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Representações sociais sobre eutanásia entre estudantes de direito e medicina: uma

análise comparativa

Social representations on euthanasia between students of law and medicine: a

comparative analysis

Représentations sociales de l’euthanasie chez les étudiants en droit et en medicine: une

analyse comparative

Representações sociais sobre eutanásia

Joicy Leide de França Santos


Universidade Federal de Pernambuco
ORCID:

Edclécia Reino Carneiro de Morais


Universidade Federal de Pernambuco
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8116-9104

Renata Lira dos Santos Aléssio


Universidade Federal de Pernambuco
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8548-2771

Endereço para correspondência com a Comissão Editorial:


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Centro de Filosofia e Ciências Humanas
(CFCH). Av. da Arquitetura s/n - 9º Andar. Departamento de Psicologia. Cidade Universitária
- Recife – PE. CEP: 50740-550. Fone/Fax: (81) 2126 8270.

Autor responsável pelo contato com os leitores bem como de seu endereço e contato de e-
mail:
Joicy Leide de França Santos. BOTAR ENDEREÇO E EMAIL
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Representações sociais sobre eutanásia entre estudantes de direito e medicina: uma análise

comparativa

Social representations on euthanasia between students of law and medicine: a comparative

analysis

Représentations sociales de l’euthanasie chez les étudiants en droit et en medicine: une

analyse comparative

Representações sociais sobre eutanásia


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RESUMO

A prática de eutanásia ativa o debate sobre os alcances dos esforços terapêuticos em situações

limítrofes e implica a sociedade na discussão de valores e crenças sociais envolvidos na

gestão da pessoa. Objetivou-se analisar as representações sociais sobre eutanásia entre

estudantes de direito e medicina. Foi aplicado um questionário de associação livre com o

termo indutor eutanásia para 120 universitários. Os dados foram submetidos separadamente a

uma análise prototípica (Software IRAMUTEQ) e a uma análise de correspondências

múltiplas - ACM (Software R.Temis). Através da análise prototípica, foram identificadas

algumas variações na hipótese do núcleo central, que remetem à possibilidade da existência

de duas representações sociais distintas. Através da ACM foi observado um campo léxico

ligado à imagem da morte para Medicina e a valores e normas para Direito, tendo ainda a

religião como variável significativa na reorganização do campo representacional, podendo

acentuar uma dimensão negativa e condenatória sobre tal prática.

Palavras-chave: Eutanásia; bioética; representações sociais

ABSTRACT

The practice of euthanasia activates the debate about the scope of therapeutic efforts in

borderline situations and implies the society in the discussion of values and social beliefs

involved in the management of the person. The objective was to analyze the social

representations about euthanasia between students of law and medicine. A free association

questionnaire was applied with the term inductor: euthanasia for 120 university students. The

data were submitted separately to a prototypical analysis (IRAMUTEQ Software) and to a

multiple correspondence analysis - ACM (R.Temis Software). Through the prototypical

analysis, some variations were identified in the central nucleus hypothesis, which refer to the

possibility of two distinct social representations. Through the ACM, a lexical field was
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observed, linked to the image of death for Medicine and to values and norms for Law, with

religion as a significant variable in the reorganization of the representational field, being able

to accentuate a negative and condemnatory dimension on such practice.

Key-words: Euthanasia, bioethics, social representations

RESUMEN

La pratique de l'euthanasie active le débat sur la portée des efforts thérapeutiques dans des

situations limites et engage la société dans la discussion des valeurs sociales et des croyances

impliquées dans la gestion de la personne. Avec l’objectif d'analyser les représentations

sociales sur l'euthanasie entre les étudiants en droit et en médecine, un questionnaire

d'association libre a été appliqué avec le terme inducteur: euthanasie pour 120 étudiants

universitaires. Les données ont été soumises séparément à une analyse prototypique (logiciel

IRAMUTEQ) et à une analyse de correspondance multiple - ACM (R.Temis Software). A

travers l'analyse prototypique, des variations ont été identifiées dans l'hypothèse du noyau

central, qui renvoient à la possibilité de deux représentations sociales distinctes. A travers

l'ACM, un champ lexical a été observé, lié à l'image de la mort pour la Médecine et aux

valeurs et normes du Droit, avec la religion comme variable significative dans la

réorganisation du champ représentationnel, pouvant accentuer une dimension négative et

condamnante sur une telle pratique.

Mots-clés: euthanasie, bioéthique, représentations sociales


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As tentativas de delimitação do fim da vida geram controversas discussões, por

perpassarem saberes e discursos científicos, políticos e religiosos. Essas discussões são

significadas por atravessamentos culturais, temporais e sociais (Siqueira-Batista & Schramm,

2004). Martin (1998) argumenta que face aos dissensos que constituem os discursos

produzidos sobre o fim da vida, olhar a morte enquanto fenômeno de ordem inteiramente

biológica configura-se em um caminho por vezes confortável, uma vez que especialmente na

cultura ocidental, o manejo desse tema remete à angústia frente à ideia da finitude. Entretanto,

esse tipo de simplificação deixa de lado a reflexão sobre a complexidade e pluralidade dos

significados sobre vida e morte, incorporando a ideia de ser humano unicamente como um

organismo, em detrimento de uma visão de sujeito biopsicossocial (Carmona, Santos, &

Fonseca, 2011).

