do Senhor, em tom solene, e com mãos
erguidas, ele pronunciou severas denúncias contra os profanadores
dos santos mistérios: “e de minha parte”, disse ele, “segundo o
exemplo de Crisóstomo, juro que me deixarei matar junto à mesa, do
que permitir que esta mão entregue os sacros símbolos do corpo e
do sangue do Senhor a condenados desprezadores de Deus”. Isto
foi pronunciado com tal autoridade, e produziu tal efeito, que o
próprio Perrin sussurrou imediatamente a Bertelier que não se
apresentasse como comungante. Consequentemente, ele se
esquivou; e a sacra ordenança, diz Beza, “foi celebrada com
profundo silêncio e sob uma solene reverência da parte de todos os
presentes, como se a própria Deidade fosse visível entre eles”.
Mas houve outra cena que ocorreu em meio àqueles facciosos
tumultos pelos quais Calvino era continuamente perturbado e os
quais merecem ser imortalizados. Perrin e outros, sendo censurados
pelo Consistório, e não conseguindo obter alívio da parte do Senado,
apelaram para o Conselho dos Duzentos. Desordem, violência e
sedição reinaram por toda a cidade. No dia anterior à Assembleia,
Calvino comunicou aos seus irmãos que ele ficou sabendo do
tumulto, e que sua intenção era estar presente. Em consequência,
ele e seus colegas adentraram a sala do Conselho, aonde chegaram
sem ser notados. Um pouco antes, eles ouviram clamores confusos e
aos gritos, os quais iam aumentando paulatinamente. A multidão se
agitava para cá e para lá com toda a violência de um borrascoso
oceano, impacientada com fúria ingovernável e já pronta a esmagar
suas vítimas com destruição.
Entretanto, Calvino, como César, lançou-se sozinho e
desprotegido no meio da multidão sediciosa. Esta se deteve atônita
ante sua destemida presença. Seus amigos se perfilaram em torno
dele. Elevando sua voz, ele lhes informou que veio apresentar seu
corpo às suas espadas; e, caso fosse necessário derramamento de
sangue, ele oferecia o seu [corpo] como o primeiro sacrifício.
Lançando-se entre os partidos que já estavam a ponto de
desembainhar suas espadas em matança mútua, ele conseguiu ser
ouvido; falou-lhes num longo e ardente discurso; e assim,
completamente subjugados seus maus propósitos, restaurou-se
imediatamente a paz, a ordem e a tranquilidade.
Pela graça de Deus, esse era o fraco, tímido e esquivo Calvino.
Firme como os montes de seu país, ele se punha imóvel por entre as
tormentas que estalavam em torno dele. Elevava sua alma indômita,
acima daqueles nevoeiros que, para todos os demais, ocultavam o
futuro com terrificante escuridão; e, exercendo uma poderosa fé nas
promessas de Deus, podia contemplar ao longe os triunfos da causa.
Como os doze apóstolos, quando entregues a si mesmos, fugiram
como ovelhas amedrontadas com a aproximação do perigo, quando
revestidos com o poder do alto se tornaram ousados como leões,
assim o perfeito amor pela verdade e a causa de Cristo expulsaram
todo o medo do coração de Calvino. Portanto, inclusive em questão
de coragem, ele não foi inferior aos principais Reformadores. Mas,
em erudição, em são e correto juízo, em prudência e moderação; em
sagacidade e penetração; em sistema e ordem; no cultivo e
refinamento de conduta; na profundidade e poder de seu intelecto,
Calvino resplandeceu em meio à esplêndida galáxia dos eminentes
Reformadores, como uma estrela de primeira magnitude e mais
intenso fulgor.
Esse foi o homem cuja vida e caráter eu agora apresento.

3 London Christian Observer, 1808, pp. 143, 144.


4 Veja History of the Reformation, volume 3, p. 643 de D’Aubigne.
C AP Í T U L O 3
O G Ê N IO E O B R A S D E C A LV IN O

N a primeira fase de sua juventude, Calvino manifestou aquele


gênio e eloquência que o caracterizava como homem. A mesma
intensidade de vontade, a mesma rapidez de pensamento, a mesma
retenção da memória, a mesma abrangência do juízo, o que o
capacitou a desempenhar os inconcebíveis labores de seus anos
mais maduros, deram-lhe uma fácil vitória sobre todos os seus
competidores em sua fama colegial, de modo que se tornou
necessário afastá-lo das classes ordinárias e introduzi-lo
singularmente nas marchas mais elevadas da erudição. Em seu
vigésimo terceiro ano, ele publicou um comentário sobre o Tratado
de Sêneca, De Clementia, saturado de erudição e eloquência. Em
seu vigésimo quarto ano, nós o encontramos em Paris, preparando
discursos a serem enunciados pelo reitor da universidade, e homílias
a serem recitadas às pessoas de sua clerezia adjacente. Durante o
ano seguinte, ele deu ao mundo sua obra sobre o sono da alma após
a morte, na qual ele manifesta uma íntima familiaridade com as
Escrituras e com as obras dos primeiros Pais [da Igreja].
Assim, na manhã de sua vida, antes que outros acordassem dos
sonhos da meninice, ou compreendessem as responsabilidades da
vida mais madura, ele foi pronunciado por Scaliger, que era avesso a
render louvor a alguém, como sendo o homem mais culto da Europa.
Em seu vigésimo sexto ano, ele estava sozinho quando publicou a
primeira edição das Institutas da Religião Cristã, com um prefácio ao
perseguidor Rei da França, obra que sempre foi tida como uma
produção sem rival por sua pureza clássica, força de argumento e
eloquência persuasiva. Designada como uma defesa dos caluniados
Reformadores, e uma exposição da vil injustiça, tirania e corrupção
de seus perseguidores, esta obra veio a ser o baluarte da Reforma e
a torre forte de seus adeptos. Ela veio a ser a Confissão de Fé de
uma grande porção do mundo protestante e o livro-texto de todo
estudante. Foi recomendada por uma convocação realizada em
Oxford para o estudo geral da nação inglesa e por muito tempo
continuou sendo a obra-padrão de teologia nas universidades
inglesas. O papa fez dela uma de suas estigmatizantes acusações
contra a Rainha Elizabete de que os ímpios mistérios e institutas,
segundo Calvino, são recebidos e observados por ela e inclusive
impôs a todos os seus súditos para serem obedecidos.5
De acordo com Schultingius, o inglês deu a estas Institutas
preferência à Bíblia. “Os bispos”, diz ele,6 “ordenaram a todos os
ministros que as aprendessem quase palavra por palavra; que
fossem mantidas em todas as igrejas para uso público.” Ele nos
informa ainda que fossem estudadas em ambas as universidades;
que estas Institutas fossem publicamente ensinadas pelos
professores em Heidelberg, Genebra, Lausane e em todas as
universidades calvinistas; que os ministros holandeses, os civis e o
povo comum, inclusive o cocheiro e o marinheiro estudassem esta
obra com grande diligência; que, estimando-a como uma pérola de
grande valor, que a encadernassem e a dourassem da mais elegante
maneira; e que a ela se apelasse como padrão em todas as
questões teológicas. De acordo com este escritor, e o cardeal núncio
do papa, estas Institutas eram consideradas mais perigosas à causa
do papado do que todos os demais escritos dos Reformadores.
Na qualidade de autor, a fama de Calvino continuará brilhando
mais e mais. Em seus dias, a língua latina era o idioma dos eruditos
e dos livros. Mas, “que latim?”, pergunta Monsieur Villers. “Um jargão
contendo todos os vícios de onze séculos de corrupção e mau
gosto.”7 E, no entanto, os enciclopedistas franceses testificam que
“Calvino escreveu em latim o quanto é possível num idioma morto”;8
e um episcopal de Oxford, em 1839, disse que “pela majestade,
quando o tema o requer, pela pureza e, em suma, toda a qualidade
de um estilo perfeito, ele nada perderia mediante uma comparação
com o de César, Livy ou Tacitus”.9
Da mesma forma, os idiomas modernos estavam naquele tempo
no mesmo estado rude e sem cultivo, em que estiveram imersos pela
longa falta de uso. Ora, o que Lutero fez pelo alemão, Calvino
realizou pelo idioma francês; ele o emancipou, o renovou, mais ainda,
ele o criou. O francês de Calvino se tornou, eventualmente, o francês
da França Protestante, e ainda é pelos críticos mais habilidosos
admirado por sua pureza.10
Já falamos de suas Institutas — “a obra literária mais notável a
que a Reforma deu origem.” Não menos valorizado foi seu
Catecismo, ora tão negligenciado e sem ser estudado. Ele o publicou
em francês e latim. Logo foi traduzido para as línguas alemã, inglesa,
holandesa, escocesa, espanhola, grega e hebraica, e veio a ser um
dos padrões da Igreja da Escócia, a base do primeiro catecismo da
Igreja da Inglaterra e o modelo do catecismo publicado pelos
Doutores da Assembleia de Westminster.11
O julgamento feito por seu grande oponente, Armínio, sobre os
méritos de Calvino como comentarista, foi sustentado pelo veredicto
de três séculos e sua presente reputação em curso. Diz Armínio:
“Depois das Sagradas Escrituras, exorto aos estudantes que leiam
os comentários de Calvino, pois lhes afirmo que ele é incomparável
na interpretação da Escritura, e que seus comentários devem ser
tidos em maior estima do que tudo o que nos é entregue nos escritos
dos antigos Pais Cristãos, de modo que, num seguro e eminente
espírito de profecia, eu lhe atribuo a preeminência além dos demais;
aliás, além de todos eles.”12
Mas os labores de Calvino foram tão múltiplos e árduos quanto
maravilhosos foram seus empreendimentos. A edição genebrina de
suas obras equivale a doze volumes fólios. Além destes, existem em
Genebra dois mil de seus sermões e preleções, extraídos de sua
boca, exatamente como os enunciou. Ao todo, ele exerceu apenas
vinte e oito de ministério. Foi sempre pobre; tanto que nem mesmo
pôde adquirir muitos livros. Os sofrimentos de seu corpo, desde dor
de cabeça, fraqueza e outras queixas eram constantes e intensos,
de modo que se via obrigado a reclinar-se em sua cama uma parte
de cada dia. Foram os únicos remanescentes de seu tempo legados
pela pregação e correspondências à medida que ele se devotava a
estudar e a escrever. E, no entanto, a cada ano de sua vida foram se
tornando crônicas em razão de suas várias obras. Em meio às
convulsões e interrupções de todo tipo, ele prosseguia com seus
comentários sobre a Bíblia, como se estivesse assentado na mais
perfeita calma e imperturbado repouso. Na verdade, seus labores
eram incríveis e além de toda comparação. Ele não se permitia
recreação de qualquer tipo. No dizer de Beza, ele pregava e escrevia
com dores de cabeça que teriam confinado qualquer outra pessoa ao
leito.
Calvino era membro do Supremo Concílio de Genebra e tomava
grande parte nas deliberações, como político e legislador. Corrigiu o
código civil de seu país adotivo. Ele se correspondeu com os
protestantes de toda a Europa, tanto em assuntos religiosos como
em atividades de Estado; pois todos se valiam de sua experiência
em questões difíceis; escrevia inumeráveis cartas de encorajamento
e consolação aos que eram perseguidos, aprisionados, condenados
à morte por causa do evangelho. Ele era um pregador persistente,
enunciando discursos públicos todos os dias da semana, e aos
domingos pregava duas vezes. Era Professor de Teologia e
enunciava três preleções por semana. Era o Presidente do
Consistório e formulava protestos ou outras sentenças eclesiásticas
contra membros delinquentes da igreja. Era o líder dos pastores; e a
cada sexta-feira, numa assembleia denominada de Congregação, ele
pronunciava diante deles um longo discurso sobre os deveres do
ministério evangélico; sua porta estava constantemente aberta a
refugiados franceses, ingleses, poloneses, alemães e italianos que
afluíam para Genebra, e ele organizou paróquias especiais para
esses exilados protestantes.
Sua correspondência, comentários e escritos polêmicos etc.
formariam anualmente, durante o período de trinta e um anos, entre
dois e três volumes; e nem ainda chegou a atingir cinquenta e cinco
anos de idade. Quando, motivado por doença, desistiu de pregar,
passou a ditar um sem número de cartas, e revisou pela última vez
suas Institutas Cristãs, quase reescreveu seu Comentário sobre
Isaías, observando frequentemente que “nada lhe era tão doloroso
como a ociosidade de sua vida atual”. E, quando instado por seus
amigos que se controlasse, ele replicava: “Porventura quereis que
meu Senhor me encontre ocioso quando vier?” “Oh! poder da fé
cristã e da vontade humana! Calvino fazia todas estas coisas — fazia
mais do que vinte doutores eminentes; além do mais, tinha uma
saúde muito débil, um corpo frágil e morreu com a idade de
cinquenta e cinco anos! Curvamo-nos reverentemente diante desta
incomparável atividade, desta devoção sem paralelo que Calvino
rendeu ao serviço de seu Divino Mestre!”

5 História da Reforma de Burnet, volume 2, p. 347.


6 Vida de Waterman, p. 137.
7 Ensaio de Viller sobre a Reforma, p. 138.
8 Artigo, Genebra.
9 Prefácio ao Comentário de Calvino sobre os Salmos, vol. 1, p. 18.
10 D’Aubigne, 3, 639, 641. French Encyclop. Como supra, Taylor’s Biogr. Of the
age of Elizabeth, p. 17.
11 Waterman, 35. Waterman’s edition of it, Hartford, 1815. Irving’s Confessions of
Fath, Appendix, and Pref. P. 124, and Neal’s Puritans, 1. 224.
12 Em Scott, 497. Veja o julgamento similar de Scaliger in Bayle, 265, e Beza, 120,
204.
C AP Í T U L O 4
C A LV IN O D E F E N D ID O D A A C U S A Ç Ã O D E
A M B IÇ Ã O . D E M O N S T R A M - S E S U A
V E R D A D E IR A G R A N D E ZA E M A R AV IL H O S A
IN F L U Ê N C IA

A quinhoado com tais poderes mentais, e provisionado com tais


tesouros de conhecimento, quem poderia questionar a
sinceridade da adesão de Calvino aos princípios da Reforma?
Entretanto, ele tem sido acusado de acalentar motivos ambiciosos e
de aspirar a um novo papado. Despudorada calúnia! Com a senda
aberta para a honra, emolumento e fama, acaso ele não escolheu,
como fez Moisés, “antes sofrer por certo tempo com o povo de Deus
do que desfrutar os prazeres do pecado”? Acaso ele não resignou os
benefícios que possuía e que, por uma conduta secreta, ele podia
ter retido ainda, e lançou sua sorte, pobre e indefeso, com os
peregrinos sem teto, contra os quais por toda parte se dizia que
eram indignos de viver? Acaso não se propôs a gastar seu tempo em
retiro, a ponto de julgar-se indigno de tomar parte da nobre porfia?
Acaso não foi guiado a visitar Genebra pela invisível mão de Deus, a
qual havia obstruído sua rota por Dauphiny e Savoy, rumo a Basle ou
Strasburg, para onde ele pretendia retirar-se? Acaso não foi depois
de muitas recusas e a mais extrema urgência que consentiu
permanecer naquela cidade? E quando designado pelo Consistório e
magistrados Professor de Divindade, acaso ele não declinou
energicamente ao ofício de pastor, para o qual insistiram ainda que o
exercesse? Quando banido daquele lugar, acaso ele não buscou
novamente retiro e com manifesta relutância foi que assumiu os
deveres de professor e de pastor, os quais Bucer, Capito, Hedio e o
Senado de Strasburg lhe conferiram? E quando toda a cidade de
Genebra rogou que voltasse para seu meio, acaso ele não disse que
“quanto mais avançava, mais sensível se tornava ante o árduo
encargo de governar uma igreja, e que não havia lugar sob o céu que
mais temia do que Genebra”? Quanto ele louvava e exaltava a
Melancthon e a Lutero!13 Quanto ele suportou a oposição deles aos
seus pontos de vista, e o silêncio deles, quando ele lhes escrevia em
busca de sua amizade! Quando teve êxito na fundação do Colégio de
Genebra, acaso não preferiu Beza para a presidência, e ele mesmo
veio a ser professor sob sua liderança?14 Acaso ele, em 1553, numa
carta dirigida ao ministro de Zurique, não denominou Farel “o pai dos
desempregados de Genebra e o pai daquela igreja”? Ambicioso! No
dizer de Beza, “a mais extraordinária acusação a ser lançada contra
um homem que escolheu seu tipo de vida, e neste estado, nesta
igreja, a que eu realmente denominaria a própria sede da pobreza”.
Não! O amor pela verdade e pela causa de Cristo eram a paixão
máxima de sua alma. Ele só realizou o que milhões professam e
consideram com o apóstolo que, se Cristo morreu por todos, então
todos estavam mortos, e que, assim, ele morreu para que os que
foram vivificados por seu Espírito doravante já não vivam para si
mesmos, ele consagrou a Deus seu corpo, alma e espírito. Então
afirma: “Quando me lembro de que não me pertenço, nem vivo à
minha própria disposição, entrego-me manietado e preso, como
sacrifício a Deus.” Portanto, quando ele foi expulso de Genebra por
uma facção cega, por entre as lamentações de todo o seu rebanho,
ele pôde dizer: “Se eu estivesse a serviço dos homens, esta teria
sido uma paupérrima recompensa; mas, tudo bem, eu tenho servido
Àquele que nunca deixa de retribuir a seus servos com tudo quanto
ele prometeu.”
Quando o povo de Strasburg consentiu por certo tempo ceder
seu serviço ao povo de Genebra, insistiram que ele retivesse os
privilégios de cidadania e a remuneração que lhe haviam designado
enquanto residente entre eles. Acaso foi a ambição que levou Calvino
a resolutamente declinar a generosa oferta? Acaso foi a ambição
que o levou a estabelecer-se em Genebra, onde sua remuneração,
que era de cem coroas anuais, que parcamente sustentava sua
existência, e a qual, não obstante, pertinazmente recusou que fosse
aumentada? Acaso ele não se absteve durante anos de todo
alimento de carne no jantar, raramente comendo alguma coisa após
o desjejum até sua hora estipulada para a ceia — e acaso todo o
equivalente de sua restante propriedade, incluindo sua biblioteca,
cujo preço mais elevado foi menos de cem coroas? Que o pagão
Bayle, que foi tomado de espanto por estes fatos, faça calar a
ignorância dos homens néscios!15
A acusação de ambição está fundada na natural e inigualável
grandeza de Calvino. Exilado de seu país, sem dinheiro, sem amigos,
ele se ergueu, por mérito próprio, ao domínio sobre a mente dos
homens. Seu trono estava no coração dos que o conheciam; seu
cetro, a verdade; suas leis, a silenciosa influência de princípio.
Levemos em conta as dificuldades que ele encontrou em Genebra.
Quando chegou naquele lugar, em 1536, a cidade não tinha
organização religiosa nem política. Calvino empreendeu a tarefa de
fornecer as duas.16 Mas, a fim de fazer isso, antes de tudo ele teve
que limpar a imundícia, pois a desmoralizada condição de Genebra
bem que podia ser comparada a isto.
O longo reinado da ignorância e superstição, a extrema
corrupção do clero romanista, o relaxo dos consequentes costumes
sobre os feudos domésticos e guerra franca, a licenciosidade, a
anarquia e insubordinação resultante dos primeiros excessos da
liberdade irrestrita, as desordens ocasionadas pelo espírito
partidário e pelos demagogos facciosos e a secreta adesão de
muitos ao descartado sistema do papado — estas eram causas
suficientes para conduzir à dissolução sem paralelo de uma cidade,
onde grandes números de má fama eram reconhecidos e licenciados
pelos magistrados, com um clero feminino superior que portava o
nome de Reine Du Bordel. Calvino provou ser não apenas um teólogo
da mais elevada ordem, mas também um político de surpreendente
sagacidade. Os costumes se tornaram puros. As leis do estado
foram revisadas e totalmente transformadas. Os tribunais
eclesiásticos vieram a ser independentes do civil, e foi estabelecido
um sistema da mais estrita disciplina. A seita dos Libertinos foi
subjugada. As facções mais poderosas foram dispersas. Os inimigos
da verdade e da pureza, ainda que algumas vezes triunfantes, e
sempre violentos, tiveram que lamber o pó, de modo que a
perversidade dos ímpios foi exterminada e a justiça prevaleceu.
Os efeitos da influência de Calvino, afirma um historiador
recente e preconceituoso, “após o transcurso dos tempos, ainda são
visíveis na indústria e no caráter intelectual de Genebra”.17 De uma
cidade pequena e sem importância, Genebra se tornou o foco de luz,
o centro de atração e a fonte de incalculável influência sobre os
destinos da Europa e do mundo. O seminário de Calvino forneceu
professores e ministros à maioria dos estados reformados da
Europa. Genebra foi honrada com o título de mãe do protestantismo.
Com dificuldade se podiam achar alojamentos para a multidão de
estudantes que vinham assentar-se aos pés do homem a quem
Melancthon denominou “o doutor”. Foi para esta “metrópole do
presbiterianismo” que todos os exilados proscritos que eram
expulsos de outros países pela intolerância do papado, “se viram
intoxicados com presbitério e republicanismo”, levando de volta com
eles aquelas sementes que passaram a germinar na república da
Holanda, na comunidade da Inglaterra, na gloriosa revolução de 1688
e em nossa própria confederação americana.
Você veria o espantoso poder e influência de Calvino lendo a
história de seu triunfo sobre Bolsec, uma daquelas hidras de facção
que, com sucesso, projetou suas revegetativas cabeças em
Genebra.18 Eis Troillet, outro de seus inimigos, quando próximo à
morte, é enviado a Calvino com o fim de confessar suas culpas,
declara que ele não podia morrer em paz sem obter seu perdão. Ei-
lo em Berne, debatendo contra Castélio e outros com tal poder que
seus oponentes foram doravante excluídos daquele Cantão. Assim,
como outro Hércules, armado com a simples clava da santa Palavra
de Deus, destruiu os numerosos monstros que ameaçavam arruinar a
verdade tal como é em Jesus.
Quão maravilhosa foi a influência, sob o comando de Deus,
deste homem singular! As igrejas reformadas da França adotaram
sua confissão de fé e foram modeladas de acordo com a ordem
eclesiástica de Genebra. É a ele que a Inglaterra deve por seus
artigos, por uma liturgia purificada e por toda sua salmodia.19 É a ele
que a Escócia deve seu Knox, seu Buchanan e seu Melville, seu
sistema eclesiástico e tudo o que a fez grandiosamente eminente
entre as nações da terra. É a ele que a Irlanda do norte é devedora
pela indústria, pelas manufaturas, pela educação, pela religião e pelo
nobre espírito de independência e liberdade que ela recebeu de seus
primeiros colonizadores, que eram seguidores de Calvino.20 Às suas
cartas, dedicações e exortações, toda nação de qualquer eminência
em seus dias, costumavam prestar profundo respeito. Estes escritos
tiveram uma influência salutar até mesmo sobre a igreja romana. Seu
pudor foi excitado, os abusos foram abandonados, a disciplina
forçada e confessada a necessidade de reforma.
Tampouco esta influência foi meramente eclesiástica ou política.
Somos informados que o crescimento de sua própria igreja foi
prodigioso, e assim ele podia dizer, mesmo durante sua vida: “Tenho
inumeráveis filhos espirituais por todo o mundo.” Sua reputação
contemporânea era ainda maior que sua fama póstuma, porque
todos os partidos se uniram para render-lhe honra. No dizer de
Bayle, muitos romanistas “lhe fariam justiça, se quisessem”. No dizer
de Scaliger, ele foi “o maior gênio que o mundo já viu desde os
apóstolos”; enquanto o bispo romanista de Valença o denominou de
“o maior doutor do mundo”.21 Os romanistas têm sido também
forçados a reconhecer a falsidade de suas infames calúnias
publicadas contra seus costumes.22 Tal foi o terror que ele inspirou
nesta grande entidade apóstata, que, quando circulou uma falsa
notícia de sua morte, ela decretou uma procissão pública e rendeu
graças a Deus, em suas igrejas, por sua morte.23
Cada reformador pio, eminente e erudito era amigo dele. Foi o
poder de sua reputação, proclamando por toda parte a própria
condenação deles, que levou a Assembleia Geral de Genebra a
adotar um decreto para seu regresso — reconhecendo a grande
injúria que lhe fizeram e implorando o perdão do Deus Altíssimo —
de enviar-lhe uma honrosa delegação a fim de persuadi-lo a aceitar
seu convite — de enviar-lhe tropas a receberem seu regresso — e
conceder-lhe uma secretaria a expensas públicas. Em suma, não
seria uma questão difícil, como se tem dito, provar que não há um
caso paralelo em registro, de algum único indivíduo ser igualmente e
tão inequivocamente venerado, pela união da sabedoria e piedade,
ambas na Inglaterra, e por uma grande corporação das igrejas
estrangeiras, como o foi João Calvino.
A plena extensão a que a influência viva de Calvino se estendeu,
somente agora se demonstra plenamente. “Poucos dias antes de
expirar”, em 1564, Calvino entrou em sua biblioteca com Theodore
de Beza e, mostrando-lhe a imensa correspondência que havia
cumulado, por mais de um quarto de século, com a maioria de
cristãos evangélicos e com os mais nobres personagens da Europa,
propôs-lhe publicá-la para a instrução da Igreja. Este desejo do
Reformador moribundo foi apenas concretizado tardia e parcialmente
no século dezesseis; mas um literato e cristão de nossos dias, Mr.
Jules Bonnet Docteur es Lettres, empreendeu, após o lapso de três
séculos, cumprir o desejo de Calvino; e gastou cinco anos viajando
pela Suíça, França e Alemanha, com cuidadosos estudos e
pesquisas nas bibliotecas destes diferentes países, com isso
capacitando-o a formar uma coleção que lançará nova luz na história
da Reforma. Esta correspondência, que só termina no leito mortuário
de Calvino, abarca todo o período de sua vida e contém, ao mesmo
tempo, as familiares efusões de amizade, sérias afirmações
teológicas e elevados conceitos das políticas do protestantismo.
Vemos nela o Reformador reprovando, com todo respeito e
dignidade, a Rainha de Navarra, Margarida de Valois, irmã de
Francisco I, exortando o jovem Rei da Inglaterra, Eduardo VI, como
um mentor cristão falando ao seu Telemachus, conversando com
Melancthon, Bullinger, Knox, Conde, Coligny, a Duquesa de Ferrara,
filha de Louis XII, Jeanne d’Albret, mãe de Henrique IV; vemo-lo
resistindo libertinos, fortalecendo mártires e apoiando todas as
igrejas.
“Esta importante publicação aparece24 como um notável evento
na história da Igreja e da teologia. Como documentos, estas cartas
compelirão as odiosas calúnias que têm circulado a produzir um
imparcial testemunho da verdade. Aprenderemos da própria boca de
Calvino quais foram seus pensamentos, desejos e buscas, e
descobriremos em seus próprios escritos mais familiares o segredo
da revolução da qual ele foi, neste mundo, o instrumento.
Certamente, Lutero é o primeiro Reformador; mas, se Lutero lançou
o fundamento, Calvino edificou sobre ele. Se, de um lado,
consideramos a Reforma Luterana imperfeita em alguns aspectos, e,
do outro, a calvinista também imperfeita, concordo com isto; porém
poderosa, mais completa, mais bem organizada e saturada de ação.
Se comparamos a nação luterana da Alemanha, rica em inteligência,
em zelo missionário, mas que ainda está longe de compreender e
praticar algumas questões, em particular a da liberdade religiosa,
com as nações que têm principalmente recebido a influência de
Calvino — Holanda, Escócia, Inglaterra, Estados Unidos — estes
povos livres, alguns dos quais estendem seus cetros para além de
todos os oceanos, e às próprias extremidades do mundo, é
impossível não perceber que Lutero e Calvino são os homens mais
eminentes dos tempos modernos; os cristãos mais proeminentes
desde o apóstolo Paulo; ao menos, se considerarmos sua influência
sobre a mente humana. Como, pois, deixaríamos de estudar as
cartas familiares de Calvino, aquele instrumento mais poderoso nas
mãos do Senhor?”
Esta correspondência já atraiu a atenção de homens eminentes.
Em particular, o Journal des Debats de Paris tem devotado um
interessante artigo ao tema, do qual citamos as seguintes linhas:
“Coloquemos diante de nossa mente o estado de excitamento
em que o ardente discípulo da Reforma (Calvino) teria vivido, quando
de Paris, de Lyons, de Chambery, recebia notícias das torturas
suportadas por seus correligionários. A história não tem insistido
suficientemente sobre a atrocidade destas perseguições, nem sobre
a resignação, o coração, a serenidade dos sofredores. Ali há
páginas dignas dos primeiros séculos da Igreja; e não tenho dúvida
de que uma história simples, composta a partir dos documentos e da
correspondência dos tempos destas lutas sublimes, se igualaria em
beleza à antiga martirologia. A voz de Calvino, nesses momentos de
provação, atinge uma plenitude e elevação verdadeiramente
maravilhosas. Suas cartas aos mártires de Lyons, de Chambery, aos
prisioneiros de Chatelet, parecem um eco dos dias heroicos do
Cristianismo; páginas dos escritos de Tertuliano e de Cipriano.
Confesso que, se eu fosse introduzido por Mr. Bonnet a esta cena
sanguinária da martirologia, nunca havia entendido a nobreza das
vítimas nem a crueldade de seus executores.”

