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*1)* "O capítulo 1 de Mateus, tão desafiante no que toca ao salto de fé exigido a

quem lê, termina com uma frase que é habitualmente distorcida em muitas traduções
do Evangelho de Mateus, de modo a diluir a ideia por ela suscitada de que, após o
nascimento de Jesus, José e Maria poderão ter consumado o seu casamento (e daí a
origem, pelo menos hipotética, dos irmãos de Jesus, que Mateus referirá mais tarde
— pela primeira vez em 12,46). Com efeito, o v. 25 não significa “e, sem que antes
a tivesse conhecido, ela deu à luz um filho, no qual ele pôs o nome de Jesus” (como
se lê, por exemplo, na Bíblia dos Capuchinhos), mas sim “e ele [José] não a
conheceu até que ela tivesse dado à luz o filho, a quem chamaram Jesus”. Ou seja, a
ênfase de significado resultante das palavras gregas está primacialmente na ideia
de que José se absteve de consumar o casamento com Maria até o nascimento de Jesus.
Isso levanta algumas perguntas sobre a situação familiar do Jesus que encontramos,
já adulto, dirigindo-se ao rio Jordão para ser batizado pelo seu primo, João. É
sabido que o papa Bento XVI escreveu um livro inteiro sobre a infância de Jesus,
mas não foi por acaso que chamou a esse livro As histórias da infância (o título
original é Die Kindheitsgeschichten), pois a infância, adolescência e jovem"

*2)* "O que é transversalmente dito pelos quatro evangelistas é que Jesus era um de
vários irmãos (cf. Lucas 8,22; Marcos 6,3; João 2,12; 7,3). Na passagem em que
Jesus é apelidado de “filho do construtor”, Mateus nomeia os irmãos dele: Tiago
(Jacó), José, Simão e Judas (Mateus 13,55). No versículo seguinte, acrescenta-se a
informação de que Jesus tinha irmãs. Que irmãos e irmãs são esses? De quem eram
filhos? Terão José e Maria mais tarde consumado o seu casamento (admitindo a lógica
do Evangelho de Mateus que não o fizeram antes do nascimento de Jesus)? Por muito
que exegetas de vários quadrantes tenham afirmado que esses irmãos (adelphoi) são
primos ou parentes próximos, se nos ativermos estritamente ao texto dos quatro
Evangelhos, teremos de aceitar as palavras de C. K. Barrett, o grande comentador do
Evangelho de João: “Não há nada que sugira qualquer outra explicação, além de que
os irmãos são filhos de José e de Maria”.11 Nos primeiros séculos do cristianismo,
a crença de que a parturiente de Belém era virgem acabou por dar lugar a uma noção
mais absoluta de virgindade: estabeleceu-se, então, a ideia do caráter perpétuo
desse estado no corpo de Maria. Assim, o apócrifo Protoevangelho de Tiago (talvez
do século II) narrará a incredulidade da parteira Salomé em face da possibilidade
de que a mãe de Jesus permaneceu virgem a seguir ao parto. O exame ginecológico
empreendido pela parteira incrédula tem como resultado a confirmação do impensável
(além de deixar a mão de Salomé com graves queimaduras, como castigo divino pela
sua descrença). O mesmo Evangelho apócrifo tem o cuidado de sublinhar que os irmãos
de Jesus eram filhos da primeira mulher de José (à revelia do significado da
palavra adelphós, que significa “irmão uterino”). Caberá mais tarde a São Jerônimo
(no seu tratado sobre a virgindade perpétua de Maria) a propagação da ideia de que
a palavra “irmão”, nesse caso dos irmãos de Jesus, significa “primo”. Além da sua
situação familiar, também as circunstâncias da morte de Jesus são difíceis de
reconstituir ao certo a partir dos relatos que nos são oferecidos pelos quatro
evangelistas. Isso porque, se lermos esses relatos com um olhar objetivo,
dificilmente chegaremos à conclusão de que eles não se contradizem. Claro que uma
leitura precondicionada pela crença religiosa tenderá a pôr sobretudo em relevo os
pontos comuns; é sabido que, na sua encíclica Providentissimus Deus, o papa Leão
XIII estabeleceu que nenhuma leitura da Escritura Sagrada poderá “tornar
contraditórios entre si os autores inspirados” (§17). Talvez por isso verificamos
que até Hans Küng (o célebre teólogo contestatário que foi proibido pelo papa João
Paulo II de lecionar teologia em universidades católicas) teve dificuldade em
libertar-se da obrigatoriedade da leitura apologética dos Evangelhos, tendo chegado
assim a ponto de escrever que, na sua opinião, o que especialmente chama a atenção
no modo como a Paixão de Cristo é narrada pelos quatro evangelistas é o fato de os
quatro relatos serem “espantosamente coincidentes”.12 Na realidade, uma leitura
comparativa dos quatro relatos não suscita a impressão de coincidência."

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