Por volta da década de 60, a intensificação do progresso tecnológico favoreceu a

criação de recursos biomédicos traduzidos em aparelhos e medicações capazes de prolongar e

manter a vida. O uso desses novos meios - somado à excessiva liberdade de poder exercida

pelos médicos, no que concerne às intervenções sobre o corpo e vida do paciente - suscitou

questionamentos em relação às formas de cuidado. Sobretudo, no que se refere à decisão

acerca da morte e o manejo das doenças (Menezes & Ventura, 2013). Segundo Diniz e

Guilhem (2017, p. 15) “o desenvolvimento tecnológico fez surgir dilemas morais inesperados

relacionados à prática biomédica”. Dessa forma, tornou-se substancial discutir sobre os

métodos relacionados ao “como morrer”, levando-se em consideração a autonomia,

sofrimento e dignidade do sujeito. Temáticas estas, que compõem o cerne das discussões

bioéticas (Felix et al., 2013).

Em um breve percurso histórico, Diniz e Guilhem (2017) apontam mudanças do ponto

de vista social e moral que contribuíram para que a bioética surgisse, tais como: as pesquisas

realizadas nos campos de concentração nazista, as duas guerras mundiais e os tratados de


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direitos humanos. Por volta de 1974 organizou-se nos Estados Unidos a Comissão Nacional

para a Proteção do Sujeito Humano em pesquisas biomédicas. O resultado desse trabalho

culminou na publicação do relatório de Belmont, que serviu como fator de impulso para a

consolidação da bioética nos centros universitários. Os achados deste relatório traziam que o

conhecimento biológico e a ética são imprescindíveis para o respeito aos valores humanos.

Baseados nesse fundamento foram construídos três princípios éticos universais: o respeito às

pessoas, a beneficência e justiça. O relatório de Belmont passou a ser utilizado na

biomedicina como referencial na tomada de decisão quanto a assuntos médicos polêmicos

(Diniz & Guilhem, 2017; Ribeiro, 2006). A bioética apresenta-se enquanto campo científico

interdisciplinar, intermediando os conhecimentos produzidos em cada contexto e cultura,

considerando a diversidade de crenças e valores que atravessam temas como a eutanásia

(Kovács, 2003). Neste campo, a eutanásia ganha espaço de destaque por se constituir sob um

pano de fundo controverso, que invoca diferentes valores e crenças sociais nas tomadas de

posições sobre o fim da vida.

Ao longo da história o termo eutanásia foi utilizado em menção a diferentes

designações. Atualmente, embora ainda exista um frágil consenso em relação ao seu contorno,

a eutanásia tem sido entendida como a prática que abrevia o fim da vida em situações de

terminalidade, a fim de proporcionar ao sujeito a possibilidade de evitar o sofrimento e

exercer sua autonomia e dignidade. Nesse sentido, reconhece-se a existência de uma

pluralidade de maneiras de classificação dessa prática. A eutanásia pode ser classificada

como: ativa, passiva, voluntária e involuntária. A ativa envolve a ação de outro, que age em

prol da provocação da eutanásia, já a passiva se refere à omissão de recursos, tais como:

aparelhos ou medicamentos, a fim de ocasionar a morte. A voluntária e involuntária envolvem

o contexto em que o paciente possui condições de consentir o procedimento ou não,

respectivamente (Felix et al., 2013; Menezes & Ventura, 2013). Outra prática relacionada aos
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debates sobre autonomia e dignidade em situações de terminalidade da vida é a distanásia.

Ainda de acordo com Felix et al., (2013) a distanásia pode ser compreendida como “morte

difícil” uma vez que se trata de um procedimento cuja finalidade consiste em, através do uso

de medicamentos e aparelhos prolongar o máximo de tempo possível a vida, em termos

biológicos. Não constitui o objetivo da distanásia refletir sobre o sofrimento do sujeito ou

qualidade do processo terminal.

Em alguns contextos, a eutanásia também pode ser vinculada à ortotanásia, ou seja, a

suspensão de recursos que possuem por finalidade estender o processo de morte, que por

vezes conferem um intenso grau de sofrimento para o sujeito. A ortotanásia tem sido

relacionada ao sentido de “boa morte” e “morte digna”, uma vez que seu conceito propõe a

morte a seu tempo, sem que seja antecipada ou adiada, possibilitando ao paciente todo o

cuidado necessário para evitar dor e sofrimento (Godinho, 2017).

No Brasil, a eutanásia é um procedimento criminalizado e suscita variados

posicionamentos e embates sociais e políticos. Os argumentos a favor, fundamentam-se no

princípio de que o sujeito deve ter direito de decisão no que concerne a própria vida, e ainda,

que a eutanásia pode ser interpretada de forma humanística, uma vez que livra o sujeito de

sofrimento e condições precárias de qualidade de vida em situações em que não haja

perspectiva de melhora, ou o enfermo encontra-se em fase terminal.