13 Scott’s Centin, de Milner, vol. 3, 175, 414, 382, 387.


14 Ibid. p. 466.
15 Bayle’s Dict. — art. Calvin. BB e Scott, 489.
16 Dr. Taylor’s Biography of the Age of Elizabeth, vol. 2, p. 24.
17 History of Swetzerland. Londn 1832; p. 227.
18 Scott, ibid. 404 e Waterman, 70. “Aqueles”, diz Rousseau, “que consideram
Calvino como um mero teólogo estão mal familiarizados com a extensão de seu
gênio. A preparação de nossos sábios editos em que ele teve parte relevante o
honra tanto quando suas Institutas. Seja qual for o efeito da Revolução em nosso
culto, enquanto o amor à pátria e à liberdade existirem entre nós, a memória
daquele grande homem jamais cessará de ser bendita.”
19 Sibson, in Beza’s Life, Am. Ed. Pp. 111, 112.
20 Waterman, p. 34. Scott, ibid. 370. Beza’s Life, p. 101.
21 Bayle’s Dict., vol. 2, p. 268; nota 10.
22 Ibid. p. 265 e nota 2.
23 Waterman, p.135.
24 Diz D’Aubigne.
C AP Í T U L O 5
C A LV IN O D E F E N D ID O D A A C U S A Ç Ã O D E
M E S Q U IN H E Z , IN T O L E R Â N C IA E
P E R S E G U IÇ Ã O

M as passaremos a outro ponto de vista do caráter de Calvino.


Uma mente verdadeiramente grande, cônscia de suas próprias
capacidades, e mais plenamente sensível do que outros das
dificuldades adjacentes a cada tema da especulação humana, é
sempre serena e temperada com moderação, igualmente isenta de
fanatismo e indiferença. Portanto, tem-se tentado privar Calvino de
sua glória, pela alegação de que ele era mesquinho, extravagante e
intolerante — um furioso fanático e extremamente radical — e o mais
impiedoso dos perseguidores. Tais acusações, numa época e país
como este, são, sabe-se bem, extremamente ofensivas e as mais
seguras para cobrir de vituperação o homem e a causa com que são
identificados. No entanto, afirmamos que o exato reverso é a
verdade neste caso. Calvino era liberal em seus conceitos,
moderado em seu espírito e tolerante em sua disposição.
Quem suportou maior calúnia, censura e ódio, nas mãos dos
romanistas, do que Calvino? E, no entanto, ele admitiu a validade do
batismo romanista e as reivindicações de Roma ao caráter de uma
igreja, não meramente como a abranger muitos dos filhos eleitos de
Deus, mas como a conter “os remanescentes de uma igreja que
continua com eles”.25 Contra quem Lutero e seus coadjuvantes
pronunciaram a mais severa linguagem do que contra Calvino em
referência à controvérsia sacramentalista? E a quem Calvino mais se
deleitava em honrar do que Lutero? Quanto ele se esforçava em
encobrir os carvões de sua perniciosa discórdia e, se possível, em
apagá-los inteiramente? “Desejo que vós”, diz ele, escrevendo a
Bullinger e aos demais pastores de Zurique, contra os quais Lutero
usara uma inescusável irreflexão de linguagem, censura e anátema,
“Desejo que vós evoqueis estas coisas à vossa mente, quão grande
homem é Lutero e com quantos dons imensos ele excele; também,
com que fortaleza e constância de mente, com que eficácia de
erudição ele até então tem laborado e velado para destruir o reino do
anticristo e propagar, ao mesmo tempo, a doutrina da salvação.
Costumo dizer que, se ele me chamasse de diabo, eu o manteria em
tal honra, que o reconheceria como eminente servo de Deus.” E
acaso todo o mundo protestante, hoje, inclusive a própria Igreja
Luterana, não reconhece que a doutrina de Calvino sobre a Ceia do
Senhor é verdadeira, e católica, e que a de Lutero, certamente, era
extravagante e errônea?
De quantas maneiras ele se empenhou em preservar a paz e a
harmonia das igrejas; a gerar compromisso sobre questões de
ordem e disciplina, a encorajar a submissão às cerimônias e formas
que em si mesmas não passavam de “parvoíces”, em vez de produzir
ruptura e dar ocasião ao inimigo de blasfemar; a prevenir cisma,
desunião e alienação — e a atar com as cordas do amor toda a
irmandade das Igrejas Reformadas! “Conservai vossas diferenças
menores”, diz ele, dirigindo-se às igrejas luteranas, “não causemos
discórdia por essa conta; mas que marchemos em uma sólida
coluna, sob os estandartes do Capitão de nossa salvação, e com
conselhos consistentes ponhamos as legiões da cruz sobre os
territórios das trevas e da morte.” “Eu não hesitaria em atravessar
dez mares, se por este meio a santa comunhão prevalecesse entre
os membros de Cristo.”
Nada pode ser mais liberal do que seus conceitos em relação ao
caráter de outras igrejas. “Portanto, que os ministros”, diz ele,26 “por
meio de quem Deus permite que a Igreja seja governada, sejam o
que forem; se os sinais da verdadeira Igreja forem percebidos, seria
preferível que não se separassem de sua comunhão. Tampouco
constitui uma objeção que algumas doutrinas impuras sejam
ensinadas ali; pois raramente há alguma igreja que nada retenha dos
resquícios da ignorância. É-nos suficiente que a doutrina, sobre a
qual a Igreja de Cristo está fundada, mantenha seu lugar e
influência.” Daí suceder que se tenham feito as mais absurdas
tentativas, mesmo em nossos próprios dias, de representar Cristo
como o amigo e defensor da prelazia, a qual ele gastou sua vida
fazendo-lhe oposição — aquela liberalidade que o dispôs a tolerar,
por certo tempo, as “tolices toleráveis” do ritual da Igreja Inglesa,
sendo interpretadas tão mesquinhamente numa aprovação calorosa
e cordial de suas formas antibíblicas que Calvino tão franca e
constantemente condenava.27
Igualmente liberal e moderado foi Calvino em seus dogmas
doutrinais. Ele conduziu o curso seguro e médio entre antinomianismo
e arminianismo, e entre fatalismo e latitudinarismo. Ninguém nunca foi
tão caluniado. Têm-se feito extratos deturpados para dar expressão
aos pontos de vista que seu próprio contexto se destinava a destruir.
A Calvino se têm atribuído doutrinas que já existiam na igreja desde
os dias dos apóstolos e em toda época. E opiniões errôneas, tanto
doutrinárias como práticas, têm sido atribuídas a ele às quais ele
viveu sua vida fazendo-lhes oposição e das quais não se poderia
achar nenhuma refutação mais triunfante do que a que é dada em
suas próprias obras. Mas, enquanto estas são desconhecidas, nem
em parte alguma são lidas, os fanáticos dentre a juventude e os
néscios dentre os eruditos expõem sua ignomínia, vendendo a varejo
e perpetuando abuso estereotipado. Era suficiente repelir todas
essas incriminações pelo fato, a saber, que para cada doutrina
Calvino apela para a Bíblia — que ele exalta a Bíblia acima de toda a
autoridade humana, inclusive a sua — que ele reivindica para todos
os homens a liberdade de consciência e de julgamento — e que
incumbe todos os homens a que examinem as Escrituras e, assim,
provem suas doutrinas, se de fato elas provêm de Deus.
E como muitos baseiam esta acusação nas doutrinas da
predestinação, decretos e soberania divina, que se tenha em mente
que estas não foram peculiares a Calvino, mas eram comuns a ele,
juntamente com os maiores doutores de todas as épocas e com
todos os Reformadores, ele também era infralapsariano, e não
supralapsariano, ensinando que os decretos de Deus tinham
referência à condição e necessidades previstas do homem, e não
foram as causas deles [os decretos]. Ele não representa Deus como
arbitrário. Ele repudia totalmente o fatalismo e se opõe a ele
constantemente.28 Ele sempre inculca o dever e necessidade de se
usarem os meios; condenando confundir “necessidade com
compulsão” e rejeitando a suposição como absurda, a saber, “é
incompatível que o homem seja impelido por Deus e, ao mesmo
tempo, aja por si mesmo”.29 Ele ensina que os meios de graça, tais
como exortações, preceitos e reprovações, não se confinam aos que
já são piedosos, mas são meios de Deus para despertar o incauto,
converter o pecador e deixar o impenitente sem justificativa.
Portanto, ele ensina que os pecadores têm de ser constantemente
instados a volverem sua atenção para as ordenanças de Deus e a
serem diligentes e a fazerem uso, no espírito de oração, de todos os
meios pelos quais podem ser convencidos, convertidos e salvos.30
Ele mantém incansavelmente a livre agência e a responsabilidade do
homem.31 Ele rejeita a doutrina da reprovação, como vulgarmente se
crê, uma vez que ele atribua a condenação final dos perversos a eles
mesmos, e não a algum decreto arbitrário de Deus.32
Enquanto Calvino aderiu à grande doutrina fundamental da
imputação e à doutrina da expiação limitada [ou definida], não
obstante rejeitava todos aqueles pontos de vista do sacrifício de
Cristo que o faria sofrer apenas por cada um que haveria de ser
salvo por ele, de modo que, se mais ou menos fosse designado à
salvação, por conseguinte, ele teria derramado mais ou menos gotas
de seu precioso sangue e sofrido mais ou menos as mais severas e
mortais agonias. Calvino, ao contrário, reconheceu na morte de
Cristo um sacrifício adequado aos pecados do mundo inteiro e o qual
fez provisão para todos quantos aprouvessem ao Pai capacitar e
dispor a se valerem dela.33
Portanto, ele proclama plena e frequentemente a universalidade
das promessas evangélicas e o dever de todos de recebê-las e
abraçá-las.34 Enquanto ele ensina que o pecado original é natural, no
entanto nega que ele tenha se originado da natureza. Diz ele:
“Negamos que ele proceda da natureza, no sentido de ser, antes,
uma qualidade ou acidente adventício, em vez de ser uma
propriedade substancial, originalmente inata, contudo o chamamos
natural, a saber, que ninguém pode presumir que ele seja contraído
por cada indivíduo a partir de hábito corrupto, enquanto prevalece
sobre todos por direito hereditário”. “Portanto, não se pode dar
nenhuma outra exposição de todos nós estarmos mortos em Adão,
senão que sua transgressão não só trouxe para si miséria e ruína,
mas também precipitou nossa natureza à destruição similar, e não
por sua culpa pessoal como indivíduo, a qual pertence a todos nós,
mas porque ele infectou todos os seus descendentes com a
corrupção à qual ele havia caído.” E, outra vez, “Nós somos, por
causa desta mesma corrupção, considerados tão réus e justamente
condenados à vista de Deus, para quem nada é aceitável senão a
justiça, a inocência e a pureza. E esta disponibilidade à punição
advém não da delinquência de outro, pois quando se diz que o
pecado de Adão nos torna sujeitos ao juízo divino, não se deve
entender como se nós, ainda que inocentes, fôssemos
merecidamente sobrecarregados com a culpa de seu pecado, mas
porque todos nós estamos sujeitos a uma maldição, em
consequência de sua transgressão, por isso se diz que ele nos
envolveu na culpa. Não obstante, derivamos dele não só a punição,
mas também a poluição à qual se deve justamente a punição.”35
Ele admite que, ainda que decaída, “a alma do homem é
irradiada com o brilho da luz divina, de modo que nunca é totalmente
destituída de alguma pequena chama, ou, ao menos, uma fagulha
dela”; ainda que, “por essa iluminação, ela não possa compreender
Deus”, sendo a imagem remanescente de Deus apenas a ruína da
original, e “confusa, mutilada e conspurcada”.36
Portanto, suas doutrinas, como ele mostra frequentemente,
decepam pelas raízes toda presunção, previne o desespero,
estimula a esperança e, num grau elevado, impõem e fomentam a
santidade de ambos, coração e vida.37 Suas doutrinas fazem ainda
provisão especial para a salvação de todos os filhos eleitos, quer
batizados ou não, quer cristãos ou pagãos; tampouco reprova a ideia
de que todos os filhos, morrendo na infância, possam ser contados
entre os eleitos e, portanto, como certamente salvos.38
Ele aprovou ainda o batismo das criancinhas de todos os pais
batizados, quer comungantes ou não, reconhecendo o direito pactual
de tais crianças ao selo daqueles privilégios aos quais eles tenham
reivindicação natural e necessária.
Eu menciono ainda, como sendo interessante para nossos dias,
que Calvino aprovou uma forma pública para a introdução dos
professos na igreja cristã.39
E, assim, que estes pontos de vista de Calvino sejam
comparados com os de Lutero e Melancthon sobre o tema da
predestinação, ou com os de Beza, próprio coadjutor; ou com os dos
Reformadores ingleses e os artigos de Lambeth; e porventura não se
admitirá, por um juiz imparcial, que os mesmos são liberais,
moderados e sábios? Enquanto estas doutrinas, somente pelas quais
se pode conhecer Calvino, não eram peculiares a ele, é também
verdade que não foram impostas com alguma indevida proeminência,
mas sem subordinação a outros temas.40 E quando a consistência
sem paralelo com que, ao longo de toda sua vida, Calvino continuou
a manter os mesmos conceitos, é contrastada com a variação de
outros, quão eminentemente exibem a superioridade de suas
faculdades intelectuais. Não que ele fosse infalível — longe de tal
coisa! Ele era também humano, falível e suscetível ao erro. Ao fazer
a certeza da salvação necessária a uma fé genuína — ao questionar
a santidade peculiar e permanente do dia sabático — ao pressupor
que Cristo desceu ao inferno, ou suportou na cruz os tormentos do
inferno — nisso certamente Calvino errou, e de modo algum deve ser
crido e seguido.41
Mas continuamos observando que Calvino não foi intolerante no
espírito ou na prática. É verdade que Serveto, em sua acusação,
trouxe sobre si, por sua conduta, a alcunha de ser o pior criminoso e
de manter opiniões horribilíssimas, as quais, em face das leis e de
reiterada admoestação, continuou a propagar com zelo pestilento.
No entanto, negamos positivamente que Calvino, em todo o curso de
sua vida, desse ocasião às acusações de perseguidor intolerante tão
fortemente proclamadas contra si. Afirmar, como fazem muitos, que
ele buscou a queima de Serveto — que influenciou o Senado a
garantir sua morte — que auxiliou ou que instigou sua execução — ou
que não usou seus melhores esforços para conseguir a mitigação de
sua sentença — esta é uma calúnia atroz contra a veracidade da
história e um ato de abjeta perseguição contra a memória de um
grande e bom homem. Já oferecemos prova da liberalidade e
moderação de Calvino inclusive com vistas aos oponentes. Poder-se-
ia aduzir muitos fatos similares e ilustrativos de sua grande paciência.
Ninguém pode disputar sua benevolência. Tampouco se pode pôr em
dúvida seu espírito humilde e transparente. As edições mais antigas
de suas Institutas continham também o seguinte e eloquente
argumento em favor de sua tolerância. “Ainda quando seja errôneo
formar amizade ou intimidade com os que sustentam opiniões
perniciosas, contudo contendemos contra eles somente por meio de
exortação, por meio de instruções benevolentes, por meio de
clemência, por meio de mansidão, por meio de orações a Deus para
que, assim, sejam transformados a ponto de produzir bons frutos e
sejam restaurados à unidade da igreja. E é errado não só tratar
assim os cristãos, mas até mesmo os turcos e sarracenos.”42
Este, pois, era o espírito natural e o credo genuíno de Calvino.
No entanto, era diametralmente oposto ao espírito e ao sentimento
universal da época. A igreja romana havia difundido a noção de que o
espírito das leis judiciais do Antigo Testamento ainda constituía a
regra e padrão da Igreja Cristã. Portanto, necessariamente, por
respeito à paz pública e à preservação da Igreja Cristã, de infecção,
requeria-se a punição dos hereges e blasfemadores.43 A tolerância
dos erros era tida como pecaminosa e sua destruição era um dever
cristão. Os homens eram instruídos a crer que as penas temporais
eram meios designados por Deus com o fim de tornar os homens
virtuosos e religiosos. Portanto, o patíbulo, a estaca, a masmorra e
vários outros modos de tortura eram os principais argumentos
empregados. Os sacerdotes se tornaram inquisidores. O púlpito era
o incentivador à matança; e o Te Deum ressoava pelos muros
enclausurados em comemoração pelas mortes de infames hereges.
Em suma, a perseguição era a política ajuramentada tanto da Igreja
quanto do Senado para a supressão das opiniões perigosas. Ora,
devemos lembrar que os Reformadores foram todos teólogos
romanistas, treinados no seio da igreja romana e imbuídos com
estes sentimentos fatais, os quais por toda parte eram aplaudidos.44
Igualmente, a liberdade da Reforma foi mal usada para maior
licenciosidade, seja na opinião, seja na prática. Tais heresias, na
doutrina e excessos na conduta, foram todas empregadas como
argumentos contra a Reforma. Então, enquanto a tolerância do erro
era uma constante censura na boca de Roma, contra sua causa, os
Reformadores, iludidos em seus primeiros princípios, cegados pela
opinião universal de todos os partidos, e arrastados, na autodefesa,
a opor-se a toda heresia, continuaram a aprovar e a agir com base
naqueles conceitos que ora eram condenados como intolerantes e
perseguidores. Portanto, Calvino foi levado a pensar que seus
conceitos anteriores estimulariam a heresia e prejudicariam a causa
da Reforma; e, por sua vez, permitiu que seu melhor juízo fosse
pervertido e endossou plenamente o princípio de que a heresia fosse
restringida pela força. Mas, não obstante, ele renunciou todo o
direito ou poder, da parte da Igreja, de empregar essa força. Ele o
transferiu totalmente às autoridades civis, a saber, às mãos da
comunidade em geral, por meio da qual esse poder foi finalmente
abolido. Portanto, provado pelo juízo universal de sua época, Calvino
não foi intolerante; e quando condenado pelos conceitos livres e
liberais daquela época, ele junta sua sentença em comum com todos
os homens, quer civis ou teólogos, e com todos os Reformadores,
quer continentais ou anglicanos.45 De modo que toda a culpa dos
dogmas perseguidores dos Reformadores finalmente repousaria
sobre aquela mãe de cujos seios todos estes sugaram o leite da
intolerância e por cuja natureza eles foram educados na vereda da
perseguição. Portanto, a igreja romana, como na verdade já foi dito,
é a responsável pela execução de Serveto.46
No entanto, se já houve um caso em que a execução da pena de
morte pudesse ser propriamente infligida, isso se deu na de Serveto.
Jamais um homem blasfemou tanto de seu Criador, ultrajou tanto o
sentimento cristão e toda propriedade, insultou tanto as leis em
vigência para sua destruição e provocou tanto a ponto de o
modorrento braço da vingança recair sobre ele.47
Serveto foi expulso de toda residência que ele tentava por conta
de sua conduta intolerável. Em Viena, ele fora procurado e
condenado à fogueira pelos romanistas, de cujas mãos ele conseguiu
escapar quando veio para Genebra.48 Ele estava bem ciente do
intolerante caráter das leis da cidade de Genebra, promulgadas pelo
Imperador Francisco I contra os hereges, quando sob a jurisdição
imperial e romana que às vezes eram exercidas antes daquele tempo
— e as quais ainda estavam em vigor.49 Calvino, considerando seus
sentimentos e conduta com justa aversão, e crendo ser seu dever,
pelas razões já declaradas, fazer-lhes oposição, notificou-o
previamente de que, se viesse à cidade de Genebra, ele estaria sob
a necessidade de processá-lo. Daí não haver em Calvino nenhuma
malícia prévia para com ele. Quando Serveto chegou, e Calvino levou
seu caráter e opiniões ao conhecimento das autoridades, sua
interferência na matéria cessava ali. Ele nunca visitou o tribunal,
exceto quando se lhe demandou fazer isso. O Senado, em vez de se
deixar influenciar por ele sobre que direção tomar, era-lhe, em sua
maioria e naquele momento, contrário.50 Da mesma forma, toda a
questão, antes que fosse passada a sentença, foi, a pedido de
Serveto, submetida ao julgamento das outras cidades, que
unanimemente aprovaram sua condenação.51
O sentimento da época era que, quem persistisse
obstinadamente em heresia e blasfêmia, fosse digno de morte.
Mesmo o manso Melancthon afirma, em carta dirigida a Calvino, “que
os magistrados assim agiam corretamente levando este blasfemo à
morte”; e numa carta a Bullinger, o mesmo homem manso e
cauteloso e verdadeiramente cristão declara: “Surpreende-me que
haja homens que condene esta severidade.”
O próprio Serveto manteve este princípio em seu livro,
“Restituição do Cristianismo”, a mesma obra que o levou a essa
situação e condenação. Serveto reconheceu reiteradamente a justiça
dessa punição, se fosse culpado das acusações lançadas contra si.
Mas ele exigia continuamente que esta punição fosse aplicada a
Calvino, com base no fato de que as leis do estado requeriam que a
pessoa que fomentasse uma acusação contra alguém que
defendesse e fizesse o bem, ou deixasse de fazê-lo, sofresse a
punição de que ela mesma fosse acusada. Serveto foi levado a crer
que ele seria capaz de aplicar a Calvino esta punição, visto que no
Conselho dos Duzentos, diante do qual o caso foi apresentado pela
primeira vez, os oponentes e determinados inimigos de Calvino — os
Libertinos — predominavam.
No entanto, não há probabilidade de que Serveto, sob as
circunstâncias, teria sido visitado com a punição que sofreu,
meramente por suas opiniões.
Pelo quê, pois, pergunta-se, ele foi condenado? Não
meramente, ou principalmente, replicamos, por opiniões heréticas de
qualquer sorte, porque suas opiniões e doutrinas sem dúvida eram
suficientemente heréticas, segundo os padrões de julgamento da
época; em qualquer época seriam pronunciadas heréticas pelo
grande corpo da Igreja Cristã. Mas não foram tanto suas opiniões
em si que geraram a ofensa, quanto a maneira como ele as afirmou
e defendeu. O velho Socino ensinara substancialmente em Zurique as
mesmas doutrinas sem qualquer molestamento. Serveto, porém, não
se contentando em simplesmente manter e defender serenamente,
mas impetuosamente, o que pensava ser a verdade, e tudo indica
que ele foi o primeiro que se pôs de assalto em termos da mais
amarga vituperação e censura, pior, com rebeldia e abuso sem
medida, as opiniões daqueles que diferiam dele. Ele fez uso de
linguagem que não podiam evitar o confronto com a mente de todos
os homens sóbrios e piedosos que sustentavam as doutrinas ou da
Igreja de Roma ou da Igreja Protestante. Ele denomina as pessoas
da Deidade de ilusões do diabo, e o Deus Trino de monstro, um
Cérbero de três cabeças.
Foi esta amargura e intolerância de espírito, esta total falta de
reverência pelas coisas sacratíssimas, este deliberado insulto e
ultraje dos sentimentos religiosos de todo o mundo cristão, que
armou o mundo cristão inteiro contra ele e fez dele um homem
marcado e estigmatizado muito antes que visse Calvino ou Genebra.
Uns treze anos antes de seu julgamento ele devolveu a Calvino, com
quem então mantinha correspondência, uma cópia de suas Institutas,
com as mais severas e amargas reflexões e difamações na margem,
e lhe enviou cartas severas da mais abusiva e insultante espécie.
O mesmo espírito foi exibido em seu julgamento. Não manifestou
para com seus juízes nenhum respeito, nem consideração decente
para com o sentimento religioso da época. Da maneira mais
insultante, ele cumulou sobre Calvino os mais imerecidos reproches e
os mais abusivos epítetos, fazendo uso tanto de linguagem quanto
de invectivas, a ponto de envergonhar até mesmo os juízes,
desgastando assim a paciência dos homens, muitos dos quais
estavam inclinados a olhar favoravelmente sua causa. A tal ponto
chegou este abuso, que ninguém mais o suportava, e todo o corpo
do clero, com Calvino à sua frente, aproveitou a ocasião para
abandonar o tribunal, encerrando assim o exame.
Em seu julgamento final, foram-lhe apresentadas trinta e oito
proposições tiradas de sua última obra. Sua resposta, afirma um
historiador desapaixonado, “foi mais os arroubos de um maníaco do
que palavras da razão e da verdade”. Ele exibiu uma surpreendente
indiferença com respeito às doutrinas errôneas que lhe eram
imputadas e procurou principalmente aplicar a Calvino duríssimos
epítetos. Ele o acusou de ser homicida e discípulo de Simão Mago.
A margem do documento que continha as proposições foi coberta
com expressões tais como as que seguem: “Tu sonhas”; “tu mentes”;
“Tu não podes negar que és Simão o mágico.”
Outro historiador diz desta resposta de Serveto: “Não é
presunção dizer que em questão de abuso e insulto, esta defesa não
conhece paralelo, jamais feita por qualquer acusado, por mais
enfatuado seja ele, na causa mais desesperadora.”
Portanto, o que ocasionou a decisão final dos juízes e do
veredicto quase unânime do mundo cristão contra Serveto não foram
tanto suas opiniões e dogmas quanto a maneira como os manteve.
“Se Serveto tivesse apenas atacado a doutrina da Trindade pelo uso
de argumentos”, diz um hábil escritor, “isso teria tido resposta pelo
uso de argumentos, e sem o perigo de perseguição por parte dos
protestantes; ele poderia ter continuado defendendo-a, até que fosse
chamado por ele a responder por sua crença, cujo caráter ele
impugnara. A oposição de Calvino e de seus contemporâneos não foi
a de argumento, e sim a do tribunal civil. Constituía insulto e
irreverência, e isso também contra o Altíssimo, cujo caráter
defenderiam em meio a uma geração perversa e rebelde”. “Se um
pobre fanático já se lançou ao fogo”, diz J. T. Coleridge, “esse foi
Miguel Serveto.”
Qual, pois, de um modo geral, foi a agência de Calvino nesta
atividade? Simplesmente esta: Apresentou uma acusação contra
Serveto, quando agir de outra maneira teria sido uma traição virtual
da causa da Reforma Protestante, bem como uma desconsideração
pelas leis de seu país.
A posição de Calvino era tal que, sob as circunstâncias,
dificilmente poderia agir de outro modo. Estava posicionado como o
líder do clero protestante, não só de Genebra, mas da Europa e
daquela época. A censura de heresia repousava, na avaliação do
mundo católico, sobre todo o corpo protestante, e especialmente
sobre Calvino e o Clero de Genebra. Eram considerados trinitários, e
Genebra, um receptáculo de hereges. Serveto era conhecido e
reconhecido como o mestre dos erros mais danosos, e na estima
comum, tanto de católicos como de protestantes, ele era um homem
merecedor de morte. Se o clero de Genebra, os líderes da Reforma,
falhasse em proceder segundo as leis contra tal homem, assim se
lançando no meio deles, o que poderiam esperar senão que o
opróbrio de heresia lhes fosse justamente atribuído na opinião geral
dos homens? Na verdade, era uma questão de autodefesa que
mostrassem ao mundo, tanto católico como protestante, que não
nutriam nenhuma simpatia para com os homens que empreendiam a
obra de reforma no espírito e para com os princípios de Serveto.
Isso se devia a eles, se devia à causa do Protestantismo, se devia
ao Estado sob cujas leis residiam.
Quanto ao que à lei se requeria, ele substanciou a acusação que
fizera. E ele o fez; isto, e nada além disto. Quanto à condenação e
sentença de Serveto, ele nada teve a ver. O julgamento foi perante
um tribunal civil, o mais elevado e mais augusto no Estado. Ao
acusado se propiciou a oportunidade de defesa. O próprio Calvino,
de sua própria biblioteca, lhe forneceu os livros de que necessitava.
O julgamento foi conduzido com estrema paciência e deliberação. O
caso foi finalmente submetido às igrejas da Suíça para sua decisão.
A uma só voz, declararam culpado o acusado. No ínterim, o Rei da
França, energicamente, exigiu sua morte como um herege
condenado, o qual havia escapado de seus domínios. Portanto,
sobre bases políticas, e tão somente estas, por fim sua condenação
foi dada. Sua punição é decidida pelos conselhos unidos após uma
deliberação de três dias; e, longe de triunfar em sua severidade,
Calvino, à testa do clero, apresentou petições, porém em vão, em
prol de sua mitigação.
Em tudo isto, não estamos a defender a condenação e morte de
Serveto. Foi um grande equívoco; se você quiser, chame-o de crime.
Mas, que a vergonha repouse no lugar que lhe pertence; não sobre
Calvino, mas sobre os homens que decretaram aquela morte e sobre
a época que a ocasionou e a exigiu.
E quando se recorda que nesta mesma época as chamas
estavam consumindo as vítimas da perseguição romanista, e
também dos condenados por Cranmer, o qual é chamado padrão de
humildade — que os Davides caíram vítima da intolerância de
Socino52 — que os reformadores ingleses aplaudiram a execução de
Serveto — que sua punição foi considerada a causa comum de todas
as igrejas da cristandade — e que por cinquenta anos depois disso
nenhum escritor incriminou Calvino por sua agência nesta matéria —
acaso não podemos dizer aos que hoje condenam Calvino por uma
lei ex post facto, por uma opinião pública, que isso é o resultado das
próprias doutrinas que ele promulgou — que o inocente entre vocês
seja o primeiro a lançar pedra? Ao distinguir assim Calvino como o
objeto de seu feroz ressentimento, vocês manifestam o mesmo
espírito que condenam — um espírito parcial, anticristão e injusto.
Basta de acusação de intolerância.53

25 “Não importa quão quebrada e deformada, existe algum tipo de igreja”. E como
prova disto, ele cita 2 Tessalonicenses 2.4. Veja suas cartas a Socino em 1549 e
Scott, ibid. 400.
26 Carta a Farel de Strasburg, 1538, em Waterman, pp. 249, 250.
27 Veja os pontos de vista de Calvino sobre o tema do Episcopado, plenamente
defendido e estabelecido pelo Dr. Miller, em suas cartas recentes ao Bispo Ives, e
também em sua obra sobre o Ministério Cristão, 2ª e 8ª edição.
28 Institutas, Livro I, capítulo 16, §§ 8, 9.
29 Ibid., Livro II, Capítulo 3, § 5 e Livro I 18, § 2.
30 Ibid. Livro II, capítulo 3, § 5, §§ 1, 4, 5 etc.
31 Veja como provas, numerosos extratos, in Scott’s Contin, in Miller, vol. 2, pp.
508, 521, 525, 379, 385, 405.
32 Institutas, Livro III, capítulo 24.
33 Sobre Romanos 5.18.
34 Institutas Livro III, capítulos 3, § 21, 22, § 10 e 24, §§ 6, 8, 16, 17, e Scott, p.
597.
35 Institutas Livro Ii, capítulo 1, §§ 10, 11 e Livro II capítulo 1, §§ 6, 8.
36 Ibid. Livro I capítulo 15, §§ 4 e 6; Livro II capítulo 2, § 12 e Livro II capítulo 1,
§§ 13, 19, 22 e capítulo 3, § 4.
37 Institutas Livro III capítulo 24, § 4, e capítulo 14, §§ 17-21.
38 Institutas Livro IV, capítulo 16.
39 Institutas Livro IV capítulo 19, §§ 4, 13.
40 “Se você ler as cartas de Calvino, achará muito pouco sobre a predestinação e
muito mais sobre as demais doutrinas do Cristianismo.”
41 Veja Scott’s Contin, de Miller, vol. 8, pt. 545, 550 e 583, e Bib. Repertory, 1831,
p. 421.
42 Dr. Taylor’s Biography of the Age of Elizabeth, vol. 2, p. 46.
43 Veja Clarke’s History of Intol., vol. 1, pp. 18 e 21.
44 Viller on the Reformation, p. 260.
45 Scott’s Contin. vols. 8, 420, 432, 433, 435, 437, 438. D’Aubigne History of
Reformation, vol. 3, p. 630. Baze’s Life, pp. 109, 110, 156, 197.
46 D’Aubigne, History of Reformation.
47 Beza’s Life, pp. 168, 203.
48 Scott, ibid. 423. Beza, ibid. 163.
49 Scott, ibid. 347, 356, 374, 430, 443. Beza ibid. 167, 180 e 199.
50 Scott, ibid. pp. 434, 440. Beza’s Life, ibid. 168, 283.
51 Scott, ibid. 427, 436. Beza’s Life, ibid. 169, 195.
52 Scott, ibid. 439. William’s relig. Liberty, p. 135.
53 Veja observações ulteriores em Apêndice 1.
C AP Í T U L O 6
C A LV IN O D E F E N D ID O D A A C U S A Ç Ã O D E
FA LTA D E A F E T O E A M IZA D E N AT U R A IS

I gualmente fútil e inverídica é a outra acusação que se faz a


Calvino, de que ele era inteiramente destituído de ternura e afeto
naturais, e que em seus escritos não se pode achar nenhum vestígio
de bondade. É inquestionavelmente verdadeiro que suas faculdades
intelectuais eram preeminentes, e que ele mantinha suas paixões,
apetites e desejos em completa sujeição aos ditames da prudência e
serena sobriedade. Cremos, porém, ser incontroversamente certo
que Calvino possuía profundo sentimento e era suscetível às mais
fortes e às mais ternas emoções. Em seu regresso ao povo de
Genebra, que o tratara tão cruelmente, ele diz o seguinte: “Minha
intenção era falar ao povo, fazendo uma retrospectiva do que
aconteceu e uma justificativa de mim mesmo e de meus colegas;
mas os achei tão tocados de remorso, tão prontos a antecipar-me na
confissão de suas falhas, que senti que tal procedimento seria não
só supérfluo, mas também cruel.” No dizer de Beza: “Era maravilhoso
observar a união destes três grandes homens — isto é, Calvino,
Farel e Viret — no serviço de seu comum Senhor.” Quando Farel
desejou visitá-lo em sua enfermidade final, Calvino lhe escreveu,
dizendo: “Adeus, meu melhor e mui digno irmão. Visto que Deus já
determinou que tu sobrevivas a mim neste mundo, vivas cônscio de
nossa união, a qual tem sido tão proveitosa à Igreja de Deus, e cujos
frutos nos aguardam no céu. Não se fatigues por minha causa.
Respiro com dificuldade e nutro uma contínua expectativa de que
meu fôlego falhará. É suficiente que eu viva e morra em Cristo, que é
o salário de seus servos na vida e na morte. Outra vez, adeus aos
irmãos.”
Após a morte de seu amigo Courault, ele diz numa carta a Farel:
“Sinto-me tão esmagado, que minha dor não conhece limites. Minhas
ocupações diárias não têm o poder de impedir que minha mente
recorra ao incidente, revolvendo constantemente o pensamento
opressivo. Os impulsos estressantes do dia são seguidos da mais
torturante angústia da noite. Sou não só atribulado por sonhos, aos
quais estou acostumado pelo hábito, mas estou grandemente
debilitado pelas incansáveis vigílias que são extremamente
prejudiciais à minha saúde.”
Sobre a morte de Bucer, ele escreve assim: “Sinto que meu
coração está quase dilacerado, quando reflito sobre a tão grande
perda que a Igreja tem sustentado na morte de Bucer, e sobre as
vantagens que a Inglaterra teria derivado de seus labores, fosse ele
poupado para dar-lhe sua assistência e, assim, efetuar a Reforma
naquele reino.”
Vejam-se também suas cartas de consolação, endereçadas
àqueles confessores da verdade que foram incapazes de escapar à
perseguição.54
Sobre a morte de seu filho, ele escreveu a Viret, dizendo:
“Certamente o Senhor nos infligiu uma pesada e severa ferida pela
morte de nosso filhinho; mas ele é nosso Pai e sabe o que é
conveniente para seus filhos.” E quando sua esposa lhe foi tirada,
vemos em Calvino toda a ternura de um coração em extremo
sensível e afetuoso. Escrevendo a Farel, a quem ele dá um detalhe
da enfermidade dela, diz: “A notícia da morte de minha amada
esposa sem dúvida te alcançou antes disto. Eu uso todo o esforço
em meu poder para não ser inteiramente vencido pela aflição do
coração. Aos meus amigos que estão perto de mim nada omito que
propicie alívio à depressão de minha mente.” Outra vez: “que o
Senhor Jesus vos fortaleça por seu Espírito e a mim também nesta
tão grande calamidade, a qual inevitavelmente teria me esmagado se
do céu ele não estendesse sua mão, cujo ofício é levantar o caído,
fortalecer o fraco e refrigerar o cansado.” Outra vez, escrevendo a
Viret, ele diz: “Embora a morte de minha esposa seja uma aflição mui
severa, contudo reprimo ao máximo que posso a dor de meu
coração. Meus amigos também me propiciam sua mui solícita
assistência; mesmo com todos os nossos esforços, conseguimos
menos em suavizar minha tristeza do que eu poderia desejar; muito
embora a consolação que eu obtenho não possa expressar. Tu
conheces a ternura de minha mente; ou, melhor, com que facilidade
eu me rendo às minhas provações; de modo que, sem o exercício de
tanta moderação, eu não poderia ter suportado a pressão de minha
dor. Certamente, esta não é uma ocasião comum de tristeza. Sinto-
me privado de uma companheira mui amável, a qual, o que quer que
ocorresse demonstrava extrema resignação, foi sempre minha
voluntariosa companheira, não só no exílio e na pobreza, mas
inclusive na morte. Enquanto vivia, de fato ela era a fiel auxiliadora de
meu ministério, e em nenhuma ocasião experimentei da parte dela
alguma interrupção. Eu te devolvo minha sincera gratidão por tua
fraterna consolação. Adeus, meu querido e fiel irmão. Que o Senhor
Jesus vele por ti e dirija a ti e à tua esposa. A ela e aos irmãos
expresso minha mais terna saudação.”
Ora, se estas provas da ternura de Calvino não forem
suficientes, que alguém leia o relato de suas cenas finais e
descobrirá as mais tocantes manifestações de um espírito afetuoso
e terno. Como irmão, amigo, esposo, pai e ministro, Calvino exibe
amizade e respeito ardentes, solícitos e inabaláveis.