Não obstante, existem os que insistem em afirmar que uma vez descriminalizada, há a

possibilidade de a eutanásia ser aplicada de maneira indevida. Dessa forma, o paciente

poderia ser acometido por pressões psicológicas exercidas por terceiros movidos por

interesses financeiros ou outros não relacionados a fins altruístas. Ainda dentre os argumentos

contrários, do ponto de vista religioso, preconiza-se que a vida deve ser tratada como bem

sagrado e inviolável (Carmona et al., 2011). Kovács (2003) e Martin (1998) argumentam que

no Brasil existe um paradoxo legal uma vez que são assegurados por lei o direito à vida e o
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direito à dignidade humana, previstos na carta de direitos do cidadão da constituição de 1988,

porém, não se reconhece o direito de morrer. Dessa forma, o paciente não ocupa o lugar

central no manejo das decisões a respeito de como lidar com seu processo de morte, tampouco

é autônomo em relação à decisão sobre métodos de terminalidade da vida. A insegurança

acerca da inexistência de uma legislação voltada para essa finalidade, alimenta a conduta dos

profissionais em manter a distanásia como prática preponderante no país. A ortotanásia,

embora descriminalizada desde 2010 ainda é alvo de discordâncias e sua prática tutelada pela

justiça (Felix et al., 2013).

A atmosfera polêmica que engloba diversos posicionamentos no que concerne à

autonomia do sujeito, suscita a emergência de debates bioéticos a respeito das práticas de

cuidado engajando diversos saberes e compondo assim um terreno fértil para reflexões em

termos de representações sociais (RS). A teoria das representações sociais (TRS) nos permite

através de seu aporte teórico refletir sobre a apropriação do conhecimento científico pelo

senso comum. De acordo com Moscovici (1976) as RS envolvem um conjunto de

comportamentos, cognições, crenças e normas que circulam e se cristalizam através de

práticas e discursos. Todavia, essas teorias de senso comum possuem caráter dinâmico e não

estático, o que as mantém passíveis de mudanças.

Segundo o autor, representar não se configura em um ato de passividade, ou seja, o

produto da representação não é a criação de uma réplica do objeto. Não obstante, lida-se com

a ausência do objeto em si e a necessidade de evocá-lo. A cada vez que se representa algo ou

alguém, modifica-se e recria-se aquela realidade fenomênica sobre o mundo. Uma vez que se

considera o sujeito ativo nesse processo, e que as representações não tratam da reprodução

pura do objeto, pode-se entender o sujeito enquanto construtor da realidade. Implicado no

processo de apropriação e interpretação dos fenômenos no mundo também é modificado e

construído por essa realidade social.


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Nesse sentido, a representação social pode ser considerada enquanto produto e

processo de elaboração da realidade. Em termos de dimensão e em virtude de seu caráter

dinâmico, não há como precisar onde uma representação social começa ou termina. É

relevante destacar que nem toda representação é uma representação social. Existem também

representações individuais. Entretanto, toda representação é uma representação de algo, seja

direcionada a um indivíduo, no caso da representação individual, ou para um grupo,

representações sociais (Moscovici, 1976).

Segundo Santos (2005), o objeto da representação precisa ter relevância social para o

grupo e pode assumir diferentes formas de acordo com o contexto. Pode-se dizer também que

caracterizam o objeto elementos identitários que circunscrevem os grupos. É polissêmico no

que confere a produção de sentidos sobre o mesmo e até mesmo a sua nomeação. E polêmico,

pois por vezes envolve conflitos de valores e controvérsias. As práticas sociais atuam na

construção de representações sociais ao passo que as representações sociais também orientam

as práticas grupais. Segundo Moscovici (1976, p. 46) “a representação social é a preparação

para a ação, não só porque guia os comportamentos, mas sobretudo porque remodela e

reconstitui os elementos do ambiente que o comportamento deve acontecer”.

Este artigo tem como enfoque a abordagem estrutural, por se dedicar a investigação da

organização dos elementos que constituem uma representação social. Faz parte dessa

abordagem analisar a importância e função dos elementos centrais, as hierarquizações e

elementos de manutenção do funcionamento e dinâmica das RS (Santos, 2005). No que

confere à organização das RS dois sistemas destacam-se: o núcleo central e os esquemas

periféricos. O núcleo central reúne os elementos que caracterizam fundamentalmente a RS.

Este exerce papel estruturante e sua ausência poderia significar a inexistência de um objeto de

RS. Funciona então como “princípio organizador” (Sá, 2002). Enquanto estrutura, o núcleo

central desempenha especialmente as funções geradoras e organizadoras da RS. Estando a


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primeira atrelada à criação, transformação e significação dos elementos que formam a RS.

Enquanto a segunda, concerne a um elemento de definição, “ unificação” e “estabilização” da

RS. O núcleo central “determina a natureza dos laços que unem em si os elementos

constitutivos da representação” (Abric, 1994, p. 22).

Já os esquemas periféricos agem como protetores do núcleo central, além de auxiliar

no modo de funcionamento econômico de uma representação social. Em outras palavras, os

esquemas periféricos agem de maneira a evitar a necessidade da constância de analisar as

situações em relação ao núcleo central (Flament, 2001). Desempenham uma função

normativa, no sentido de analisar as situações de acordo com o princípio organizador. Agem

como um “pára-choque“ entre os esquemas estranhos que buscam refutar o núcleo central,

impedindo que o mesmo mude com facilidade: “os desacordos da realidade são absorvidos

pelos esquemas periféricos, que assim asseguram a estabilidade relativa da representação”

(Flament, 2001, p. 178). Na abordagem estrutural, entende-se que é preciso que haja o

compartilhamento de um mesmo núcleo central para que se possa considerar elementos como

constituintes de uma mesma representação social (Flament, 2001).