54 Scott’s Contin., de Milner, p. 374.


C AP Í T U L O 7
IL U S T R A D A S A S O B R IG A Ç Õ E S D E Q U E
S O M O S D E V E D O R E S PA R A C O M C A LV IN O
C O M O C ID A D Ã O S E C R IS T Ã O S
A M E R IC A N O S

E sse foi Calvino e essa foi a triunfante defesa de seu caráter


contra todos os assaltos, os quais ele deixou atrás de si em sua
vida impoluta, seu caráter incontestável, suas cartas familiares e
suas obras perenes. Ninguém jamais ousou disputar sua sabedoria,
erudição, prudência e excelências inigualáveis como autor. A estrela
de sua fama continuou a brilhar com uma radiância sempre crescente
no firmamento intelectual e ainda guia muitos viajantes em pleno
oceano escuro e incerto do tempo rumo ao céu seguro da eterna
bem-aventurança. Eis a rica herança que ele nos deixou, para os que
desejam ser seus seguidores, tanto quanto ele seguiu a Cristo. Mas
isso não é tudo. Somos-lhe devedores por outros tesouros, mui
valiosos para cada cidadão americano.
Visualizamos, por exemplo, nosso sistema de escolas comuns
como a grande esperança da liberdade americana, na inteligência
que difundem por toda parte. Ora, Calvino foi o pai da educação
popular e o inventor do sistema de escolas livres. Nenhum dos
Reformadores percebeu mais claramente as vantagens da
educação, ou labutou mais energicamente para promovê-la.
Depois de nossas escolas comuns, valorizamos nossos colégios
e seminários teológicos como as sementeiras dos cidadãos, dos
estadistas e dos ministros, mui aptas para proteger as atividades de
um grande e livre povo. Ora, o edifício e adorno completo do colégio
e seminário de Genebra estavam entre os últimos atos realizados
por Calvino — tendo sido abertos em 1559, com 600 alunos.
“Mesmo agora [1843], quando Genebra, em geral, abandonou os
padrões dos Reformadores originais e juntou-se aos de Ário e
Socino, seus filhos se regozijam no grande triunfo alcançado pela
sabedoria de Calvino sobre o poder de Napoleão, o qual, ao
conquistar Genebra, faltou-lhe coragem para fazer qualquer mudança
no sistema de educação que fora implantada há mais de duzentos
anos antes que Bonaparte nascesse, conseguida por este eminente
amigo da genuína Cristandade; sim, uma educação genuinamente
bíblica.”
Saudamos o nascimento da liberdade de nosso país. Ainda
comemoramos a declaração de nossa independência nacional.
Gloriamo-nos em um país que estende cada vez mais rapidamente
seu território, sua população e suas riquezas do que qualquer outro
sobre a terra — em leis mais justas e imparciais — em um governo
mais equitativo, econômico e livre — e no desfrute de uma liberdade
religiosa mais perfeita e completa do que se pode comparar na
história humana. A estrela do cintilante estandarte desperta a inveja
e a admiração do mundo — e nossa gloriosa república é uma visão
fantástica que excita o rival desejo de imitação no seio de cada
aspirante ao avanço da sociedade. Mas, donde vieram todas estas
coisas? “Os peregrinos de Plymouth”, diz Bancroft, “eram calvinistas;
a melhor influência que recebeu a Carolina do Sul veio dos calvinistas
da França; William Penn foi discípulo dos huguenotes; os navios da
Holanda que trouxeram os primeiros colonizadores para Manhattan
estavam cheios de calvinistas.”
“Aquele que não honra a memória e respeito pela influência de
Calvino sabe muito pouco da origem da liberdade americana.” Sim!
Calvino foi um republicano de procedimento perfeito. As Institutas de
Calvino levam com as verdades da Cristandade as sementes do
republicanismo até os confins da terra. Ele afirma:55 “De fato, se
estas três formas de governo, as quais são defendidas pelos
filósofos, forem consideradas em si mesmas, de modo algum negarei
que, ou a aristocracia, ou um misto de aristocracia e democracia,
excede em muito a todas as demais [formas]; e que, aliás, não de si
mesma, mas porque mui raramente sucede que os reis se regulem,
de modo que sua vontade nunca esteja em discrepância com a
justiça e retidão; ou, em segundo lugar, que são dotados com tal
penetração e prudência, como em todos os casos, para descobrir o
que é melhor. Portanto, o vício ou imperfeição dos homens torna
mais seguro e mais tolerável que o governo esteja nas mãos de
muitos; que muitos propiciam aos demais mútua assistência e
admoestação; e que, se alguém arroga para si mais do que é de
direito, os muitos podem agir como censores, e mestres, a restringir
sua ambição. Isto sempre foi provado pela experiência, e o Senhor o
confirmou por sua autoridade, quando estabeleceu um governo deste
tipo entre o povo de Israel, com vistas a preservá-los na mais
desejável condição, até que ele exibisse, em Davi, um tipo de Cristo.
E, como prontamente reconheço, nenhum tipo de governo é mais
ditoso do que este, no qual a liberdade é regulada com conveniente
moderação e propriamente estabelecida sobre uma base durável,
assim também considero como sendo o povo mais ditoso aquele ao
qual se permite desfrutar tal condição; e se exercerem seus
incansáveis e constantes esforços para sua preservação, admito que
agem em perfeita consistência com seu dever.”
Diz o Bispo Horsley: “Inquestionavelmente, Calvino foi, em
teoria, republicano; ele declara livremente sua opinião de que a
forma republicana, ou uma aristocracia reduzida quase ao nível de
uma república, foi, de todas, a melhor calculada, em geral, para
responder aos fins do governo. Aliás, tão aferrado era ele a esta
noção que, sem levar em conta uma instituição apostólica e o
exemplo dos primeiros séculos primitivos, ele se empenhou em
formar o governo de todas as igrejas protestantes sobre princípios
republicanos; e seu perseverante zelo nessa tentativa, ainda que
neste país, pela mercê de Deus, fracassasse, foi seguida, em linhas
gerais, com amplo e inequívoco sucesso. Mas, em política civil, ainda
que republicano em teoria, ele não foi partidário.”
Genebra, a mãe das repúblicas modernas, é o monumento da
fama de Calvino; e, no dizer de Montesquieu, deve-se celebrar, em
festa anual, o dia em que Calvino entrou naquela cidade pela primeira
vez. Política e eclesiasticamente, Calvino honrou o povo; assumiu sua
inteligência, virtude e valor; e lhes confiou a administração das
atividades. Ele ensinou ainda a independência espiritual da Igreja;
sua total separação do governo civil; e a suprema e exclusiva
supremacia de seu único legislador e soberano, o Senhor Jesus
Cristo. Estas foram as grandes verdades ensinadas e ilustradas por
Calvino; verdades que atraíram para Genebra os amantes da
liberdade, a qual os enviou ardendo de sede pela liberdade e
republicanismo; a qual despertou o sonolento povo da Europa; a qual
convulsionou a França, confederou os estados da Holanda,
revolucionou a Inglaterra, “presbiterianizou” a Escócia, colonizou a
Nova Inglaterra e fundou esta grande e crescente república.56
Esta é também a era de missões. O empreendimento
missionário é a glória da Igreja, o regenerador da sociedade, o
precursor do reino milenial de paz e felicidade e a esperança do
mundo. Com generosa emulação, todos os ramos da igreja católica57
se esforçam pela supremacia nesta gloriosa realização, enquanto
Icabode seja escrito sobre qualquer denominação de cujas ameias a
bandeira do evangelho não seja hasteada e cujas indolentes tropas
não subam em auxílio do Senhor contra os poderosos. Ora, foi
Calvino que guiou esta poderosa empresa e deu origem a esta
moderna cruzada contra os poderes das trevas. Somente ele, até
onde sabemos, de todos os Reformadores, enquanto batalhava
contra inimigos adjacentes, trouxe à memória os lugares devastados
da terra que se encontram cheios dos habitantes da hórrida
crueldade e conectou seu nome à própria e mais antiga tentativa de
estabelecer uma missão protestante no mundo pagão. Ele se uniu ao
almirante Coligny no estabelecimento de uma colônia no litoral do
Brasil, para onde ele enviou Peter Richter e diversos outros de
Genebra, o qual foi acompanhado de numerosos protestantes
franceses.58 Portanto, presbitério e missões são coevos,
coexistentes e inseparáveis. Viveram de mãos dadas durante os
primeiros seis séculos. Outra vez apertaram as mãos em indissolúvel
união na era da Reforma. Têm vivido juntos em irmanada paz,
harmonia e zelo. E a todos quantos Deus assim ajuntou, que
nenhuma apatia ou descrença ou opiniões jamais separe.
Para legar-nos, a nós, seus descendentes espirituais, estas
bênçãos incomparáveis, desde o início Calvino sacrificou a reluzente
coroa da fama acadêmica e certo engrandecimento e honra terrenos
— tornou-se exilado de seu lar, parentes e pátria — suportou
calúnia, censura, perseguição, banimento e pobreza, desgastou seu
fraco e torturado corpo com trabalho excessivo e incansável — e no
início de seus cinquenta e quatro anos de idade foi deitado em um
túmulo [ignoto].59

55 Institutas Livro IV capítulo 20 § 8.


56 De um discurso público enunciado por Bancroft, Esq.
57 Não sentido sectário, mas em seu caráter universal. Nesse sentido, todos os
ramos do Cristianismo são católicos, isto é, se encontram em todos os países do
mundo. Portanto, a Igreja de nosso Senhor é Católica. Então, a Igreja
Presbiteriana é Católica.
58 Scott, ibid. pp. 462, 464.
59 Bayle, Art. Marot; Neal, p. 109; Heylin, pp. 213, 214; Rees’ Cy., art. Bible;
Burner, p. 290; Waterman’s Life of Calvin, p. 403.
C AP Í T U L O 8
A S C E N A S F IN A IS D A V ID A D E C A LV IN O

E ntão, antes de encerrarmos, aproximemo-nos e contemplemos o


último ato do drama da vida deste grande e bom homem. É
como se eu visse aquele corpo definhado, aquele rosto macilento e
aqueles olhos brilhantes e etéreos enquanto Calvino jazia em seu
divã de estudo. Ele não presta atenção nas agonias de seu corpo;
sua mente vigorosa surge em pleno vigor, enquanto o homem externo
se desintegrava e perecia. Quanto mais perto ele chegava de seu
fim, mais energicamente se ocupava de seus infindáveis estudos. Em
suas dores mais severas, ele erguia seus olhos ao céu e dizia: até
quanto, Senhor! E então recomeçava seus esforços. Quando instado
a permitir-se repouso, ele dizia: “O quê! Acaso vós quereis que,
quando o Senhor vier, me surpreenda no ócio?” Alguns de seus
comentários mais importantes e bem laborados foram, portanto,
concluídos durante este último ano.
Aos 10 dias de março, seus irmãos ministros foram a ele, e com
um semblante bondoso e alegre agradeceu-lhes efusivamente toda a
sua bondade, e esperava encontrá-los em sua Assembleia regular
pela última vez, quando imaginava que o Senhor provavelmente o
levaria para si. Aos 27 dias, ele se animou a ser levado à sala do
Senado e, sendo sustentado por seus amigos, caminhou até a sala;
descobrindo sua cabeça, voltou a agradecer toda a bondade que
haviam demonstrado para com ele, especialmente durante sua
enfermidade. Com voz alterada, então acrescentou: “Sou grato por
poder entrar nesta casa pela última vez.” E, em meio às lágrimas, se
despediu, pedindo licença. Ao segundo dia de abril, ele foi levado à
igreja, onde recebeu o Sacramento das mãos de Beza, juntando sua
voz no cântico do hino, com tal expressão de júbilo em seu
semblante, que atraiu a atenção da congregação.
Tendo feito seu testamento aos 27 dias desse mês,60 ele fez
informar aos síndicos e aos membros do Senado que mais uma vez
desejava falar-lhes em sua sala, para onde ele gostaria de ser
levado no dia seguinte. Então eles lhe fizeram saber que estariam à
sua espera, o que fizeram no dia seguinte, indo a ele da casa do
Senado. Após saudações mútuas, ele continuou falando-lhes por
algum tempo em termos solenes, e, tendo orado por e com eles,
apertou a mão de cada um deles, os quais, com os olhos banhados
em lágrimas, se despediram dele como que de um pai comum. No
dia seguinte, 28 de abril, segundo seu desejo, todos os ministros da
jurisdição de Genebra foram a ele, aos quais também falou: “Eu
afirmo”, disse, “que tenho vivido em união convosco, irmãos, pelos
mais estreitos laços da verdadeira e sincera afeição, e despeço-me
de vós com os mesmos sentimentos. Se em algum momento me
achastes áspero ou mal-humorado, impelido por minha aflição, rogo-
vos perdão.” Com um aperto de mãos, despedimo-nos dele, diz
Beza, “com tristeza no coração e de modo algum de olhos secos”.
Beza nos informa que “O resto de seus dias, Calvino os viveu
quase em perene oração. Sua voz era interrompida pela dificuldade
de sua respiração; mas seus olhos (que até o fim retiveram seu
brilho), elevados ao céu, bem como a expressão de seu semblante,
traíam o fervor de suas súplicas. Suas portas, Beza continua,
ficavam abertas dia e noite, admitindo a todos que, movidos pelos
sentimentos do dever e afeto, quisessem vê-lo; mas, como ele já não
podia falar-lhes, então pediu que satisfizessem seu respeito orando
por ele, em vez de atormentar seu espírito olhando para ele.
Também com frequência, ainda que sempre se mostrasse alegre em
receber-me, notificava sua preocupação com respeito à interrupção
que então eu dava às minhas ocupações; tão máximo é o tempo que
se deve gastar no serviço da Igreja.”
Aos dezenove de maio, sendo o dia da reunião dos ministros, e
quando costumavam tomar sua refeição juntos, Calvino solicitou que
eles ceassem na sala de sua casa. “Eu vim, meus irmãos”, disse-
lhes, “assentar-me convosco, pela última vez, nesta mesa.” Mas logo
depois ele disse: “Gostaria de ser levado para meu leito”; e
acrescenta, enquanto olha ao redor e para eles, com um semblante
sereno e agradável: “Estas paredes não impedirão minha união
convosco em espírito, embora meu corpo esteja ausente.” Ele nunca
mais deixaria seu leito. Aos 27 de maio, perto das oito horas da
noite, os sintomas de dissolução vieram subitamente. Em plena
posse de sua razão, ele continuou falando, até que, sem esforço
violento ou respiração, seus pulmões cessaram de funcionar, e este
grande luminar da Reforma se foi, com o pôr do sol, para surgir
novamente no firmamento celestial. As sombras escuras do luto
envolveram a cidade. Para todo o povo, esta foi uma noite de
lamento e lágrimas. Todos deploraram sua perda: a cidade, por seu
mais excelente cidadão; a igreja, por seu renovador e guia; o colégio,
por seu fundador; a causa da Reforma, por seu mais capaz
campeão; e cada família, por um amigo e consolador. Foi necessário
excluir as multidões de visitantes que vieram contemplar seus restos
mortais, para que não se desse ocasião a má interpretação. Às duas
horas da tarde de sábado, seu corpo, fechado em um ataúde de
madeira, e seguido pelos síndicos, senadores, pastores,
professores, lado a lado com quase toda a cidade, sem qualquer
pompa. Em atendimento ao seu pedido, não se erigiu à sua memória
nenhum monumento; uma pedra plana, sem qualquer inscrição, era
tudo o que cobria os restos mortais de Calvino.
Esse foi Calvino, na vida e na morte. Desconhece-se o local de
sua sepultura; no entanto, onde não se ouve sua fama?
Como disse Cato61 da estátua que tencionada para si, também
se pode dizer do monumento de Calvino: “Há tantos monumentos
neste nosso mundo, que seria muito preferível se o povo
perguntasse: Onde está o monumento de Cato? do que dizer: Ei-lo
aqui.” Assim se dá com Calvino. Ele erigiu para si um monumento no
coração e na vida de milhões, mais durável, mais glorioso do que
quaisquer colunas de pedra ou de bronze.

Que necessidade tem o grande Calvino para seus honrados


ossos,
O trabalho de uma época em um monte de pedras?
Ou que suas santas relíquias estejam ocultas
Sob uma pirâmide apontando para as estrelas?
Querido filho da Memória, grande herdeiro da Fama,
Que necessidade tens de uma frágil testemunha de teu nome?
Tu, em nossa reverência e perplexidade,
Construíste para ti um monumento de uma longa vida.62

Para concluir, juntamo-nos a um recente periódico episcopal


sobre o caráter de Calvino, esperando “que não esteja longe o
tempo em que novos Horsleys se levantem para fazer em pedaços
as flechas da calúnia e levar todos os seguidores do Príncipe da Paz
e da verdade a se envergonharem de juntar-se às falanges dos
infiéis, fazendo uso das peçonhentas armas da vergonhosa
difamação para o propósito de vilipendiar o caráter de um dos mais
santos — dos mais indômitos — dos mais diligentes — e dos mais
desinteressados seguidores do Redentor crucificado”.63

60 Veja Apêndice.
61 * Referência a Sexto Élio Petão Cato (Sextus Aelius Paetus Catus) político da
gente Élia da República Romana eleito cônsul em 198 a.C. juntamente com Tito
Quíncio Flaminino. (Nota do Editor)
62 O seguinte são as linhas de Beza, em referência ao túmulo de Calvino.
63 The Rev. Mr. Sibson, A. B., of Trinity Coll., Dublin, em sua transl. Of Beza’s Life,
pp. 118, 119.
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D E F E S A S U P L E M E N TA R O R D E N A Ç Ã O D E
C A LV IN O

A o apresentar esta defesa do caráter e vida de Calvino, não fui


levado a notar a questão que tem sido suscitada por seus
inimigos, da parte da igreja romana e sua hierarquia, a saber, que
Calvino nunca foi ordenado. Esta questão não se encaixa na visão
geral da vida e caráter de Calvino que era meu objetivo abordar. A
questão fora enfrentada várias vezes e respondida com muito êxito;
e no momento parecia-me de pouco interesse ou importância. No
entanto, as circunstâncias têm mudado. Uma vez completamente
frustradas as infundadas tentativas de impor a Calvino a aprovação
do episcopado diocesano, e tendo sido repelidas as calúnias
lançadas contra seu caráter, seus inimigos têm buscado refúgio em
uma última esperança, ou seja, ouve-se de todos os lados a
vociferação: “Além de tudo, em resumo, Calvino nunca foi ordenado.”
É realmente divertido ver os artifícios infantis que acalentam estes
profundos eruditos, estes inimitáveis lógicos, estes possuidores
exclusivos de toda a graça! “Calvino nunca foi ordenado”, dizem
nossos amigos prelados. “Calvino nunca foi ordenado”, gritam os
romanistas. “E nem mesmo se tenta provar este fato de suma
importância”, proclamam ambos em coro altissonante. Então, agora
satisfaremos estes mesmos confiantes gabolas e aceitamos seu
desafio de discutir esta questão.
Em primeiro lugar, observamos que, aos presbiterianos, a
questão se Calvino foi ou não ordenado é de nenhuma importância
prática. Todo este vozerio não passa de som sem nexo, vox et
proeterea nihil, emitido com o fim de abafar a voz da razão e desviar
a atenção da evidente derrota.
Então, que se entenda que a validade da ordenação
presbiteriana de modo algum e em nenhum grau depende da
ordenação de Calvino. Pode ser que ele tenha sido ou não ordenado,
enquanto de nossa ordenação não se pode ter a menor sombra de
dúvida. Se a validade de nossas ordenações dependesse da
sucessão pessoal de uma única linhagem de ordenadores; se Calvino
estivesse ligado a essa linhagem e nossa atual cadeia estivesse
conectada a ele; então, de fato, haveria algum sentido e alguma
força nas objeções feitas contra a ordenação de Calvino. É sobre
esta base que negamos ousadamente que exista alguma ordenação
prática válida, ou cuja existência possa ser demonstrada em qualquer
das igrejas, seja romana, ou anglicana, ou episcopal americana. No
entanto, sustentamos que não existe tal doutrina. Nossa ordenação
não depende de um prelado, e sim de muitos presbíteros. De modo
que, mesmo que se possa demonstrar invalidade atinente a qualquer
um dentre os presbíteros oficiantes, em qualquer dado caso, isso
não afeta o todo e, consequentemente, não causa dano à ordenação
que é feita pelo todo. Calvino nunca ordenou sozinho? Acaso Calvino
ordenou sozinho todos aqueles de quem emanam nossas atuais
ordenações? Absurda presunção! A qual toda a ousadia da maligna
temeridade jamais ousou fazer.
Então, suponhamos que Calvino, embora não ordenado, se uniu
ao Presbitério de Genebra para conferir ordenação a outros. Acaso
os outros, como Farel e Coraud, não ordenaram e também foram
ordenados pelos prelados romanos? Acaso Lutero e Zuínglio, e
muitos outros, não foram ordenados em caráter prelático? E,
portanto, subtraindo da cerimônia a cooperação inválida de Calvino,
porventura não houve suficiente validade para assegurar um
resultado válido? Com base na Escritura, na razão e na teoria da
ordenação presbiteriana, com toda certeza houve validade. E seja o
que for que nossos oponentes prefiram dizer da validade da
ordenação presbiteriana em geral, não podem, sem trair absoluto
absurdo, afirmar que ela depende, em qualquer grau, do fato da
ordenação de Calvino. Toda esta questão, portanto, é meramente de
curiosidade literária e de pesquisa histórica.
No entanto, avançamos um passo a mais e afirmamos que o
caráter e autoridade de Calvino, como ministro de Jesus Cristo, não
dependiam de sua ordenação. A ordenação não confere a ninguém
seja o caráter, seja a autoridade de ministro de Cristo. As
qualificações que capacitam alguém para este elevado ofício só
podem ser comunicadas por Deus através de Cristo, bem como pela
operação eficaz do Espírito Santo. Sem estes, ninguém está
capacitado para a ordenação, a qual pressupõe sua existência. A
autoridade para pregar o evangelho se origina também daquela
comissão que Cristo delegou a todos aqueles a quem ele — como a
única Cabeça da Igreja, a quem foi dado todo o poder no céu e na
terra — tem qualificado para a Obra.
É uma blasfema presunção, em qualquer igreja ou grupo de
homens, reivindicar o poder de comunicar a outros ou as
qualificações ou a autoridade de pregar o evangelho. Portanto, a
ordenação é meramente o método designado por meio do qual
algum dado ramo da Igreja declara sua convicção de que o indivíduo
ordenado está qualificado e autorizado por Deus a pregar o
evangelho, e por meio do qual o recomendam a todos aqueles em
favor de quem agem, como digno de sua confiança e habilitado a
todo respeito e consideração devidos a um ministro de Cristo.
Portanto, a ordenação é essencial à regularidade, porém não à
validade do ministério. E qualquer igreja deve ter essa ilimitada
confiança nas qualificações e chamado de alguém para o ofício,
admitindo-o como ministro entre eles sem uma ordenação especial, e
certamente deve ser não menos ministro, uma vez admitido de uma
maneira inusitada ao exercício de seus dons e vocação.
Naturalmente, em circunstâncias ordinárias, nenhum desses casos
poderia ocorrer. Falamos hipoteticamente. No entanto, é verdade
que Calvino nunca foi ordenado?
Então, nossas observações se aplicam a ele em toda sua força.
Quem já nutriu dúvidas de suas qualificações para o ministério?
Seguramente, não os ministros e magistrados de Genebra quando,
quase pela força, o compeliram a tomar posse de seus deveres.
Possuindo, pois, como todo o mundo reformado crê, as qualificações
e vocação que o habilitaram para o ministério, Calvino possuiu
também a autoridade de Cristo para engajar-se em seu serviço. E se
as igrejas pensassem ser desnecessário que ele fosse firmemente
separado pela ordenação, a autoridade de Calvino como ministro de
Cristo não seria menor, e sim ainda mais evidente; ainda mais que
todos criam ser ele creditado por dons e vocação extraordinários.64
Mas, além de tudo, afirmamos que Calvino estava autorizado a
pregar pela própria igreja romana. Ele recebeu a tonsura das mãos
do prelado romano, a qual é a primeira parte da cerimônia de
ordenação e qualifica a deter benefícios e curas. Portanto, o cabelo
cortado na cabeça na forma de coroa mostra, como é ensinado
pelos romanistas, que o indivíduo participa da soberania de Jesus
Cristo.65 Em virtude deste ofício e autoridade, “é indubitável” que
João Calvino enunciou alguns sermões em Pont L’Eveque antes de
deixar a França.66 Portanto, no juízo da igreja romana, ele possuía
ordenação suficiente que autorizava sua pregação. E visto que o
poder que esta igreja professa dar na ordenação para o sacerdócio
é idolátrico e blasfemo,67 e não é considerada nem crida pelas
igrejas reformadas, Calvino recebeu da igreja romana toda aquela
autoridade que é tida como suficiente, para aqueles deveres que são
reconhecidos pelos protestantes como próprios e peculiares para o
ministério.
No entanto, avancemos ainda mais em nosso argumento e
asseveremos que é uma questão da mais indubitável inferência que
Calvino foi ordenado na Igreja Reformada e pelo Presbitério de
Genebra.
Que existia um Presbitério em Genebra, antes mesmo que
Calvino chegasse naquela cidade, é além de qualquer dúvida. Beza
declara expressamente que, quando Farel, por sua denúncia,
conquistou o propósito de Calvino de ficar em Genebra, “Calvino
sentiu-se atemorizado com esta terrível denúncia, cedendo à vontade
do Presbitério e dos Magistrados.” (“Presbiterii et magistratus
voluntati.”)68
É igualmente indubitável que a convicção estabelecida e
uniforme dos Reformadores de que a ordenação da Igreja, nas
circunstâncias ordinárias, era necessária e mui importante, e que sua
prática era consistente com esta convicção. A menos que se negue
isto, é desnecessário produzir provas que estão à mão.69
Ainda mais, é indiscutível que este era o critério não só de todos
os demais reformadores, mas também do próprio Calvino. Em muitas
partes de suas Institutas (sua primeira obra teológica), ele insiste
sobre a importância e necessidade de ordenação pela imposição das
mãos. (Veja Livro IV, capítulo 3, § 16 e capítulo 4, §§ 6, 10, 14.)
Estes sentimentos, os quais Calvino havia publicado um pouco antes
de ir para Genebra, ele sempre os manteve depois, como fica claro
em todas as edições subsequentes desta obra e na Confissão das
igrejas francesas, a qual ele mesmo elaborou e na qual se declara
que a ordenação é essencial a um ministério regular.
A inferência, pois, é inevitável, a saber, que, ainda quando
houvesse um Presbitério em Genebra na época em que Calvino foi
para lá, a partir de então todos os Reformadores, e Calvino, em
particular, insistiram na necessidade da ordenação, à luz de toda a
Escritura; e visto que se diz expressamente que Calvino sujeitou-se
ao Presbitério, então teria sido, e foi, ordenado. Não se faz
necessário nenhum registro particular da época e a maneira de sua
consagração. Há evidência circunstancial mais que suficiente para
estabelecer o fato em qualquer tribunal.
Ainda mais: o próprio Calvino testifica que ele foi ordenado.
Assim, no prefácio de seus Comentários aos Salmos, ele diz: “Como
Davi foi levantado do rebanho à mais elevada dignidade do governo,
assim Deus me dignificou, procedente de uma origem obscura e
humilde, com o sublime e honroso ofício de ministro e pregador do
evangelho.”70 Mas, visto que Calvino mesmo pública e
constantemente ensinou a necessidade da ordenação ao ministério,
ao fazer esta declaração, ele assevera também o fato de sua
ordenação. Assim também, quando o Cardeal Sadoleto atacou o
caráter de seu ministério, formalmente defendeu-o numa longa
epístola dirigida àquele eminente homem.71 Nesta defesa, ele diz:
“Sed quum ministerium meum quod Dei vocatione fundatum ac
sancitum fuisse non dubito, per latus meum sauciari videam,
perfidia erit, non patientia, si taceam hic atque dissimulem. Doctoris
primum, deinde pastoris munere in ecclesia illa functus sum. Quod
eam provinciam suscepi, legitimae fuisse vocationis jure meo
contendo.” “Hoc ergo ministerium ubi a Domino esse constiterit” etc.
Isto é: “Quando vejo meu ministério, o qual não tenho dúvida de ter
sido sancionado pela vocação de Deus, ser ferido em meu peito,
seria perfídia, e não paciência, se permanecesse calado e escondido
no ócio. Eu preencho (ou desfruto da honra de) naquela igreja o
ofício, primeiramente de professor; e, em seguida, de pastor; e
declaro que aceitei aquela incumbência, tendo a autoridade de uma
vocação legítima.” “Desde então, o ministério foi estabelecido pelo
Senhor” etc. Se, pois, o testemunho de Calvino — publicado ao
mundo, em face das igrejas reformadas, e em plena visão de seus
sentimentos e prática sobre o tema da ordenação, em ambas as
quais ele concordou — pode ser confiável, então sua introdução ao
ministério por uma ordenação regular está além de toda e qualquer
controvérsia.
Além de tudo isso, temos a evidência dos Reformadores e das
próprias Igrejas Reformadas de que Calvino foi ordenado. Ninguém
foi posto em condição mais elevada entre eles, como ministro e líder,
a saber, eleito Moderador do Presbitério de Genebra, continuou a
exercer aquele ofício até sua morte. Assentou-se nos Sínodos das
igrejas suíças. Quando expulso de Genebra, ele se retirou para
Strasburg, onde foi outra vez constrangido a cumprir seus deveres
de professor e pastor, pela agência daqueles homens eminentes:
Bucer, Capito, Hedio, Niger e Sturmius. Também Bucer, numa carta
endereçada a ele em 1536, o chama expressamente “meu irmão e
colega ministro”. Ora, todos estes Reformadores, como já vimos,
mantiveram que a ordenação era tanto bíblica quanto necessária; e,
visto que o próprio Calvino era da mesma opinião, devemos
considerar o testemunho de seu caráter e posição ministeriais como
prova positiva de sua convicção de que ele foi regularmente
ordenado.
Beza, em seu livro Vida de Calvino, parece declarar que ele foi
ordenado, em linguagem tão clara quanto pôde fazê-lo. Diz ele:
“Calvinus sese presbyterii et magistratus voluntati permisit; quorum
suffragiis, accedente plebis consensu, delectus non concionator tantum (hoc
autem primum recusarat) sed etiam sacrarum literarum doctor, quod unum
admittebat, est designatus, A.D. MDXXXVI.”