Nesse contexto, pretende-se investigar comparativamente a estrutura das

representações sociais sobre eutanásia para estudantes de medicina e direito, com o intuito de

compreender as semelhanças e diferenças que compõem tais representações sociais. Faz-se

relevante investigar as representações sociais de eutanásia em relação a estudantes das áreas

do direito e da saúde, uma vez que, podem vir a ocupar um espaço de poder e se deparar em

sua práxis com discussões e situações que envolvem esse objeto.

MÉTODO

Trata-se de um estudo quanti-qualitativo de caráter exploratório.

Participantes
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Participaram da pesquisa 120 estudantes de universidades públicas de Pernambuco,

maiores de 18 anos, matriculados nos cursos de medicina e direito. Foram selecionados

estudantes de todos os períodos do curso durante os dois semestres letivos de 2016. Levando

em consideração o número integral de participantes, 55% foi composta por mulheres e 45%

homens. Quanto à variável religião 67,5% se declararam não praticantes e 32% praticantes.

Instrumentos

A coleta de dados foi realizada através da aplicação de um questionário de associação

ou evocação livre de palavras, com o termo indutor eutanásia. Dessa forma, foi solicitado aos

participantes que escrevessem as 5 primeiras palavras que lhe viessem à cabeça quando se

pensa no termo eutanásia. Posteriormente, foi pedido que realizassem uma hierarquização da

importância de cada termo dado como resposta ao estímulo indutor. Foi aplicado também, um

questionário de identificação socioeconômica e religiosa.

Procedimentos de coleta de dados

A pesquisa foi realizada em diferentes espaços da universidade (corredores, sala,

bibliotecas). As respostas ao questionário foram posteriormente digitadas em planilhas do

Microsoft Office excel, gerando o corpus inicial da pesquisa.

Procedimentos de análise de dados

Os dados foram analisados no Iramuteq e R. TeMis. O Iramuteq é um software livre

de análise de dados textuais. O Tipo de análise realizada com o auxílio do IRAMUTEQ foi a

prototípica, uma técnica elaborada por pesquisadores da abordagem estrutural da teoria das

representações sociais (Camargo & Justo, 2013). As expressões evocadas e hierarquizadas

pelos participantes são distribuídas, pela análise prototípica, em quatro quadrantes. O primeiro

agrupa as expressões que foram mais frequentes e hierarquizadas como mais importantes,
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identificando assim uma hipótese para o provável núcleo central.

As palavras que formam o segundo quadrante ou primeira periferia dizem respeito aos

elementos que possuem um número alto de frequência de evocações, mas que não contam

com um grande grau de importância. O terceiro quadrante ou Zona de contraste conta com os

elementos que possuem maior grau de importância de e menor número de frequência. Já no

quarto quadrante ou última periferia encontram-se as palavras com menor grau de importância

e menor frequência de evocações. Os elementos destes 3 quadrantes juntos formam nas

representações sociais a zona periférica.

Também com o auxílio do IRAMUTEQ, foram extraídos os cálculos de frequências e

frequências múltiplas para a realização do teste de centralidade das evocações. Foi utilizado

um cálculo sobre o percentual de queda de frequência a partir da análise da frequência de

todas as palavras inicialmente distribuídas no primeiro e segundo quadrante da análise

prototípica. Com base na fórmula a seguir, também utilizada por Andrade (2014) e Morais

(2018), foi realizado o cálculo de queda de frequência:

∑ 𝑓𝑡 − ∑ 𝑓𝑝
𝑄𝑢𝑒𝑑𝑎 𝑑𝑒 𝑓𝑟𝑒𝑞𝑢ê𝑛𝑐𝑖𝑎 (𝑄𝐹 ) = × 100
∑ 𝑓𝑡
O cálculo de queda de frequência descrito acima funciona como um parâmetro para

regular a distribuição de palavras no primeiro quadrante, garantindo apenas a permanência de

termos com forte índice (≤40%) de evocação entre os três termos mais importantes.

O menu R.TeMis foi desenvolvido por Gilles Bastin Milan e Bouchet-Valat (2014). É

também um ambiente gráfico para utilização do programa estatístico R na análise de dados

textuais. Esse menu oferece a possibilidade de lematização do texto, transformando as

palavras ou expressões em termos através dos radicais das palavras. O R.TeMis foi utilizado

para a análise de correspondências múltiplas (ACM). Diferentemente do IRAMUTEQ, o

R.TeMis possibilita a análise de correspondência com as evocações (volume de texto menor),


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aceita variáveis com apenas duas modalidades para o cálculo de Análise de Correspondência

(AC) e realiza a ACM tanto a partir do cálculo de co-ocorrência, quanto sem este cálculo.

A análise de correspondências múltiplas, com as associações livres, oferece a

possibilidade de uma reorganização dos dados evocados a partir da associação das variáveis

com os respectivos fatores (ou variáveis latentes). Os conteúdos evocados foram, então,

distribuídos em um plano fatorial em função de sua maior aproximação (associação) com os

fatores, formando, assim, campos lexicais associados aos polos de cada fator (Oliveira &

Amaral, 2007).

Procedimentos éticos

Esta pesquisa recebeu autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da UFPE, com

protocolo: CAEE: 53822416.7.0000.5208. Conforme recomendam os critérios éticos a

serem seguidos, os participantes foram convidados a participar da pesquisa e autorizaram

sua participação conforme assinatura no termo de consentimento livre e esclarecido

(TCLE).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apresenta-se em primeiro, a hipótese de estrutura da representação para cada curso

para em seguida, em uma abordagem comparativa, investigar as modulações do campo

representacional.