Isto é, “Calvino se pôs à disposição do Presbitério e


Magistrados, por cujos votos (tendo o povo previamente expressado
sua boa vontade) foi escolhido não apenas pregador (ofício esse,
entretanto, que a princípio declinou), mas também professor de
divindade, ele foi separado (ou induzido ao ofício) no ano de 1536.”
Ora, o próprio ofício e dever de um presbitério é, entre outras
coisas, admitir e ordenar homens ao ministério. Calvino, porém, foi
admitido ao ministério por um Presbitério composto de
Reformadores, os quais insistiram fortemente sobre a importância do
rito de ordenação. Calvino também, em seus pontos de vista,
concordou com esta ordenança, como introdutória ao ministério
deles. E Beza diz que, havendo sido, pelo povo, eleito pastor, e
havendo sido aprovado pelos votos do Presbitério, “foi separado”,
isto é, da maneira regular, mediante a ordenação. Beza nunca
sonhou que, tempos depois, um fato tão necessariamente implícito
em sua afirmação, e em todas as circunstâncias do caso, pudesse
ou fosse questionado.
Este claro testemunho de Beza é confirmado pelo de Junius, o
erudito professor de divindade em Leyden. Em oposição a
Belarmino, ele afirma que os Reformadores que precederam Calvino
mantinham e praticavam a ordenação presbiteriana, e que Calvino
mesmo foi ordenado por alguns destes seus predecessores.72
O certo é que nem os romanistas, nem os prelatistas daquele
tempo jamais questionaram o fato de que Calvino foi ordenado
segundo o costume da Igreja Reformada. Os romanistas não
questionaram. O Cardeal Belarmino diz que “nem Lutero, nem
Zuínglio, nem Calvino foram bispos (i.e., prelados), mas apenas
presbíteros;73 assim, evidentemente, assume como inegável que
todos eles foram presbíteros e, portanto, ordenados como tais.”
Igualmente o Cardeal Sadoleto, com base na controvérsia entre ele e
Calvino, parece haver admitido plenamente a ordenação de Calvino
em conformidade com a ordem da Igreja Reformada, porém negou a
validade de tais ordens, uma vez que foram administradas fora da
igreja romana. Daí o objetivo de Calvino, em sua resposta, não ser o
estabelecimento do fato de sua ordenação, e sim a validade e base
bíblica das ordens da Igreja Reformada.
Tampouco as prelazias questionaram o caráter e posição
ministeriais, bem como a consequente ordenação de Calvino. O Dr.
John Philpot, arquidiácono de Winchester, mártir em 1555, ao provar
que a Igreja Reformada é a verdadeira, pelo “espírito de sabedoria,
ao qual os adversários nunca puderam resistir”, diz: “Onde há um de
vós que sempre foi apto a responder aos santos, eruditos e
ministros da Alemanha, os quais têm demonstrado que vossa religião
é forjada. Qual de todos vós, hoje, é apto a responder às Institutas
de Calvino, o qual é ministro de Genebra?” A isto replicou seu
inquisidor papal, Dr. Saverson, não negando a ordenação ou o
caráter ministerial de Calvino, e sim denegrindo o caráter dos
Reformadores em geral — “de fato, um santo ministro de receita de
batedores de carteiras e traidores fugitivos” etc. “Estou certo”,
replicou Philpot, “tu blasfemas daquele santo homem e daquela santa
igreja da qual ele é ministro, como é a condição de tua igreja;
quando não podes responder aos homens fazendo uso da erudição,
então os oprimes com blasfêmias e falsas notícias.”74 O Bispo
Jewell, o expositor dos sentimentos da Igreja Inglesa, prossegue
dando novamente este título a Calvino na próxima sentença,75 em
réplica ao jesuíta Harding: “No tocante ao Mestre Calvino, constitui
um grande erro e inverdade representar tão reverente pai e tão digno
ornamento da Igreja de Deus. Se conhecesses a ordem da Igreja de
Genebra e visses quatro mil homens ou mais recebendo os santos
mistérios juntos em comunhão, não poderias, sem sentir profunda
vergonha e falta de modéstia, ter jamais publicado ao mundo,
dizendo que por meio da doutrina do Mestre Calvino os Sacramentos
são supérfluos.” — Defesa da Apologia; veja em os Pais da Igreja
Inglesa de Richmond, volume 8, pág. 680. Tais também foram os
pontos de vista fomentados pelo Arcebispo Cranmer, Bispo Hooper,
Bispo Hall e muitos outros. Hooker subentende a ordenação e
perfeita posição ministerial de Calvino em tudo o que ele diz dele. Ele
o chama “o homem (i.e. ministro) incomparavelmente mais sábio que
a Igreja Francesa desfrutou, desde o momento que o teve”. Falando
do clero genebrino, ele os chama de “pastores de suas almas” e
então acrescenta: “Sendo Calvino admitido como um de seus
pregadores”, isto é, um destes pastores, pois eles não tinham
pregadores além de seus ministros regularmente ordenados, “pelo
quê, tomando para ele dois dentre os outros ministros” etc.76
Igualmente Bullinger, contemporâneo de Calvino, de quem é dito
que “todos os pais da Reforma inglesa o tinham em grande estima”;
e que “ele prestou grande serviço à Igreja Inglesa”.77 A quem os
Bispos Grindal e Horn, em carta conjunta dirigida a ele, “atribui
principalmente a mudança favorável que se concretizou nos
sentimentos do povo para com a Igreja”; e cujo catecismo foi
selecionado pela Universidade de Oxford como um daqueles livros
requeridos para o uso dos tutores; mais explicitamente, ele sustenta
o caráter ministerial de Calvino. Numa obra publicada por ordem da
convocação da Igreja Inglesa em 1586, cum gratia et privilegio
regiae majestatis, e como manual para os pregadores,78 ele fala de
Calvino nestes termos: “João Calvino, um homem piedoso e erudito,
o qual com grande encômio ensina hoje na Igreja, meu colega
ministro, mui amado e querido irmão.”79
“Também Stancarus, o eminente Reformador, escreveu a obra
‘Adversus Henricum Bullingerum, Petrum Martyrem et Joannem
Calvinum, et reliquos Tigurinae ac Genevensis ecclesiae ministros,
ecclesiae Dei perturbadores” etc., Basle, 1547. Esta obra teve a
resposta de Semler, e é mencionada pelo Bispo Jewell numa carta a
este reformador suíço. Ora, temos aqui Calvino denominado
expressamente por um romanista de ministro, numa obra polêmica
escrita contra ele e, ao mesmo tempo, em que Bullinger e Pedro
Mártir são denominados de ministros. E resta demonstrar-se que os
teólogos católico-romanos nutram o hábito de aplicar o termo
“ministro” a pessoas que creem não ser em nenhum sentido ou
maneira ordenadas. Em “uma carta cristã de certos protestantes
ingleses, os quais favorecem sinceramente o presente estado da
religião autorizada e professada na Inglaterra, sob aquele reverendo
e erudito homem, Mr. R. Hooker, escrita em 1590, onde reza: “Os
reverendos pais de nossa Igreja denominam o Mestre Calvino como
sendo um dos melhores escritores (Whitgift Del. Ans. p. 390); um
reverendo pai e digno ornamento da Igreja de Deus (Jewel Apol.
Del., pt. II. P. 149, e Fulke contra Stapleton, p. 71); não só
defendendo a mesma doutrina, mas também livrando-o das notícias
caluniosas erroneamente postas sobre ele; sabendo que, ao difamar
as pessoas dos ministros, o diabo, desde os tempos mais remotos,
sempre lutou para destruir o evangelho de Cristo.” Veja a citação por
extenso na edição de Hanbury das Obras de Hooker, volume 1. p.
22, 23. O todo é muito forte. Veja-se ainda a obra de Wordsworth,
Eccl. Biogr. volumes 4 269, volume 5. p. 544 etc. Portanto, com base
na opinião da Igreja Inglesa quanto à ordenação de João Calvino, de
1586, não pode haver mais qualquer dúvida.
Portanto, essa é a evidência acumulada como prova da
indubitável e necessária ordenação de Calvino. Ela só pode ser
negada pelos que nutrem o desejo, com propósitos sectários, de
fechar seus olhos contra a mais clara luz. Calvino mesmo o
assevera, com o endosso de Beza e Junius. Subentende-se como
necessária na prática de toda a Igreja Reformada, a qual Calvino
aprovou e o Presbitério de Genebra teria praticado. Ela era admitida
pelos romanistas e prelazias de sua própria época, e está implícita
na estima com que ele era tido por toda a Igreja Reformada.
Mas, se ainda a ordenação de Calvino for posta em dúvida, já
demonstramos que ele fora ordenado pela igreja romana a fim de
receber a autorização para pregar; que sua autoridade como ministro
não depende da cerimônia de ordenação; e que, enquanto nossas
ordens atuais de modo algum dependem da sua, a validade delas de
modo algum está conectada com o fato ou certeza da ordenação de
Calvino.
Enquanto a validade da ordenação romana e da prelazia
depende da infundada presunção de toda uma linha ininterrupta de
sucessores pessoais dos apóstolos — uma mera ficção da
imaginação e sem qualquer fundamento, seja na Escritura, seja na
razão, seja nos fatos — nossa ordenação remonta diretamente a
Cristo e seus apóstolos; tem por base a clara evidência da Escritura
e da prática dos cristãos primitivos; e é transmitida, não através de
uma linhagem, e sim de muitas; e não através de alguma ordem de
prelados, mas através de todo o corpo de pastores e ministros que
tem existido sucessivamente desde o início da Igreja.

64 Veja estes pontos de vista plena e literalmente sustentados pela Confissão das
Igrejas Francesas, art. 31, Quick’s Synodicon, vol. 1, p. 13; e por muitas outras
corporações e autores reformados apresentados em Henderson’s Revelation &
Consid. Pp. 252-263.
65 Veja Broughtoh’s Eccl. Diet. Vol. 2, 468.
66 Beza’s Life.
67 A oferta do sacrifício do corpo e sangue de Cristo pela transubstanciação.
68 Calvino, 1, Opp. folio, 1.
69 Veja Seaman’s Vind. do julgamento da Igreja Reformada concernente à
Ordenação. Londres, 1647.
70 Hoc tamen honorifico munere dignatus est, ut evangelii praeco essem ac
minister. Op. Tom. 3.
71 Ad. J. Sadoletum Responio, etc., in Op. Tom. 8. 105, etc.
72 Animadversiones in Bellarm. Controv. V Lib. cap. 3, in Dr. Miller on Min. p 407.
73 Controy. V. Lib. cap. 3, in Dr. Miller on Min.
74 Veja Examinations and Writings of Philpot, Parker Society edition, pp. 45, 46.
75 Fox’s Exam. of Philpot.
76 Eccl. Pol. Pref. vol. 1, pp. 158, 159, Keble’s ed.
77 Strype’s Mere. II. 1. p. 531, 532, Oxf. ed. Strype’s Grindal, p. 156, Oxf. ed.
78 Wilking’s Concilia, etc., vol. 4, pp. 321, 322.
79 Bullinger sobre os Sacramentos, Cambridge, 1840, p. 287.
AP Ê N D IC E 1
O C A SO D E SER VET O

O propósito primordial do célebre Dr. McCrie era publicar a vida de


Calvino e resolver sem pressa a questão da morte de Serveto,
instituindo pesquisas originais nos arquivos e bibliotecas públicas de
Genebra. Este trabalho foi confiado ao seu habilidoso filho, John
McCrie, que visitou a cidade supra para tal propósito e devotou mais
de um ano a coletar para seu pai dados históricos valiosos. Mas o
venerável Doutor morreu bem na véspera de empreender a obra que
seria a coroa de sua carreira literária. John McCrie aceitou como
sacra herança de seu pai e fruto de sua laboriosa investigação a
então fácil e eminente tarefa de reabilitar o Reformador à opinião
pública, quando uma morte prematura frustrou as expectativas de
seus amigos e parentes.
Não obstante, a reabilitação de Calvino foi delongada apenas
para tornar mais garantida do que sendo confiada aos seus inimigos,
e se concretizando na própria cidade onde se desenvolveram as
cenas que lhe são atribuídas acusadoramente. Um clérigo unitariano
de considerável talento e erudição, A. Reilliet, estimulado pelo
exemplo do Dr. McCrie, rebuscou os arquivos de Genebra, investigou
cuidadosamente todos os manuscritos e correspondências daquele
tempo, preservados nas bibliotecas públicas da Europa, os quais
contêm este caso; e embora devotasse amarga hostilidade ao
calvinismo, contudo, como historiador imparcial, publicou em 1844 o
resultado detalhado de suas investigações, o qual é um veredicto
completo de absolvição das equivocadas e infundadas acusações
lançadas sobre Calvino, em referência à morte de Serveto.
A conclusão a que chega o Dr. Reilliet, baseada em evidência
que jamais poderá ser contestada, pode ser assim sumariada:
Serveto, embora fosse oponente à Trindade, nada mais era do que
um unitariano moderno. Enquanto este negava a divindade de Cristo,
aquele negou sua humanidade e o considerou o Deus absoluto; e
assim ele ficou muito mais distanciado do unitarianismo do que da
ortodoxia; ao mesmo tempo, um completo panteísta que asseverava,
mesmo diante de seus juízes, que o banco em que ele se sentava
era Deus.
Quando Serveto chegou em Genebra, acabara de escapar à
prisão em Viena, onde os bispos romanistas o haviam sentenciado à
fogueira em fogo lento. Ele se ocultou numa taverna sob
pseudônimo. Descobrindo, porém, que os ministros haviam perdido
toda a influência sobre um governo que odiava seus costumes
rígidos, que naquele tempo Calvino era barrado por eles em tudo, e
Genebra se tornara insuportável para ele, então [Serveto] emergiu
de seu refúgio, na esperança de pôr-se à testa de um partido
político e, assim, expulsar de Genebra a ambos, os Reformadores e
a Reforma e substituí-los por suas próprias regras e dogmas. O
julgamento de Serveto era igualmente o de Calvino; de fato, o
destino deste sendo, no momento, o mais iminente dos dois, o
Presidente do Tribunal e os membros influentes do Conselho vieram
a ser seus mais devotados e pessoais inimigos. A luta lhe foi
imposta: a absolvição de um tinha de ser a sentença do outro. A
reverência dos governantes protestantes poderia ter salvado Calvino
da morte, porém não da prisão ou do exílio perpétuo, caso Serveto
tivesse êxito.
O Tribunal era parcial em relação a Serveto, e estaria disposto a
salvá-lo, se sua triunfante arrogância não tivesse arruinado sua
causa; no entanto, não lhe passariam a sentença, mas deixaram o
caso à decisão dos quatro governantes protestantes de Berne,
Basle, Zurique e Schaffhausen. Estes insistiram que a sentença dos
bispos romanistas fosse anunciada contra Serveto, e não deixaram
ao fraco governo de Genebra outra alternativa. No ínterim, o Rei de
França reivindicou energicamente a execução do herege que
escapara de seu reino sob sentença. Serveto implorou o favor de
ser executado em Genebra, e não pelo fogo lento dos bispos
romanistas.
Um ponto importantíssimo estabelecido por Reilliet é que a
condenação de Serveto foi meramente política. Ele foi sentenciado
pelos magistrados de Genebra, não como herege, mas como
rebelde que tentou subverter a constituição de Genebra. Para
condená-lo, a disputa meramente teológica desapareceu ante este
motivo. A sentença judicial na lista de acusações lançadas sobre
Serveto de modo algum menciona ou os ataques contra Calvino, ou
aqueles contra os ministros de Genebra. Serveto entendia muito bem
que, se pudesse livrar-se da suspeita de um homem de má
reputação e perigoso para a tranquilidade pública, sua doutrina, por
si só, não seria motivo suficiente para condená-lo; ou, ao menos, não
teria atraído um castigo tão severo.
Quando a sentença foi passada irrevogavelmente, Calvino e
seus colegas empenharam todos os seus esforços a fim de mitigar a
punição, pelo menos substituindo o fogo pela espada, mas “o
Pequeno Conselho rejeitou o pedido de Calvino. Não obstante, é a
ele que os homens têm sempre imputado a culpa daquela estaca
fúnebre, a qual ele nunca desejara fosse erguida!”
Quem São os Caluniadores de Calvino?
O conceito de Calvino era que as heresias injuriosas à Igreja e ao
Estado mereciam ser punidas com penalidades civis, e forneceu
evidência para provar que Serveto era esse tipo de herege. Ele fez
isso no século dezesseis, quando tal opinião era universalmente
prevalecente. Portanto, conclui-se que Calvino era um furioso
fanático e um monstro de crueldade — que este era o espírito do
sistema da religião que ele ensinou — e que, portanto, este é o
espírito de todos quantos hoje creem nesse sistema.
E quem são aqueles que, contra toda clareza e razão e senso
comum, assim ensinam e assim afirmam? Em primeiro lugar, são os
papistas; em segundo lugar, são os unitarianos; e, em terceiro lugar,
são os incrédulos. Para voltar contra eles o despudor de sua
conduta, usarei a linguagem de outro.
1. Que afronta pode ser mais grosseira do que a denúncia papal
contra Calvino por haver partilhado do julgamento, e supostamente
partilhado da condenação de Serveto?! A Igreja de Roma tem certa
razão de nutrir rancor de Calvino. Ele fora, pela influência de seus
escritos e das igrejas que ele trabalhava para formar, e continua
sendo um de seus mais formidáveis inimigos; mas isto não constitui
razão para impudência tão injusta como aquela com que ele é
acusado, quando ela injuria sua própria memória de perseguidora.
Acaso não nos referimos à perseguição sistemática e maciça de
Roma, quando perguntamos de quem Serveto estava fugindo quando
veio para Genebra, onde foi preso e julgado? Estava fugindo da
Inquisição de Viena na França. Estava para ser condenado às
chamas por aquela corporação, pela mesma heresia pela qual foi
subsequentemente condenado em Genebra. No ínterim, ele
conseguiu escapar. Acaso a Igreja de Roma, nesse caso, agia com
ternura, concedendo trégua e permitindo que o problema fosse
esquecido? Claro que não; ainda que o acusado fugisse, ela persistiu
no caso — condenou Serveto às chamas — queimou-o
simbolicamente no meio de uma pilha de suas obras, partilhando com
ele o mesmo destino — declarou-o proscrito, pronto para a estaca
no primeiro momento que retornasse ao território francês.
Mais ainda, ouvindo que ele fora preso em Genebra, para onde
fugira — não raptado por Calvino, mas em busca de um asilo mais
seguro então existente — ela solicitou dos magistrados genebrinos
que fizessem por ela justiça sumária ou que lho devolvessem para
que ela pudesse “infligir a dita sentença (de morte), cuja execução o
punisse de uma maneira que não houvesse necessidade de buscar
outras acusações contra ele!” Os magistrados recusaram entregar
seu prisioneiro. Não que, provavelmente, nutrissem algum desejo de
completar o julgamento; entregá-lo nas mãos daqueles de quem ele
fugira os teria poupado de muita dificuldade; mas, pelas leis de
Genebra, às vezes aplicadas, e inclusive recentemente, os
magistrados não estavam autorizados a entregar um prisioneiro
acusado, ainda quando o crime fosse cometido fora de seu território.
Viam-se obrigados a resolver o caso por eles mesmos. A este
incidente se deve, e, seguramente, nada poderia ser mais
meramente acidental, que Serveto foi queimado em Genebra, pelos
magistrados protestantes e erastianos, e não em Viena, pelos
inquisidores papais.
Mas, além deste acidente, nunca teríamos ouvido falar de
“Calvino e Serveto”. O nome do último teria se perdido entre os
milhares e dezenas de milhares dos autos-de-fé romanista; e Gibbon
(Edward Gibbon — 1737-1794) teria tido toda a crueldade sem “se
escandalizar”. Pode-se acrescentar que, quando se indagou do
próprio pobre homem se preferia ficar em Genebra ou voltar para
Viena, ele implorou que fosse condenado em Genebra, e pediu-lhes:
“sobretudo, que não o enviassem de volta a Viena.” E Reilliet
acrescenta: “Entre dois males, era preferível evitar o mais
garantido.” Serveto havia experimentado a intolerância do papado e
do protestantismo; e, ao contrário da opinião de Gibbon, ele cria que
estaria mais seguro com o último. E aqui, como já vimos,
provavelmente teria escapado, não fora o rei papista francês haver
exigido sua execução.
Tal é a conexão da Igreja de Roma com o caso de Serveto; e
acaso não é possível que ele se enchesse de desgosto quando os
papistas concordaram com o clamor pagão contra a Igreja
Reformada e, sobretudo, contra João Calvino, como o atroz
perseguidor de Serveto em prol de sua morte? Com base na
linguagem que se costuma usar, poder-se-ia presumir não só que a
Igreja de Roma estivesse limpa de sangue humano; senão que ela
fosse uma estremecida e simpatizante defensora de Serveto durante
todos os dias de seu julgamento, e particularmente no dia de sua
execução; que ela se pusesse ao lado dele quando a cristandade
protestante empunhava armas contra ele; e que ela, de boa vontade,
fazendo qualquer sacrifício, o teria resgatado e honrado. Quão
infinitamente os fatos da história são diferentes! Serveto foi duas
vezes condenado à fogueira; e a primeira condenação era ser
queimado pela Igreja de Roma! E, admira-se dizer, seus educados
apoiadores têm o descaramento de torcer os fatos e denunciar
Calvino e todos quantos defendem os conceitos e sistema teológicos
dele, como os perseguidores exclusivos de Serveto, e
representando-o como culpado de um crime tão atroz, a ponto de
sobrepujar e obliterar todos os autos-de-fé da igreja romana ao
longo dos séculos! Acaso essa inigualável afronta se manifestou fora
da Igreja de Roma? Ah! brutal insolência e credulidade do papado!
2. Passemos então ao ceticismo. Ele veio tarde demais ao
mundo numa forma ajuramentada de ser uma franca perseguidora; a
menos que, talvez, classifiquemos muitos dos oficiais máximos da
Igreja de Roma, incluindo no número papas e cardeais. Há pouca
dúvida de que, sob um tênue disfarce, não uns poucos dentre eles
eram céticos; e, se eram perseguidores, como bem sabemos que
sim, então temos um espécime de perseguição em sua mais
chocante forma — perseguição da parte de homens para se crer no
que eles mesmos não criam. Mas a intolerância do ceticismo não se
confina a tais casos. O socinianismo pode ser alinhado positivamente
com o ceticismo. Ele descarta tudo o que é peculiar na revelação
divina. Ora, ninguém foi mais ferrenho partidário de Serverto —
nenhum denunciador mais feroz de Calvino — do que o partido
sociniano. Aliás, se houve alguma corporação religiosa que portasse
o título de cristão, à qual se poderia dizer que Serveto se
enquadraria bem, o socinianismo seria essa corporação. Seu credo
se aproxima mais do dele do que qualquer outro. Seu partido deu a
si a alcunha de amigos da livre investigação, da imparcialidade e da
tolerância — aliás, eles têm assumido o monopólio dessas
qualidades. São por excelência os homens da liberdade — civil e
religiosa. Todos os demais não passam de fanáticos e escravos. A
pequena soma do que creem e sua libertação do misterioso que
mantêm lhes dão uma vantagem sobre os demais na maneira de
amar e praticar a liberdade.
No entanto, o que reza a história acerca de sua prática da
liberdade? Muito embora um pequeno partido que raramente se alia
ao poder civil como corporação religiosa, eles continuam a dar plena
evidência de que o espírito de intolerância não se limita ao papado
ou ao protestantismo ortodoxo — que é natural ao homem, e que
nada há em seu sistema religioso como há na religião evangélica
para firmá-lo ou extingui-lo.
Nos primórdios da Reforma, Francis David, superintendente de
certo departamento de uma igreja sociniana na Pensilvânia, foi
lançado na prisão, onde morreu, por seus próprios amigos
socinianos. Por qual razão? Porque ele sustentava que não se deve
orar a Cristo por ser ele mera criatura; enquanto que Socino ensinou
que ele deve ser adorado assim. Isso fez toda a diferença na crença
entre David e Socino — uma diferença inconcebivelmente menor do
que entre Calvino e Serveto; pois ambos [Socino e Serveto],
“cristãos racionais”, mantinham que Cristo era meramente uma
criatura; e, no entanto, houve prisão que terminou em morte. Acaso
isto revela notável imparcialidade e liberdade? Acaso isso propicia
alguma base para o triunfo dos socinianos, não sobre Calvino — pois
ele não teve nada a ver com a sentença –, e sim sobre os
magistrados erastianos de Genebra, quando condenaram Serveto às
chamas tanto como blasfemo quanto como herege?
Assim transparece que indiferença e ceticismo na religião não
diminuem a severidade no julgamento contra outros. Socino, segundo
a diferença em questão, foi um perseguidor mais feroz do que a
magistratura genebrina. Tampouco este foi um caso isolado; o
mesmo espírito tem se manifestado em tempos mais recentes. Os
socinianos reunidos em Zurique em 1818, e as autoridades
socinianas, seja na Igreja ou no Estado, bem como a população
sociniana no Cantão de Vaud em 1824, e por diversos anos juntos,
sem esquecer os mesmos partidos na própria Genebra, no mesmo
período, todos revelaram um espírito de perseguição tão real como
sempre se mostrou na cristandade; e então, deve-se lembrar, que
estes intolerantes e violentos procedimentos apareceram, não só nos
séculos dezesseis e dezessete, mas também no primeiro quarto do
dezenove, em um vanglorioso período de seu avanço em
conhecimento, liberalidade e liberdade. Em suma, com a exceção do
papado, o qual persegue com base em princípio, e o qual, portanto,
está sempre bem em sua atividade, os perseguidores mais recentes,
na cristandade, tem sido o partido sociniano cético — o mesmo
partido que, em todo o tempo, tem se vangloriado de seu amor pela
livre investigação e quase monopolizador do título liberdade.
Buscando procedimentos no atual momento, nos mesmos
cantões suíços, tudo indica que socinianismo e ceticismo não
significam fazer alguma mudança no caráter intolerante que até então
arrogam para si. Os republicanos na política civil, e os socinianos, se
não descrentes na religião, têm a honra, juntamente com o velho
papado, de serem os perseguidores de 1846. Pode ser que no
momento em curso os primeiros suplantem os últimos. Seria difícil,
em qualquer país papal, pretendendo em alguma medida de luz ou
liberdade, encontrar paralelo nos procedimentos legislativos e nos
feitos práticos do Cantão de Vaud, sob o governo sociniano e cético,
durante os últimos seis meses.
Mas, para trazer a lume a completa intolerância e ceticismo,
devemos recuar um pouco até o final do século dezoito. Os céticos
confessos têm assumido para si o grande crédito de amigos e
patronos da liberdade, e inclusive têm gritado amargamente contra a
suposta severidade e intolerância da religião evangélica,
particularmente em sua forma calvinista. Eles não têm tido paciência
com o espírito descaridoso e perseguidor de “os santos”, e por isso
“Calvino e Serveto” têm provado suficientemente bem ser um
obstáculo aos negócios deles. No entanto, acaso eles tenham
realmente alguma sólida base para vanglória? O fato de terem de
recuar tanto — quase 300 anos — por um único caso, ao contrário,
ele vai de encontro à sua teoria. Não necessitamos de recuar tanto
em busca de ilustrações do caráter perseguidor do ceticismo.
Montesquieu, em seu “Esprit des Lois”, lib. 12, c. 5, tem o cinismo de
dizer: “Eu não disse que não há necessidade de punir a heresia.
Apenas disse que é necessário ser muito cauteloso em puni-la.”
Ousamos dizer que nenhum dos muitos reformadores caluniados
do século dezesseis se queixaria da afirmação. Acaso carece
lembrar ao leitor o sentimento de Rousseau? “A única maneira de
impedir o fanatismo (em outras palavras, a religião evangélica) é
restringindo os que o pregam. Vejo apenas uma maneira de deter
seu progresso, a saber, combatendo-o com suas próprias armas.
Pouco vale arrazoar ou convencer; deves pôr de lado a filosofia,
fechar teus livros, empunhar a espada e punir os velhacos.” Não
muito depois dos dias de Rousseau, houve uma oportunidade de
mostrar o que o ceticismo francês entendia por “fanatismo”.
O Cristianismo, em qualquer forma — seja corrompida ou
verdadeira –, incluindo a Bíblia e o Sábado, foi denunciado como
fanatismo; e os discípulos de Rousseau, Voltaire, Didrot, entre
outros, se engajaram numa feroz e sangrenta perseguição contra o
nome cristão, numa ferocidade suplantada somente pelas
perseguições papais da idade média. Para onde foram a caridade, a
brandura e a tolerância do ceticismo nos dias da Revolução
Francesa? E, no entanto, seus crimes foram perpetrados no sacro
nome da liberdade! Pode-se mostrar que os principais incrédulos
britânicos, tais como Hume e Gibbon, sejam quais forem os
princípios que professavam, foram intolerantes na prática, até onde
permitiram suas circunstâncias, o espírito da época e a indiferença
para com toda a religião. É notório que, em seus escritos, puseram-
se ao lado do opressor e o perseguidor, quando se armaram contra
a verdade evangélica e seus amigos. Suas solidariedades não
visavam ao sofredor religioso, ainda que sofressem pela causa da
liberdade civil, e sim visavam ao tirano e perseguidor. Também seu
tratamento prático de homens que mantinham a verdade evangélica
não corresponde ao seu credo professado de tolerância universal e
não responsabilidade pelo erro. Sempre serão achados
sarcasticamente ferindo os sentimentos dos cristãos, ridicularizando-
os e condenando-os; e, em suma, revelando algo que não encaixava
ao espírito tolerante e caridoso.
Mantendo os pontos de vista que estes céticos mantinham,
focando o tema da verdade e do erro, deveriam ter sido pacientes e
bondosos; ao menos, cheios de comiseração para com os cristãos
evangélicos. Acaso este é o seu espírito? Acaso este espírito foi o
que caracterizou Hume em sua relação social; ou Gibbon, quando,
denunciando Calvino, declarou que ele se sentia mais escandalizado
com sua suposta conexão com a morte de Serveto do que com
todas as fogueiras da Igreja de Roma? Mesmo um biógrafo recente
e parcial do primeiro (Burton), falando de uma obra anterior, diz:
“Ainda que sua biografia (de Hume) seja cética, sua maneira é
frequentemente dogmática; e enquanto ilustra a fragilidade de todo
raciocínio humano, é como se ele sentisse infalibilidade inata em seu
próprio!”
Mas as inconsistências dos filósofos anteriores são poucas
comparadas com as de um estadista ou autor moderno, cuja posição
religiosa, bem como filosófica, sentimos alguma dificuldade em
certificar.
Reportemo-nos ao Lord Brougham. Nenhum homem, não
importa o nome, nos tempos modernos, tem sido mais descaridoso
para com Calvino do que Sua Senhoria; e certamente nenhum já
revelou mais ignorância dos fatos reais do caso que tenha provocado
tão viva condenação. No entanto, de todos os homens, Lord
Brougham teria sido o mais tolerante e sincero. Se ele não pertence
aos céticos, ao menos pertence à mesma escola liberal. Ele tem
proclamado como o próprio fundamento da tolerância, e isso com
uma voz oracular, que um homem não é mais responsável pelo que
crê do que pelo matiz de sua pele ou pela altura de sua estatura, seu
nome costuma ser associado com a advocacia de todos os que eram
livres, quer civis ou religiosos.
Seguramente, pois, Brougham teria se apiedado de Calvino e
demonstrado bondade e caridade em seu julgamento. O Reformador
cria, como doutrina geral, que os hereges e blasfemos flagrantes e
incorrigíveis deveriam ser punidos. Essa era sua convicção
deliberada. Ele não foi mais responsável por esta convicção do que
pelo matiz de sua pele e pela altura de sua estatura. E, então, por
que Lord Brougham o culpa, e descaridosamente o interpreta mal e o
denigre por esta sua sóbria convicção, muito mais do que por sua
complexidade e sua estatura? Acaso o resultado não mostra
claramente que o liberalismo na religião e política, o que quer que
pretenda, é essencialmente intolerante e perseguidor? E se esta é a
característica nas mãos e no coração de Lord Brougham, o qual
tinha tantas razões para ser, ainda que em respeito e em seu bom
comportamento, quanto mais forte deveria ser o mesmo espírito
intolerante e perseguidor demonstrado naqueles que estão sob
menos coibição! Com razão podemos indagar: acaso o homem
Brougham tem o direito de condenar a intolerância de Calvino? A
própria intolerância, sem uma razão — ou, melhor, em face de fortes
razões ao contrário –, ele, o homem, intolerante no século dezenove,
que mantém sua própria doutrina de não responsabilidade, pode
censurar a intolerância do século dezesseis? O que pode ser mais
ridículo e inconsistente? Nada, pois a intolerância do Lord é de
mesmo cunho que a intolerância que ele está criticando. Só que a
intolerância do Lord é mais recente. Lord Brougham se apresenta
como o próprio patrono e padrão da liberdade em cada forma; a
ponto de contrariar seus próprios princípios, ele reivindica a
autoridade de censurar com toda severidade o grande Reformador
genebrino, dentro do Senado britânico, 300 anos depois do fato
histórico.
Seguramente, hoje o liberalismo moderno deve ser tolerante e
caridoso; aliás, o próprio inimigo de quaisquer vestígios de
perseguição. Qual é o fato? Não faz muito tempo, Lord Brougham
reivindicou os locais de refugiados escoceses, alegando que seus
procedimentos iam de encontro aos justos direitos da propriedade
apossada! O homem que condena Calvino como o mais atroz dos
perseguidores, não vê perseguição (compaixão, pelo menos se
tivesse consciência dela) para com centenas e milhares de seus
compatriotas, muito mais devotos e religiosamente inteligentes do
que ele, sendo-lhes negado um pedaço de terra onde pudessem
cultuar a Deus, e se vendo compelidos, no verão e no inverno, a
conduzir seu culto sob o dossel aberto do céu. Lord Brougham não
vê perseguição que grandes congregações sejam expulsas para as
rodovias ou praias, e sendo mantidas ali para a prática de seu culto
religioso, desde maio de 1843 até o presente momento — agosto de
1846. Segundo seu princípio de senhorio, não há perseguição, ainda
que este estado de coisas se perpetue para sempre. Mais ainda, ele
se sente indignado quando alguém julga isto como sendo
perseguição, e não permite que isto seja declarado em sua presença
sem uma imediata e mui ofensiva contradição; e este é o censor
liberal e atento do intolerante Calvino! Quem poderia comparar os
dois casos e a parte que Calvino tomou no julgamento de Serveto
(pois ele não teve em mãos a sentença), um caso isolado de
severidade, com a opressão franca, intencional e arbitrária contra
multidões, durante anos, na livre Grã-Bretanha, no livre século
dezenove, e não chegar à conclusão de que, consideradas todas as
circunstâncias, um caso não é muito mais grave e inescusável do que
o outro?
No entanto, não carece que façamos alguma comparação. Tudo
o que pretendíamos mostrar, e concluirmos com esta observação, é
que a infidelidade, em suas diferentes formas de socinianismo, de
ceticismo confesso e liberalismo religioso, é muitíssimo injusta em
seu juízo contra Calvino na questão de Serveto; e, em vez de ser tão
cândida e tolerante em si mesma a ponto de se autorizar a assumir
um elevado posto e tornar-se o reprovador de outros, na essência é
intolerante e muito menos justificável em sua intolerância do que os
homens do século dezesseis — a Igreja Livre Magazine.
AP Ê N D IC E 2
A V O N TA D E D E J O Ã O C A LV IN O

E m o nome do Senhor, Amém. No ano de 1564 e no dia 25 de


abril, eu, Peter Chenalat, cidadão e notário de Genebra,
testemunho e declaro que fui enviado por aquele eminente
personagem, João Calvino, ministro da Palavra de Deus nesta Igreja
de Genebra, e arrolado cidadão da mesma, o qual, estando
fisicamente indisposto, porém são na mente, sentindo-se desejoso
de fazer seu testamento e expressar o juízo de sua última vontade;
pediu-me que tomasse nota e escrevesse o que ditaria e declararia
pela palavra dos lábios; o que professo que fiz imediatamente e
escrevi palavra por palavra como pronunciou e me ditou, sem
omissão ou adição, na seguinte forma ditada por ele:
Em o nome do Senhor, Amém. Eu, João Calvino, ministro da
Palavra de Deus na Igreja de Genebra, achando-me tão oprimido e
afligido por várias doenças, que, penso eu, o Senhor Deus
determinou remover-me rapidamente deste mundo, ordeno ser feito
e escrito meu testamento e a declaração de minha última vontade,
na seguinte forma e maneira: Primeiro, rendo graças a Deus que,
tendo compaixão de mim, a quem criou e colocou neste mundo, não
só libertou-me, com seu poder, das profundas trevas da idolatria, nas
quais vivi mergulhado, a fim de trazer-me à luz de seu evangelho e
tornar-me participante da doutrina da salvação, da qual eu era mui
indigno; que, com a mesma bondade e mercê, graciosa e
bondosamente suportou minhas múltiplas transgressões e pecados,
pelos quais eu merecia ser rejeitado e eliminado por ele; e também
exerceu para comigo tão grande compaixão e clemência, que
condescendeu em usar meu labor na pregação e publicação da
verdade de seu evangelho. Testifico e declaro ainda que minha plena
intenção é passar o resto de minha vida na mesma fé e religião, as
quais ele entregou por meio de seu evangelho; não tendo nenhuma
outra defesa ou refúgio de salvação além de sua graciosa adoção,
unicamente da qual depende minha segurança. Abraço ainda, de
todo o meu coração, a mercê que ele exerce para comigo por amor
a Jesus Cristo, expiando meus crimes pelos méritos de sua morte e
paixão, para que assim fosse feita satisfação por todas as minhas
transgressões e ofensas e apagasse a memória delas. Testifico e
declaro mais que, como suplicante, imploro humildemente dele que
me conceda seja eu de tal modo lavado e purificado pelo sangue
daquele soberano Redentor, derramado pelos pecados da raça
humana, que me seja permitido estar diante de seu tribunal na
imagem do próprio Redentor. De igual modo, declaro que, segundo a
medida da graça e mercê que Deus me outorgou, tenho-me
esforçado com toda diligência, em meus sermões, escritos e
comentários, a pregar sua Palavra com pureza e sem interrupção, e
interpretar fielmente suas Santas Escrituras. Testifico e declaro que
em todas as controvérsias e disputas, as quais eu tenho conduzido
contra os inimigos do evangelho, nunca fiz uso de astúcia, nem de
artes corruptas e sofísticas, senão que tenho me engajado na defesa
da verdade com retidão e sinceridade.
Mas, ah! meus estudos e meu zelo, se merecessem a alcunha,
para com os quais tenho sido tão remisso e lânguido, que confesso
vezes sem conta que tenho negligenciado o cumprimento dos
deveres de meu ofício que em tudo é tão excelente; e, a menos que
a infinita generosidade de Deus estivesse presente, todos os meus
estudos teriam sido vãos e transitórios. Reconheço ainda que, a
menos que a mesma bondade me acompanhasse, os dotes mentais
que Deus me outorgou teriam me feito mais e mais merecedor de
culpa e inatividade diante de seu tribunal. E, sobre estas bases,
testifico e declaro que não espero nenhum outro refúgio de salvação
além deste único — que, posto que Deus seja o Pai de toda mercê,
ele se mostrará Pai para comigo, eu, que me confesso um mísero
pecador. Além do mais, minha vontade é que, após minha partida
desta vida, meu corpo seja entregue à terra daquela forma e com
aqueles ritos fúnebres que são usuais nesta cidade e igreja, até que
venha o dia da bendita ressurreição.
No tocante ao pequeno patrimônio que Deus me outorgou e que
determinei dispor neste testamento, designo a Antônio Calvino, meu
mui amado irmão, meu herdeiro, mas apenas como sinal de respeito.
Que ele tome posse e guarde como lhe pertencendo meu copo de
prata o qual me foi dado como presente por Mr. Varanne. Espero
muito que ele se sinta contente com isto. No tocante ao resto de
minha propriedade, entrego-o ao seu cuidado com este pedido: que,
em sua morte, ele o repasse a seus filhos. Deixo ainda por herança à
escola de meninos dez coroas de ouro; que sejam dadas por meu
irmão e herdeiro legal; e, aos estrangeiros pobres, a mesma soma.
Igualmente a Jane, filha de Charles Costuns e de minha meio-irmã
pelo lado paterno, a soma de dez coroas. Além do mais, desejo que
meu herdeiro dê, em sua morte, a Samuel e a João, filhos de meu
dito irmão, meus sobrinhos, de minha propriedade, quarenta coroas
a cada um deles, após sua morte; e às minhas sobrinhas, Ana,
Susana e Dorothy, a cada uma delas, trinta coroas de ouro. A meu
sobrinho Davi, como prova de sua conduta leviana e fútil, eu deixo de
herança somente vinte e cinco coroas de ouro.
Esta é a soma de todo o patrimônio e propriedade que Deus me
concedeu, quanto sou capaz de certificar, em livros, móveis, toda a
mobília doméstica e todos os demais pertences e bens móveis.
Entretanto, que, segundo meu desejo, tudo seja igualmente
distribuído entre meus sobrinhos e sobrinhas, supramencionados,
sem excluir meu sobrinho Davi, que deveria, pelo favor de Deus,
retornar a um modo de vida útil.
Entretanto, além da soma já escrita, não creio que será
lembrada com muita dificuldade, especialmente depois de pagar
minhas dívidas justas, o que eu tenho confiado ao meu dito irmão,
em cuja fidelidade e bondade eu confio. Por esta conta, eu o designo
executor deste meu último testamento, com Laurence da Normandia,
um personagem de dignidade atestada, dando-lhes pleno poder e
autoridade, sem um mandamento e ordem mais exatos do tribunal,
para fazer um inventário de meus bens. Eu lhes dou também poder
para vender meus móveis, para que, do dinheiro assim adquirido,
cumpram a condição de minha vontade sobrescrita, a qual eu anuncio
e declaro neste dia 25 de abril do ano de nosso Senhor, 1564.
João Calvino.
Quando eu, notário supramencionado, escrevi esta última vontade, o
mesmo João Calvino o confirmou imediatamente por sua usual
subscrição e manuscrito. No dia seguinte, 26 de abril de 1564, o
mesmo nome atestado, João Calvino, mandou chamar-me,
juntamente com Theodore Beza, Raymond Chauvet, Michael Cops,
Louis Enoch, Nicholas Colladon, James de Bordes, ministros e
pregadores da Palavra de Deus nesta Igreja de Genebra, e também
o eminente Henry Scringer, professor de artes, todos os cidadãos de
Genebra, e, em sua presença, ele declarou e testificou que ditara a
mim esta sua vontade; bem como as palavras e forma sobrescritas.
Ele ordenou-me também que o recitasse a seus ouvintes, os quais
foram chamados para esse propósito, o que professo ter feito, em
voz alta e de uma maneira bem articulada. Após lê-lo assim
audivelmente, ele testificou e declarou ser esta sua última vontade e
testamento, e expressou o desejo de que fosse ratificado e
confirmado. Como testemunho e corroboração disto, ele requereu
que todos fossem testemunhas da mesma vontade de própria mão.
Eles fizeram isto imediatamente no dia e ano sobrescrito, em
Genebra, na rua chamada os Canhões, na casa do dito testador. Em
prova e testemunho disto, eu o escrevi e subscrevi, com minha
própria mão, e selei, com o selo comum de nosso supremo
magistrado, a vontade supramencionada.