Representações sociais de eutanásia entre estudantes de Medicina

Foram obtidas 297 expressões com o termo indutor eutanásia entre os estudantes de

medicina, destas, 84 foram diferentes. O percentual de queda de frequência geral para

essas expressões foi de 39,4%. Em função desse índice todas as expressões presentes
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no primeiro ou segundo quadrantes com percentual de queda de frequência inferior a

39,4% passam a constituir a hipótese do núcleo central da representação investigada.

Aquelas expressões que apresentam percentual superior a 39,4%, passam a ocupar o

sistema periférico (Figura 1).

Figura 1 Frequência (F), Ordem de Importância (I) e Queda de Frequência (QF) de


associações livres sobre eutanásia para estudantes de Medicina

Os elementos do primeiro quadrante: autonomia, alívio, liberdade, família, sofrimento

e morte, constituem a hipótese do núcleo central, podendo estar vinculados ao contexto de


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organização e definição da representação social de eutanásia para os estudantes de medicina.

São elementos que possuem um alto grau de frequência e importância para o grupo. As

evocações autonomia e liberdade estão intimamente ligados à noção de “morte digna” e do

sujeito como ativo no processo de decisão sobre como e quando morrer (Felix et al., 2013;

Martin, 1998). Refletem também as discussões bioéticas a respeito da manipulação e poder

sobre o corpo do outro (Diniz & Guilhem, 2017). Corpo este que possui vida, cuja própria

conceituação e limites estão marcadas por uma série de controvérsias (Martin, 1998).

As expressões alívio e sofrimento remetem a uma dimensão de conceituação e crença

da eutanásia como prática que livra o sujeito que sofre acometido por uma fase terminal, ou

seja, remetem a uma prática com fins humanísticos (Carmona et al., 2011). Já a forte presença

da palavra morte parece estar ligada à objetivação da eutanásia para os estudantes de medicina

e à dimensão de concretude da representação.

Embora as representações possuam um caráter dinâmico, o núcleo central possui certo

grau de estabilidade e constância. O que impede que a representação social mude

constantemente (Flament, 2001). Conforme dito anteriormente, o sistema periférico possui

uma função de proteção do núcleo central, possui relevância fundamental na manutenção da

estabilidade de uma RS. Age como obstáculos para que os esquemas estranhos não atinjam

com tanta facilidade o núcleo central, que é o componente que define as representações

sociais (Flament, 2001; Sá, 2002; Santos & Almeida, 2005). Algumas das expressões que

compõem o segundo e terceiro quadrante a saber: opção, dignidade, aliviar o sofrimento,

escolha, compaixão, respeito, doença e direito; parecem também remeter à noção de crença da

eutanásia como uma prática que livra o sujeito de um estado final de sofrimento reforçando os

elementos alívio e sofrimento presentes na hipótese do núcleo central. São conteúdos

representacionais que se ancoram provavelmente na ideia de ato de compaixão e respeito à

autonomia e dignidade no que concerne a vida e corpo do outro (Carmona et al., 2011). Esses
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elementos poderiam estar ligados à dimensão normativa das representações por remeterem à

ideia de regras sociais que para o grupo poderia estar relacionada às noções de direitos e

respeito ao outro (Santos & Almeida, 2005).

As evocações dúvida, decisão difícil, suicídio assistido e alívio do sofrimento, aludem

a uma dimensão polêmica do objeto eutanásia para o grupo de medicina, por demonstrar a

crença na instalação de um conflito cognitivo ou de uma dificuldade na tomada de decisão

frente a esta prática. Pode-se observar também essa dimensão na presença de conflitos

relacionados às crenças sobre o objeto, de modo que, os conteúdos representacionais, acima

citados, revelam como o sistema periférico pode comportar a heterogeneidade do grupo

investigado, pois enquanto que para alguns a eutanásia remete ao alívio, para outros pode se

configurar em uma difícil decisão.

Representações sociais da eutanásia entre estudantes de direito

Foram obtidas 298 expressões com o termo indutor eutanásia entre os estudantes de

direito, destas, 133 foram diferentes. O percentual de queda de frequência geral para essas

expressões foi de 39,5%. Na figura 2 é possível observar as evocações produzidas pelos

estudantes do curso de direito.


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Figura 2 Frequência (F), Ordem de Importância (I) e Queda de Frequência (QF) de

associações livres sobre eutanásia para estudantes de Direito

Todas as palavras que se localizaram no primeiro quadrante, após a realização do teste

de centralidade constituem a hipótese do núcleo central da representação de eutanásia para os

estudantes de direito, a saber: alívio, dignidade, direito, família, liberdade, sofrimento. A

família aparece como uma figura de importância na literatura sobre eutanásia por possuir um

papel legal de responsabilidade em relação ao familiar, que por encontrar-se por vezes em

estado de grave comprometimento da saúde e não consegue responder por si (Felix et al.,
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2013).

As expressões dignidade, direito e liberdade parecem remeter à dimensão axiológica

das representações, enquanto valores compartilhados a respeito do direito do outro na

decisão a respeito de quando e como morrer. Aparecem com grande destaque no primeiro

quadrante as evocações: liberdade e direito, cuja ancoragem pode remeter aos direitos

fundamentais, como algo que possibilita ao sujeito ser autônomo em relação às decisões

sobre seu corpo e os limites da sua vida.