— P. Chenalat.
AP Ê N D IC E 3
O R IG E M D A C A L Ú N IA D E Q U E C A LV IN O
P R E T E N D E R A A N U L A R O D IA D O S E N H O R

A autoridade de Calvino costuma também ser aduzida em apoio dos


pontos de vista desconexos com respeito à obrigatoriedade do
quarto mandamento. Esta é uma calúnia antiga e estapafúrdia.
Tomamos de Beza o seguinte extrato, não só em satisfação a esta
alegação feita por Beza, como amigo pessoal de Calvino, o qual teria
conhecido perfeitamente seus sentimentos, mas também neutralizar
quaisquer impressões que porventura circulassem em detrimento da
fidelidade e pureza da Igreja de Genebra, nos dias de Calvino.
“O ano de 1550 foi notável por sua tranquilidade com respeito à
Igreja. O Consistório resolveu que os ministros não confinassem suas
instruções ao ensino público — o que era negligenciado por uns e
ouvido com bem pouco proveito por outros –, mas em tempos
aprazados visitassem cada família de casa em casa, acompanhados
por um ancião e um decurião de cada distrito, explicando as
doutrinas cristãs ao povo comum e requerendo de cada um breve
relato de sua fé. Estas visitas privadas foram de grande proveito à
Igreja e dificilmente se crê quanto fruto se produziu por meio deste
plano de instrução. O Consistório forneceu diretrizes para que a
celebração do nascimento de Cristo fosse deferido para o dia
seguinte, e que não se observasse nenhuma festa como santa,
exceto a sétima que também é chamada Dia do Senhor. Este
procedimento causou escândalo a muitos, e com o propósito de
reprovar Calvino, houve alguns que fizeram circular a notícia
infundada de que ele havia ab-rogado o próprio sábado.”
A Aprovação de Melancthon do Procedimento de Calvino
com Respeito a Serveto
M. D’Aubigne estava estritamente certo em suas alusões históricas a
este célebre reformador alemão. Numa carta de Melancthon a
Calvino, datada de 14 de outubro de 1554, encontramos os
seguintes sentimentos:
“Reverendo e querido irmão, tenho lido teu livro no qual refutaste
claramente as hórridas blasfêmias de Serveto; e dou graças ao Filho
de Deus que foi o doador de tua coroa de vitória em teu combate.”
“Igualmente, a Igreja, neste momento deve a ti, e até a última
geração, gratidão perene.” “À tua opinião dou meu pleno
assentimento.”
“Afirmo também”, diz ainda em outra carta datada de 20 de
agosto, “que o Senado genebrino agiu corretamente pondo um fim a
este homem obstinado, o qual nunca cessaria de blasfemar, e
admira-me que outros desaprovem tal severidade.”
Esta opinião de Melancthon foi sustentada por Bullinger, Pedro
Mártir, Zanchius, Farel, Theodore Beza, Bispo Hall, entre outros.
Portanto, teu correspondente admitiria que o nome de Melancthon
seja com propriedade conectado com o de João Calvino na questão
de Serveto, aprovando ou desaprovando a sentença o quanto
pudermos.

— H.B.
* * * * *
Testemunho de um Unitariano
O que segue provém da pena de George Bancroft, autor da História
dos Estados Unidos, anteriormente ministro plenipotenciário da
Inglaterra, unitariano em suas opiniões religiosas.
Está em tempo de censurar a intolerância que limitaria o louvor
de Calvino a uma única seita. Os que não nutrem admiração pela
riqueza e posição, jamais podem admirar o Reformador genebrino;
pois ainda que ele possuísse a mente mais rica de seu tempo, jamais
saiu dos limites da pobreza frugal. Aos demais dentre nós se pode
permitir que reverenciem suas virtudes e desculpem seus erros. Ele
viveu em uma época em que as nações foram abaladas em seu
cerne pela excitação da Reforma, em que os campos da Holanda e
da França foram umedecidos pela carnificina da perseguição; quando
a punição dos monarcas, de um lado, ameaçava todos os
protestantes com proscrição e morte; e o Vaticano, do outro,
expedia seus anátemas e seu clamor por sangue. É também verdade
que naquele dia a influência de um erro antigo, há muito
estabelecido, dificilmente era disputado; o perigo constante de sua
posição; o mais intenso desejo de assegurar união entre os
antagonistas do papado; a avassaladora consciência de que sua luta
era pela emancipação do mundo cristão — isso induziu o grande
Reformador a defender o uso da espada para a extirpação do erro.
Reprovando e lamentando sua adesão à doutrina cruel que toda a
cristandade recebera implicitamente durante séculos, podemos,
como republicanos, recordar que Calvino foi não meramente o
fundador de uma seita, mas, antes de tudo, entre os mais eficientes
dos legisladores republicanos modernos. Na verdade, mais
benevolente para com a raça humana do que Solon, mais resignado
do que Lycurgus, o gênio de Calvino infundiu perenes elementos às
instituições de Genebra e fez dela, para o mundo moderno, a
fortaleza da liberdade popular, o solo fértil da democracia.
Reiterando, orgulhamo-nos de nossas escolas; Calvino foi o pai
da educação popular, o inventor do sistema de escolas livres.
Reiterando ainda, orgulhamo-nos dos Estados livres que
guarneceram o Atlântico. Os Peregrinos de Plymouth eram
calvinistas; a melhor influência da Carolina do Sul veio dos calvinistas
franceses. William Penn era discípulo de huguenotes; os navios da
Holanda, que trouxeram os primeiros colonizadores a Manhattan,
estavam cheios de calvinistas. Aquele que não honra a memória,
não respeita a influência de Calvino, sabe muito pouco da origem
da liberdade americana.
Ou porventura as considerações pessoais é que principalmente
conquistam aplauso? Então ninguém merece nossa simpatia e nossa
admiração mais que Calvino. O jovem exilado de França, que
granjeou a imortalidade da fama antes mesmo que completasse vinte
e oito anos de idade, ora se aventura como o apóstolo da verdade,
levando as novas doutrinas ao coração da Itália; e ora, com
dificuldade, escapa da fúria da perseguição papal, o mais puro
escritor, o mais hábil dialético de sua época; promovendo a livre
investigação ao seu limite máximo e, no entanto, só valoriza a
investigação como o meio de chegar a princípios fixos. A luz de seu
gênio dissipou a máscara das trevas, cuja superstição foi mantida
durante séculos pela intimidação da religião. Sua probidade era
inquestionável; seus costumes, impolutos. Sua única felicidade
consistia em ‘promover a glória e o bem’; pois o sofrimento encontrou
seu caminho em todas as suas relações privadas.
Ele foi exilado de seu lugar de exílio. Como esposo, ele se viu
destinado a prantear a perda prematura de sua esposa; como pai,
sentiu as amargas punções de sepultar seu filho único. Sozinho no
mundo, sozinho em terra estranha, ele prosseguiu sua carreira com
serena resignação e inflexível firmeza. Nenhum afeto pelo ócio o
desviou de suas vigílias; nenhum temor do perigo relaxou a intrepidez
de sua eloquência; nenhuma enfermidade física freou a incrível
atividade de sua mente; e assim seguiu em frente, ano após ano,
solitário e frágil; no entanto, labutou em prol da humanidade; mesmo
depois de uma vida de glória, ele deu a seus herdeiros, por herança,
uma fortuna: em livros, em mobília, em estoques e dinheiro, os quais
não excederam a duzentos dólares; “e, ao mundo, uma Reforma
pura, um espírito republicano pela religião, com os princípios
congêneres da liberdade republicana.”
Tentação de João Calvino
Um acontecimento interessante sobre Calvino, que apesar de honrar
muito sua moral e caráter religioso, é um fato histórico curioso que
merece ser conhecido por todos. Foi relatado em Genebra por
Diodato, um dos sucessores de Calvino, ao primeiro Lord Orrery,
que floresceu sob o reinado de Carlos I. A citação é tomada de “As
Cartas aos Estados Unidos da América e Memórias do Legítimo e
Honorável Roger Boyle.”
Sendo Eckius enviado pelo Papa, a França, como núncio, em
seu retorno resolveu passar por Genebra com o propósito de ver
Calvino; e, em havendo ocasião, tentar reconduzi-lo à igreja romana.
Portanto, quando Eckius buscou fazer aliança com Genebra, deixou
ali seu séquito e foi, acompanhado de alguém, à cidade durante a
tarde. Deixando seus cavalos em uma estalagem, inquiriu onde
Calvino vivia, cuja casa lhe foi mostrada. Ele bateu à porta e o
próprio Calvino lhe veio abri-la.
Eckius perguntou pelo senhor Calvino; então foi informado que
aquele era o próprio. Eckius o relacionara com algum estranho; e,
tendo ouvido falar tanto de sua fama, esperava ver outra pessoa.
Calvino o convidou a entrar, e então o acompanhou; discursando
sobre muitas coisas acerca da religião, Eckius percebeu que Calvino
era um engenhoso erudito; então quis saber se ele não tinha um
pátio por onde caminhar. Ao que Calvino respondeu que sim, e
ambos se encaminharam para lá; e, ali, Eckius começou a inquirir
dele por que havia deixado a igreja romana, e lhe apresentou alguns
argumentos com o fim de persuadi-lo a retornar. Calvino, porém,
disse que de modo algum poderia inclinar-se a pensar nisso. Por fim,
Eckius lhe informou que poria sua vida em suas mãos; e então se
identificou como sendo Eckius, o núncio do Papa.
Com esta descoberta, Calvino ficou não pouco surpreso, e
rogou-lhe perdão por não havê-lo tratado com o aquele devido
respeito que sua posição bem merecia. Eckius retribuiu o gesto e lhe
disse que, se porventura quisesse voltar ao seio da igreja romana,
certamente lhe conseguiria o chapéu de Cardeal. Calvino, porém,
não se deixou convencer pela oferta. Então Eckius perguntou-lhe qual
era sua renda. Ele disse ao Cardeal que possuía uma casa com
jardim e cinquenta libras por ano, além de um presente anual de
algum vinho e trigo; com o quê ele viveu contente. Então Eckius lhe
disse que um homem de sua posição merecia uma renda muito
melhor; e então renovou seu convite a voltar para a igreja romana,
prometendo-lhe um estipêndio melhor, caso concordasse. Calvino,
porém, agradecendo, garantiu-lhe que vivia muito satisfeito com sua
condição. Nisso, o jantar ficou pronto; havendo desfrutado de sua
companhia da melhor maneira possível, escusados os defeitos dela,
ele lhe prestou grande respeito.
Após o jantar, Eckius desejou conhecer, caso ele lho permitisse,
a igreja, a qual, antigamente, fora a catedral daquela cidade. Calvino
respondeu mui prontamente que sim; no ínterim, ele notificou aos
oficiais que estivessem prontos com as chaves, solicitando que
alguns dos síndicos estivessem presentes ali, não lhes informando
quem era o estranho. Portanto, assim que se prontificaram, ambos
saíram em direção à igreja e, enquanto Eckius saía da casa de
Calvino, ele tirou uma bolsa com cerca de cem pistolas [antiga
moeda romana] e a deu de presente a Calvino. No entanto, Calvino
solicitou que fosse escusado; então Eckius lhe disse que o propósito
daquele presente era para a compra de livros, como uma expressão
de seu respeito para com ele. Calvino, a contragosto, aceitou a
bolsa, e prosseguiram rumo à igreja, onde os síndicos e oficiais os
aguardavam; à vista dos quais, Eckius imaginou que fora traído, e
sussurrou seus pensamentos ao ouvido de Calvino; este, porém, lhe
garantiu que era o contrário.
Com isso, entraram na igreja; e Eckius, tendo visto tudo, disse a
Calvino que não esperava ver coisas em tão decente ordem, quando
fora informado do contrário. Após haver tido uma visão plena de
tudo, Eckius foi saindo da igreja, porém Calvino o deteve um pouco
e, chamando os síndicos e oficiais, juntos, tirou a bolsa de ouro que
Eckius lhe dera, dizendo-lhes que recebera aquele ouro deste nobre
estrangeiro, e que agora lha dava aos pobres, e, assim, a
depositava por inteiro na caixa dos pobres que era mantida ali. Os
síndicos agradeceram ao estrangeiro, e Eckius admirou a caridade e
modéstia de Calvino. Quando já fora da igreja, Calvino convidou
Eckius outra vez a entrar em sua casa, porém respondendo que tinha
de partir; assim, agradecendo-lhe por todas as suas civilidades,
pediu licença. Calvino, porém, acompanhou-o até a estalagem, e
caminhou com ele uma milha fora dos territórios de Genebra,
quando, com fortes amplexos, se despediram um do outro.
Eckius era um doutor mui galardoado, professor na Universidade
de Ingolstadt, memorável por sua oposição a Lutero, Melancthon e
outros reformadores alemães. Morreu em 1543, com a idade de
cinquenta e sete anos.
Ordenação de Calvino
A principal dificuldade, a qual eu tive ocasião de mencionar quando
notei a alegação feita por romanistas e prelados, de que Calvino
nunca foi ordenado, foi o fato de que não há registro, em tantas
palavras, de seu tempo e lugar, e das pessoas que oficiaram a
ordenação. Entretanto, tenho mostrado que há muita evidência de
que se poderia aduzir a certeza do fato e seu reconhecimento
universal da parte de todos os seus contemporâneos, tanto
romanistas quanto anglicanos e reformados.
Mas é possível resolver a dificuldade pelo uso de um
argumentum ad hominem. Então pergunto: alguém já questionou a
ordenação do Bispo Butler, ou alguém que nutre dúvida hoje de que
ele foi ordenado real e canonicamente? A resposta deve ser dada na
negativa. E, no entanto, sobre a base presumida dada por nossos
oponentes, sua ordenação pode ser completamente negada. Pois,
em sua vida escrita por Mr. Bartlett, está registrado que “não
aparece em que tempo ele recebeu ordens, nem o bispo por quem
ele foi ordenado”. E, outra vez: “Talvez seja pouco regular que, não
obstante, seu memorando privado, o qual se refere à data de quase
todos os demais eventos conectados com sua vida pública, não há
alusão nem ao período de sua ordenação nem ao prelado que lhe
conferiu ordens.”
Certamente, isto é muito singular e mais que um paralelo ao
caso de Calvino. Este foi educado na Igreja de Roma? Butler foi
criado na Igreja Presbiteriana. Calvino teve dificuldade em formatar
sua mente para abraçar as opiniões reformadas? Assim teve Butler
em receber os dogmas da Instituição. Calvino abraçou e professou
as opiniões reformadas com respeito à Igreja, e o ministério, e a
ordenação? Assim também teve Butler com as opiniões da Igreja
Instituída da Inglaterra. E estas opiniões professadas por Butler,
esta mesma mudança de relacionamento, torna indubitável que ele
teria sido regularmente ordenado, embora houvesse a ausência tão
misteriosa de toda prova — e com quanto mais certeza devemos
concluir que esse foi também o caso com respeito a Calvino! Porque,
se é possível pressupor tal omissão na Inglaterra, em um período
tão recente e sob as circunstâncias do caso, quanto mais se pode
presumi-la no período mais antigo da Reforma e em meio à
insipiência de todos os seus arranjos.
Portanto, nossos oponentes, antes de expor novamente sua
capciosa malícia, injuriando-nos com o caso de Calvino, fariam
melhor aprendendo a sabedoria daquele provérbio, que reza: “Quem
vive em casa de vidro não deveria lançar pedras.”
Missão de Calvino ao Brasil
Foi durante esse tempo trevoso que ocorreu um evento que tem
escapado à observação de muitos antiquários e historiadores
americanos. Temos em mente a migração de protestantes franceses
para o Brasil. O Dr. Henry crê ser inexato chamar isto de missão. No
entanto, transparece das cartas de Richer, o pregador dos
refugiados, não vieram destituídos de alguns pensamentos de
converter os pagãos. Villegagnon, um fidalgo de Malta, deu ao
grande Coligni razão para crer que estava para garantir na América
um local onde os protestantes perseguidos pudessem achar um
refúgio. O Almirante foi vencido pelo prospecto benevolente. Uma
pequena ilha, supomos ter sido nas proximidades do Rio de Janeiro,
foi ocupada por Villegagnon, no nome de Coligni. Agora se
requisitavam ministros da Palavra, e Richer e Chattier foram
enviados de Genebra. Mas, por uma hedionda traição, estes pobres
não conformistas do sul, menos favorecidos que seus mais recentes
irmãos de Plymouth, foram ferozmente perseguidos sob os editos
franceses. Quatro deles fizeram uma boa confissão e foram
lançados ao mar. O resto escapou para a França. Jean de Lery,
mais tarde ministro em Berne, foi testemunha ocular dessas
atrocidades, as quais ele descreveu em seu retorno.
O interesse incomum que anexa a isto um capítulo um tanto
obscuro na história nos justifica acrescentar mais uns poucos
particulares. Nicolas Villegagnon foi vice almirante em Brittany, sob
Henrique II. Sentindo-se desapontado e envergonhado, em razão de
seus serviços não serem suficientemente reconhecidos, ele se pôs à
testa da expedição supracitada. Havia dois excelentes navios, e
içaram as velas em 1555. O rio Coligni, onde estabeleceram a
colônia, é suficientemente indicado pelo grosseiro extrato aproximado
da latitude. Os nativos foram amistosos, mas os povoados tinham
experiências mais acentuadas que os colonos. Richer, quem
acabamos de mencionar, tinha cinquenta anos de idade e Chattier,
cerca de trinta. Mesmo em sua viagem eram maltratados pelo povo
de Villegagnon. Aportaram no dia 7 de março de 1556 e mostraram
suas cartas, às quais estava apenso o nome de Calvino. A princípio,
o pérfido governador não tirou a máscara, mas inclusive tomava
parte na Ceia do Senhor, segundo o rito protestante, como aparece
na carta de Richer a Calvino. Nesta carta se encontram várias coisas
dignas de mais especial observação do que podemos conceder aqui.
Há muita candidez e piedade no relato do bom missionário. O povo é
rude, diz ele, ainda que não soubesse com certeza se eram canibais.
Não possuem nenhum senso de certo e errado e nenhuma ideia de
Deus, de modo que há pouca esperança de fazer Cristo conhecido a
eles. O idioma é o principal entrave. Ainda não se pode esperar que
haja mais povoados, por cuja conversa e exemplo o povo nativo
possa ser cristianizado.
Certo doutor erudito, Cointiac, usou mal os pregadores e se
declarou inimigo do navio huguenote. Neste caso, ele se uniu a
Villegagnon, que suspendeu Richer de suas funções. Chartier foi
enviado à Europa para representar as questões em disputa. Então,
Villegagnon começou a perseguir, e proibiu os míseros exilados de
escapar. Richer e seus companheiros retiraram-se para a floresta,
onde foram tratados pelos selvagens com humanidade. Os outros,
porém, que tentaram escapar do navio, foram apreendidos e presos.
Villegagnon, em seu novo zelo pelo papado, condenou à morte cinco
huguenotes, sob as ordens de Francisco I e Henrique II. Um deles,
Bordel, foi lançado ao mar para morrer como mártir. Assim também
morreram Vermeil e Pierre Bourdon. Villegagnon retornou à França e
escreveu contra o evangelho, porém foi confrontado por Richer. O
perseguidor morreu em miséria e impenitente.
AP Ê N D IC E 4
A E S P O S A D E C A LV IN O