No segundo quadrante ou primeira periferia, as palavras morte, vida e escolha

aparecem com percentuais de queda de frequência semelhantes e com alto grau de frequência

de evocações. Essas expressões remetem à dimensão controversa e conflituosa em relação

aos sentidos que são produzidos acerca da ideia de vida, morte e seus limites. Bem como, em

relação à autonomia de escolha em relação a quem detém ou deveria deter o poder sobre o

próprio corpo e o corpo do outro. Seria o próprio sujeito? A família? Os profissionais da

saúde ou direito? A lei?

O elemento religião também pertencente à primeira periferia aparece como um

componente que possui um papel importante na definição das atitudes, crenças e práticas dos

grupos sobre o objeto eutanásia. A religião possui tamanho destaque nas tomadas de posição

e na construção de representações sociais sobre eutanásia, que esta investigação utilizou a

prática religiosa como modalidade de variável para compreensão das possíveis variações

entre as representações sociais. A evocação livre da palavra religião confere ainda

sustentação à escolha deste trabalho por controlar à prática religiosa dos participantes. A

análise de correspondências que apresentaremos ilustra a importância da prática religiosa na

configuração de diferenças no campo representacional da eutanásia.

O termo “ doença” destaca-se também na periferia por remeter a um dos elementos


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que regulam as práticas, valores atitudes e crenças sobre eutanásia. Na literatura além da

prática com fins beneficentes a noção de corpo acometido por grave doença e sofrimento

irreparável são algumas das condições que fazem parte do tênue limite que separa a eutanásia

da prática de suicídio ou homicídio.

Na zona de contraste emergiram expressões consonantes com a hipótese do núcleo

central, a saber autonomia, direito à vida e fim do sofrimento. A zona de contraste ilustra a

esfera de conflitos bioéticos no que concerne o direito e autonomia, dignidade da vida e

manipulação do próprio corpo e corpo do outro, como sugerem as palavras dor, tristeza, e

desespero que remetem a crenças nas emoções que podem estar ligadas ao objeto eutanásia.

O termo tabu aparece com destaque no terceiro quadrante. Pode-se refletir sobre esse

elemento atrelado a evocação morte. A noção sobre morte e finitude são encaradas como

temáticas difíceis de serem tratadas, especialmente no ocidente e que por vezes são sanadas

através do silêncio sobre o assunto (Martin, 1998).

Comparação entre as representações sociais de eutanásia para estudantes de medicina e

direito

Embora existam elementos compartilhados por ambos os grupos na composição da

hipótese do núcleo central e periferia da RS, existem também elementos únicos ligados ao

funcionamento próprio de cada grupo. De acordo com a leitura da abordagem estrutural sobre

as representações sociais, é preciso que haja um mesmo núcleo central para que se considere

que grupos compartilham da mesma representação social. A mudança de elementos no

princípio organizador e definidor das representações sociais pode ocasionar uma significação

distinta para a RS, configurando-a como uma nova representação social (Flament, 2001; Sá,

2002). Dessa forma, pode-se pensar na hipótese de que o grupo de medicina e direito embora
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compartilhem de elementos, representam o objeto eutanásia de maneira diferente.

Observa-se que ambos os grupos compartilham no primeiro quadrante os elementos

alívio, família, liberdade e sofrimento. Sofrimento e alívio podem estar vinculados à dimensão

das emoções dos grupos em relação a eutanásia. A evocação família é um elemento de

destaque e pode remeter-se tanto a relação dos profissionais de medicina e direito com a

família do sujeito que deseja ou não praticar a eutanásia, quanto à relação do próprio sujeito

com a família nesta circunstância.

As palavras dignidade e direito aparecem com maior força para o grupo de direito pois

compõem a hipótese do núcleo central da RS enquanto que figuram na zona de contraste para

o grupo de medicina. Estes elementos parecem vinculados mais fortemente às crenças,

atitudes e valores dos estudantes de direito em relação a prática da eutanásia, suscitando uma

dimensão identitária.

As evocações autonomia e morte destacam-se por fazer parte da hipótese de núcleo

central para o grupo de medicina. Autonomia pode estar ligada à dimensão normativa da RS

para o grupo de medicina, como algo que poderia ser assegurado ao sujeito que deseja praticar

a eutanásia. Este termo alude também aos conflitos bioéticos em relação a quem tem o poder

sobre o corpo e decisão sobre os métodos de como morrer, remetendo aos dilemas da

profissão do médico: como respeitar a autonomia do paciente?

Para a análise prototípica foi utilizada uma clivagem por curso, buscando-se

evidenciar uma hipótese de núcleo central da RS de eutanásia para cada grupo estudado. A

análise de correspondência múltipla auxiliou a interpretar a associação de conteúdos

representacionais a variáveis previamente controladas, no caso, curso, gênero e prática de

religião. Não foram observadas diferenças quanto ao gênero, entretanto o campo

representacional da eutanásia apresenta modulações em função do curso e da prática da


21

religião (figura 3).

Figura 3 Projeção fatorial das associações livres a partir da análise de correspondências


múltiplas para os dois grupos estudados (estudantes de direito e de medicina)

No fator 1 (eixo horizontal) observa-se a polarização entre a variável curso e os

elementos com maior índice de contribuição para este fator, sendo o percentual de inércia

54,3%. No polo positivo localiza-se a variável curso de medicina e no polo negativo, a

variável curso de direito. Identificou-se, uma distribuição entre conteúdos ligados a uma

análise reflexiva sobre a eutanásia versus conteúdos destinados a considerações práticas sobre

o objeto. Tal variação de posicionamentos entre os estudantes de direito e medicina, pode nos

indicar atitudes frente aos tipos de exigências de tomada de decisões em suas práticas

profissionais.

Considera-se que os elementos com maior percentual de contribuição para cada curso
22

localizam-se próximos às extremidades laterais da figura. O polo positivo do eixo horizontal

foi nomeado: prático, em virtude da conotação prática que circunscreve os conteúdos mais

associados a este polo, a saber: morte, terminal, lei, paciente terminal. Percebe-se de modo

geral, que os termos que mais estão associados a variável curso de medicina, estão ligados às

preocupações relacionada a práxis do médico. Mais especificamente, como manejar a prática

da eutanásia frente ao paciente. Paciente esse, que é indivíduo, corpo, que sente dor, que

adoece, que sofre, que vive, que morre. Quais seriam os critérios que norteariam a prática da

eutanásia? Quem seriam os sujeitos que a solicitariam? Qual o lugar da medicina e do médico

frente essa demanda?

Os elementos morte, terminal, paciente terminal remetem na literatura à reflexão sobre

a própria conceituação do termo eutanásia. A situação de terminalidade é um dos critérios

utilizados por Menezes e Ventura (2013) para discutir sobre a conceituação da eutanásia. A

abreviação da vida e consequentemente o contato com a morte faz parte das reflexões

teórico- práticas a respeito desse tema. Sabe-se que não há um consenso quando se fala sobre

vida ou morte nos diversos campos do saber científico, religioso, político ou social (Siqueira-

Batista & Schramm, 2004). A dor é um forte elemento que aparece nessa dimensão prática

para o curso de medicina. O surgimento de tecnologias capazes de prolongar e manter a vida

vão suscitar do profissional de medicina reflexões sobre as formas de cuidado e de como

manejar essa dor (Ribeiro, 2006). Esse componente está ligado também a dimensão das

emoções que suscitam a prática da eutanásia, uma vez que a presença da dor é usada para se

pensar a eutanásia como um modo de escape a essa realidade em situações de terminalidade

(Menezes & Ventura, 2013).

E nesse sentido, a Bioética vem trazer reflexões sobre a dignidade dos sujeitos e

autonomia da qual desfrutam ou não em relação a seus corpos. Esses debates suscitam o

posicionamento dos profissionais que lidam com a gestão das práticas de cuidado dos corpos
23

dos indivíduos (Carmona et al., 2011).

A variável curso de direito está localizada no polo negativo do eixo horizontal. Este

foi denominado reflexivo em razão dos elementos mais significantes que o compõe, a saber:

tabu, direito à vida, dignidade, amor e subjetivo. Esses termos podem estar ligados às

possibilidades teórico-conceituais de se lançar um olhar sob esse objeto a partir de

referenciais dos campos do saber científico, social e político que o grupo de direito faz a

respeito da temática da eutanásia. Essa discussão se reporta também à prática, uma vez que o

teor dessas reflexões se volta para a aplicabilidade da eutanásia e as demandas que podem

surgir para os profissionais de direito ao lidar com esse objeto.

O elemento tabu aparece na literatura fortemente ligado à discussão sobre eutanásia

uma vez que é inerente a reflexão sobre morte e finitude quando se toca neste ponto.

Siqueira-Batista e Schramm (2004) vão insistir que especialmente na cultura ocidental a

temática da morte ou fim da vida mantém-se velada por gerar incertezas e até mesmo

sofrimento. E neste âmbito a perpetuação do silêncio emerge como uma possibilidade de

saída para os assuntos delicados e polêmicos de serem tratados (Martin, 1998).

A expressão direito à vida pode estar relacionada à dimensão de reflexão prática e

valorativa da representação social da eutanásia para os estudantes de direito uma vez que

esse profissional lida com a viabilidade e licitude legal das ações na sociedade. Remonta

igualmente às discussões bioéticas sobre empoderamento dos indivíduos a respeito das

decisões no que concerne seu corpo e vida (Kovács, 2003; Ribeiro, 2006). Os elementos

dignidade e amor, podem remeter a dimensão valorativa das representações sociais da

eutanásia para o grupo de direito. Na conceituação sobre eutanásia é colocado que essa

prática pode ser interpretada com um fim de beneficência para o sujeito, misericórdia, ou seja

um ato de amor. Nesse sistema de pensamento isso se explica devido ao fato dessa prática
24

livrar o sujeito de uma condição de sofrimento e dificuldade irreparável. Nesse sentido, de

acordo com os princípios bioéticos ela promoveria também a dignidade dos sujeitos ao

proporcionar o poder de decisão a respeito de como gerir essa condição de saúde e o

processo de morte.

A adesão religiosa obteve uma forte associação para o fator 2 (vertical) da análise de

correspondência, demonstrando uma acentuada contribuição para polarização dos conteúdos

numa dimensão valorativa sobre a eutanásia. Especificamente, a modalidade religião

praticante destacou uma associação entre a adesão a prática religiosa e uma atitude negativa e

condenatória sobre a eutanásia.