O seguinte relato sobre a esposa de Calvino e de sua vida e caráter


domésticos por sua vez será de muito interesse e corroborará
amplamente nosso ponto de vista de seu caráter. Ele é dado nas
palavras de Monsieur G. de Felice e extraído do Observador nova-
iorquino, da qual ele é o hábil e sempre interessante correspondente.
Idelette de Bure Esposa de Calvino
Observações preliminares — Calvino banido de Genebra e
estabelecido em Strasburg — Traços de seu caráter — Vários
planos de casamento — Idelette de Bure — Nota biográfica —
Cerimônia de casamento — Trajetória de Calvino — Seu retorno a
Genebra.
Em minha carta sobre os aniversários religiosos de Paris, eu
disse que Mr. Jules Bonnet, um eminente escritor, que gastou
diversos anos coletando a correspondência manuscrita de Calvino,
havia lido na conferência da Sociedade para a História do
Protestantismo Francês, uma nota sobre Idelette de Bure, esposa do
grande Reformador. Desde então, a peça tem sido publicada, e
sinto-me feliz por comunicar aos leitores um sumário dela,
acrescentando alguns fatos derivados de outras fontes.
É possível que Idelette de Bure fosse um novo nome, até
mesmo para os teólogos bem informados que têm estudado
exaustivamente os anais da Reforma. Confesso humildemente que,
de minha parte, raramente tenho lido aqui e ali três ou quatro linhas
sobre a esposa de Calvino, e que nada sei de sua vida doméstica. É
bem provável que a mesma ignorância exista na maioria dos que
lançarem seus olhos em minha carta. Mr. Jules Bonnet prestou então
um real e prestimoso serviço aos numerosos amigos do Reformador
genebrino. Esta nota feita por ele é uma ressurreição histórica.
Todos têm ouvido falar da esposa de Lutero — aquela Catherine
de Bora que abandonou o convento para assumir o santo estado do
matrimônio. O Reformador alemão costumava aludir ao caráter,
hábitos e opiniões de sua querida Katy, como a chamava. Ele nos
mostra, sob diferentes aspectos, esta boa e singela mulher, a qual
era detentora de pouca cultura intelectual, porém profundamente
piedosa, e nos familiariza minuciosamente com sua vida doméstica.
Choramos com ele sobre a tumba de sua Magdalen; ouvimos seus
diálogos com seu filho, de quem fala em termos poéticos das
alegrias do Paraíso. Numa palavra, a casa de Lutero estava sempre
aberta, e a posteridade vê a doce face de Catherine de Bora,
traçada pelo lápis do ilustre Lucas Kranach, quase tão distintamente
quanto à de Lutero. Por que não se deu o mesmo com Calvino e sua
esposa? Por que seu santuário doméstico é tão pouco conhecido?
A razão primordial se encontra na marcante diferença entre os
dois grandes fundadores do Protestantismo. Lutero, o fiel
representante do gênio alemão e saxônico, amava a vida doméstica
e anexou valor aos menores incidentes; ele possuía um coração
ardoroso, sempre pronto a introduzir seus amigos às alegrias e
dores ao redor de sua lareira; ele se deleitava em partilhar com sua
esposa e filhos todas as suas emoções pessoais. Calvino possuía
também, como veremos, um coração afetuoso, suscetível a fortes
expressões de afeto. Mas sua natural disposição era reservada e
austera. Pode ser que ele considerasse como fraqueza, talvez um
ato de orgulho culposo, atrair para si atenção frequente, seus
sentimentos e suas preocupações pessoais. Ele evitava as ardentes
expressões da emoção. “Sua alma, absorvida pelas trágicas
emoções da luta que mantinha em Genebra, e pelos labores de sua
vasta propaganda no exterior”, diz Mr. Bonnet, “raramente revelava,
e apenas em palavras breves, quais são os relâmpagos da
sensibilidade moral, revelando as profundezas ignotas, sem mostrá-
los totalmente à nossa vista.” Não admira que Idelette de Bure
permanecesse meio velada, ainda mais pelo fato de ter vivido poucos
anos e não restou nenhum filho de seu casamento. No entanto, entre
as cartas de Calvino se acham interessantes notas sobre esta
mulher, a qual certamente era digna do eminente homem que lhe
oferecera sua mão.
Durante sua juventude, Calvino não pensava contrair os laços do
matrimônio. Aliás, ele nem mesmo podia casar-se. Caçado pelos
implacáveis perseguidores, sem um teto sob o qual repousar sua
cabeça; forçado a esconder-se, algumas vezes em Angouleme,
outras vezes em Bale; pregando de lugar em lugar e celebrando a
Santa Ceia com alguns amigos no coração de florestas ou em
cavernas; além disso, passava o dia e a noite compondo seu livro
Instituição da Religião Cristã, o qual visava a defender diante do Rei
Francisco I a causa de seus irmãos que eram condenados a terríveis
punições. Como poderia ele aspirar ao matrimônio? Teria agido
sabiamente agravando seus males com preocupações domésticas e
tendo uma esposa a suportar metade de um fardo tão pesado?
Em agosto de 1536, Calvino tornou-se professor e pastor em
Genebra. Ele tinha necessidade de um lar; mas ainda seus labores
eram grandes. Ele tinha que lutar contra os homens denominados de
libertinos, os quais, após quebrar o jugo do romanismo, se
entregaram à mais grosseira licenciosidade. Viam na Reforma uma
licença para desconsiderar todas as leis humanas e divinas. Esses
homens ocupavam ofícios elevados em Genebra. Estavam nos
conselhos estatais e tinham atrás de si um populacho desordeiro.
Calvino via que os preciosos interesses da fé evangélica corriam
risco. Ele ergueu sua voz com energia invencível contra os libertinos
e recusou recebê-los à Santa Mesa, expondo seu sangue, sua vida,
no cumprimento de seu dever. Certamente, este não era o momento
de buscar uma esposa.
Em abril de 1538, ele foi banido de Genebra pelo partido
libertino; e sendo convidado pelo pio Bucer a ir para Strasburg, foi
designado pastor de uma paróquia de refugiados franceses. Então,
pela primeira vez, parece que o casamento ocupou seus
pensamentos; ou, melhor, seus amigos, particularmente Farel,
tentaram achar para ele uma sábia e boa companheira.
Numa carta endereçada a Farel, em maio de 1539 (ele tinha
então trinta anos de idade), Calvino esboça seu ideal de uma
esposa. “Não te esqueças”, diz ele a seu amigo, “o que desejo
especialmente encontrar numa esposa. Eu não sou, tu bem sabes,
do número dos inconsiderados amantes que adoram até mesmo as
falhas da mulher que os encanta. Só poderia agradar-me aquela
jovem que for dócil, casta, modesta, econômica, paciente e
cuidadosa da saúde de seu esposo. Acaso aquela de quem me
falaste tem estas qualidades? Vem com ela... se nada mais me tens
a dizer.”
Outra carta ao mesmo pastor, Farel, datada de 6 de fevereiro
de 1540, nos mostra Calvino formulando habilidosamente uma
proposta de casamento. “Foi-me mencionado”, diz ele, “uma jovem
donzela, rica, de nobre nascimento e cujo talento suplanta a tudo o
que eu poderia desejar. Entretanto, duas razões induzem-me a
declinar: ela não conhece nosso idioma (ela era de Alsace, uma
província alemã), e percebo que ela é demasiadamente orgulhosa de
seu nascimento e de sua educação. Seu irmão, dotado com incomum
piedade, e cegado por sua amizade para comigo, mesmo a ponto de
negligenciar seu próprio interesse, insiste comigo a fazer a escolha,
e os desejos de sua esposa suplantam os seus próprios. O que eu
poderia fazer? Teria sido forçado a ceder se o Senhor não me
tirasse de meu embaraço. Respondi que consentiria se a donzela, de
sua parte, prometesse aprender o idioma francês. Ela pediu certo
tempo para refletir...”
O plano foi abandonado. Calvino o previra e se congratulou em
não se casar com moça que, com grande fortuna, estava longe de
possuir o requisito da simplicidade e humildade. Esta
correspondência confirma o que a história relata do caráter de
Calvino. Ele era eminentemente desinteressado. Um grande dote, a
seus olhos, era algo mui pequeno. De que importância era para ele
ter uma esposa rica, se ela não fosse cristã? Este é o mesmo
homem que recusou toda a oferta pecuniária do soberano Conselho
de Genebra e mal deixou recurso para pagar as despesas de seu
funeral — a insignificante quantia de cinquenta coroas de prata.
Foi feita uma segunda proposta de casamento. A moça em
questão não possuía nenhuma fortuna, mas era distinta por suas
virtudes. “Seu louvor está em cada boca”, escreve Calvino a Farel,
em junho de 1540. Então Calvino solicitou de seu irmão Antônio
Calvino, em parceria com outros amigos, que fizesse propostas de
casamento. Infelizmente, ele descobriu tempo depois algo
desfavorável do caráter da jovem; ele declinou das propostas e
escreveu pesarosamente a seu colega: “Ainda não encontrei uma
companheira; não seria mais sábio abandonar minhas buscas?” E
assim ele foi desencorajado por essas infrutíferas tentativas e
parecia renunciar ao prospecto de casamento, como se as doçuras
desta união não fossem feitas para ele. Deve-se notar que, ainda
que possuísse uma firmeza máscula em questões da fé cristã, e
ainda fosse capaz de dar sua vida pela causa da verdade, Calvino
era tímido e reservado nas pequenas coisas da vida cotidiana. Ele
diz em algum lugar: “Eu sou de uma disposição retraída e esquiva;
sempre amei a tranquilidade e busquei o isolamento. Sei que sou
naturalmente tímido, sereno e pusilânime.”
Ele preferia permanecer solteirão, para que não fosse mal
recebido pelas moças a quem se dirigisse, ou deixar de fazer uma
boa escolha. Um incidente inesperado mudou sua resolução. Havia
em Strasburg uma jovem piedosa chamada Idelette de Bure. Ela era
viúva e todo seu tempo era gasto em educar as crianças que tivera
de seu primeiro esposo, John Storder, da seita anabatista. Ela
nascera numa pequena cidade de Guelders, na Holanda. Ela veio
para a capital de Alsace, um lugar de refúgio para as vítimas da
perseguição. O erudito Dr. Bucer conhecia Idelette de Bure, e tudo
indica que foi ele quem chamou a atenção de Calvino para ela.
Externamente, nada havia nesta mulher que atraísse. Ela vivia
envolvida com as várias crianças de seu primeiro casamento; não
possuía riqueza; vestia-se de luto; sua pessoa não era
particularmente elegante. Para Calvino, porém, ela possuía o melhor
dos tesouros: uma fé viva e testada; uma consciência íntegra; e tão
amorosa quanto sólidas eram suas virtudes. Como mais tarde disse
a seu respeito, ela teria tido a coragem de tolerar seu exílio, pobreza
e a própria morte em atestação da verdade. Tais eram as nobres
qualidades que conquistaram o Reformador.
A cerimônia nupcial foi celebrada em setembro de 1540. Calvino
tinha então trinta e um anos e dois meses de idade. Não foi
constrangido por paixão juvenil, mas obedeceu à voz da natureza, à
razão e ao dever. Equivocam-se os papistas que constantemente
censuram os Reformadores. Lutero e Calvino, ambos, casaram-se
em idade madura. Fizeram o que deveriam ter feito, e nada mais.
Na cerimônia matrimonial de Calvino não houve pompa, nem
regozijos intempestivos. Tudo era calmo e grave, como é próprio a
um casal de nubentes piedoso e circunspecto. Os Consistórios de
Neuchatel e de Valengia, na Suíça, enviaram a Strasburg deputados
para assistirem este casamento; um notável sinal de seu afeto e
respeito para com Calvino.
Era quase impossível passarem as núpcias quando o líder da
Reforma francesa se via constrangido a deixar as doçuras desta
união doméstica. Uma dieta foi instaurada em Worms, na qual se
discutiam questões de suma importância relativas às futuras
condições do Protestantismo. Naturalmente, Calvino foi convocado a
tomar parte nelas. Ele foi a Worms, então a Ratisbonne, tentando
conciliar a paz entre os dois ramos da Reforma. Durante sua
ausência, ele confiou à sua esposa o cuidado de Antônio Calvino e à
nobre família de Richebourg, onde exerceu por algum tempo o ofício
de preceptor.
A praga grassou em Strasburg, causando-lhe grande susto, e
penetrou a casa onde Idelette de Bure vivia. Louis de Richebourg e
outro membro da família caíram presa da doença. Calvino tremia por
sua querida esposa. Ele escreve: “Tentei resistir minha tristeza — e
recorro à oração e às santas meditações, para que não perca toda a
coragem.” Durante sua residência em Ratisbonne, onde se discutiam
os interesses fundamentais das novas igrejas, Calvino recebeu de
Genebra uma comissão, rogando-lhe energicamente que voltasse
para aquela cidade. O partido libertino revelou seus detestáveis
desígnios. A vontade forte e o poder moral de Calvino eram
necessários para restaurar a ordem. Ele resistiu a este chamado por
algum tempo. Sua hesitação, suas lágrimas, sua angústia atestavam
que ele via com uma sorte de horror o pesado fardo que lhe era
imposto. Por fim, ele se rendeu, dizendo: “Seja feita, ó Deus, não a
minha vontade, e sim a tua! Ofereço meu coração em sacrifício à tua
santa vontade!” E em 13 de setembro de 1541, ele retornou à cidade
de Genebra, após um exílio de três anos, cuja face e destinos ele
havia transformado.

Eu... etc., G. De F.
* * * * *

Idelette de Bure se estabeleceu em Genebra — Suas virtudes cristãs


— Aflições domésticas — Sua doença frequente — Últimos
momentos — Morte — Tristeza de Calvino — Conclusão.
Antes de fixar sua residência definitivamente em Genebra,
Calvino determinara ir lá e investigar qual a verdadeira condição das
coisas. Ele foi sozinho, deixando sua esposa em Strasburg. Mas
assim que ele adentrou os muros da cidade, os genebrinos, temendo
perder outra vez o homem de quem tinham tanta necessidade,
tomaram todas as medidas cabíveis para detê-lo. Os conselhos
públicos decidiram que se enviasse a Idelette a Strasburg um
mensageiro de estado e a trouxesse com sua família (estes foram
os termos da resolução) para a casa destinada ao Reformador. E
assim esta mulher humilde e cristã recebeu honras decretadas a uma
princesa de sangue régio, tendo um mensageiro de estado por guia,
a conduzi-la à sua nova habitação.
Têm-se publicado pesquisas recentes acerca deste lar que os
magistrados concederam para o uso de Calvino após seu retorno do
exílio. Anteriormente, ele pertencera a um convento e estava situado
em uma agradável posição que abria extensas vistas em direção às
prazenteiras fronteiras do Lago Leman e ao majestoso anfiteatro dos
Alpes. Observa-se que esta casa se encontra agora outra vez nas
mãos dos católico-romanos, os quais o converteram numa instituição
de caridade, sob a proteção de São Vicente de Paula. A despeito
das honras que foram registradas pelos conselhos políticos de
Genebra, Idelette não teve a ambição de exercer uma brilhante parte
na sociedade. Sempre modesta e reservada, pondo em prática as
virtudes próprias de seu sexo, e se esquivando do ruído e pompa
com o máximo de solicitude que as demais mulheres os buscam, ela
consagrava seus dias aos deveres de sua pia vocação. Sua
correspondência privada com Calvino — nas raras ocasiões em que
menciona sua esposa — nos leva a vê-la sob o mesmo aspecto de
compromisso. Ela visitava os pobres, consolava os aflitos e recebia
no espírito de hospitalidade os numerosos estrangeiros que vinham,
sem bater, à porta do Reformador. De fato, cada um reconhecia nela
a piedosa mulher, de quem se lê nas Escrituras ser possuidora de
“um espírito manso e tranquilo, o qual, à vista de Deus, é de grande
valor” e digno de ser louvado para sempre por suas obras.
Idelette de Bure devotou-se particularmente ao cuidado de seu
esposo. Estafado por seus labores constantes, sofria de frequente
mal estar; e, tratando seu corpo rudemente, segundo o exemplo de
Paulo, ele persistia, em meio aos sofrimentos físicos, cumprindo os
múltiplos deveres de seu ofício. Então, sua esposa viria e
recomendaria ternamente que ele praticasse um pouco de repouso e
velasse em seu travesseiro quando seus males assumissem um
caráter alarmante. Além disso (e isto surpreenderá o leitor), às vezes
Calvino tinha, como os homens ordinários, senso de desespero; ele
era propenso à melancolia. Ele mesmo diz: “Às vezes, muito embora
meu corpo esteja bem disposto, a tristeza me deprime, a qual me
impede de fazer algo, e sinto-me envergonhado de viver sem
nenhuma utilidade.” Nesses momentos de abatimento, quando o
heroico Reformador parecia, a despeito de sua energia e
incomparável atividade, afundar sob o peso de nossas fragilidades
comuns, Idelette de Bure ficava por perto, com suas palavras ternas
e de encorajamento, o que só pode ser encontrado no coração de
uma mulher; e sua mão, tão frágil, contudo tão bem vinda e tão
afetuosa, restaurava o gigante da Reforma, o qual fazia o papa e os
reis tremerem em seus tronos! Oh! precioso esteio e mágico poder
de uma religiosa, atenta e amorável esposa!
Quem poderia retratar a salutar influência que a humilde Idelette
de Bure exercia sobre o Reformador? Calvino, como observa Mr
Jules Bonnet, com frequência era acicatado pela oposição que se
punha em seu caminho, pois relutantemente os homens se submetem
aos desígnios do gênio. “Quão frequentemente”, acrescenta o
biógrafo, “nestes anos de luta e de fraqueza secreta, o que sua
correspondência revela, ele sossegava diante da mulher corajosa e
dócil, que o convencia de que não podia fazer compromisso com o
dever! Quantas vezes, possivelmente, ele era abrandado e
tranquilizado por uma daquelas palavras que emanavam do
coração!...” E quando chegavam os dias mais sombrios, e a azáfama
das opiniões emitidas por Bolsec, Miguel Serveto, Gentilis (Idelette
de Bure não viveria por muito tempo), quem pode dizer o quanto o
Reformador, em seu avanço, perdeu da doce influência desta
mulher?
Retornemos à nossa narrativa. O maior prazer de Idelette era
ouvir as santas exortações de Farel, Pedro Viret, Theodore de Beza,
que às vezes se sentavam em torno da hospitaleira mesa de seu
eminente chefe e se deleitavam em renovar sua coragem em diálogo
com ele. Algumas vezes — porém raramente — ela acompanhava
seu esposo em caminhadas para Cologny, Belle-Rive, pelas
encantadoras margens do Lago Leman. Noutras vezes, a fim de
repousar de suas fadigas, ou quando Calvino era chamado a atender
aos negócios das igrejas reformadas, Idelette iria e gastaria alguns
dias em Lausanne com a esposa de Viret. Vemo-la nesta família
cristã em 1545 e 1548, preocupada em não dar trabalho aos seus
anfitriões, e se preocupava por não poder prestar-lhes alguns bons
serviços em troca daqueles que eles demonstravam para com ela.
Amargas aflições domésticas sobrevieram a Calvino e à sua
esposa. O segundo ano de seu casamento, no mês de julho de 1542,
Idelette teve um filho. Mas, ah! esta criança, por quem haviam
devotamente rendido graças a Deus e oferecido tantas e fervorosas
orações, logo foi tirada deles pela morte. As igrejas de Genebra e
de Lausanne demonstraram para com os pais sinais de simpatia,
débil mitigação de uma prova tão pesada! É mais fácil imaginar do
que expressar a tristeza do coração de uma mãe. Calvino nos
permite ver sua dor e a de seu companheiro numa carta endereçada,
em 10 de agosto de 1542, a Pedro Viret: “Saúda a todos os nossos
irmãos”, diz ele, “saúda também a tua esposa, a quem a minha
apresenta sua gratidão por vossas ternas e piedosas consolações...
Ela gostaria de responder de sua própria mão, porém ainda não
encontra força para ditar umas poucas palavras. O Senhor nos tem
dado um duro golpe tirando de nós nosso filho; mas ele é nosso Pai
e sabe o que é melhor para seus filhos.” Nas cartas de Calvino,
nesta época, exibem-se tanto afeto paternal quanto resignação
cristã. Em 1544, uma nova prova deste gênero afligiu o coração
destes pais. Nasceu-lhes uma filha; ela viveu apenas poucos dias,
como vemos numa carta endereçada ao pastor Viret em 1544. Um
terceiro filho lhes foi tirado novamente. Idelette pranteou
amargamente; e Calvino, testado com tanta frequência, buscou sua
força no seio do Senhor; e ocorreu-lhe o pensamento de que só
estava destinado a ter filhos segundo a fé. Então disse a um de seus
adversários que demonstrara bastante vileza, censurando-o por suas
perdas domésticas: “Sim,”, replicou Calvino, “o Senhor me deu um
filho; e o tirou de mim. Que meus inimigos, se veem ser justo,
censurem-me por esta prova. Acaso não tenho eu milhares de filhos
no mundo cristão?”
A saúde de Idelette, já delicada, foi piorando com estas
reiteradas tristezas. As cartas familiares do Reformador nos
informam que ela passou seus últimos anos em um estado de langor
e sofrimento. Às vezes ele fala dela como enferma no leito, e solicita
as orações dos amigos. Às vezes ele conta como ela se reanimava.
O afeto de Calvino por sua esposa transparece nestas
comunicações. Ele escreve a Viret em 1545: “Saúda tua esposa; a
minha é sua melancólica companheira no estado de fraqueza física.
Temo pelo resultado. Já não há bastante mal ameaçando-nos no
presente tempo? Pode ser que o Senhor queira mostrar um
semblante mais favorável.”
Então havia em Genebra um erudito médico chamado Benedict
Textor. Ele era um homem piedoso, cheio de zelo pelo Senhor e
amigo particular de Calvino. Era assíduo em seu cuidado para com
Idelette e se exauria em busca do auxílio que a arte humana pudesse
propiciar. Mas seus esforços eram baldados; a febre sempre
aumentava. Calvino sentia pelo médico profunda gratidão; e no mês
de julho de 1550 dirigiu-lhe uma carta, dedicando-lhe seu comentário
à Segunda Epístola aos Tessalonicenses. No início de abril de 1549,
a condição de Idelette inspirava profunda ansiedade. Theodore de
Beza, Hottman, Desgallers, entre outros colegas do Reformador,
correram a ele com o fim de consolar a ele e à sua esposa em seu
último achaque. Idelette, sustentada até o fim pela piedade, admitiu
separar-se de seus laços terrenos; sua única ansiedade se
relacionava ao destino dos filhos que ela tivera em seu primeiro
casamento. Um de seus amigos pediu que ela falasse deles a
Calvino. “Por que eu faria isso?” — ela respondeu. “O que me
preocupa é que meus filhos sejam educados na virtude... Se forem
virtuosos, encontrarão nele um pai; se não forem, por que eu lhos
recomendaria?” No entanto, o próprio Calvino conhecia seus desejos
e prometeu tratar seus filhos como se fossem os seus próprios. “Eu
já os recomendei a Deus”, disse Idelette. “Mas nada impede que eu
me preocupe com eles também”, disse Calvino. Então ela respondeu:
“Bem sei que tu nunca abandonarás aqueles a quem tenho confiado
ao Senhor.”
Idelette via a aproximação da morte com serenidade. Sua alma
era inabalável no meio de seus sofrimentos, os quais eram
acompanhados de frequentes desmaios. Quando já não podia falar,
seu olhar, seus gestos, a expressão de seu rosto, tudo revelava a fé
que a fortalecia em sua última hora. Na manhã do dia 6 de abril, um
pastor chamado Bourgoin lhe falou com piedosa exortação. Ela
juntou exclamações entrecortadas, as quais pareciam uma
antecipação do céu: “Oh! gloriosa ressurreição! Ó Deus de Abraão e
de nossos pais!... Esperança dos cristãos por tantos séculos, em ti
espero.”
Às 7 da manhã, ela desmaiou outra vez; e, sentindo que sua voz
ia se desfalecendo, ela dizia: “Orai! Oh, meus amigos, orai por mim!”
Ao aproximar-se Calvino de seu leito, ela demonstrou seu júbilo
através de seus olhares. Com emoção, ele lhe falou da graça que há
em Cristo; da peregrinação terrena; da certeza de uma eternidade
bem-aventurada; e concluiu com uma fervorosa oração. Idelette
seguia suas palavras, ouvia atentamente a sã doutrina da salvação
em Jesus crucificado. Mais ou menos às 9 horas, ela exalou seu
último suspiro, mas com gestos tão pacíficos, que por alguns
momentos era impossível perceber se ela cessara de viver ou se
dormia.
Esse é o relato que Calvino fornece aos seus colegas da morte
de sua amada esposa. Então ele volve seus tristonhos olhos para
seu atual e desolado estado de viuvez. Dirige-se a Viret, numa carta
de 7 de abril de 1549: “Perdi, sim, perdi a excelente companheira de
minha vida, a qual jamais teria me deixado no exílio, nem na dor, nem
na morte. Enquanto viveu, ela me foi uma preciosa auxiliadora. Nunca
se preocupou consigo mesma e nunca seu esposo foi para ela
motivo de aflição ou de obstáculo... Suprimo minha tristeza o quanto
posso; meus amigos cumprem seu dever consolando-me; mas, neles
e em mim, tudo isso é de pouco efeito. Conheceis a ternura de meu
coração, para não dizer sua fraqueza. Eu sucumbiria se não fizesse
grande esforço sobre mim mesmo para moderar minha aflição.”
Quatro dias após, ele escreveu a seu velho amigo Farel: “Adeus,
meu querido e amado irmão; Deus te dirija por seu Espírito e me
suporte em minha provação! Eu não teria sobrevivido a este golpe,
se Deus não estendesse sua mão desde o céu. É ele que soergue a
alma desesperada, que consola o coração debilitado, que fortalece
os joelhos trementes.”
Sob o peso de perda tão grave, entretanto Calvino foi
capacitado a cumprir todos os deveres de seu ministério; e a
constância que ele exibia em meio às suas lágrimas excitava a
admiração de seus amigos, como lemos na resposta de Viret a
Calvino. A lembrança daquela a quem ele não mais tinha ao lado
jamais se apagou de seu coração. Embora tivesse apenas quarenta
anos de idade, ele nunca pensou em contrair outros laços; e só
pronunciava o nome de Idelette de Bure com profundo respeito por
suas virtudes e uma profunda veneração por sua memória.
Termino com estas palavras do biógrafo: “Calvino foi grande
sem deixar de ser bom; ele juntou as qualidades do coração aos
dons do gênio... Ele degustou a felicidade doméstica numa união tão
efêmera, cujos segredos, obscuramente revelados por sua
correspondência, derramam melancolia e doce luz sobre sua vida.”

— G. De F.
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