Os elementos família e responsabilidade aludem a reflexão sobre quem deverá deter o

poder de decisão a respeito da prática da eutanásia. Ao mesmo tempo, a expressividade que o

termo família ganha nessas representações sociais de eutanásia, demonstra uma dimensão

relacional da prática, de modo que o processo de tomada de decisão a esse respeito, parece

invocar a participação familiar, seja direta ou indiretamente.

Já os elementos crime, complexo e conflito podem remeter aos argumentos religiosos

também usados para justificar a criminalização da eutanásia. Estes, sustentam que a vida é

um bem sagrado e inviolável. E ainda que a vida e a morte pertencem a Deus, logo não

caberia ao próprio sujeito ou a seus familiares decidirem como e quando uma vida deve ter

fim. Nesse sentido, romper com essa ordem é transgredir a uma norma/lei religiosa. A ideia

de conflito e complexidade podem estar relacionadas a outras normas religiosas,

principalmente as de origem cristã. Pois, embora a vida pertença a Deus nessa perspectiva, o

homem também possui o direito de livre arbitrar em suas decisões (Carmona et al., 2011).

No polo positivo, identifica-se a associação da variável religião não-praticante. Os

elementos que o compõe são: hospital, individual, escolha, liberdade, fim, suicídio assistido,
25

decisão difícil e compreensão. Os elementos desse polo aludem a uma dimensão mais

reflexiva que condenatória, se comparado ao polo negativo. Os elementos, hospital, individual

e suicídio assistido, podem estar relacionados ao modo de praticar a eutanásia e as maneiras

de interpretá-la. Já o elemento fim, remete à situação terminalidade, determinante para a

conceituação da eutanásia. Embora não exista um consenso a respeito do conceito de finitude,

a morte aparece como um componente inerente a essa discussão (Martin, 1998).

Os elementos, liberdade, escolha e compreensão destacam um posicionamento

favorável ao direito de escolha e a liberdade no processo de tomada de decisão. Já o termo

decisão difícil, acentua o caráter polêmico e socialmente sensível para a realização desta

tomada de decisão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise desenvolvida neste artigo possibilitou verificar variações entre a organização

global dos elementos centrais das representações sociais de eutanásia para estudantes de

direito e de medicina, permitindo a construção da hipótese sobre a existência de duas

representações sociais distintas sobre esse objeto. A abordagem estrutural propõe que o lugar

de coerência de uma representação social é o seu núcleo central, argumento que ratifica a

hipótese de diferentes representações sociais para grupos que possuem elementos e

organização variados em seus núcleos centrais, uma vez que a coerência global da

representação seria alterada em função das alterações em seu princípio definidor e

organizador. Desse modo, foi possível identificar, através da análise prototípica, uma variação

entre de um lado uma representação normativa, apoiada na prática e objetivada na morte para

os estudantes de medicina, e do outro uma representação apoiada numa análise mais coletiva e

reflexiva sobre a eutanásia, preocupada com valores e emoções ligadas ao conceito de

eutanásia, para os estudantes de direito.


26

A análise de correspondências múltiplas (ACM) realizada, auxiliou na compreensão

das especificidades nos campos de sentidos que cada grupo construiu sobre a eutanásia. Foi

possível identificar duas polarizações nesse quadro de análise, uma vinculada à associação

com o curso e outra à adesão à prática religiosa. Quanto ao curso, a análise de

correspondências múltiplas ratifica a hipótese proposta pela análise prototípica, cuja variação

entre os sentidos que os estudantes produzem sobre a eutanásia se apoia numa antinomia entre

reflexão e prática. Nesse sentido, os conteúdos mais específicos para estudantes de direito e

medicina, também evidenciam uma variação nas ancoragens entre um campo mais reflexivo

sobre a eutanásia versus um foco sobre o contexto prático.

Quanto à adesão à prática religiosa, destaca-se na ACM uma variação entre

posicionamentos mais favoráveis e mais desfavoráveis sobre a prática da eutanásia. De um

lado acentua-se um tom condenatório e resistente à autonomia e liberdade de escolha no

contexto de eutanásia, associados à modalidade de variável religião praticante. Do outro,

associados a modalidade religião não praticantes, ressaltam-se elementos ligados a defesa de

valores referentes a livre escolha e a tomada de decisão individual, demarcando um

posicionamento não condenatório sobre a prática.

Por meio das análises realizadas neste artigo, evidencia-se o caráter polêmico e

mobilizador social que a prática da eutanásia suscita entre os estudantes, de modo que não

apenas as suas pertenças às categorias de estudantes de medicina e direito, como também às

categorias de praticantes ou não de religião se mostraram como forças polarizadoras de

diferentes posicionamentos sobre a eutanásia. Por fim, esses resultados nos levam a

considerar que a delimitação e compreensão do objeto na construção da representação social é

circunscrita pelas ancoragens desses grupos, ou seja, por campos de conhecimentos prévios

que são alimentados por diferentes inserções sociais e pertenças grupais. Desse modo, as

variações identificadas nesta análise, pode nos indicar tanto a construção de diferentes
27

realidades e concepções sobre a prática de eutanásia, como uma variação no posicionamento

do próprio grupo de pertença, que impele à seleção e reorganização desta prática de maneiras

específicas.

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